DIVERSIDADE, DIREITOS HUMANOS E JUSTIÇA SOCIAL* Jacques d’Adesky** Há cerca de 30 anos o tema da diversidade incorporou-se à vida política, social e cultural no Brasil. Essa tomada de consciência resultou, em parte, das ações práticas de responsabilidade social realizadas por organizações corporativas e da promoção da diversidade cultural regional, principalmente através dos programas de apoio do Ministério da Cultura. Por outro lado, isso ocorreu, também, em razão da expansão das reivindicações dos movimentos sociais que lutam por causas como a inserção adequada das mulheres no mercado de trabalho e sua maior participação nos fóruns políticos; um melhor acesso dos afrodescendentes ao ensino superior; e o reconhecimento dos grupos homoafetivos, particularmente a legalização de sua união conjugal. Essa nova situação ocupa, cada vez mais, um lugar central na pauta econômica, social e cultural do país. Isso pode parecer surpreendente, na medida em que o tema da diversidade estava anteriormente nivelado a uma questão marginal. O discurso dominante até meados do século passado enfatizava a coesão cultural do país, com base na preponderância da língua portuguesa em todo o território nacional. Além disso, a miscigenação com base na mistura e o aporte à formação cultural e econômica do Brasil pela influência de portugueses, africanos e populações indígenas eram também destacados como fator da brasilidade, uma prova definitiva da ausência de qualquer discriminação ou racismo em relação aos negros e índios. RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA E DIVERSIDADE Nos dias de hoje, numerosas empresas – brasileiras e multinacionais instaladas no país – consideram de suma importância a justa repartição e diversidade de gênero e de origem étnica dos empregados contratados nos diversos níveis * Texto apresentado no “I Seminário de Responsabilidade Social da Petrobras”, realizado nos dias 8 e 9 de maio de 2013, na cidade do Rio de Janeiro. ** Professor no IUPERJ; coordenador-geral do curso de Relações Internacionais na UNESA e pesquisador visitante na Universidade Laval, Quebec (Canadá). Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 3, jul/set 2013 181 DOUTRINA das carreiras. O tema da diversidade no seio da empresa está ligado à prática de responsabilidade social corporativa. De acordo com o Instituto Ethos, esse conceito surgiu no Brasil nos anos 1980. A implantação dessa mudança foi impulsionada por uma sequência de eventos sociais e políticos, que expressavam uma mudança de atitude por parte dos cidadãos e, a partir daí, da comunidade empresarial. Muitas corporações desenvolveram, então, práticas, significativas de gestão socialmente responsável, com base na compreensão de que este seria um fator de competitividade para os seus negócios; ou seja, a inserção de um empreendimento no mercado passou a considerar como fator importante para a sua rentabilidade – além das estratégias de marketing, custos e controle da qualidade dos produtos e serviços – a responsabilidade social e o aperfeiçoamento de suas relações com clientes, fornecedores, empregados e parceiros comerciais, incluindo a comunidade em que atua e a sociedade como um todo1. A diversidade é parte essencial da responsabilidade social das empresas, em sua linha de atuação. Essa preocupação deve contemplar, quando for possível, a contratação e promoção de pessoas com experiências e perspectivas diferentes. Isso significa adotar uma postura aberta no momento do recrutamento e seleção de candidatos, tendo em vista expandir o índice de emprego em determinados segmentos da sociedade, tais como mulheres, afrodescendentes, indígenas e portadores de deficiência física, entre outros2. Ao fomentar maior presença de membros de grupos minoritários historicamente marginalizados – em especial os pertencentes à comunidade local em que a empresa tem sua área de atuação –, o princípio de diversidade torna-se um meio para proporcionar a valorização da imagem institucional, o que contribui para a melhoria de seu desempenho comercial. Ao abrir novos horizontes de interação entre os empregados, permite ampliar as perspectivas em termos de criatividade e inovação, com evidentes ganhos de produtividade e eficácia. A responsabilidade social de empresa favorece também o propósito de justiça social, visando remediar, quando for possível, o status subalterno de determinados grupos. Trata-se então de uma via em mão dupla – de um lado, pode proporcionar maiores ganhos para a empresa e, por outro, permite alcançar um nível mais elevado de bem-estar social. Entretanto, essa via é assimétrica, na medida em que tanto o poder de decisão quanto o de enunciação referentes à gestão da diversidade situam-se com a empresa, e não com os seus parceiros ou membros da comunidade. 