O PODER JUDICIÁRIO COMO PODER POLÍTICO NO BRASIL DO SÉCULO XXI* Carlos Mário da Silva Velloso** Sumário: 1 - Introdução: a Justiça brasileira: formação histórica, o Supremo Tribunal de Justiça do Império; 2- O Judiciário na República, a Constituição Federal de 1891; 3- Justiça Federal e Justiça Estadual; 4-A Justiça Federal na Federação brasileira; 5 - A criação do Tribunal Federal de Recursos; 6 - Restauração da Justiça Federal de 1º grau; 7-0 Judiciário e as Constituições de 1934,1937,1946,1967 e EC n° 1/69; 8 - O Judiciário na ordem constitucional vigente; 9 - Poder Judiciário, Poder Político; 10 - Jurisdição constitucional: controle de constitucionalidade difuso e concentrado; 11 - A jurisdição constitucional da liberdade; 12-0 controle judicial da administração pública; 13 - Conclusão. 1-INTRODUÇAO: A JUSTIÇA BRASILEIRA: FORMAÇÃO HISTÓRICA. O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO IMPÉRIO Registrei, em palestras, que o Poder Judiciário brasileiro tem duas fases: a do Império e a da República1. Proclamada a Independência, em 1822, a primeira Constituição brasileira, de 25 de março de 1824, mandou instituir o Supremo Tribunal de Justiça, como sucessor da antiga Casa de Suplicação, que fora criada em 10 de maio de 1808. Esta, por sua vez, sucedera a Relação do Rio de Janeiro, instalada em 1751. Na Capital do Império haveria, também, segundo a Constituição de 1824, uma Relação, que deveria existir em cada Província. O Supremo Tribunal de Justiça seria composto de juízes letrados, tirados das Relações por suas antigüidades, os quais teriam o título de Conselheiros (Constituição, art. 163). A Lei de 18.9.1828 criou o Supremo Tribunal de Justiça, com dezessete Conselheiros. No ano anterior, é importante registrar, pela Lei de 11.8.1827, foram instituídos os cursos jurídicos no Brasil, em São Paulo e Olinda. A Constituição Imperial estabeleceu que “o Poder Judicial é independente, e será composto de Juízes e * Texto básico da palestra proferida no Congresso Portugal-Brasil, Ano 2000, na Universidade de Coim bra, Portugal, em 23.6.99. ** Presidente do Supremo Tribunal Federal; professor titular, aposentado, da Universidade de Brasília, UnB. 1. Carlos Mário da Silva Velloso, “O Supremo Tribunal Federal, Corte Constitucional”, em “Temas de Direito Público”, Del Rey Editora, 1" edição, 2“ tiragem, pág. 91. “O Poder Judiciário do Século XXI, em “Justiça: Promessa e Realidade”, Edit. Nova Fronteira, Rio, 1996, pág. 13. “Do Poder Judiciário: organização e competência”, em “Perspectivas do Direito Público”, Estudos em Homenagem a Miguel Seabra Fagundes, Del Rey Edit., 1995, pág. 219. Jurados, os quais terão lugar, assim no cível como no crime, nos casos e pelo modo que os códigos determinarem” (Constituição, art. 151). Os Jurados deveriam se pronunciar sobre os fatos e os Juízes aplicariam a lei. Foram criados os Juízes de Direito, que “serão perpétuos”, mas que poderiam ser suspensos pelo Imperador, após ouvido o Conselho de Estado. Só por sentença, entretanto, perderiam os seus cargos (arts. 153,154, 155). A tentativa de conciliação seria obrigatória e requisito de instauração da lide (art. 161). A conciliação ficaria sob a responsabilidade dos Juízes de Paz, que seriam eleitos (art. 162). A Constituição instituiu ação popular contra os Juízes de Direito, por suborno, peita, peculato e concussão, a ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso ou por qualquer do povo (art. 157). Esclarece o Desembargador Francisco Xavier Medeiros Vieira que o Judiciário, no Império, especialmente após a promulgação do Código de Processo em 1832, compunha-se assim: “1) O Supremo Tribunal de Justiça, com sede na capital do Império e jurisdição em todo o território nacional. Tinha por finalidade precípua conhecer do recurso de revista. Manifestava-se sobre nulidade manifesta e acerca de injustiça notória dos julgados. Atuava, assim, nestes dois únicos casos em apelos de decisões finais das relações. 2) Cortes de Apelação ou Tribunais de Segunda Instância, chamados de Relações de Distritos, posto que jurisdicionavam Distritos delimitados ou determinados, compreendendo, via de regra, mais de uma Província. 3) Juízes de Direito, nas comarcas. Estes julgavam em primeira e segunda instâncias. Em primeira, decidiam as causas de valor superior a 500$000; em segunda, conheciam dos recursos dos despachos e sentenças dos juízes municipais. 4) Juízes Municipais em cada termo, destinados a preparar os processos a eles submetidos, sentenciando em causa de valor inferior a 500$000 e submetendo as demais ao Juiz de Direito. 5) Juízes de Paz, com alçada até 100$000, isto é, julgando feitos até este valor, com apelação ao Juiz de Direito. Sua destinação primeira, entretanto, ainda tem eco nos dias atuais em muitas comarcas: era de chamar as partes à reconciliação. 6) Câmaras Especiais, onde pontificavam Juízes Substitutos do Juiz de Direito, com atribuições idênticas aos Juízes Municipais."2 O Supremo Tribunal de Justiça não se firmou como poder, não tinha característica de poder político. Os ilimitados poderes de moderação do Imperador concorreram para que aquele Tribunal não fosse um Tribunal às inteiras. Mas o que concorreu, sobremaneira, para que o Supremo Tribunal de Justiça não fosse um poder foi a inexis- 2. Francisco Xavier Medeiros Vieira, “Desde o Brasil - Colônia”, em “Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Um Século”, Florianópolis, SC, 1991, pág. 129. tência, na Carta Política do Império, do controle de constitucionalidade das leis e da Administração Pública pelo Judiciário. Por influência do constitucionalismo francês, o controle de constitucionalidade, na Carta Imperial, era do próprio Legislativo. 