Ao ser convidado para falar sobre a relação entre o trabalho subordinado e a etnia do empregado que o executa, quase que instantaneamente fui remetido ao tempo da escravidão. Vejam bem. Num país com o passivo histórico e cultural como o nosso, no qual as bases econômicas estiveram escoradas, por séculos, sobre os ombros dos negros escravizados, torna-se inexorável remexer nesta chaga social para iniciar a digressão em torno do tema que me foi proposto. Especialmente quando lembramos que a ruptura com este estado de coisas aconteceu de maneira atabalhoada, sem a menor preocupação com as consequências advindas de uma libertação meramente formal, desprovida das mínimas condições sociais indispensáveis à construção de uma vida digna. Lançados ao mundo do trabalho "livre" sem educação, moradia, assistência à saúde, à maternidade e à infância, a população negra conquistou uma autonomia de fancaria, pois, ao fim e ao cabo, permaneceu com os grilhões das necessidades básicas bem atados aos seus tornozelos. De que modo conseguiriam comer, vestir-se, educar-se a si próprios e aos seus ou conquistar uma moradia salubre e confortável, quando o único instrumento de trabalho disponível ainda era o mesmo corpo, tingido com a mesma pele negra de outrora? Certamente que o preconceito arraigado à alma do brasileiro não desapareceu de uma hora para outra. Apesar de estereotipado como "homem cordial", desprovido do feroz segregacionismo anglo-saxônico e, pois, menos arredio à miscigenação, esta sua suposta mansidão não eliminou o racismo aprendido e apreendido ao longo de gerações. Ela pôde, quando muito, tê-lo escondido por detrás da convivência informal do dia a dia. Mas ele – o racismo – permaneceu latente, engessando a nossa pré-compreensão do mundo da vida ao ponto de impedir-nos de identificá-lo em nossas mais prosaicas decisões. E aqui volto ao ponto. Pode o empregador pautar-se no critério da raça para admitir, organizar, dirigir, disciplinar ou dispensar o empregado que se põe à sua disposição? Ora – dirão os mais apressados – é claro que não! O art. 3º, IV da Constituição de 1988 alçou a promoção de todos, sem preconceito de raça, a objetivo fundamental da República. E o seu art. 7º, XXX resolveu definitivamente este problema, ao positivar uma norma estruturada em formato de regra, cujo operador deôntico proibitivo torna-se facilmente aplicável através do seguinte modelo hipotético-condicional: se o critério de distinção for a "cor", então ele é inválido. Mais do que isso, a partir da vigência da Lei n. 9.029/95, configura-se crime discriminar qualquer trabalhador em virtude de sua "origem, raça, [ou] cor". Por que, então, debruçar-nos sobre este tópico? Não seria ele uma página virada da realidade jurídica brasileira? Nos itens desenvolvidos, pretendo convencê-lo de que ainda rodamos em círculo – um círculo deveras vicioso – quando lidamos com este tema.
Para citar este item
https://hdl.handle.net/20.500.12178/194871Notas de conteúdo
Discriminação direta: um mal individual à beira da extinção? -- Discriminação de facto e discriminação indireta: aferições concretas da neutralidade individual e o impacto desproporcional da neutralidade coletivaFonte
GOMES, Fábio Gomes. Raça e relações de trabalho. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, v. 10, n. 101, p. 51-66, jul. 2021.Veja também
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