1 Ler o relatório do Instituto Ethos: Responsabilidade Social Empresarial para Micro e Pequenas Empresas. Disponível em: . 2 Ver relatório do Instituto Ethos: Ibidem. 182 Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 3, jul/set 2013 DOUTRINA Em função dessa correlação de forças, a gestão da diversidade reflete uma dimensão fortemente utilitarista, cujo objetivo principal é o aumento dos lucros por meio de uma melhor aproximação com o seu entourage (fornecedores, comunidade local, etc.). Para ser considerada como uma ação de valor moral, essa política deveria ser baseada na ideia de dever, remetendo à necessidade de levar em conta sua motivação (maior justiça social), e não suas vantagens (expansão dos benefícios). A certeza de agir segundo um dever moral – e não visando uma utilidade ou conveniência – conecta a ação à justiça social, mesmo que possa ser vista como uma gota no oceano. Talvez se possa falar também de uma ação moral no sentido de conferir maior consideração e respeito por pessoas em situação de desvantagem. Essa prática da gestão da diversidade no emprego remete fortemente às redes de proximidade, e nem sempre podem ser replicadas pela empresa em escala regional, nacional ou global. DIREITOS HUMANOS, DIGNIDADE E DIVERSIDADE Mas será moralmente aceitável que se recrutem e contratem pessoas com base no pertencimento a determinadas comunidades exclusivamente em nome do lucro ou em busca de vantagens comerciais? Seria essa, então, uma violação dos princípios dos direitos humanos, que recomendam o respeito à igualdade dos indivíduos, independentemente de sua nacionalidade, etnia, raça, sexo ou religião? Para responder a essas questões, precisamos definir com clareza o que entendemos pela noção de diversidade. No campo das relações humanas, este é um termo englobante, largamente inclusivo, concernentes às diferenças. Ao mesmo tempo, a diversidade permite contabilizar exclusões com base em critérios que separam em vez de agregar. Por exemplo, os sentimentos de rejeição ou repúdio que levam à exclusão de grupos como os refugiados, os apátridas e os imigrantes, que formam um conjunto variado de indivíduos que encontram barreiras para a assimilação ou integração cultural nas sociedades que os acolhem. Diante de atitudes negativas e preconceituosas em relação ao estrangeiro, mas também de outros grupos discriminados por diversos motivos, é preciso sublinhar que toda pessoa possui múltiplos pertencimentos ligados ao seu status social, gênero, nacionalidade, religião, crença, etc. Considerar e avaliar alguém exclusivamente com base em um pertencimento específico – sem levar em conta as múltiplas formas como esse indivíduo se percebe e se define – é uma atitude arrogante de negação de identidades, com o objetivo de ferir ou estigmatizar uma pessoa. Segundo Amartya Sen, é preciso sempre considerar que cada qual é livre para escolher as suas preferências em relação aos diversos grupos em que se reconhece como membro pleno. Temos a tendência exagerada, acrescenta Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 3, jul/set 2013 183 DOUTRINA ele, de colocar etiquetas nas pessoas, classificando-as em uma só categoria. Os seres humanos, com as suas identidades plurais e as suas afiliações múltiplas, são criaturas sociais que não podem ser reduzidas ao status de membro de um único grupo, o que não corresponde à complexidade das sociedades no mundo3. O mundo em que vivemos tem mostrado que pensar os direitos humanos tal como foram proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 é uma postura que ficou parcialmente datada no tempo. Mesmo sem modificar o teor do texto da DUDH, já se passaram 64 anos e continua-mos em busca de uma igualdade de direitos e de uma sociedade globalmente mais justa e equitativa. Nessas últimas décadas, a luta pela igualdade não se limitou a estender o padrão universal dos direitos humanos para aqueles que se encontravam excluídos, mas também a reformular o sentido desse conceito, adaptando-o aos novos tempos. No século XXI, a dignidade humana não pôde mais ser definida exclusivamente pelo reconhecimento do que é comum, ou seja, o nosso pertencimento à mesma humanidade. O reconhecimento do outro pressupõe que se respeita a sua alteridade, a sua diferença. Ao ideal de igualdade universal foi agregada a busca de autenticidade. Isso impõe uma dupla exigência: levar em conta a diferença que acabou se tornando a própria condição do reconhecimento