2-0 JUDICIÁRIO NA REPÚBLICA, A CONSTITUIÇÃO DE 1891 Em trabalho que escrevi3, registrei que a República, “proclamada a 15 de novembro de 1889”, marca o surgimento do Supremo Tribunal Federal como poder. O Decreto n° 510, de 22 de junho de 1890, significou o primeiro passo para a instituição do Supremo Tribunal Federal, nos moldes da Suprema Corte norte-americana. O Decreto n° 848, de 11 de outubro de 1890, transformou o Supremo Tribunal de Justiça no Supremo Tribunal Federal. Promulgada a Constituição republicana, a 24 de fevereiro de 1891, instalou-se o Supremo Tribunal Federal, no dia 28 de fevereiro de 1891, com quinze ministros, a maioria deles vinda do Supremo Tribunal de Justiça, maioria essa que, entretanto, “pouco se demoraria no novo Tribunal”, informa Lêda Boechat Rodrigues4. O Poder Judiciário, na República, assume posição de poder político. Esclarece Seabra Fagundes, em conferência pronunciada em 1952, que “vínhamos, em 1891, do Império, onde a Justiça não tinha nenhuma expressão política. Era um poder que se limitava a dirimir as controvérsias do direito privado, de modo que os atos da Administração Pública escapavam, por inteiro, ao seu controle. E, de chofre, pela instituição da República, o Poder Judiciário foi elevado a plano de excepcional importância na vida política do País. Atribuiu-se-lhe, ao lado da função que já era sua, de mero dirimidor das questões de ordem privada, uma outra, de maior importância: a de guardar os direitos individuais contra as infrações decorrentes de atos do Poder Executivo e do Poder Legislativo, inclusive e notadamente quando esses atos afetassem textos constitucionais. Isso equivalia, de certo modo, a fazê-lo fiador da seriedade mesma do regime como construção política, pois, ao declarar a prevalência da Lei Suprema em face de atos legislativos ou administrativos que a afetavam, o que fazia o Judiciário era preservar as próprias instituições republicanas, pela contenção dos demais poderes nas suas órbitas estritas de ação e pela garantia ao indivíduo da sobrevivência dos seus direitos, fossem quais fossem as prevenções contra eles armadas”. Adotou a Carta de 1891, portanto, o modelo norte-americano, que mereceu elogios de Édouard Laboulaye: “Onde, porém, começa a diferença, onde os Estados Unidos fizeram uma verdadeira revolução, foi quando eles intuíram que a Justiça deveria fazer-se também um poder político”5. O Supremo Tribunal Federal passa a realizar, com a Constituição republicana de 1891, aquilo que o Imperador de certa forma desejava: relata Leda Boechat Rodrigues que, “em julho de 1889, indo Salvador de Mendonça, acompanhado de Lafayette Ro- 3. Carlos Mário da S. Velloso, “O Supremo Tribunal Federal, Corte Constitucional”, em “Temas de Direito Público”, Del Rey Editora, 1994, pág. 88. 4. Lêda Boechat Rodrigues, “História do Supremo Tribunal Federal”, Ed. Civilização Brasileira, Rio, 1965,1/7. 5. E. Laboulaye, “Do Poder Judiciário”, in “A Constituição dos Estados Unidos”, 1866, tradução de Lenine Neguete, AJURIS, 4/13 drigues Pereira, despedir-se de D. Pedro II, a fim de cumprir missão oficial nos Estados Unidos, ouviu do Imperador as seguintes palavras: “Estudem com todo o cuidado a organização do Supremo Tribunal de Justiça de Washington. Creio que nas funções da Corte Suprema está o segredo do bom funcionamento da Constituição norte-americana. Quando voltarem, haveremos de ter uma conferência a esse respeito. Entre nós as coisas não vão bem, e parece-me que se pudéssemos criar aqui um tribunal igual ao norte-americano, e transferir para ele as atribuições do Poder Moderador da nossa Constituição, ficaria esta melhor. Dêem toda a atenção a este ponto”6. Salvador de Mendonça e Lafayette Rodrigues Pereira não tiveram tempo de trazer ao Imperador as suas observações, dado que, a 15 de novembro de 1889, quatro meses depois, a República era proclamada. A idéia, entretanto, registra Lêda Boechat Rodrigues, “parecia estar na consciência de outros”, dado que a Constituição de 1891, conforme já falamos, adotou, no tocante ao Supremo Tribunal Federal, o modelo da Suprema Corte americana, outorgando-lhe, expressamente, “o poder de declarar a inconstitucionalidade das leis”7. 