CRIANÇAS E ADOLESCENTES: COMPETÊNCIA DE TODOS Siro Darlan de Oliveira* AConstituição do Brasil determina em seu art. 227 que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Portanto, é imperativo constitucional que compete a todos os brasileiros zelar pela garantia desses direitos das pessoas em processo de desenvolvimento. E, ao regulamentar esse princípio constitucional, o legislador escolheu para fazer parte desse Sistema de Garantia de Direitos o Juiz da Infância e da Juventude (art. 146 do ECA). Por iniciativa do ilustre Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Ministro João Oreste Dalazen, realizou-se o Seminário “Trabalho Infantil, Aprendizagem e Justiça do Trabalho”, no qual foi confiado a mim desenvolver o tema sobre competência, que assim desenvolvi: Vamos falar sobre essa questão da competência. Eu queria, também, antes reconhecer a grandeza da iniciativa deste seminário, onde estamos falando na véspera do Dia das Crianças, véspera em que o Estatuto da Criança e do Adolescente completa vinte e dois anos de vigência. Tenho a impressão de que este seminário, promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho, é uma iniciativa que traz a todos nós, da sociedade, a possibilidade de trabalharmos pela efetivação dos direitos da criança e do adolescente. Tenho, no meu currículo, a sorte de ter sido, no início da minha carreira, Juiz Trabalhista. Concursado para a Justiça Estadual, exerci a minha primeira judicatura na Comarca de Silva Jardim, no interior do Rio de Janeiro, onde não havia ainda a presença da Justiça do * Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da Associação Juízes para a Democracia. Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 1, jan/mar 2013 227 SEMINÁRIO TRABALHO INFANTIL Trabalho, e, por essa razão, tive a grata alegria de ter essa experiência, durante dois anos, de tratar também da questão trabalhista. Ao mesmo tempo – e justifica-se a minha presença aqui por esse motivo –, fui Juiz da Infância e da Juventude desde 1990, ano em que o Estatuto entrou em vigor, com a atribuição de ser Juiz de uma das cidades mais avessas ao Estatuto e uma das cidades onde há maior índice de violência contra crianças e adolescentes. Essa experiência foi muito gratificante para mim e fez com que eu permanecesse com essa marca como uma verdadeira tatuagem no meu currículo e na minha vida. O Direito da Criança também teve início, no Brasil, por meio da cabeça de um Magistrado. Foi o Dr. Mello Mattos que, em 1924, escreveu, incentivou, estimulou a primeira legislação de proteção à criança e ao adolescente, então chamados menores. Com o advento dessa legislação protetiva, e graças ao advento dessa legislação, hoje temos em vigência o código mais moderno e mais próximo da perfeição no planeta, que é o Estatuto da Criança e do Adolescente. Anteriormente, a doutrina vigente foi a da situação irregular, da qual ainda não nos desligamos. Ainda, na nossa cabeça, nas nossas ações, nas nossas decisões, prevalece esse olhar de proteção à infância, e não o olhar de respeito aos direitos de cidadania. Talvez por isso, a discussão sobre a competência passe por esse aspecto. Ainda estamos olhando para a criança como um ser que precisa ser protegido, por uma questão de fragilidade, quando, na verdade, com a doutrina da proteção integral, a criança é sujeito de direitos. E se examinarmos e interpretarmos ao pé da letra o que diz o art. 227 da nossa Constituição vamos verificar que essa discussão em torno da competência é absolutamente desnecessária, porque a competência, a partir de então, é de todo cidadão brasileiro. Quando o legislador constituinte diz que é dever de todos e enumera uma hierarquia da família, do Poder Público e da sociedade, nenhum brasileiro escapa dessa obrigação de assegurar os direitos fundamentais de crianças e adolescentes. No entanto, o legislador estabeleceu a competência do Juiz da Infância e da Juventude para a efetivação, para a garantia judicial desses direitos. Na verdade, o legislador do Estatuto retira do Judiciário uma carga de poder para compartilhar com a sociedade em razão dessa obrigação solidária que todos nós assumimos. Quando o legislador constituinte diz que é dever de todos, aquele olhar para a figura do Juiz de Menores, então todo-poderoso, que legislava, que eventualmente julgava e que era um grande assistente social, deixa de existir. O Juiz passa a ser um garantidor de direito, não um garantidor de direito passivo, mas o agente ativo de proteção integral e integrada à criança e ao adolescente. 