AS CLÁUSULAS PÉTREAS E A PRETENDIDA REVISÃO DOS DIREITOS CONSTITUCIONAIS DO TRABALHADOR Arnaldo Süssekind* Os direitos do trabalhador elencados no art. 7º da Constituição de 1988 compõem o seu Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. E o art. 60 estatui que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais (§ 4o, inciso IV), com o que conferiu àqueles direitos a hierarquia de cláusula pétrea. A iniciativa da nova Carta Política alemã ao afirmar a inalterabilidade dos direitos fundamentais do cidadão emprestou ênfase especial à clássica distinção entre o poder constituinte originário ou genuíno e o poder derivado ou de reforma. Este há de ser exercido estritamente nos termos dos procedimentos, prazos, condições e limitações estabelecidos na delegação consubstanciada no texto original. Na advertência do eminente professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “mudança contra a Constituição é revolução, que somente o Poder originário pode efetuar”. E sublinha que, além das limitações circunstanciais e temporais, vigoram as materiais, que “excluem da mudança determinados pontos, os quais, assim intocáveis, se tornam o ‘cerne fixo’; o ‘núcleo fundamental’, as ‘cláusulas pétreas’ da Constituição.1 O Poder Constituinte originário se caracteriza pela ruptura da ordem jurídica anterior visando a implementar um novo ordenamento político-jurídico; o derivado objetiva a revisão do texto original ou a emenda de algumas de suas normas, não podendo, obviamente, exceder a autorização contida no texto genuíno que o instituiu. Aliás, seria ilógico, senão paradoxal, que o Poder Constituinte originário facultasse a reforma das instituições que ele considerou fundamentais para a organização do Estado de direito. Daí as limitações formais ou materiais, explícitas ou implícitas, entre as quais estão as chamadas cláusulas pétreas. Já o sempre lembrado Hans Kelsen afirmara ser “juridicamente impossível a reforma de uma Constituição ou preceito constitucional declarado irreformável”.2 E modernamente, o renomado mestre de Coimbra, Gomes Canotilho, lembra que o poder de revisão tem “o seu fundamento na Constituição, diferentemente do que ocorre com o poder constituinte que, como pode ser soberano, é prévio e independente de * Ministro aposentado do TST, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e Presidente Honorário da Academia Nacional de Direito do Trabalho. 1. “Poder Constituinte e Direito Adquirido”. In Revista de Direito Administrativo, n° 210/97, Rio de Janeiro: Renovar, p. 3. 2. Teoria General del Estado, trad. Espanhola, Madri: Labor, 1934, p. 332. Rev. TST, Brasília, vol. 67, nº 2, abr/jun 2001 15 DOUTRINA ordenamento”. Daí a necessária observância dos limites formais e materiais, sejam estes últimos expressos ou tácitos, absolutos ou relativos. E adverte: “a violação das nor­mas constitucionais que estabelecem a imodificabilidade de outras normas constitucionais deixará de ser um ato constitucional para se situar nos limites de uma ruptura constitucional”.3 Ao tratar dessas limitações, o professor IVO DANTAS acentua que, além das de caráter sociológico retratadas no modelo originário, o exercício do poder de reforma “esbarra na vontadepolítica dos que elaboraram o texto objeto de modificações, vontade esta que se manifesta no conteúdo dos limites materiais e formais”. E recorda a lição de Recásens Siches, no seu magnífico “Tratado General de Filosofia del Derecho”, para quem a competência para a reforma parcial da Constituição “não possui o caráter de poder constituinte stricto sensu, pela simples razão de que recebe essa faculdade da mesma Constituição que se vai reformar, cuja identidade fundamental persistirá através de todas as modificações normais que se lhe introduzam”.4 Como bem assinalou o Desembargador Fernando LuizXimenes da Rocha, “no afã de resguardar o princípio da dignidade da pessoa humana, o texto constitucional estabelece o primado dos direitos fundamentais, ao consagrar, em seus primeiros capítulos, um avançado elenco de direitos e garantias individuais, alçando-lhes ao patamar da cláusula pétrea, nos termos do art. 60, § 4o, inciso IV”.5 E, consoante assevera o douto professor cearense Paulo Benevides, “em observância aos princípios fundamentais que emergem do Título II da Lei Maior, faz-se mister, em boa doutrina, interpretar a garantia dos direitos sociais, como cláusula pétrea e matéria que requer, ao mesmo pas­so, um entendimento adequado dos limites e garantias individuais do art. 60”.6 Aduza-se, ainda, que o douto Ministro Sepulveda Pertence, que honrou a Presidência da Suprema Corte brasileira, afirmou, com sólidos fundamentos jurídicos, que “os direitos sociais dos trabalhadores, enunciados no art. 7º da Constituição, compreendem-se entre os direitos e garantias constitucionais incluídos no âmbito normativo do art. 5o, § 2o, de modo a reconhecer alçada constitucional às convenções internacionais anteriormente codificadas no Brasil”.7 Na verdade, ao impedir que as emendas à Carta Magna possam “abolir os direitos e garantias individuais” (art. 60, § 4o, IV), é evidente que essa proibição alcança os direitos relacionados no art. 7º, assim como a liberdade sindical do trabalhador e do empresário de organizar sindicatos de conformidade com as demais disposições do art. 8o, e de neles ingressarem e desfiliarem-se. Os incisos deste último artigo, que dispõem sobre a estrutura orgânica, a representatividade e o custeio das associações sindicais, 3. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: 1999, Almedina, p. 989-90 e 997. 4. Instituições de Direito Constitucional Brasileiro. V. I. Curitiba: Juruá, 1999, p. 222. 5. “Direitos Fundamentais na Constituição de 88”, in Tribuna da Magistratura, Sâo Paulo: outubro de 1988, p. 391. 6. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 594. 7. Voto na ADIn-1.675-1, acolhido pelo Plenário do STF em 24/9/97. 16 Rev. TST , Brasília, vol:67, nB2, abr/jun2001 DOUTRINA não constituem, porém, “direitos e garantias individuais”, destituídos, assim, da natureza de cláusulas pétreas. Cumpre ponderar, neste caso, que, se os direitos e garantias individuais de índole social-trabalhista, afirmados na Lex Fundamentaes, não podem ser abolidos por emenda constitucional, certo é que não será defeso ao Congresso Nacional alterar a redação das respectivas normas, desde que não modifique a sua essência de forma a tornar inviável o exercício dos direitos subjetivos ou a preservação das garantias constitucionais estatuídos no dispositivo emendado. Sob o pretexto de que o ordenamento constitucional brasileiro engessou a aplicação das normas social-trabalhistas, autoridades governamentais anunciam que será submetido ao Congresso Nacional Projeto de Emenda Constitucional inserindo no art. 7º a ressalva de que os instrumentos da negociação coletiva poderão reduzir ou excluir a aplicação de direitos constantes do art. 7o, não obstante componha este artigo o Título II, “Dos Direitos e Garantias Individuais”.8 Desde logo, convém relembrar que os dois aspectos fundamentais da relação de emprego - salário e duração do trabalho - podem ser objeto de flexibilização mediante convenção ou acordo coletivo de trabalho (art. 7o, VI, XIII e XIV, da Constituição), sendo certo que o regime do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, imposto pelo inciso III do art. 7o, confere ao empregador amplo direito de resilir o contrato individual de trabalho. A precitada proposição será, a nosso ver, nitidamente inconstitucional. Se nem por emenda constitucional poderão ser abolidos direitos relacionados no art. 7o da Car­ta Magna, elevados à categoria de cláusulas pétreas, como se admitir que possam fazêlo convenções ou acordos coletivos ou que esses instrumentos normativos possam modificá-los em sua essência? Cremos que, no âmbito da ciência jurídica, devemos ainda observar a hierarquia das fontes do Direito, tal como a lei da gravidade no mundo da física. O magistrado Nei Frederico Cano Martins, além de concluir que essa proposição, a seu ver sugerida pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), importaria em “retornar-se aos tempos dos laisserfaire”, afirma que ela violaria “o princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas, pois, quando uma norm a coletiva admitisse o não cumprimento do art. 7o da Carta Magna (ou de parte dele) em relação a dado grupo de trabalhadores, estaria havendo, à obviedade, clara renúncia aos principais direitos trabalhistas”.9 Mais contundente é o renomado comentarista Eduardo Gabriel Saad: “Não acreditamos que passado, pela cabeça de algum membro do governo, a idéia de que, mediante emenda ao questionado artigo 7o, é possível 8. O Estado de São Paulo de 27.02.2000, publica, neste sentido, declarações do Ministro do Trabalho e Emprego, Francisco Dornelles. 9. “Os princípios do Direito do Trabalho e a flexibilização ou desregulamentação”. In Revista LTr, São Paulo: julho de 2000, p. 851-853. Rev. T ST , Brasília, vol. 67, nB2, abr/jun 2001 17 DOUTRINA autorizar empresários e sindicatos de empregados, por intermédio de um acordo ou convenção coletiva, a suprimir ou reduzir direitos sociais hospedados em normas constitucionais bastantes em si ou self-execating. Mesmo que desprezem todas as observações feitas nas linhas precedentes a propósito da predominância das normas jurídicas (pois, não é a Constituição a norma das normas?), temos de reconhecer que a anunciada proposição é estapafúrdia por encerrar um processo de emenda à Constituição que seu artigo 60 ignora. Nossa Constituição é do tipo rígido. Esse modelo não tolera modificações de texto mediante processo tão singelo como o de um pacto coletivo”.10 10. “Nova emenda constitucional e o Ministério Público do Trabalho e Emprego”. In Suplemento Trabalhista. LTr, n° 138/99, p. 743. 18 Rev. TST , Brasília, vol. 67, n°2, abr/jun 2001