3 - JUSTIÇA FEDERAL E JUSTIÇA ESTADUAL A Constituição de 1891 instituiu não somente a forma republicana de governo, mas, também, a forma de Estado federal. Na Federação, a Justiça deve ser dual, vale dizer, coexistem, no seu território, órgãos judiciários federais e órgãos judiciários estaduais. Isso foi consagrado pela Constituição de 1891. A respeito, escrevi8 que, “numa Federação, o Poder Judiciário se diz dual, por isso que coexistem, no território do Estado Federal, órgãos judiciários federais e órgãos judiciários estaduais. Quer dizer, ao lado de um Poder Judiciário federal, há Poderes Judiciários estaduais, formando ambos o Poder Judiciário Nacional”. Há quem tenha opinião contrária a isso. Oliveira Viana escreveu: “sou pela unidade da magistratura. Nenhum argumento encontro que me convença da necessidade da conservação do regime atual da dualidade da Justiça, sejam quais forem as modificações propostas para remediar-lhe os inconvenientes”9. É que, para Oliveira Viana, as liberdades civis estariam muito mais garantidas “por autoridades vindas de fora - de origem carismática, cuja investidura não poderá provir senão de uma fonte nacional, num regime de “descentralização desconcentrada” - e não de “descentralização federalizada”, como a que temos”10. Oliveira Viana, defensor da unidade da magistratura, bateu-se, então, pela federalização dos Judiciários estaduais, opinião que é adotada, comumente, pelas magistraturas de Estados-membros, que não remuneram condignamente os seus juízes. 6. Lêda Boechat Rodrigues, ob. cit., pág. 1. 7. Lêda Boechat Rodrigues, ob. e loc. cits. 8. Carlos Mário da S. Velloso, “O Poder Judiciário na Constituição - Uma Proposta de Reforma”, in “Temas de Direito Público”, Del Rey Editora, 1994, pág. 23. 9. Ap. Alcino Salazar, “Poder Judiciário - Bases para Reorganização”, Forense, 1975, pág. 79. 10. Oliveira Viana, “Instituições Políticas Brasileiras”, José Olímpio.Editora, 2ªed. 1955,11/635. O certo é que, conforme acima falamos, numa Federação coexistem órgãos judiciários federais e estaduais, afirmando Pedro Lessa que “à organização constitucional tem sido sempre inerente a dualidade da Justiça”, como ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, no México, na Colômbia, na Venezuela, na Argentina e na Suíça11. Ora, se os Poderes Legislativo e Executivo são organizados, no Estado Federal, de modo dual, não haveria razão lógica na não aplicação do mesmo raciocínio ao Poder Judiciário12, o que foi acolhido por Jorge Lafayette Pinto Guimarães em trabalho que escreveu a respeito da Justiça Federal de 1a Instância13. Convém lembrar que a autonomia estadual é elemento fundamental do federalismo, caracterizando-se ela pela auto-organização, pelo autogoverno e pela auto- administração. O autogoverno, por sua vez, é caracterizado pelo fato de os Estados- membros terem governo próprio, Legislativo, Executivo e Judiciário. 4 - A JUSTIÇA FEDERAL NA FEDERAÇÃO BRASILEIRA Proclamada a República e instituída a Federação, em 15 de novembro de 1889, criou-se, antes mesmo de ser promulgada a primeira Constituição republicana, a Justiça Federal, com o Decreto n° 848, de 11 de outubro de 1890. A Constituição de 1891 ratificou a instituição da Justiça Federal, ao estabelecer, no seu artigo 55, que o Poder Judiciário da União seria exercido pelo Supremo Tribunal Federal e tantos juízes e tribunais federais, distribuídos pelo país, quantos o Congresso criasse. Seguiram-se a Lei n° 221, de 20.XI, 1894, e o Decreto n° 3.084, de 5.XI.1898, que constituiu a Consolidação das Leis da Justiça Federal. No sistema da Constituição de 1891, existiam os Juízes Federais de 1º grau e a segunda instância da Justiça Federal era exercida pelo Supremo Tribunal, sistema que persistiu na Reforma de 1926 e na Constituição de 1934 (arts. 63, 68, 70 e 71). A Carta Política de 1937, que veio no bojo do golpe de 37, suprimiu a Justiça Federal de 1a Instância. “O sistema passou a ser não o da Justiça dual como adotado, cada uma com o seu tipo, nas Constituições de 1891 e de 1934, e sim o da Justiça única, mas a estadual, salvo a competência do Supremo Tribunal”, certo que a este “se atribuiu, além dos processos ou julgamentos de modo geral já admitidos nos textos constitucionais anteriores, a competência para julgar, em recurso ordinário”, as causas de interesse da União14. 11. Pedro Lessa, ob. cit., pág. 4. 12. Bernard Schwartz, “Direito Constitucional Americano”, Forense, 1966, Tradução de Carlos Mayfeld, págs. 56 e segs. 13. Jorge Lafayette Pinto Guimarães, “Considerações sobre a Justiça Federal de 1" Instância”, em “Rev. de Direito do Proc. Geral do Estado do Rio de Janeiro”, 17/431. 14. Alcino Salazar, ob. cit., pág. 89. 5 - A CRIAÇÃO DO TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS A Constituição de 1946 criou o Tribunal Federal de Recursos, dando-lhe competência jurisdicional antes confiada ao Supremo Tribunal Federal, mas não restaurou a Justiça Federal de 1a Instância. As questões de interesse da União, suas autarquias e empresas públicas continuariam sendo julgadas, em 1º grau, pelos juízes estaduais, com recurso para o TFR. A este, conforme acima falamos, confiou-lhe o constituinte competência jurisdicional antes conferida à Corte Suprema. Competia-lhe, então, basicamente, processar e julgar, em grau de recurso, as causas em que a União fosse interessada como autora, ré, assistente ou opoente, ou quando se tratasse de crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, bem assim as decisões de juízes locais, denegatórias de habeas corpus e as proferidas em mandados de segurança, se federal a autoridade apontada coatora; originariamente, julgaria os mandados de segurança impetrados contra ato de Ministro de Estado15. 