desse universal pelo qual somos idênticos4. Em outras palavras, as reivindicações do reconhecimento conduzem cada vez mais a considerar o ângulo da diversidade – aceitar a diferença e não mais tentar apagar as diferenças em nome de nossa humanidade comum. Hoje não mais se admite, como outrora, pensar que os negros deveriam desejar deixar de ser negros, ou supor que os gays deveriam procurar uma “cura miraculosa” para se tornarem heterossexuais. AÇÃO AFIRMATIVA E DIVERSIDADE Nas últimas décadas, as populações dos países têm se tornado cada vez mais heterogêneas, em virtude do aumento dos fluxos migratórios. Muitas vezes esses emigrantes buscam melhores oportunidades de trabalho, mas também procuram fugir de guerras e conflitos armados. Monitorando essa dinâmica, estudos baseados no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) têm mostrado a permanência em larga escala das desigualdades sociais, de gênero, étnicas, disparidades raciais, etc. Essas estatísticas propiciam uma análise mais precisa 3 Ler: SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 281-282. 4 Ver: GUÉRARD DE LATOUR, Sophie. La société juste. Égalité et différence. Paris: Armand Colin, 2001. p. 174-176. 184 Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 3, jul/set 2013 DOUTRINA das desigualdades e revelam novos aspectos do problema, como o tratamento uniforme e global a que são submetidos indivíduos postos em situações totalmente diferentes. Para mudar esse panorama, o Estado pode implementar políticas de ação afirmativa que favoreçam a diversidade no âmbito do emprego e promover o acesso ao ensino superior para os grupos desfavorecidos, como os pobres, os afrodescendentes e indígenas. Estes dois últimos foram vítimas de discriminação resultante do preconceito racial, e sofreram danos históricos durante a colonização e escravidão. Evidentemente, as políticas de ação afirmativa não devem ser confundidas com a questão de diversidade, embora a promovam em determinados espaços sociais, como o ensino superior e o mercado de trabalho. As políticas de ações afirmativas resultam de decisões do Estado com o objetivo de estabelecer igualdade de oportunidades, remediar situações de desigualdade oriundas do passado e que permanecem vivas no presente. A promoção da diversidade não se refere à controvérsia de reparação ou compensação por danos históricos, tampouco se baseia no argumento de que é necessário priorizar, na admissão ou ao longo da carreira, pessoas que tenham sido pessoalmente prejudicadas por algum tipo de discriminação. Entretanto, nos últimos anos, é possível observar que a promoção das políticas de ações afirmativas tem encontrado sua fonte de inspiração na temática de diversidade. Nos Estados Unidos, a Corte suprema chegou a declarar em 1978 (caso Bakke versus Board of Regents), em referência à inscrição de um candidato branco na Escola de Medicina da Universidade da Califórnia, que a prática de levar em conta a raça de um candidato seria aceitável somente nos casos em que isso servisse ao interesse da diversidade. Em 1994, num caso similar levado à Justiça Federal, uma candidata branca não conseguiu ingressar na Faculdade de Direito da Universidade do Texas, diante de candidatos negros ou descendentes de mexicanos, aceitos com desempenho, nas provas, inferior ao seu. Na ocasião, o decano da Faculdade de Direito argumentou que o propósito cívico da missão da universidade era aumentar a diversidade racial e étnica da carreira advocatícia no Texas, e permitir que negros e hispânicos ocupassem posições de liderança no governo e no sistema judiciário em geral5. Na França, onde a expressão discriminação positiva é usada no lugar de ação afirmativa, é curioso observar que a expressão diversidade tem assumido conotação mais ampla, até mesmo eufemística, designando ao mesmo tempo a discriminação positiva e sua justificativa, concernente aos tratamentos e 5 Ver: SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 213-214. Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 3, jul/set 2013 185 DOUTRINA preferências acordadas com base no sexo ou na raça, normalmente proibidas pelo princípio de não discriminação. O termo tornou-se de uso corrente nos debates públicos, assim como no meio político, nas grandes corporações e no universo da mídia. Nessa acepção, entende-se a diversidade como um mecanismo de discriminação “positiva”, pois traduz, segundo Gwénaële Calvès, uma vontade de reequilibrar situações de disparidades estruturais, contrariamente à discriminação “negativa” que expressa um ato de hostilidade, um preconceito, um desejo de humilhar6. IGUALDADE DE OPORTUNIDADES E JUSTIÇA SOCIAL Há quem considere as desigualdades como o produto da atividade mais ou menos frutífera de cada um. Elas seriam necessárias por criar emulação e incentivar o dinamismo da sociedade. É sobre esse terreno que prolifera a noção de meritocracia que justifica as desigualdades de percurso dos indivíduos baseado no mérito. Mas se aceitarmos o argumento de que as pessoas merecem as recompensas que resultam do esforço e do trabalho árduo, ou que a distribuição da renda deva ser realizada levando em conta exclusivamente os resultados do próprio trabalho, corremos o risco de ficarmos aprisionados em uma visão estreita, moralmente baseada na justiça distributiva. Nessa linha de pensamento, para alcançar determinados cargos, funções ou ser merecedor de alguma honraria, é necessário que o indivíduo demonstre talento e méritos. Entretanto, poucos sublinham que o talento inato faz parte da ordem natural: nascer com dotes físicos e intelectuais que possam, em certas circunstâncias, constituir vantagem diante dos outros. Temos de admitir que não há grande mérito nisso. O que pensar das pessoas dotadas de talentos que não conseguem fazê-los frutificar, por absoluta falta de condições sociais e econômicas adequadas, sendo obrigadas a conviver com a dor e frustração de ver seus potenciais menosprezados, como sementes plantadas em terra infértil? Esses talentos tornam-se caducos, em virtude da perda de seu valor social, da mesma forma que habilidades em lidar com a arte das espadas tornaram-se irrelevantes em nossos dias, a não ser em determinadas competições esportivas. A percepção das desigualdades transformou-se nos últimos 30 anos, passando a destacar a noção de igualdade de oportunidades. As oportunidades de um indivíduo são ligadas à sua pertença social e comunitária, e a miséria tem uma dimensão coletiva. John Rawls afirma que o esforço próprio não pode ser considerado um fator determinante do mérito. Outros fatores, como a 6 Ver: CALVÈS, Gwénaële. Inégalités et justice sociale: le piège de la diversité. In: PEILLON, Vincent (Dir.). Inégalités et justice sociale. Paris: Le Bord de l’eau, 2008. p. 179. 186 Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 3, jul/set 2013 DOUTRINA educação familiar favorável e circunstâncias sociais mais confortáveis, determinam também o sucesso. Portanto, o resultado do esforço é influenciado por contingências cujos créditos não podemos reivindicar. Para evitar que os mais favorecidos pela loteria natural e por contingências sociais sejam os únicos a alcançar o sucesso, devemos buscar, sempre que possível, equalizar concretamente as condições iniciais, através da multiplicação de medidas para corrigir as disparidades de oportunidades individuais. Essa abordagem de Rawls está em ruptura total com a posição passiva daqueles que afirmam que a pobreza resulta de uma forma de fatalismo dos pobres, sendo de responsabilidade individual das próprias vítimas. Na realidade, os indivíduos não se encontram em pé de igualdade diante do sistema econômico, assim como do mercado. Para assegurar a igualdade de oportunidades, o Estado deve intervir para permitir, no mínimo, uma equalização das situações de entrada. A partir daí, os indivíduos teriam as condições mínimas para se mover na hierarquia social e melhorar a sua situação. Assim, sublinha Rawls, as desigualdades devem ocorrer em benefício dos mais desfavorecidos da sociedade, e não o contrário7. Segundo Xavier Greffe, a igualdade de oportunidades acaba conciliando a justiça social e a eficácia econômica, na medida em que a primeira garante a cada um o acesso à saúde, à educação e até mesmo a um salário-mínimo. A segunda protege os mecanismos do mercado ao legitimar o sucesso individual, uma vez estabelecidas as condições concretas para uma competição justa, na qual todos tenham iguais oportunidades. Nesse contexto seriam toleradas as desigualdades, desde que, além da igualdade teórica de direitos, a igualdade prática de oportunidades tenha sido assegurada. Amartya Sen constata, também, que as desigualdades sociais, de gênero ou entre grupos comunitários, não podem ser explicadas apenas como função do comportamento individual. Ele reconhece que os indivíduos não possuem as mesmas “capabilidades”, as mesmas oportunidades para superar a pobreza, seja essa pobreza ligada a fatores sociais, econômicos ou, ainda, resultantes de handicaps, tais como idade, invalidez ou doença. Não há como estigmatizar os mais pobres e desfavorecidos e condená-los à sua própria sorte. Uma redistribuição equitativa não diz respeito exclusivamente aos bens materiais, recursos