DIREITO DO TRABALHO Curso e Discurso DIREITO DO TRABALHO Curso e Discurso Augusto César Leite de Carvalho Possui mestrado em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará e doutorado em Direito das Relações Sociais pela Universidade de Castilla la Mancha, com tese revalidada no Brasil pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi professor adjunto da Universidade Federal de Sergipe de 1997 a 2009. É professor universitário. Foi advogado, promotor de justiça, Juiz do trabalho e desembargador federal do trabalho no TRT da 20ª Região, onde exerceu, inclusive, os cargos de Presidente do TRT e Diretor da Escola Judicial. Desde dezembro de 2009 é ministro do Tribunal Superior do Trabalho, onde compôs o Conselho Consultivo da Escola Nacional dos Magistrados do Trabalho, presidiu o Comitê Gestor de Tecnologia da Informação e preside a Comissão de Documentação, responsável pela Revista do TST, pela memória da Justiça do Trabalho e pela biblioteca do TST. É autor de artigos jurídicos e dos livros Direito Individual do Trabalho (Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004-2007) e Garantia de Indenidade no Brasil (São Paulo: LTr, 2013). EDITORA LTDA. Rua Jaguaribe, 571 CEP 01224-003 São Paulo, SP — Brasil Fone (11) 2167-1151 www.ltr.com.br Junho, 2016 Versão impressa — LTr 5480.5 — ISBN 978-85-361-8901-7 Versão digital — LTr 8971.1 — ISBN 978-85-361-8895-9  Todos os direitos reservados Índice para catálogo sistemático: Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Carvalho, Augusto César Leite de Direito do trabalho : curso e discurso / Augusto César Leite de Carvalho. – São Paulo : LTr, 2016. Bibliografia 1. Direito do trabalho 2. Direito do trabalho - Brasil I. Titulo. 16-03053 CDU-34:331 1. Direito do trabalho 34:331 O que aprendi devo a um quero-quero, desses que atacam gente; e cujo único desejo, talvez um desatino, seja o de cruzar o vidro que não sai de sua frente. Bica-o, com insistência, como se o vidro interrompesse, não o vão indiferente, mas o curso de sua vida. Dedico minha existência, e este livro, a tantos que encontrei a bicar vidros, sem neles se mirarem, refletidos. Aos que enxergam, na lâmina impassível, o horizonte, nunca a própria fronte. E se enchem de nojo, ou de descrença, quando avistam outro sob jugo – sob jugo inclemente, ou insensível, que a Deus inspira dor, ou algum castigo. Os sentimentos e expectativas que tenho são compartilhados por Regina, Carolina, Theobaldo, João Vítor e Ana Clara, minha célula familiar. A eles devoto esta singela obra e a vontade de vê-la contribuir para um mundo melhor. SUMÁRIO PREFÁCIO .........................................................................................................................................................17 CAPÍTULO I – ORIGEM DO DIREITO DO TRABALHO ...................................................................................19 1.1 A pré-história do direito do trabalho ..............................................................................................................19 1.2 Os fatores econômicos que inspiraram o direito do trabalho .......................................................................20 1.2.1 A revolução industrial ...........................................................................................................................20 1.2.2 O trabalho humano, produtivo, alheio e livre ........................................................................................24 1.3 Os fatores sociais que inspiraram o direito do trabalho ..........................................................................25 1.3.1 Os primeiros movimentos de insurreição dos trabalhadores ...............................................................26 1.3.1.1 A reação dos trabalhadores na Inglaterra .........................................................................................26 1.3.1.2 A reação dos trabalhadores na França .............................................................................................26 1.3.1.3 A reação dos trabalhadores na Alemanha .........................................................................................27 1.3.2 A organização das profissões ...............................................................................................................27 1.4 Os fatores políticos que inspiraram o direito do trabalho .............................................................................28 1.4.1 A permeabilidade do Ocidente à fragmentação do poder ....................................................................28 1.4.2 A negociação coletiva que restringe a liberdade individual ..................................................................30 CAPÍTULO II – HISTÓRIA DO DIREITO COLETIVO DO TRABALHO ............................................................33 2.1 Direito coletivo e institutos afetos – sindicato, greve e convenção coletiva .................................................33 2.2 O sindicalismo no sistema capitalista de produção ......................................................................................34 2.3 O sindicalismo sob intervenção totalitária ....................................................................................................34 2.4 O difícil retorno a modelo afinado com o princípio da liberdade sindical .....................................................35 CAPÍTULO III – HISTÓRIA DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL ..........................................................37 3.1 Pré-história do direito do trabalho: trabalho escravo e corporações de arte e ofício no Brasil ....................37 3.1.1 As corporações de ofício na Europa e a analogia com o emprego ......................................................37 3.1.2 A escravidão na América e especialmente no Brasil ............................................................................38 3.1.3 A escravidão inibiu as corporações de ofício no Brasil ........................................................................41 3.1.4 As leis trabalhistas surgiram antes da abolição da escravatura ...........................................................41 3.2 A substituição do escravo africano pelo imigrante europeu .........................................................................42 3.3 O direito do trabalho e a industrialização no Brasil ......................................................................................43 CAPÍTULO IV – FONTES DO DIREITO DO TRABALHO .................................................................................46 4.1 Conceito .......................................................................................................................................................46 4.2 As fontes materiais e as fontes formais do direito ........................................................................................46 4.2.1 As fontes formais do direito do trabalho ...............................................................................................48 4.2.1.1 Fontes de produção estatal ...............................................................................................................48 4.2.1.2 Fontes de produção autônoma .........................................................................................................49 4.2.1.3 Fonte de produção mista ...................................................................................................................49 4.2.1.4 Fontes de produção internacional .....................................................................................................50 4.3 Métodos de integração da norma jurídica ....................................................................................................52 4.3.1 A jurisprudência como fonte subsidiária ...............................................................................................53 4.3.2 A analogia .............................................................................................................................................54 8 – Augusto César Leite de Carvalho 4.3.3 Equidade e outros princípios ................................................................................................................54 4.3.4 Usos e costumes ..................................................................................................................................55 4.3.5 Direito comparado ................................................................................................................................55 4.3.6 Prevalência do interesse público ou do interesse coletivo ...................................................................56 4.3.7 Direito civil como fonte subsidiária .......................................................................................................56 4.3.8 Direito ambiental como fonte supletiva ................................................................................................57 4.4 Eficácia da norma trabalhista no tempo e no espaço ..................................................................................57 4.4.1 Eficácia da norma trabalhista no tempo ....................................................................................................58 4.4.2 Eficácia da norma trabalhista no espaço...................................................................................................58 CAPÍTULO V – PRINCÍPIOS DE DIREITO DO TRABALHO ............................................................................61 5.1 Conceito e funções do princípio ...................................................................................................................61 5.2 Preeminência do princípio constitucional da dignidade (da pessoa) humana .............................................63 5.2.1 A importante contribuição do positivismo jurídico na conceituação da dignidade humana ..................64 5.2.2 A adoção do princípio da dignidade na relação entre capital e trabalho ..............................................67 5.3 Princípios especiais do direito do trabalho ...................................................................................................68 5.3.1 Princípio da proteção ...........................................................................................................................69 5.3.2 Princípio da irrenunciabilidade .............................................................................................................73 5.3.2.1. A indisponibilidade e a prescrição de pretensões trabalhistas .........................................................74 5.3.3 Princípio da continuidade .....................................................................................................................74 5.3.4 Princípio da primazia da realidade .......................................................................................................75 5.3.5 Princípio da razoabilidade ....................................................................................................................76 5.3.6 Princípio da boa-fé ...............................................................................................................................77 5.3.7 Princípio da igualdade de tratamento ...................................................................................................78 5.3.8 Princípio da autodeterminação coletiva ...............................................................................................80 5.3.8.1 A autonomia coletiva e os princípios da unicidade e da liberdade sindical .......................................82 5.3.8.2 A autodeterminação coletiva e a flexibilização do direito do trabalho. O princípio constitucional da proteção ao trabalhador ................................................................................................................................85 5.3.8.3 A autodeterminação coletiva e a ultra-atividade das normas coletivas de trabalho ..........................87 CAPÍTULO VI – A PRESCRIÇÃO TRABALHISTA ...........................................................................................89 6.1 A prescrição e o temor de propor a ação......................................................................................................89 6.2 Actio nata como termo inicial do prazo prescricional de cinco anos ...........................................................90 6.3 Outras relevantes cizânias jurisprudenciais frente à evolução constitucional e das leis .............................91 6.3.1 Os fundamentos tradicionais da prescrição total de cinco anos ........................................................91 6.3.2 A prescrição total contra a pretensão de matriz constitucional ............................................................93 6.3.3 A possível influência do atual Código Civil no debate sobre a prescrição total de pretensão fundada em nulidade ........................................................................................................................................................94 6.3.4 A jurisprudência trabalhista sobre a prescrição da pretensão que investe contra o negócio jurídico nulo .....................................................................................................................................................................97 6.3.5 A extinção do contrato como único termo inicial da prescrição bienal .................................................100 6.3.6 Súmulas 326 e 327 do TST – a complementação de proventos da aposentadoria .............................100 6.3.7 A prescrição total de pretensão reparatória. A actio nata e os fundamentos da Súmula 278 do STJ .....................................................................................................................................................................102 Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 9 6.3.8 A prescrição em hipótese de lesão a direitos da personalidade ..........................................................105 6.3.9 A lesão continuada e o termo inicial da prescrição ..............................................................................105 6.3.10 A pretensão que sobrevém à sua própria prescrição – uma heresia jurídica? ...................................106 6.3.11 Prescrição contra domésticos, estagiários e avulsos .........................................................................107 6.3.12 Prescrição relativa ao FGTS – redução do prazo pelo STF ...............................................................108 CAPÍTULO VII – EMPREGADO ........................................................................................................................111 7.1 O conceito de empregado a partir da realidade social .................................................................................111 7.2 Conceito legal de empregado. Requisitos da prestação laboral ..................................................................111 7.2.1 A pessoalidade .....................................................................................................................................112 7.2.2 A não eventualidade .............................................................................................................................114 7.2.2.1 Distinção entre o trabalho não eventual e o trabalho intermitente ...................................................115 7.2.2.2 Distinção entre o trabalho não eventual e o trabalho temporário ...................................................115 7.2.2.3 Distinção entre o trabalho não eventual e o trabalho avulso ..........................................................116 7.2.3 A subordinação .....................................................................................................................................118 7.2.3.1 Fundamento e grau da subordinação ...............................................................................................118 7.2.3.2 O poder de comando – contraface da subordinação ........................................................................120 7.2.4 A onerosidade .......................................................................................................................................127 7.3 Os elementos acidentais da prestação laboral.............................................................................................127 7.4 Empregados excluídos da proteção pela CLT ..............................................................................................128 7.5 Tipos especiais de empregados e de trabalhadores congêneres ................................................................128 7.5.1 Altos-empregados. Os empregados-diretores e os diretores-empregadores .......................................128 7.5.2 Os empregados públicos ......................................................................................................................130 7.5.3 Os empregados domésticos .................................................................................................................131 7.5.4 O empregado em domicílio e o teletrabalho .......................................................................................133 7.5.5 O trabalho intrafamiliar – entre filhos e pais ou entre cônjuges .........................................................136 7.5.6 O empregado aprendiz .........................................................................................................................137 