228 Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 1, jan/mar 2013 SEMINÁRIO TRABALHO INFANTIL Por isso, quando falamos em competência, não se trata apenas do olhar sobre a autoridade judiciária, que é apenas um elo dessa corrente, desse sistema de proteção integral e de garantia de direitos. Nesse sistema de garantia de direitos, que deve ter uma atuação integrada, estamos nós, Juízes, está também o Ministério Público, estão os advogados, a Defensoria Pública, as delegacias especializadas, as secretarias da área social, de educação, de saúde, de esporte e de lazer, estão os Conselhos de Direitos e os Conselhos Tutelares. Então, fazemos parte de um elo do sistema de garantia de direitos e, por isso, não se trata de uma competência absoluta, mas de uma competência compartilhada, na qual só temos a nossa autoridade reconhecida se fizermos parte desse sistema de garantia de direitos. Ouvi, ontem, com muita atenção, algumas manifestações e fiquei um pouco preocupado com certo radicalismo ao olhar sobre esses direitos fundamentais de crianças e adolescentes elencados no art. 227. É direito fundamental. Lá está escrito que é direito fundamental o direito à proteção ao trabalho. E o legislador, ao regulamentar esse artigo, diz que a autoridade judiciária competente será a autoridade da infância e da juventude. Estamos modernamente caminhando para as especializações. Os Tribunais Superiores e os Tribunais Regionais cada vez mais se especializam. Então, não é o momento de generalizações, é o momento de capacitação, de aperfeiçoamento daquela autoridade judiciária vocacionada, preparada para a atuação nessa área de competência. O fato de se tratar de direito ao trabalho protegido, e não de Direito do Trabalho – o legislador fala em direito ao trabalho protegido, o que é diferente da relação econômica de Direito do Trabalho –, não é suficiente para atrair essa competência para a Justiça do Trabalho. E não é só nessa área que há certa invasão de competência por força de determinação legislativa. O Juiz da Infância e da Juventude, esse especialista, soma, na sua competência, por exemplo, a questão da adoção internacional. A questão da adoção internacional seria, em tese, da Justiça Federal, porque abrange relações internacionais entre estados, abrange relações de pessoas de direito público internacional, e, no entanto, o legislador deu a competência ao Juiz da Infância e da Juventude. Mais do que isso, adolescentes autores de ato infracional em crimes capitulados como crimes contra a União, como o tráfico internacional de entorpecentes, e, mais do que isso, a Justiça Militar, Justiça Castrense, não julga menores de dezoito anos. Julguei vários cadetes e estudantes de escolas militares, menores de dezoito anos, que, em tese, seria de competência da Justiça Federal. Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 1, jan/mar 2013 229 SEMINÁRIO TRABALHO INFANTIL Na verdade, estamos tratando de um direito autônomo. O direito da criança e do adolescente, esse novel direito, é um direito autônomo, que tem uma normativa toda apropriada, uma normativa internacional e regras constitucionais que dão a base, que dão os princípios para a sua distinção. São diplomas legais específicos, que o separa dos outros ramos do direito. Tem uma didática particular e determina o aprendizado de suas diferenças. Eu trouxe aqui, por exemplo, a regra na qual nos inspiramos para escrever o art. 227 da nossa Constituição Federal, que é a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, na qual expressamente está escrito, no art. 29, inciso d, que é preciso “preparar a criança para assumir uma vida responsável” – daí por que o direito ao trabalho é um direito fundamental para inserir a criança no mundo competitivo para ter uma vida responsável – “numa sociedade livre, com espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade de sexos e amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos, e pessoas de origem indígena”. E também há um artigo específico sobre a relação do trabalho na Convenção das Nações Unidas, que é norma de direito fundamental. O art. 31 diz que os Estados-partes respeitarão e promoverão a participação plena de crianças e adolescentes na vida cultural e artística e encorajarão a criação de oportunidades adequadas em condições de igualdade para participarem da vida cultural, artística, recreativa e de lazer. Ao contrário do que ouvimos ou entendemos equivocadamente, o que o legislador impõe é que a sociedade estimule, incentive a preparação e a participação de adolescentes para que eles não sejam segregados. De certa forma, quem defende o contrário defende um fundamentalismo segregacionista, e isso é a doutrina da situação irregular. Quando vemos aquele tenista, mostrado aqui em um vídeo, uma exceção dentre tantos campeões que deveríamos ter – e temos alguns – e que começaram muito cedo, porque, para ser campeão, tem de começar cedo. A China, maior detentora de medalhas olímpicas, não é um bom exemplo, porque não é um país livre nem um país que defenda e proteja os direitos humanos. Mas as outras potências esportivas começam a ensinar aos seus atletas quando eles nascem, quando surge o mínimo de vocação. São estimulados a ser campeões e, por isso, são campeões. Sem falar em nossos campeões, como Neymar e Pelé, que foi campeão do mundo aos dezessete anos. O maior jogador do mundo, na atualidade, começou no Barcelona aos quatorze anos. E queremos segregar esses talentos a que custo? Há exemplos excepcionalíssimos, como o desse tenista, que precisa de um tratamento terapêutico urgente, porque ele começou a estudar e parou, começou a jogar tênis e parou, começou a fazer tratamento e parou. Ele precisa de uma terapia forte. Deve- 230 Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 1, jan/mar 2013 SEMINÁRIO TRABALHO INFANTIL mos ajudá-lo, mas não devemos tê-lo como exemplo para atuar contra legem, porque o que a lei diz é exatamente o contrário do que, em alguns momentos, defendemos ou vimos sob esse olhar. O art. 32 dispõe: “1. Os Estados-partes reconhecem o direito da criança de estar protegida contra a exploração econômica e contra o desempenho de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação, ou seja, nocivo para saúde ou para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social (...)”. Não está dizendo que é proibido. Está dizendo que devemos zelar, cuidar, interferir. Somos partidários da intervenção mínima do Estado. Para isso, queremos a responsabilidade da família. O legislador constituinte diz, em uma ordem de hierarquia, ser dever de todos, a começar pela família. Então, a família tem de decidir o que é melhor para os seus filhos: autorização para viajar, autorização para participar de atos esportivos e artísticos. Isso é um problema privado da família. Se a família se exceder, nesse caso, sim, cabe a intervenção do Estado por meio do Ministério Público e das medidas que são previstas no art. 129 do Estatuto da Criança e do Adolescente contra os pais que descumprem os deveres do exercício do poder familiar. Ainda dispõe: “(...) 2. Os Estados-partes adotarão medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais com vistas a assegurar a aplicação do presente artigo. Com tal propósito, e levando em consideração as disposições pertinentes de outros instrumentos internacionais, os Estados-partes deverão, em particular: a) estabelecer uma idade ou idades mínimas para a admissão em empregos; b) estabelecer regulamentação apropriada relativa a horários e condições de emprego; c) estabelecer penalidades ou outras sanções apropriadas a fim de assegurar o cumprimento efetivo do presente artigo”. Não diz que é proibido; pelo contrário, diz que devemos estimular, porque, se fizermos o contrário, vamos admitir que os filhos de pais com boas condições econômicas, como engenheiros, médicos, arquitetos, sejam levados para serem iniciados na aprendizagem do trabalho, e contra esses nada se falará. Aquele filho de operário pobre que está fora do mercado de trabalho tem de continuar fora do mercado de trabalho, porque não lhe é permitida a aprendizagem do trabalho, porque tamanhas são as restrições que o Estado legal e formal faz e o Estado paralelo não faz que, por isso, temos tantos adolescentes envolvidos em prática de atos infracionais, ou seja, em razão da necessidade de sobrevivência e da impossibilidade de a sociedade acolhê-los na sociedade formal. E por isso temos o mais alto índice de homicídios, que se dá na faixa etária entre quatorze e vinte e quatro anos, porque não se permite, não se dá oportunidade de ingresso no mercado de trabalho. Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 1, jan/mar 2013 231 SEMINÁRIO TRABALHO INFANTIL Devemos nos unir, sim, e este seminário tem esse viés. Ao ver aqui tantas cabeças pensantes, tantas inteligências debatendo esse tema, fico feliz e verifico que podemos começar uma nova era de efetivação desses direitos. Não mais discutir se eles existem ou não, mas a efetivação desses direitos em todas as áreas da Justiça. Se unidos conseguirmos obter que esses direitos, nos próximos anos, venham a ser respeitados, discussões sobre competência ou não competências serão inúteis, desnecessárias, porque, se as crianças tiverem acesso aos seus direitos fundamentais, sobretudo à educação, a uma família bem formada, à saúde, ao esporte, ao lazer, à cultura, a questão de competência não nos levará a nenhuma forma de debates. Mas quero, aqui, também falar sobre a atuação dos Conselhos dos Direitos. No Rio de Janeiro, a autoridade judiciária participa desses Conselhos dos Direitos junto com a sociedade civil, junto com o Ministério Público, com a Defensoria Pública, com a OAB, com as Secretarias, com as Representações do Governo para deliberar, para fiscalizar, para controlar as políticas públicas. É necessária a presença do Judiciário nesta mesa de debate permanente com a sociedade civil. Recordo-me de que estamos num debate interessante no Rio de Janeiro, porque, devido ao alto volume de trabalho, de processos – estamos julgando no Rio de Janeiro um milhão e meio de processos/ano, o que deve ser brincadeira perto da estatística de vocês, que é muito maior, evidentemente, mas julgamos causas diferentes, complexas, como também vocês julgam –, estamos buscando soluções de como dar conta desse recado sem aumentar despesas, porque temos a Lei de Responsabilidade Fiscal. Uma das propostas que foi colocada em mesa é que temos vinte Câmaras Cíveis e oito Câmaras Criminais, e vamos dividir a competência entre todos, e aí a proposta dos Desembargadores civilistas. Dissemos a eles que estamos totalmente informatizados na área criminal, que eles teriam de sentar diante da telinha e ouvir testemunha por testemunha, interrogatório por interrogatório. Eles não sabiam disso e indagaram: “Temos que fazer isso? Temos que sentar e ouvir? Temos que, em vez de ficar ouvindo a ‘Carminha’, assistir a essas novelas da vida real?”. Tenho a impressão de que a questão da competência reivindicada pela Justiça do Trabalho passa por aí também. É preciso conhecer a realidade do dia a dia e das responsabilidades de um juiz da infância e da juventude. O juiz da infância e da juventude é juiz vinte e quatro horas, porque ele está em casa dormindo e toca o telefone, é um comissário que está numa fiscalização e quer uma orientação; está num baile funk e há uma intercorrência, é ao juiz que ele vai ter de pedir socorro. Temos de estar de plantão vinte e quatro horas. Ouvi aqui algumas críticas da Academia com relação aos alvarás. Ora, senhores, alvará é um resumo de um mandamento judicial, não é um processo, não tem que estar ali o resumo do processo. 