6 - RESTAURAÇÃO DA JUSTIÇA FEDERAL DE 1º GRAU A restauração da Justiça Federal de 1º grau deu-se com o Ato Institucional nº 2, de 27.X. 1965, que alterou os artigos 94 e 105 da Constituição de 1946. Estabeleceu-se, então, a competência dos juízes Federais, que compreenderia, de modo geral, as causas em que a União ou entidade autárquica federal tivesse interesse, na condição de autora, ré, assistente ou opoente, exceto as de falência e acidente de trabalho. Em matéria criminal, a Justiça Federal seria competente para o julgamento dos crimes políticos e dos praticados em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas autarquias, ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral. Sobreveio, em seguida, a Emenda Constitucional nº 16, de 26.XI.1965, que complementou a sua estrutura. A Lei nº 5.010, de 30.V.1966, organizou a Justiça Federal de 1a Instância, agrupou as Seções Judiciárias (Estados-membros) em cinco regiões, criou o Conselho da Justiça Federal, com a competência de supervisão da administração superior dos órgãos da Justiça Federal, cuidou da jurisdição, da competência, dos direitos, garantias e deveres dos juízes Federais e estabeleceu os serviços auxiliares da Justiça Federal. A Constituição de 1967 confirmou a Justiça Federal de 1º grau. Toda a sua competência passou a ser constitucional, vale dizer, inserida na Lei Maior, o que não se alterou com a Emenda Constitucional n° 1, de 1969 (C.F. de 1967, arts. 118 e segs,; EC n° 1, de 1969, artigos 123 e segs.). Vieram a lume, em seguida à Lei n° 5.010, de 1966, inúmeros diplomas legais que dizem respeito à Justiça Federal, como, por exemplo, o Decreto-lei n° 30, de 17.XI.66, que acrescentou o inciso IV ao art. 15 da Lei nº 5.010, de 1966; o Decreto- Lei n° 253, de 28.11.67, que introduziu alterações na Lei n° 5.010/66; a Lei n° 5.345, de 03.XI.67, que também alterou a Lei nº 5.010/66; o Decreto-Lei nº 384, de 26.XII.68, que estabeleceu critérios para a criação de novas Seções Judiciárias e criou a Seção da 15. Constituição de 1946, artigos 103 e 104. Justiça Federal em Santos (SP), a qual não veio a ser instalada; a Lei n° 5.677, de 19.VII.71, que dispôs sobre o Quadro de Juízes e o Quadro Permanente da Justiça Federal de 1a Instância, e extinguiu as Seções Judiciárias dos Territórios do Amapá, de Roraima e de Rondônia; a Lei n° 6.032, de 30.IV.74, que dispôs sobre o Regimento de Custas da Justiça Federal, convindo registrar que a Lei nº 6.789, de 28.V.80, modificou a redação do seu art. 15; a Lei nº 6.044, de 14.V.74, que trata da disponibilidade dos membros da magistratura federal, registrando-se que o seu art. 1° mandou contar aos Juízes Federais o tempo de advocacia, até o limite de 15 anos, e o seu artigo 2º alterou o artigo 5º da Lei n° 5.677, de 19.VII.71; a Lei n° 6.741, de 05.XII.79, que alterou o art. 62, IV, da Lei nº 5.010/66; a Lei nº 6.825, de 22.IX.80, que estabeleceu normas para maior celeridade dos feitos na Justiça Federal e no TFR; a Lei nº 7.007, de 29.VI.82, que criou cargos de Juiz Federal, para os fins previstos no art. 123, § 2°, da Constituição, e a Lei n° 7.178, de 19.XII.83, que dispôs sobre a reorganização da estrutura da Justiça Federal de 1a Instância. 7-0 JUDICIÁRIO E AS CONSTITUIÇÕES DE 1934, 1937, 1946, 1967 E EC Nº 1/69 A Constituição de 16 de julho de 1934 deu ao Supremo Tribunal Federal o nome de Corte Suprema, com os onze ministros fixados pelo Decreto n° 19.656, de 03.11.1931, e estabeleceu, no seu artigo 63, que seriam estes os órgãos do Poder Judiciário: a) a Corte Suprema; b) os juízes e Tribunais Federais; c) os Juízes e Tribunais Militares; d) os Juízes e Tribunais Eleitorais. A Justiça Eleitoral fora criada pelo Código Eleitoral de 1932, com base no Tribunal Eleitoral tcheco, de 1920, que foi criado sob a inspiração de Kelsen. A Constituição de 1934, portanto, a consagrou16. A Carta Política de 1937, constituição semântica, na classificação de Karl Lowenstein, porque simplesmente dava feição formal a uma ditadura, extinguiu a Justiça Federal de 1º grau, conforme vimos. As causas de interesse da União seriam julgadas, em 1a Instância, pelos Juízes estaduais, com recurso para o Supremo Tribunal Federal. Seriam estes os órgãos do Poder Judiciário, conforme estabelecido no artigo 90 daquela Carta: a) o Supremo Tribunal Federal, com onze ministros; b) Juízes e Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios; c) Juízes e Tribunais Militares. A Carta de 1937 ignorou a Justiça Eleitoral. A Constituição de 18 de setembro de 1946 restaurou a Justiça Eleitoral e criou o Tribunal Federal de Recursos, conforme registramos. Seriam estes os órgãos do Poder Judiciário, segundo a Constituição de 1946, art. 94: a) o Supremo Tribunal Federal, com onze ministros; b) o Tribunal Federal de Recursos; c) os juízes e Tribunais Militares; d) os juízes e Tribunais Eleitorais; e) os juízes e Tribunais do Trabalho. 16. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “Curso de Direito Const.”, Saraiva, 1970, pág. 168. A Constituição de 1946 integrou no Poder Judiciário a Justiça do Trabalho e, no seu art. 124, cuidou da Justiça dos Estados-membros. O Ato Institucional n° 2, de 27.10.65, restaurou a Justiça Federal de 1a Instância, o que foi ratificado pela Emenda Constitucional n° 16, de 26.11.65, e pela Lei n° 5.010, de 30.5.66. O A.I. n° 2, de 27.10.65, elevou para dezesseis o número de Ministros do Supremo Tribunal Federal. A Constituição de 24 de janeiro de 1967, vigente a partir de 15 de março de 1967, estabeleceu, no seu art. 107, os seguintes órgãos do Poder Judiciário: a) Supremo Tribunal Federal, com dezesseis Ministros; b) Tribunais Federais de Recursos e Juízes Federais; c) Tribunais e Juízes Militares; d) Tribunais e Juízes Eleitorais; e) Tribunais e Juízes do Trabalho. A Justiça dos Estados-membros foi tratada pelo art. 136. O Ato Institucional n° 6, de 1° de fevereiro de 1969, reduziu para onze o número de Ministros do Supremo Tribunal Federal. A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, art. 112, fixou os seguintes órgãos do Poder Judiciário: a) Supremo Tribunal Federal; b) Tribunal Federal de Recursos e Juízes Federais; c) Tribunais e Juízes Militares; d) Tribunais e Juízes Eleitorais; e) Tribunais e juízes do trabalho; f) Tribunais e Juízes Estaduais. A Emenda Constitucional n° 7, de 13.04.77, criou o Conselho Nacional da Magistratura. 8- O JUDICIÁRIO NA ORDEM CONSTITUCIONAL VIGENTE Na ordem constitucional vigente, inaugurada com a Constituição de 5 de outubro dè 1988, são estes os órgãos do Poder Judiciário (art. 92): I. o Supremo Tribunal Federal; II. o Superior Tribunal de Justiça; III. os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; IV. os Tribunais e juízes do Trabalho; V. os Tribunais e Juízes Eleitorais; VI. os Tribunais e Juízes Militares; VII. os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios. A Constituição de 1988 estabeleceu, ademais, que a União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: Juizados Especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de 1º grau, bem assim criarão Justiça de Paz composta de cidadãos eleitos, com competência para celebrar casamentos e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas em lei. 9 - PODER JUDICIÁRIO, PODER POLÍTICO A República, anotamos linhas atrás, fez do Judiciário brasileiro poder político, inspirando-se no modelo constitucional norte-americano. Esse poder político assenta- se na jurisdição constitucional e no monopólio da função jurisdicional conferidos ao Judiciário (C.F., art. 5o, XXXV). É dizer, a administração pública, o Estado, sujeita-se ao controle judicial. O exercício, pois, da jurisdição constitucional, nos seus dois aspectos - controle de constitucionalidade e jurisdição constitucional da liberdade, na classificação de M. Cappelletti - faz do Judiciário poder político. Anota Dalmo de Abreu Dallari que “a consagração do Judiciário como verdadeiro Poder, capaz de interferir eficientemente na vida política do Estado, tornou-se definitiva com o famoso caso Marbury vs. Madison, decidido pela Suprema Corte em 1803. Nessa oportunidade, um voto magistral do então presidente da Corte, John Marshall, afirmou a doutrina do amplo poder de controle judiciário sobre atos do Executivo e do Legislativo, através de interpretação das normas constitucionais, podendo até declarar nulos os atos dos demais Poderes julgados inconstitucionais. Essa doutrina deu fundamento a uma ampla atuação política de todos os juízes e teve, desde logo, enorme influência na vida dos Estados Unidos”17. A associação da jurisdição constitucional com o controle judicial dos atos da administração pública, sob o ponto de vista da legalidade e da constitucionalidade, reforça o conceito dô poder político do Judiciário. No Brasil, o Judiciário exerce, com amplitude, a jurisdição constitucional, nos seus dois campos: o do controle de constitucionalidade e o da jurisdição da liberdade. O controle judicial da administração pública tem sido ampliado, na linha, aliás, das novas correntes de direito administrativo que vêm sendo expostas por publicistas europeus e brasileiros. No Brasil, os princípios da moralidade, da impessoabilidade, da publicidade e da eficiência, além do tradicional princípio da legalidade, constituem princípios constitucionais regedores da administração pública (C.F., art. 37). 10 - JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DIFUSO E CONCENTRADO O Poder Judiciário brasileiro pratica o controle de constitucionalidade nos seus dois tipos, o controle difuso e o concentrado, em abstrato. Aquele, construído pelo gênio de John Marshall, no caso Marbury vs. Madison, de 1803, é praticado, no Brasil, por qualquer juiz ou tribunal, a partir da República e é no recurso extraordinário que o Supremo Tribunal Federal o exercita, proferindo a última palavra a respeito. O controle concentrado, em abstrato, surgiu por inspiração de Hans Kelsen, em 1920, na Áustria. Certo é que o controle de constitucionalidade - também esta afirmativa é de Mauro Cappelletti - passou, após a Segunda Grande Guerra, por um notável 17. Dalmo de Abreu Dallari, “O Poder dos Juízes”, Saraiva, 1996, p. 91 . florescimento18, o que continua ocorrendo, porque os povos europeus sentiram, na própria carne, os desmandos, o autoritarismo do Estado. Perceberam, então, que seria necessário redescobrir a idéia de Constituição, e que é preciso imaginar meios e modos de defendê-la. Nada protege mais os direitos individuais, a liberdade, do que as medidas judiciais; nada defende mais o breviário do povo livre, a Constituição, do que o controle jurisdicional de constitucionalidade. Os povos europeus compreenderam isso. O controle concentrado, dizia eu, surge do gênio de Kelsen, em 1920. Cria-se, na Áustria, uma Corte Constitucional para o fim de fazer