7.5.6.1 Distinção de aprendizagem e estágio curricular ...............................................................................139 7.5.7 Os trabalhadores intelectuais ...............................................................................................................140 7.5.8 Os empregados-sócios ........................................................................................................................142 7.5.9 O trabalhador cooperativado ..............................................................................................................142 7.5.10 O trabalhador rural .............................................................................................................................145 CAPÍTULO VIII – EMPREGADOR .....................................................................................................................149 8.1 Empresa .......................................................................................................................................................149 8.2 O conceito legal de empregador ..................................................................................................................150 8.3 Empresa e estabelecimento .........................................................................................................................152 8.4 Sucessão de empregadores........................................................................................................................153 8.4.1 A sucessão em outras searas do direito ...............................................................................................153 8.4.1.1 Os efeitos da transferência do estabelecimento no direito civil ........................................................154 8.4.1.2 Os efeitos da transferência do estabelecimento na relação de consumo .........................................154 8.4.1.3 Os efeitos da transferência de estabelecimento na relação tributária ..............................................154 8.4.2 A sucessão trabalhista no Brasil ...........................................................................................................155 10 – Augusto César Leite de Carvalho 8.4.3 A sucessão trabalhista em situações normais e anormais ...................................................................156 8.4.3.1 A mudança na estrutura jurídica da sociedade empresária ..............................................................156 8.4.3.2 A sucessão no âmbito de empresas prestadoras de serviço ............................................................156 8.4.3.3 A sucessão entre sociedades irregularmente constituídas ...............................................................157 8.4.3.4 A invalidade da sucessão simulada ...................................................................................................157 8.4.3.5 Os efeitos da sucessão predatória ....................................................................................................158 8.4.3.6 A sucessão em hipóteses de falência e de recuperação judicial ......................................................158 8.5 A solidariedade entre entes empresariais que integram grupo econômico ..................................................159 8.5.1 Conceito de grupo econômico ..............................................................................................................159 8.5.2 Solidariedade passiva e solidariedade ativa (empregador único) ........................................................160 8.5.3 A sucessão no âmbito de uma das empresas do grupo econômico ....................................................162 8.6 A subcontratação e a intermediação de mão de obra ..................................................................................162 8.6.1 A subempreitada em vista da Súmula 331 do TST .............................................................................164 8.6.2 A Súmula 331, IV e VI – a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, inclusive da administração pública .........................................................................................................................................165 8.6.3 A extensão da responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços ................................................167 8.6.4 A subcontratação de serviços (terceirização) nas hipóteses de contrato de facção ........................168 8.6.5 A igualdade de direitos entre os empregados da tomadora dos serviços e os empregados da empresa prestadora ...........................................................................................................................................171 8.6.6 A terceirização da atividade-fim nos serviços de telefonia e de energia elétrica .................................172 CAPÍTULO IX – RETRIBUIÇÃO PELO TRABALHO: REMUNERAÇÃO, SALÁRIO E OUTRAS PRESTAÇÕES PECUNIÁRIAS .........................................................................................................................176 9.1 Conceito .......................................................................................................................................................176 9.1.1 As teorias da tripartição e da bipartição ...............................................................................................177 9.2 O salário .......................................................................................................................................................178 9.2.1 O salário mínimo ..................................................................................................................................178 9.2.1.1 Salário mínimo profissional. Piso salarial ..........................................................................................180 9.2.1.2 O salário por unidade de tempo e o salário mínimo. Jornada reduzida ............................................181 9.2.1.3 O salário variável e o salário mínimo. Hipótese de jornada reduzida ...............................................182 9.2.2 Salário-utilidade ....................................................................................................................................183 9.2.2.1 Limites percentuais do salário-utilidade ............................................................................................183 9.2.2.2 Configuração do salário-utilidade. Regras especiais dos trabalhadores rurais e dos domésticos ...185 9.2.2.3 Conversão em dinheiro. Salário-utilidade na suspensão contratual .................................................187 9.2.3 Modalidades de salário ........................................................................................................................188 9.2.3.1 Comissão e percentagem .................................................................................................................188 9.2.3.2 Gratificações ajustadas .....................................................................................................................188 9.2.3.3 Diária para viagem. A distinção entre diária e ajuda de custo ...........................................................191 9.2.3.4 Abono ................................................................................................................................................193 9.2.4 O salário-base e os complementos salariais ........................................................................................195 9.2.4.1 A acessoriedade dos complementos salariais – a questão correlata da composição do salário mínimo ................................................................................................................................................................195 Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 11 9.2.4.2 A periodicidade dos complementos salariais .....................................................................................197 9.2.4.3 A multicausalidade e a plurinormatividade dos complementos salariais ...........................................198 9.2.4.4 A condicionalidade dos complementos salariais ...............................................................................198 9.2.5 Prestações trabalhistas sem natureza salarial ou remuneratória ........................................................199 9.2.5.1 A participação nos lucros, resultados ou gestão da empresa ...........................................................199 9.2.5.2 O Programa de Integração Social (PIS) ............................................................................................200 9.2.5.3 O Programa de Alimentação ao Trabalhador ....................................................................................200 9.2.5.4 O vale-transporte ...............................................................................................................................201 9.3 A remuneração .............................................................................................................................................201 9.3.1 A gorjeta imprópria ...............................................................................................................................202 9.3.2 A oportunidade de ganho, inclusive as gueltas ....................................................................................203 9.3.2.1 O direito de arena como oportunidade de ganho ..............................................................................205 9.3.3 A remuneração, em especial a gorjeta, como base de cálculo de outras parcelas ..............................207 9.4 Os adicionais – vedação à incidência recíproca .........................................................................................208 9.4.1 O adicional de hora extra ..........................................................................................................................210 9.4.1.1 O adicional de acompanhamento em viagem do empregado doméstico .........................................211 9.4.2. O adicional noturno .............................................................................................................................211 9.4.2.1 O trabalho noturno em regime de revezamento ................................................................................211 9.4.2.2 O trabalho noturno decorrente da natureza da atividade ..................................................................212 9.4.2.3 A prorrogação do trabalho noturno do empregado urbano ...............................................................212 9.4.2.4 O trabalho noturno do empregado rural ............................................................................................213 9.4.2.5 O trabalho noturno em regimes especiais – trabalhador portuário e advogado ...............................214 9.4.3 Os adicionais de insalubridade e de periculosidade ............................................................................214 9.4.3.1 Hipóteses de incidência ....................................................................................................................214 9.4.3.2 A base de cálculo dos adicionais de insalubridade e periculosidade ................................................215 9.4.3.3 A prévia regulamentação pelo Ministério do Trabalho .......................................................................217 9.4.3.4 A necessidade de perícia técnica em sede judicial ...........................................................................219 9.4.3.5 A supressão do direito ao adicional pela neutralização ou eliminação do risco ................................221 9.4.3.6 A condicionalidade do direito ao adicional de insalubridade ou periculosidade ................................222 9.4.3.7 A inacumulabilidade dos adicionais de insalubridade e de periculosidade .......................................222 9.4.4 O adicional de transferência .................................................................................................................223 9.5 Os princípios informantes da teoria jurídica do salário.................................................................................224 9.5.1 Princípio da irredutibilidade ..................................................................................................................224 9.5.2 Princípio da integridade do salário .......................................................................................................225 9.5.2.1 A integridade do salário e sua determinação supletiva .....................................................................225 9.5.2.2. A integridade do salário e a vedação de descontos .........................................................................226 9.5.3 Princípio da intangibilidade do salário ..................................................................................................230 9.5.3.1 Proteção contra a imprevidência do empregador. Falência. Recuperação judicial e extrajudicial. Liquidação extrajudicial ......................................................................................................................................230 9.5.3.2 Proteção contra a imprevidência do empregado. Incessibilidade. Impenhorabilidade do salário .....231 9.5.4 Princípio da igualdade de salário .........................................................................................................233 12 – Augusto César Leite de Carvalho 9.5.4.1 Os pressupostos da equiparação salarial com empregado brasileiro ...............................................233 9.5.4.2 A existência de quadro de carreira – fato impeditivo da equiparação. Direito ao enquadramento ...237 9.5.4.3 Equiparação salarial com estrangeiro ...............................................................................................239 9.5.5 Princípio da certeza do pagamento do salário .....................................................................................239 9.5.5.1 A certeza que emana do modo de pagar o salário. O recibo de pagamento e o salário complessivo ........................................................................................................................................................240 9.5.5.2 A certeza quanto ao valor do salário .................................................................................................241 9.5.5.3 A certeza quanto ao tempo e ao lugar do pagamento de salário ......................................................241 CAPÍTULO X – DURAÇÃO DO TRABALHO ....................................................................................................243 10.1 Duração. Jornada. Horário .........................................................................................................................243 10.2 A jornada de trabalho..................................................................................................................................243 10.2.1 Critérios gerais de fixação da jornada ................................................................................................244 10.2.1.1 O tempo de trabalho e o tempo à disposição do empregador – o ônus da prova ..........................244 10.2.1.2 O tempo de deslocamento residência-trabalho-residência e o tempo de trajeto interno ................245 10.2.1.3. O tempo de afastamento justificado ...............................................................................................247 10.2.2 Critérios especiais de fixação da jornada ...........................................................................................247 10.2.2.1 O tempo de prontidão ......................................................................................................................247 10.2.2.2 O tempo de sobreaviso ...................................................................................................................248 10.2.2.3 O tempo de intervalo especial .........................................................................................................250 10.2.3 Jornada extraordinária .......................................................................................................................251 10.2.3.1 Jornada realmente extraordinária ...................................................................................................252 10.2.3.2 Jornada extraordinária do empregado doméstico ...........................................................................253 10.2.3.3 Jornada extraordinária de motoristas de transporte rodoviário .......................................................253 10.2.4 Jornadas normais reduzidas – bancários, telefonistas, operadores cinematográficos, mineiros, cabineiros de elevador, professores, advogados, aeronautas, técnicos em radiologia, artistas e músicos ......257 10.2.5 Compensação de jornadas. Banco de horas e fonte do direito .........................................................259 10.2.6 Turnos ininterruptos de revezamento .................................................................................................261 10.2.6.1 Os intervalos em turnos ininterruptos de revezamento ...................................................................262 10.2.6.2 A sobrevigência da Lei n. 5.811/72 ..................................................................................................263 10.2.6.3 A redução da hora noturna no