232 Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 1, jan/mar 2013 SEMINÁRIO TRABALHO INFANTIL Lamentavelmente, algumas pesquisas são feitas por leigos que não conhecem o nosso dia a dia, o nosso procedimento, as nossas regras processuais. Quando um Juiz do Trabalho emite um alvará, um mandado de pagamento, ele determina o pagamento, ele não diz o porquê daquele pagamento, onde e por que razões ele decidiu aquilo. Isso está nos autos do processo. É preciso saber disso para se fazer um juízo crítico. Quando o Juiz defere alvará, ele tem de cumprir a lei. Se ele não a cumpre, ele é fiscalizado pelo Ministério Público, pela família, pela sociedade e pelas partes de um processo. A lei diz expressamente que, para autorização judicial, o Juiz tem de levar em conta, dentre outros fatores, os princípios dessa lei. Sobretudo porque se trata de uma criança, de um ser em processo de desenvolvimento, juiz nenhum será irresponsável de autorizar algo que prejudique o desenvolvimento sadio de uma criança. As peculiaridades do local, o Juiz tem de conhecer, e as conhece. Sabem por quê? O Juiz tem toda uma assessoria de comissários que vão ao local examinar se ele é adequado ou não, se tem segurança contra incêndios, contra acidentes, se é adequado para fins da presença daquela criança. Ele tem uma equipe técnica de assistentes sociais e de psicólogos que analisam o script, o texto, se aquele texto é ou não prejudicial à participação daquela criança; a existência de instalações adequadas; o tipo de frequência habitual no local; a adequação do ambiente à eventual participação ou frequência de crianças e adolescentes à natureza do espetáculo. Recordo-me de que tive vários embates nessa área. Houve uma senhora, produtora de óperas, que produziu uma ópera muito bonita. Era a história de uma freira que abortara uma criança e depois entrou em um convento e, arrependida, viveu uma vida santificada e sempre preocupada com esse crime, cometido por ela, o aborto. Ao grand finale do espetáculo, ela chega aos céus cercada por anjos. Essa produtora queria uma cena espetacular: cem crianças nuas, crianças de orfanatos. Ela foi pedir autorização. Evidentemente, após ouvir psicólogos e assistentes sociais, essa autorização foi negada. Fui a esse espetáculo no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e, ao final da peça, as crianças apareceram, evidentemente que não estavam nuas, mas de camisolão, e a produtora colocou uma faixa: “Abaixo a censura”. Falei: agora serei vaiado. Ela foi vaiada. Não é assim, com tamanha irresponsabilidade, que atuamos. Há exceções. Erramos, proferimos sentenças equivocadas, mas não é a regra. A regra é o acerto. Todos conhecem aqueles que acompanham novelas, episódios de “Laços de Família”, nos quais uma criança, um bebê, participava de cenas em que, por dezenove vezes, era obrigada a chorar no colo da mãe; ela criou uma ojeriza tamanha aos atores que já não queria mais participar depois da décima nona cena. Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 1, jan/mar 2013 233 SEMINÁRIO TRABALHO INFANTIL O alvará foi deferido sob a condição de não participar de cenas de violência, de drogas e de desrespeito à família, e esse alvará foi descumprido. Por causa disso, foi cassada a participação de crianças nessa novela. Todos viram que foram dedicados quase dez minutos do “Jornal Nacional” em uma campanha vil e infamante contra a censura do Judiciário. E as crianças só voltaram à novela depois que houve um comprometimento – que até hoje é cumprido – de que é necessário ter em cena o acompanhamento de psicólogos, de educadores, de médicos e dos pais. Se isso não acontece em outros lugares, não podemos generalizar, sobretudo a Academia não tem o direito de generalizar. Tem de falar especificamente daquele local onde foi feito o seu estudo, a sua pesquisa. Na verdade, tudo se faz com muita responsabilidade. Direito à profissionalização é em decorrência do próprio processo educacional. Não é à toa que o capítulo da educação antecede o capítulo do direito ao trabalho protegido, porque, no próprio art. 19, que define – tanto aqui como na Lei de Diretrizes e Bases da Educação – o direito à educação, vamos ver que a criança tem direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. O próprio direito à educação, que é um direito fundamental básico, estabelece que o adolescente tem de ser preparado para o trabalho. Então, temos, sim, de aperfeiçoar nosso sistema de fiscalização. Para isso, acho interessantíssimo que possamos trabalhar, Ministro, em conjunto, em parceria, num sistema integrado, porque, por exemplo, muitas vezes – fui Juiz da Infância e da Juventude, na área infracional e na área da prevenção –, diante de um jovem de doze, treze e quatorze anos, dono de boca de fumo ou aviãozinho, eu falava: “Por que você está nessa vida, meu filho? Por que você não muda?”, ele respondia: “Porque preciso viver, doutor. O senhor me dá trabalho?”