controle de constitucionalidade concentrado, in abstracto. Esta Corte acabou cerrando as suas portas com a invasão da Áustria pelos nazistas. Restaurada a liberdade na Europa, restaura-se a Corte Constitucional austríaca, em 1945. O Tribunal Constitucional alemão é instituído pela Lei Fundamental de Bonn, de 1949. A Constituição Italiana, em vigor a partir de 1º de janeiro de 1948, instituiu a Corte Constitucional italiana. A Espanha, redemocratizada com a notável Constituição de 1978, instituiu também a sua corte constitucional, o Tribunal Constitucional espanhol. O mesmo ocorreu com Portugal, também redemocratizado, com a Constituição de 1976, na Reforma de 1982. O Brasil, que desde os albores da República já praticava o controle difuso, deu o primeiro passo, em 1934, para o controle jurisdicional concentrado, porque foi a Constituição de 1934 que instituiu a ação direta interventiva, prius da intervenção federal nos Estados-membros. Mas foi sob o pálio da Constituição de 1946, mais precisamente em 1965, com a Emenda Constitucional n° 16, que se instituiu no Brasil a ação direta objetiva, a representação de inconstitucionalidade, conferindo-se ao Procurador-Geral da República, e somente a ele, a legitimidade para a ação. A Constituição de 1988 alargou, sobremaneira, o controle de constitucionalidade no Brasil. No que toca à ação direta de inconstitucionalidade, ampliou a legitimidade ativa para a ação. Há um leque de órgãos públicos, de autoridades e até de entidades privadas que podem aforar a ação direta de inconstitucionalidade. A Emenda Constitucional n° 3, de 1993, nessa caminhada ampliativa do instituto do controle de constitucionalidade, instituiu a ação declaratória de constitucionalidade, com o protesto de alguns. Certo é que ela tem o seu lado polêmico, mas significa um notável reforço ao controle concentrado de constitucionalidade. A Constituição de 1988 instituiu, ainda, a argüição de descumprimento de preceito fundamental da Constituição, que deve ser regulamentada pelo legislador ordinário. Instituiu a Constituição de 1988, também, a inconstitucionalidade por omissão: também a omissão do legislador ordinário em regulamentar e tomar aplicáveis dispositivos da Constituição, constitui inconstitucionali- 18. Mauro Cappelletti, “The Judicial Process in Comparative Perspective”, Oxford, Clarendon Press, 1989, Capítulos 3,4 e 5; “Le Pouvoir des juges”, Aix-en-Provence, Economica, Presses Universitaires d’Aix - Marseille, 1990. “Constitucionalismo Moderno e o Papel do Poder Judiciário na Sociedade Contemporânea”, Rev. de Processo, 60/110. dade e está contemplada na Carta de 1988, inspirando-se o constituinte brasileiro, no ponto, na Constituição portuguesa de 1976. É relevante anotar que a Constituição do Brasil de 1988, inspirando-se na doutrina norte-americana do due process of law, inseriu no seu texto - C.F., art. 5o, LIV - o princípio do devido processo legal com caráter substantivo, que autoriza a declaração de inconstitucionalidade da lei que afronta o princípio da razoabilidade. O princípio do devido processo legal com caráter substantivo foi introduzido na Constituição de 1988, revela-nos José Afonso da Silva, por proposta de Carlos Roberto de Siqueira Castro, que foi concretizada pelo Deputado-constituinte Vivaldo Barbosa19. 11 - A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE A Constituição de 1988 ampliou, também, os remédios de direito constitucional que integram a jurisdição constitucional da liberdade. O habeas corpus é tradicional no direito brasileiro, constituindo garantia constitucional do direito à liberdade de locomoção (C.F., art. 5o, LXIX). O mandado de segurança foi ampliado: além do mandado de segurança para proteção de direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus, instituiu a Constituição o mandado de segurança coletivo, que pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional e por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados (C.F., art. 5o, LXIX, LXX). A Constituição de 1988 instituiu, também, o mandado de injunção, espécie de inconstitucionalidade por omissão, em concreto: conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (C.F., art. 5o, LXXI). A Constituição criou o habeas data, que tem por finalidade assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público e para retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo (C.F., art. 5o, LXXII). A ação popular teve ampliado o seu raio de proteção. Será ela proposta pelo cidadão e tem por finalidade anular ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Quer dizer, tanto o patrimônio público material quanto o patrimônio público moral são protegidos pela ação popular. Paralelamente, temos a ação civil pública, instituída pela Lei n° 7.347, de 24.VII.85, a qual, sem prejuízo da ação popular, visa a reprimir danos ao meio ambiente, ao consumidor e a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. A ação civil pública abrange, pois, os interesses difusos e coletivos e, em certos casos, os direitos individuais homogêneos. 19. José Afonso da Silva, prefácio ao livro de Carlos Roberto de Siqueira Castro, “O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil”, Forense, 1989. 