sistema de turnos ininterruptos de revezamento ............................264 10.2.7 Trabalhadores não protegidos pela norma regente da duração do trabalho .....................................265 10.3 Intervalos intrajornadas e interjornadas .....................................................................................................266 10.3.1 Intervalos intrajornadas ......................................................................................................................266 10.3.1.1 Intervalo mínimo. Autorização do Ministério do Trabalho para redução e efeitos da supressão. Regra específica para o motorista profissional ..................................................................................................267 10.3.1.2 Intervalo máximo. Possibilidade de prorrogação por norma escrita. Efeitos da dilação não autorizada ...........................................................................................................................................................270 10.3.2 Intervalos interjornadas ......................................................................................................................270 10.3.2.1 Intervalo entre duas jornadas. As regras especiais para motoristas ...............................................270 10.3.2.2 Repouso semanal e em feriados .....................................................................................................271 10.3.2.3 Férias ..............................................................................................................................................276 Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 13 CAPÍTULO XI – PERSPECTIVA EXISTENCIAL DA RELAÇÃO DE EMPREGO .............................................290 11.1 A tradicional vertente patrimonialista do direito laboral ...............................................................................290 11.2 O direito fundamental à saúde do trabalhador no âmbito do direito ambiental – o trabalho sob a incidência transversal do direito ambiental..........................................................................................................................292 11.2.1 Incidência dos princípios regentes do direito ambiental nos biomas laborais ....................................293 11.2.1.1 Princípio da sustentabilidade ...........................................................................................................294 11.2.1.2 Princípio da participação .................................................................................................................295 11.2.1.3 Princípio da prevenção ....................................................................................................................296 11.2.1.4 Princípio da precaução ....................................................................................................................298 11.2.1.5 Princípio do poluidor-pagador. A responsabilidade objetiva pelo dano ao ambiente de trabalho e ao trabalhador. Dano moral coletivo e dano social..........................................................................................300 11.2.2 O tempo sem trabalho e sua correlação com o direito à coexistência ...............................................303 11.2.3 Direitos relacionados à duração do trabalho afetam o direito fundamental à saúde ..........................305 11.3 Igualdade substancial e tratamento desigual .............................................................................................307 11.3.1 Ações afirmativas no âmbito do trabalho – pessoas com deficiência e aprendizes ...........................308 11.3.1 A proteção do menor à luz da igualdade material ..............................................................................310 11.3.2 A proteção da mulher à luz da igualdade material ..............................................................................311 11.4 Direitos de liberdade no ambiente de trabalho ...........................................................................................313 11.4.1 Liberdade de locomoção ....................................................................................................................314 11.4.1.1 Vedação ao trabalho forçado ...........................................................................................................314 11.4.1.2 Libertação do trabalho e regime de sobreaviso ..............................................................................316 11.4.1.3 Direito de o trabalhador migrar ........................................................................................................317 11.4.2 Liberdade de pensamento ..................................................................................................................319 11.4.2.1 Liberdade de opinião política ...........................................................................................................320 11.4.2.2 Liberdade de crença e religião ........................................................................................................321 11.4.3 Liberdade de expressão e de informação no ambiente de trabalho – a exigência de boa-fé na negociação coletiva e a proteção à testemunha no processo judicial ...............................................................323 11.4.4 Liberdade sexual no ambiente de trabalho – assédio sexual .............................................................326 11.5 Direitos da personalidade no ambiente de trabalho ...................................................................................328 11.5.1 A tutela do direito à vida e à integridade física. As dimensões do problema e os meios de interdição ............................................................................................................................................................330 11.5.2 Direito à privacidade e à intimidade no ambiente de trabalho – câmeras de vídeo, monitoramento do teletrabalho, correio eletrônico, sigilo bancário, revista pessoal e de pertences, barreira sanitária coletiva, divulgação de salários, fardamento com propaganda .........................................................................335 11.6 Assédio moral no ambiente de trabalho .....................................................................................................341 11.7 Reparação pelo dano extrapatrimonial ambientado no lugar de trabalho – funções de ressarcimento, dissu- asão e punição – critérios de valoração .............................................................................................................343 CAPÍTULO XII – PERSPECTIVA CONTRATUAL DA RELAÇÃO DE EMPREGO ...........................................345 12.1 A índole (também) patrimonialista da regência laboral...............................................................................345 12.2 Natureza jurídica da relação de emprego ..................................................................................................345 12.2.1 As teorias anticontratualistas ..............................................................................................................346 12.2.1.1 A teoria da relação de trabalho ........................................................................................................346 14 – Augusto César Leite de Carvalho 12.2.1.2 A teoria institucionalista ...................................................................................................................346 12.2.2 As teorias contratualistas ...................................................................................................................347 12.2.2.1 Teoria do contrato de locação .........................................................................................................347 12.2.2.2 Teoria do contrato de compra e venda ............................................................................................347 12.2.2.3 Teoria do contrato de sociedade .....................................................................................................348 12.2.2.4 Teoria do contrato de mandato ........................................................................................................349 12.2.2.5 Teoria do contrato-realidade ............................................................................................................349 12.3 Relação de emprego: espécie do gênero relação de trabalho. Contratos afins ao de emprego ...............350 12.3.1 Outras relações de trabalho e a relevância da subordinação como elemento distintivo ...................351 12.3.1.1 A locação de serviços e o novo contrato de prestação de serviços ...............................................351 12.3.1.2 Distinção