e rendas, mas, também, às “capabilidades” para desenvolver recursos humanos que permitam viver uma vida decente e usufruir de bem-estar. Para esse autor, a promoção da justiça, assim como a eliminação da injustiça, exige que se dê aos indivíduos os meios e a liberdade de aprimorar a sua capacidade 7 Ver: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 3, jul/set 2013 187 DOUTRINA de melhorar os seus ganhos. Essas medidas devem ser tomadas em conjunto com as instituições públicas, que têm a responsabilidade de corrigir as distorções socioeconômicas resultantes de disparidades do mercado8. CONVIVER NOS CAMPOS RELACIONAIS A prática da diversidade impõe o uso de um olhar dialógico sobre os membros que compõem a sociedade, em particular sobre aqueles que vivem à margem ou são pouco visíveis em razão de sua posição subalterna. Este reconhecimento nos diz respeito, direta ou indiretamente, quando atinge os nossos campos relacionais. É assim, por exemplo, quando no nível do trabalho lidamos com pessoas que foram contratadas através da implementação da diversidade no emprego. Aqueles que já estavam no emprego por outros caminhos devem tomar consciência de que também foram privilegiados. Ao invés dos critérios de contratação praticados pela empresa, foi sua própria situação socioeconômica que lhe permitiu desfrutar de um tratamento preferencial, em nome da meritocracia. A respeito da empresa ou do Estado, esse olhar dialógico pode ser observado quando ações são realizadas para incluir no âmbito do trabalho ou do espaço público pessoas marginalizadas ou “invisíveis” nos campos relacionais. É assim, por exemplo, com as medidas tomadas pelas empresas e pelo Estado para facilitar a vida dos portadores de deficiências físicas. A instalação de rampas de acesso nos edifícios, shopping centers e ônibus, por exemplo, não apenas nos aproximam dessas pessoas como lhes confere visibilidade. Somos forçados a tomar consciência da existência delas. Sem tais medidas, a maior parte dos portadores de deficiência continuaria a viver enclausurado em suas casas, isolada de qualquer contato com o mundo externo. Temos de admitir que, em nossas relações sociais, somos muitas vezes levados pelo egocentrismo a viver longe de qualquer círculo relacional heterogêneo, priorizando a unicidade e a uniformidade de nosso meio familiar e a identificação com os amigos mais próximos. Acostumados a espaços fortemente impregnados pela uniformidade social, portanto marcados pela falta de diversidade humana, podemos experimentar sentimentos de admiração ou de mal-estar ao nos depararmos com uma situação invertida, na qual nós é que estamos em posição minoritária. Um exemplo disso é o choque de “estranheza” vivido pelo Senador Cristovam Buarque ao visitar a Faculdade Zumbi dos Palmares, na Cidade de São Paulo, quando se deparou com um número elevado de estudantes afrodescendentes, algo que nunca tinha visto no Brasil, um país onde a metade da população é 8 Ver: SEN, Amartya. Ibidem. p. 290-292. 188 Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 3, jul/set 2013 DOUTRINA formada por pretos e pardos. Percorrendo os corredores da Faculdade, ele via uma universidade frequentada na sua maioria por alunos negros, como se ele estivesse na África, e não no Brasil. O “estranhamento” devia-se ao fato de ele reconhecer naquele lugar o verdadeiro Brasil. O verdadeiro espanto deveria advir da constatação de que a população estudantil das universidades brasileiras é composta na sua grande maioria por brancos. Mas isso, de acordo com ele, não provoca espanto em ninguém9. Inversamente, relembramos a situação de desconforto que militantes do Movimento Negro vivenciaram no início da década de 1980 ao participarem de eventos na Faculdade Candido Mendes, em Ipanema. Na realidade, o sentimento de mal-estar provinha da dificuldade em transitar com tranquilidade num espaço cujos códigos sociais eles não conseguiam decodificar de forma satisfatória. Essa “estranheza” levou alguns a propor a organização dos eventos subsequentes, não mais na zona sul do Rio de Janeiro, mas no subúrbio, considerado mais adequado para discutir a realidade de sujeição e discriminação dos negros. Evidentemente, a diversidade é uma prática que favorece a mistura social, mas não significa a abolição das diferenciações sociais. A aproximação de categorias sociais em um mesmo lugar não assegura relações sociais harmoniosas, mas se apresenta como um horizonte desejável para estabelecer maior convívio social e limitar o risco de segregação espacial. A estima e a busca do reconhecimento da utilidade de cada um ajudam a fundar as