12-0 CONTROLE JUDICIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA O constitucionalismo contemporâneo confere à cidadania um novo sentido. Ele quer o exercício consciente dessa cidadania, que se traduz na obrigação de o cidadão fiscalizar, cada vez mais, o Estado. O cidadão é o grande fiscal do poder público, mesmo porque este existe em razão daquele e para satisfazer as suas necessidades. Acontece que essa fiscalização se exerce mediante a ação do Poder Judiciário, vale dizer, mediante medidas judiciais. As reformas constitucionais que se fazem contemporaneamente visam a viabilizar esse desiderato. Vejamos a Constituição do Brasil de 1988. Ela se engaja, sem dúvida, na linha de fazer com que o cidadão seja cada vez mais fiscal do poder público. Ela estabelece, por exemplo, no inciso LXXIII do art. 5o, a ação popular, para o fim de proteger o patrimônio público, o patrimônio material e o patrimônio moral, porque a ação popular visa a proteger o patrimônio histórico e cultural, além de proteger o meio ambiente. Mas a Constituição de 1988 não ficou apenas nisso. Ela cobriu com o manto protetor da ação popular também a moralidade administrativa, essa mesma moralidade administrativa que o constituinte tomou princípio constitucional, que o constituinte de 1988, não temendo incorrer em demasia, pôs ao lado do princípio da legalidade, do princípio da publicidade e do princípio da impessoalidade (CF, art. 37). Assim, o juiz poderá estar diante de um ato administrativo formalmente perfeito, mas esse ato administrativo formalmente perfeito poderá ser ofensivo à moralidade administrativa. Desse modo, mesmo diante de um ato administrativo formalmente perfeito, haverá o juiz de dar por nulo o ato que viola o princípio constitucional da moralidade administrativa. Isso toma o juiz partícipe da atividade política, atividade política, evidentemente, no seu sentido exato, no sentido grego do termo. Esse controle tende a ampliar-se. Tenho lembrado, em conferências, que, hoje, na Europa, e também entre nós, há correntes doutrinárias de Direito Administrativo que inovam no tema do controle da administração pública pelo Poder Judiciário. Assim as posições doutrinárias de Eduardo Garcia de Enterria, na Espanha, de Afonso Queiró, em Portugal, de Guido Falzone, na Itália, de Agustin Gordillo, na Argentina, de Sérgio Ferraz e de Celso Antônio Bandeira de Mello, no Brasil. Num Estado de Direito tudo se faz de conformidade com a lei, vale dizer, a Administração age dando execução à lei, observando rigorosamente a lei. Em certos casos, a lei estabelece o único comportamento a ser adotado pelo administrador perante casos concretos. Noutras palavras, casos há em que o legislador preestabelece a situação de fato e o modo de agir do administrador diante de tal situação. Tem-se, em caso assim, vinculação, ou o ato a ser praticado pelo administrador é um ato vinculado. Noutros casos, entretanto, o legislador permite ao administrador, diante de certas situações fáticas, determinada margem de liberdade no praticar ou não praticar o ato, ou concede-lhe competência para escolher o momento de praticar o ato, ou defere-lhe opção quanto à forma do ato, ou autoriza o administrador a decidir sobre a providência a ser adotada entre alternativas que lhe são oferecidas. Nessas hipóteses, estamos diante da discricionariedade administrativa, que Celso Antônio Bandeira de Mello resume da seguinte forma: “Nestes casos, diz-se que há discricionariedade, porque cabe interferência de um juízo subjetivo do administrador no que atina, isolada ou cumulativamente: a) à determinação ou reconhecimento - dentro de certos limites mais além referidos - da situação fática ou b) no que concerne a não agir ou agir ou c) no que atina à escolha da ocasião azada para fazê-lo ou d) no que diz com a forma jurídica através da qual veiculará o ato ou e) no que respeita à eleição da medida considerada idônea perante aquela situação fática, para satisfazer a finalidade legal”20. Posta assim a questão, indaga-se: quando a lei concede ao administrador a faculdade de decidir com discricionariedade, ela o faz com que sentido? Ela estaria, ao conceder discricionariedade ao administrador, permitindo que este deixe de adotar comportamento que satisfaça a sua exata finalidade? Responde Celso Antônio que, bem ao contrário, a discrição é a “prova de que a lei sempre impõe o comportamento ótimo”. É que, “quando a lei regula discricionariamente uma dada situação, ela o faz deste modo exatamente porque não aceita do administrador outra conduta que não seja aquela capaz de satisfazer excelentemente a finalidade legal”. Ora, se o legislador quer que o administrador, diante das circunstâncias fáticas, adote a melhor solução, “se o comando da norma sempre propõe isto e se uma norma é uma imposição, o administrador está, então, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os comportados pela regra, mas, única e exclusivamente, aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei”21. Então, a obrigação que a lei impõe ao administrador de tomar a melhor das decisões, para o fim de atender à finalidade posta na lei, não é apenas uma obrigação política, mas é, também, uma obrigação jurídica, mesmo porque, na lição de Guido Falzone, há um dever jurídico de boa administração e não apenas um dever moral, “porque a norma só quer a solução excelente.” E