entre emprego e empreitada ...........................................................................................352 12.3.1.3 Distinção entre emprego e mandato ...............................................................................................352 12.3.1.4 Distinção entre emprego e sociedade .............................................................................................353 12.3.1.5 Distinção entre emprego e relação de consumo .............................................................................354 12.4 Caracteres do contrato de emprego ...........................................................................................................355 12.4.1 Contrato nominado .............................................................................................................................355 12.4.2 Contrato de direito privado .................................................................................................................355 12.4.3 Contrato principal ...............................................................................................................................356 12.4.4 Contrato consensual ..........................................................................................................................357 12.4.5 Contrato bilateral ................................................................................................................................357 12.4.6 Contrato oneroso e comutativo ..........................................................................................................357 12.4.7 Contrato intuitu personae .................................................................................................................358 12.4.8 Contrato continuado ...........................................................................................................................358 12.4.9 Contrato de adesão ............................................................................................................................359 12.5 Elementos do contrato de emprego ...........................................................................................................359 12.5.1 Elementos essenciais do contrato de emprego – hipóteses de nulidade e de anulabilidade no direito civil ......................................................................................................................................................................360 12.5.1.1 Os pressupostos: a capacidade, a licitude do objeto e, em alguns casos, a legitimação .........362 12.5.1.2 Os requisitos da relação de trabalho: causa, consentimento e, excepcionalmente, a forma especial .............................................................................................................................................................366 12.5.2 Elementos acidentais do contrato de emprego ..................................................................................372 12.6 Classificação do contrato de emprego .......................................................................................................373 12.6.1 Classificação quanto aos sujeitos ......................................................................................................373 12.6.2 Classificação dos contratos de emprego quanto à duração ..............................................................374 12.6.2.1 O termo final em norma geral ..........................................................................................................374 12.6.2.2 O termo final em norma especial ....................................................................................................376 12.6.2.3 Contrato de trabalho sob condição resolutiva .................................................................................377 12.6.2.4 Peculiaridades dos contratos a termo. Duração máxima. Recondução tácita. Suspensão contratual. Ruptura antecipada. Aquisição de estabilidade. Sucessão de contratos com termo certo ................................378 12.7 Conteúdo do contrato de emprego...................................................................................................379 12.7.1 O conteúdo primário do contrato de emprego ....................................................................................380 Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 15 12.8 Alteração do contrato de emprego .............................................................................................................381 12.8.1 Considerações gerais sobre a alteração contratual no âmbito do direito do trabalho. O direito de variar e o direito de resistir .................................................................................................................................381 12.8.2 Alterações por intervenção do Estado ou por negociação coletiva ....................................................381 12.8.3 Alterações voluntárias do contrato de emprego .................................................................................383 12.8.3.1 A alteração consensual do contrato de emprego ............................................................................383 12.8.3.2 A inalterabilidade unilateral do contrato e o jus variandi ................................................................384 12.8.3.3 A alteração funcional e seu limite de licitude ...................................................................................385 12.8.3.4 A tentativa de padronizar o jus variandi .........................................................................................386 12.8.3.5 A mudança de localidade e seus efeitos pecuniários. Grupo econômico .......................................387 12.8.3.6 O jus variandi extraordinário ..........................................................................................................389 12.9 Suspensão do contrato de emprego ..........................................................................................................389 12.9.1 Nome e conteúdo dos tipos de suspensão ........................................................................................389 12.9.2 Classificação legal ..............................................................................................................................390 12.9.2.1 Hipóteses de interrupção contratual ..............................................................................................390 12.9.2.2 Hipóteses de suspensão contratual ...............................................................................................391 12.9.2.3 Casos híbridos. Efeitos jurídicos .....................................................................................................395 12.9.2.4 Conversibilidade da suspensão do contrato ...................................................................................396 12.10 Cessação do contrato de emprego ..........................................................................................................396 12.10.1 Terminologia .....................................................................................................................................396 12.10.2 Resilição do contrato de emprego. Direito potestativo, ônus da prova e aviso-prévio ............................ 397 12.10.2.1 O aviso-prévio ..............................................................................................................................398 12.10.2.2 Assistência ao empregado demissionário. Empregado menor que se demite ..............................404 12.10.3 Resolução do contrato de emprego. Extinção normal. Justa causa ................................................405 12.10.3.1 A resolução mediante extinção normal do contrato de emprego ..................................................406 12.10.3.2 A justa causa – implemento da condição resolutiva tácita. Pressupostos da gravidade, atualidade e imediatidade ....................................................................................................................................................406 12.10.3.3 A justa causa e a falta grave .........................................................................................................407 12.10.3.4 As justas causas atribuíveis aos empregados ..............................................................................407 12.10.3.6 A culpa recíproca ...........................................................................................................................419 12.10.3.7 Justa causa do empregado doméstico ..........................................................................................419 12.10.3.8 A resolução do contrato de