. E o Juiz não tem resposta para isso, porque o Juiz não é um agente de trabalho, embora eu tenha criado na Vara da Infância e da Juventude uma verdadeira agência de colocação de adolescentes no mercado de trabalho. Com isso, abrimos, no próprio Tribunal de Justiça, alguns programas como o Programa “Mensageiros da Justiça”, de jovens oriundos de varas infracionais que têm a sua primeira oportunidade de sair da vida do crime trabalhando no Tribunal de Justiça. Evidentemente que o trabalho é um complemento da escola e da educação. É a forma de sobrevivência, é a resposta que se dá àquele jovem que ingressa no mundo informal da criminalidade por falta de oportunidade. Temos instrumentos para isso, e a Justiça do Trabalho, por meio dos Promotores do Trabalho, é fundamental para isso. Essa quota do aprendiz tem de ser cumprida e respeitada por todas as empresas. Só na cidade de São Gonçalo temos possibilidade de ter três mil vagas para adolescentes aprendizes. 234 Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 1, jan/mar 2013 SEMINÁRIO TRABALHO INFANTIL Como sabem, São Gonçalo é uma das cidades mais violentas do Rio de Janeiro. Foi lá que mataram a Juíza Patrícia Acioli e é justamente lá que queremos essa possibilidade de fazer ingressar na sociedade, no mundo da competitividade, no mundo da educação para o trabalho, três mil jovens. E por que não o fazemos? Porque não há uma ação do Ministério Público para obrigar essas empresas a cumprir a norma legal. Então, como eu disse anteriormente, fazemos parte de um sistema de garantias de direitos. O Direito se depara com a situação dos jovens aprendizes, como falei. Há essa quota de 5% a 15% dos funcionários, que, se tivesse sendo cumprida, não teríamos tantos jovens na informalidade. O IBGE diz que sete em cada dez jovens estão fora do mercado de trabalho. No Rio de Janeiro, a taxa é de 24% de desocupação. O Brasil é o terceiro na taxa de homicídios de jovens com 51,7 homicídios para cada 100.000 jovens. O trabalho aprendiz tem finalidade educativa e proporciona aos jovens envolvidos um primeiro contato com o mundo do trabalho, onde o menos importante é o tipo de tarefa desenvolvida. O primordial é a oportunidade de aprender e cumprir horário, receber ordens, ter disciplina no cumprimento de tais tarefas e conviver com outros trabalhadores no âmbito de uma organização empresarial. O saudoso Ministro do STF Orozimbo Nonato nos recorda que não é o Juiz um mero aplicador mecânico de normas e leis. A sua função verdadeira, a que tem sido fiel no curso da História, é a de adaptador do texto abstrato à realidade palpitante e, às vezes, dramática que os pleitos oferecem. A Constituição, ao tratar dos direitos sociais, no seu Capítulo II, deixa claro que o direito ao trabalho, art. 6º, é anterior ao Direito do Trabalho, art. 7º, posto que o primeiro trata da dignidade da pessoa humana e da possibilidade de inclusão social. Não sou eu que estou dizendo, é o próprio legislador constituinte quem o diz. Além do que o Programa de Assistência ao Adolescente merece tratamento distinto daquele estabelecido pelas normas do direito individual do trabalho, que protege o adolescente que ingressa no mercado por meio da aprendizagem ou do estágio profissionalizante. É necessário concluir que o trabalho educativo difere do trabalho de fundo econômico, voltado exclusivamente para a subsistência. Há que se fazer a distinção entre aquele que efetivamente vende sua força de trabalho como meio de subsistência daquele que, ao desenvolver uma atividade laborativa, agrega valores à sua personalidade, à sua formação e ao seu desenvolvimento pleno. É preciso dizer que precisamos decodificar a nossa cultura de olhar para a criança como um ser que precisa de cuidados, de misericórdia, de caridade. Temos de olhar para a criança e para o adolescente como sujeito de direitos, como cidadão. Se formos capazes de respeitar seus direitos fundamentais, estaremos sedimentando as bases de uma sociedade efetiva e realmente civilizada e civilizadora. Muito obrigado pela atenção de todos. Rev. TST, Brasília, vol. 79, no 1, jan/mar 2013 235