se não for adotada a solução querida pela lei, que é a solução excelente, “haverá pura e simplesmente violação da norma de Direito, o que enseja correção jurisdicional, dado que terá havido vício de legitimidade”22. Repito: se a lei quer que o administrador tome a solução melhor para o fim de satisfazer a sua finalidade, vale dizer, a finalidade inscrita na lei, tem-se uma obrigação jurídica, por isso mesmo sujeita ao controle judicial. A doutrina é, na verdade, inovadora, inovadora e benfazeja. Ela altera conceitos, deixa longe o conceito clássico de mérito administrativo, aparta-se da afirmativa no sentido de que os motivos de oportunidade e de conveniência administrativa, utilizados pelo administrador, na prática do ato discricionário, são intangíveis ao controle judicial. Ora, diante de uma tal doutrina, o juiz passa a ter uma atuação política - não custa esclarecer, novamente, que quando falo em política, refiro-me à política em seu exato sentido, no seu sentido grego, não, evidentemente, à política partidária, que esse tipo de política nós, juízes, não pratica 20. Celso Antônio Bandeira de Mello, “Discricionariedade e Controle Jurisdicional”, Malheiros Ed., São Paulo, 1992, pág. 17. 21. Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit., págs. 32-33. 22. Guido Falzone, “II Dovere di Buona Amministrazione”, A Giuffrè Edit., 1953, págs. 87 e segs. Ap. Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit., págs. 36/37. mos e a queremos distante dos Tribunais - atuação política que confere preeminência à função jurisdicional. Essa doutrina de Direito Administrativo toma corpo, é objeto de considerações dos publicistas, constitui a tônica do moderno Direito Público23. Retomo às considerações a respeito da moralidade administrativa. O que se percebe é que os povos, quanto mais tomam consciência de sua cidadania, mais desejam que os atos dos governantes sejam marcados pela moralidade. Há como que uma fome de moralidade. Isso é muito bom. É claro que a moralidade administrativa, a moralidade jurídica, distingue-se da moralidade comum. Elas, entretanto, a moralidade jurídica e a moralidade comum, entrelaçam-se nos seus objetivos. O que parece certo é que, erigida a moralidade administrativa em princípio constitucional, muita vez o juiz terá de decidir a respeito de um ato administrativo formalmente perfeito, mas que é atentatório à moralidade administrativa. O Judiciário, por isso mesmo, deverá anulá- lo. Na medida em que as pessoas, no exercício de sua cidadania, fiscalizando o poder público, exigem efetiva atuação do Judiciário, para o fim de restaurar a moralidade administrativa, e na medida em que o Judiciário preste, a tempo e modo, a tutela jurisdicional, estará se fortalecendo como poder político. Isso tem ocorrido no Brasil. Os novos juízes, federais e estaduais, estão imbuídos dessas novas doutrinas de direito público. E os novos juízes trabalhistas têm nítida noção das garantias constitucionais sociais que se inscrevem no que poderíamos denominar de Direito Constitucional do Trabalho. Temos, pois, no Brasil um Judiciário que é um poder político. Manda a verdade que se diga, aliás, que poucos Estados têm um Poder Judiciário assim. A Itália, por exemplo, não tem um Poder Judiciário com tais características, tampouco a França. É preciso que os juristas estejam advertidos disso. Na verdade, é o Judiciário norte-americano o Judiciário mais poderoso e eficaz do mundo, que nos serve de figurino. É nos Estados Unidos que o Judiciário é, verdadeiramente, poder político. Na medida em que se fortalecem as doutrinas de proteção dos direitos fundamentais do homem, na medida em que à cidadania são reconhecidos direitos de participação no poder, fortalece-se o Poder Judiciário. Na França, fala-se numa revolução dos juízes, que, a cada dia, estão mais conscientes de que o poder político e o poder econômico não escapam da autoridade do Judiciário. Cada vez mais, na França, autoridades corruptas são investigadas por juízes de instrução, cada vez mais patrões e empresários são submetidos a ações judiciais. A campanha das “mãos limpas”, dos magistrados italianos, tem feito escola. 23. Sérgio Ferraz, “Controle Jurisdicional do Mérito do Ato Administrativo”, em “Perspectivas do Direito Público”, Del-Rey Ed., 1995, págs. 291 e segs. Do que foi exposto, penso que é possível concluir que o Poder Judiciário brasileiro, que, neste final do século XX, apresenta-se como poder político, haverá de ser, no século XXI, um Judiciário que irá influir nos diversos segmentos da sociedade e nos negócios políticos. O século XXI, anotou o juiz e professor Américo Lacombe, será o século do Poder Judiciário. A afirmativa é de Karl Marx, no sentido de que as idéias não se impõem. As idéias, as doutrinas, vão sendo absorvidas e prevalecem no momento em que aqueles que as professam assumem poder de decisão. As doutrinas de direito público, linhas atrás mencionadas, que ampliam o raio de ação do controle judicial, estão sendo apreendidas pelos novos juízes. A jurisdição constitucional, de outro lado, tem sido ampliada, nos seus dois campos, o do controle de constitucionalidade e o da jurisdição da liberdade. O Poder Judiciário do século XXI haverá de ser, portanto, árbitro da política, assim cada vez mais poder político.