empregado público – necessidade de motivação pela administração pública indireta e em contratos de gestão ..................................................................................420 12.10.3.9 A greve e a resolução contratual ...................................................................................................424 12.10.4 Rescisão do contrato de emprego ...................................................................................................428 12.10.5 Caducidade do contrato de emprego ...............................................................................................429 12.10.6 O regime do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ....................................................................435 12.10.6.1 A história e a estrutura do sistema de depósitos ...........................................................................435 12.10.6.2 Alíquotas e titulares do direito ao FGTS ........................................................................................435 12.10.6.3 Natureza jurídica do FGTS. Contribuição social ou salário diferido. A Lei n. Complementar n. 110 e sua aparente inconstitucionalidade .................................................................................................................436 16 – Augusto César Leite de Carvalho 12.10.6.4 A movimentação da conta vinculada .............................................................................................438 12.10.7 A forma e a força liberatória do recibo firmado no desate contratual ...............................................438 12.10.8 Efeitos da cessação do contrato de emprego ..................................................................................439 12.10.8.1 O direito à reintegração .................................................................................................................439 12.10.8.2 As prestações típicas da dissolução do contrato ..........................................................................445 12.11 Estabilidade no emprego ..........................................................................................................................452 12.11.1 Fonte jurídica e tipologia da estabilidade .........................................................................................452 12.11.2 A estabilidade definitiva ....................................................................................................................453 12.11.3 A estabilidade provisória ...................................................................................................................455 12.11.3.1 A estabilidade sindical ...................................................................................................................456 12.11.3.2 A estabilidade dos membros da CIPA eleitos pelos empregados ..................................................458 12.11.3.3 A estabilidade da gestante .............................................................................................................459 12.11.3.4 A estabilidade acidentária ..............................................................................................................461 12.11.3.5 A estabilidade dos membros da Comissão de Conciliação Prévia eleitos pelos empregados ......462 12.11.3.6 A estabilidade do membro do Conselho Curador do FGTS ..........................................................463 12.11.3.7 A estabilidade do empregado eleito diretor de cooperativa ...........................................................464 12.11.3.8 A estabilidade do membro do CNPS .............................................................................................465 12.11.3.9 A estabilidade dos representantes dos trabalhadores na empresa ...............................................465 12.11.3.10 A estabilidade no período pré-eleitoral ........................................................................................466 CAPÍTULO XIII – DIREITO FUNDAMENTAL DE GREVE ................................................................................467 13.1 Conceito .....................................................................................................................................................467 13.2 A greve e o meio ambiente de trabalho ......................................................................................................467 13.3 A interação com os sistemas político e econômico por ocasião da greve .................................................468 13.4 A decomposição do conceito de greve .......................................................................................................468 13.4.1 A greve como direito fundamental – direito coletivo fundamental ......................................................468 13.4.1.1 As dimensões individual e coletiva do direito fundamental à greve ................................................469 13.4.1.2 A greve como direito fundamental – a opção pela via pacífica e a ausência de métodos alternativos de solução dos conflitos coletivos ......................................................................................................................470 13.4.1.3 O interesse coletivo e as greves geral, política e de solidariedade ................................................471 13.4.1.4 A greve como direito fundamental – o lock-in e o lock-out ...........................................................473 13.4.2 A greve e o princípio da boa-fé objetiva .............................................................................................474 13.4.2.1 Imunização da greve contra a perturbação patronal .......................................................................474 13.4.2.2 Imunização da greve contra a perturbação obreira .........................................................................476 13.4.3 A suspensão do contrato durante a greve ..........................................................................................477 13.5 A greve sob intervenção judicial .................................................................................................................479 13.6 A greve e o interdito proibitório ...................................................................................................................480 13.6.1 A ameaça à posse como pressuposto do interdito possessório .........................................................481 13.6.2 A necessidade de audiência de justificação para a concessão do mandado proibitório ....................482 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................................................485 PREFÁCIO Confesso que foi com vivo contentamento e emoção que percorri e li, página por página, o conteúdo da presente obra. Da leitura do livro, ficou-me a grata convicção de cuidar-se de uma obra de fôlego sobre o Direito do Trabalho brasileiro. Como é sabido, de uns tempos a esta parte, a globalização e o neoliberalismo econômico vêm fustigando o Direito do Trabalho, sob distintas formas. O preclaro autor da presente publicação, no entanto, de modo firme e resoluto, defende ardoro- samente as raízes de que se nutre o Direito do Trabalho e que lhe sustentam o porvir. Não à-toa vê na obra “Curso e Discurso”. Daí que impregna toda a abordagem dos fundamentos clássicos que ditaram o próprio surgimento histórico do Direito do Trabalho. Muito mais que isso: a obra tem como fio condutor e pilar os princípios da proteção e da dignidade da pessoa humana, à sombra dos quais vive o Direito do Trabalho. Aliás, sob tal inspiração e abeberando-se na seiva pura das melhores fontes o autor posiciona- -se igualmente sobre uma vasta e multifária gama de questões atuais do Direito do Trabalho. Dedica um largo capítulo ao exame do que denomina “Perspectiva Existencial da Relação de Emprego”. Ali enfrenta, entre outros temas, os assédios moral e sexual, além de inúmeras facetas do dano moral. Semelhante enfoque bem realça que se está diante de um autor cônscio de que hoje, mais do que nunca, o Direito do Trabalho e a própria Constituição Federal conferem especial dimensão à tutela da personalidade do trabalhador empregado, mormente em razão do caráter pessoal, subordinado e duradouro da prestação de trabalho. Trata-se aqui, como se nota, de obra abrangente e ambiciosa. A simples leitura do sumário já prenuncia que nela o autor propõe-se a concentrar o foco em amplo leque de institutos e temas do Direito do Trabalho. De fato, a obra oferece um quadro completo, didático e sistematizado do Direito do Trabalho brasileiro. A excelência da obra, contudo, a meu sentir, repousa menos nesse aspecto que na qualidade e densidade das análises e juízos emitidos. Em qualquer deles, sobressaem