solidariedades de grupos. A diversidade humana no emprego e no ensino contribui para que as pessoas venham a conhecer e conviver com outras cuja existência nem poderiam imaginar. O serviço militar obrigatório de antigamente tinha essa característica de tornar possível que jovens de horizontes sociais diferentes, assim como oriundos de outras partes do país, viessem a conviver durante o período do serviço. É verdade, entretanto, que por razões internas, as forças armadas excluíam de chofre as mulheres, os gays, e as pessoas portadoras de deficiência física ou mental. VALORES COMUNS DA HUMANIDADE Conviver com as diferenças culturais sempre foi um desafio para as sociedades antigas, em busca de maior coesão social com base na exigência da partilha e adoção pelos seus membros dos mesmos valores e crenças. As sociedades contemporâneas continuam se defrontando com o desafio da coesão diante da heterogeneidade das desigualdades socioeconômicas, assim como a 9 BUARQUE, Cristovam. Não sou Brasil. O Globo, Rio de Janeiro, 29 de setembro de 2007. Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 3, jul/set 2013 189 DOUTRINA pluralidade das crenças, valores, visões do mundo e aspirações que se encontram no seio dos países pelos quatro cantos do planeta. Uma consequência maior dessa realidade plural é a inexistência no plano internacional de uma ordem moral comum estável, mas apenas a emergência de uma ordem interativa e evolutiva que acaba se construindo nos confluentes de concepções particularistas do bem e do dever. Nesse sentido, já é possível constatar o advento de valores comuns da humanidade quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 consagra, mesmo em tom de retórica, a igual dignidade de todos os seres humanos, o direito à vida e às liberdades fundamentais. A implementação prática desses valores carrega a possibilidade da internacionalização efetiva do direito e da justiça penal com base na deliberação, comparação e confrontação de valores expressando as identidades culturais que permeiam os sistemas de direito no âmbito das nações. Essa busca de valores comuns pode parecer ingenuidade no momento em que renascem o fanatismo e outros fundamentalismos que prenunciam um futuro marcado pela possível ruptura de diálogo entre os países, em contraste com a ideia mesma de valores comuns. A importância de nos debruçarmos sobre esse dilema aumenta à medida que a modernização dos meios de transporte e a expansão das telecomunicações encurtam as distâncias e nos obrigam a considerar o mundo pelas lentes da diversidade e alteridade. Este debate permeia de uma forma ou outra todas as sociedades, sejam alinhadas com a democracia ou não. As primeiras tentam resolver a coexistência das diferenças através do respeito à pluralidade de valores, garantindo direitos fundamentais, como o direito à vida, a liberdade e a igualdade. Esse modelo de tolerância coloca em destaque a autonomia do indivíduo e os direitos humanos que baseiam suas raízes nos princípios de direitos exclusivamente individuais. Essa questão aparece de maneira crucial nas sociedades tradicionais de hoje, nos quais ainda não é totalmente satisfatório o respeito incondicional ao indivíduo, a despeito de suas diferenças. É uma questão obsessiva de nosso tempo, que mostra a pertinência moral deste debate. É preciso buscar uma ordem moral comum aceitável, uma vez que o horizonte fronteiriço de valores desvela eixos que entram em concorrência e desacordos na construção de uma humanidade plural, implicando o reconhecimento da singularidade de cada ser, assim como sua igual pertença à comunidade humana. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUARQUE, Cristovam. Não sou Brasil. O Globo, Rio de Janeiro, 29 de setembro de 2007. 190 Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 3, jul/set 2013 DOUTRINA CALVÈS, Gwénaële. Inégalités et justice sociale: le piège de la diversité. In: PEILLON, Vincent (Dir.). Inégalités et justice sociale. Paris: Le Bord de l’eau, 2008. GREFFE, Xávier. La politique sociale. Etude critique. Paris: PUF, 1975. GUÉRARD DE LATOUR, Sophie. La société juste. Égalité et différence. Paris: Armand Colin, 2001. Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Indicadores Ethos-Serebral de responsabilidade social empresarial para micro e pequenas empresas. Disponível em: . RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. SANDEL, Michael. Justiça: o que é faser acoisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. SEN, Amartya. Repenser l’inégalité. Paris: Seuil, 2000. ______. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 3, jul/set 2013 191