a mesma agudeza de espí- rito e a mesma precisão de linguagem. Não hesito em asseverar que nos defrontamos aqui, acima de tudo, com obra consistente e de inteligência, que palmilha pela senda da clareza e da objetividade, sem implicar superficialidade. Ao dispor-se a dissecar distintos e complexos temas do Direito do Trabalho, o ilustre autor atravessa-lhes os umbrais com proficiência e galhardia. Igualmente notável na publicação é o esmero com a linguagem jurídica, de que constitui exemplo emblemático, no respectivo capítulo, a busca pela designação adequada para cada uma das diferen- tes formas de “cessação do contrato de emprego”. Preocupação desse jaez denota outro predicado admirável da obra, pois evidentemente toda questão terminológica implica uma questão conceitual. Sobreleva assinalar ainda que, apesar de obra técnica, propicia leitura extremamente agradável, inclusive porque ilustrada por exuberante casuística da jurisprudência dos Tribunais do Trabalho, em especial do TST, sobre quase todos os temas. Eis porque estou convicto de que esta é uma obra que será sobremodo útil quer ao profissional estudioso e experimentado da área, quer ao iniciante que se acerque desse novo e fascinante ramo da ciência do Direito. O trabalho é fruto da larga experiência do Prof. Augusto César Leite de Carvalho. Experiência, frise-se, não apenas no magistério superior, mas também haurida em muitos lustros de exercício da magistratura trabalhista de carreira, coroada pela merecida ascensão ao cargo de ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Decerto essa rica vivência profissional deu-lhe exemplos e ensina- mentos por meio dos quais pode forjar a sólida posição intelectual aqui defendida. De sorte que, por isso tudo e muito mais, o ilustre autor confiou-me um prefácio desnecessário, de uma obra cujo valor fala por si mesmo e que decerto enriquecerá o patrimônio jurídico nacional. A rigor, ao render-me ensejo de recomendá-la, com entusiasmo, o eminente autor apenas me permite compartilhar de seu merecido triunfo intelectual, em obra de evidente utilidade e cujo acolhi- mento favorável, à altura de sua grandeza, mais que um vaticínio, é uma certeza. Brasília, maio de 2016. Ministro JOÃO ORESTE DALAZEN Decano do Tribunal Superior do Trabalho CAPÍTULO I ORIGEM DO DIREITO DO TRABALHO 1.1 A pré-história do direito do trabalho Houve tempo em que o homem produzia para atender às suas próprias necessidades e às de sua família, interagindo com a natureza e com outros homens que agiam à sua semelhança. Era um tempo, portanto, de mediações de primeira ordem(1), ou mediações primárias, e de comportamento instintivo. Produzindo o que era útil para o próprio consumo, o homem primitivo desconhecia o conceito de mercadoria e o mundo do trabalho não comportava, em situação de normalidade, a estrutura hierár- quica que mais tarde viria a predominar nas relações de trabalho. A terra não estava repartida, nem havia quem a repartisse. A troca ou escambo ganhou, progressivamente, alguma complexidade até que se iniciou um processo de conversão do valor de uso em valor de troca(2), pois as coisas transferidas não o eram mais segundo o valor da utilidade que proporcionavam, mas passaram a ter o seu valor inflado pelo trabalho humano e, mais adiante, pelo valor que correspondia ao lucro, vale dizer, o ganho do empre- sário que precisava existir para justificar o seu investimento na produção. O investimento na produção de mercadorias, em escala industrial, não foi a primeira forma de inversão do capital a contribuir para que se reduzissem gradualmente as mediações de primeira ordem. Um modelo econômico que pressupunha a realização de capital e, sob perspectiva histórica, precedeu o sistema capitalista fora certamente o sistema mercantilista. Desde as primeiras formas de mercanti- lismo (bulionismo ou metalismo), preconizava-se estar a riqueza das nações associada à quantidade de metais preciosos – ouro e prata – acumulada, servindo o incremento das exportações a esse fim. Não por acaso, as nações colonialistas impediam que o ouro da colônia fosse vendido a outros povos. Também a exploração do trabalho humano não surgiu, evidentemente, com a primeira revolução industrial. Ademais de citar o trabalho escravo e as suas modalidades – desde aquele que se realizava por meio de prisioneiros de guerra até o crudelíssimo aprisionamento da gente africana – podem-se mencionar o labor dos servos de gleba(3) e dos aprendizes e oficiais nas corporações de arte e ofício(4). O aparecimento do direito do trabalho tem relação com um modo específico de produção capitalista que emergiu com a realidade social sobrevinda após os movimentos de ruptura sócio-polí- tica e econômica que caracterizaram o fim da era moderna, no tumultuado século XVIII. As condições (1) Sobre o tema, ver, por todos, Ricardo Antunes (ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Editorial Boitempo, 2000, passim). (2) As expressões valor de uso e valor de troca são usadas por Marx (MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Tradução de Edgard Malagodi. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999, passim), mas, segundo nota na p. 57, foram cunhadas por Aris- tóteles, que assim se referiu: “Pois todo o bem pode servir para dois usos... Um é próprio à coisa como tal, mas o outro não o é: assim, uma sandália pode servir como calçado, mas também pode ser trocada. Trata-se, nos dois casos, de valores de uso da sandália, porque aquele que troca a sandália por aquilo de que necessita, alimentos, por exemplo, serve-se também da sandália como sandália. Contudo, não é este o seu modo natural de uso. Pois a sandália não foi feita para a troca. O mesmo se passa com os outros bens”. (3) Conforme ressaltamos em outro escrito, o homem se libertou do trabalho escravo, mas não completamente, pois se seguiu a Era Medie- val e, nela, uma sociedade dividida em rígidos estamentos: os senhores feudais e os servos. A servidão era imposta a quase todos os campo- neses e se diferenciava do trabalho escravo porque o servo se ligava à terra e pelo seu uso pagava diversos tributos, passando a ter novo amo quando a terra era vendida. Vinculava-se o servo à gleba como antes se vinculara o escravo ao seu senhor. (4) Vide VIDA SORIA, J., MONEREO PÉREZ, J.L., MOLINA NAVARRETE, C. Manual de Derecho del Trabajo. Granada: Comares, 2004, p. 64. Os autores observam que o trabalho em regime gremial ou corporativo exibia algumas características coincidentes com a relação laboral própria da empresa capitalista, além de outras que o faziam diferente. As diferenças mais expressivas se encontravam no modo de se constituir a organização em que se realizava o trabalho. No plano das relações individuais, eram, porém, parecidas as condições em que se trabalhava sob as ordens dos mestres ou, mais adiante, dos empresários. As coincidências estavam presentes, por exemplo, na circunstân- cia de que as ordenanças gremiais relativas ao período de prova, disciplina, duração do contrato e tempo de trabalho seguiam orientação análoga à que tem o atual direito do trabalho e também na peculiaridade de os aprendizes, companheiros e mestres serem trabalhadores livres. Mas os autores advertem, porém, que a liberdade de trabalho dos aprendizes era seriamente afetada, em muitos casos, pela combina- ção de uma longa duração de seus contratos – eram comuns contratos de seis anos – com um regime de desvinculação ou desate contratual muito rigoroso. 20 – Augusto César Leite de Carvalho adversas do trabalho humano que se percebiam no âmbito do emprego industrial exigiam um sistema de compensação jurídica que por zelo ou hipocrisia as legitimasse, atenuando o seu caráter espo- liativo, além de demandarem uma construção teórico-filosófica que fizesse face à ideia, desde antes difundida entre os colbertistas, de que o industrial deveria assegurar aos seus trabalhadores apenas a remuneração que lhes garantisse a sobrevivência, pois do contrário não ocorreria a acumulação de riqueza tão cara ao mercantilismo. É possível, como se nota em sistematização proposta por Mauricio Godinho Delgado(5), destacar os fatores econômicos, sociais e políticos que deflagraram o surgimento do direito do trabalho como ramo específico do direito privado. Pode ser referido como fator econômico o advento do trabalho humano, alheio, produtivo e livre mas subordinado que caracterizou o emprego industrial; o fator social mais relevante terá sido a concentração urbana que propiciou a organização das profissões e viabilizou assim os movimentos obreiros reivindicatórios; os fatores políticos a serem ressaltados são decerto a liberdade de exer- cer qualquer profissão sem as amarras da sociedade estamental ou mesmo do sistema corporativo, bem assim as ações coletivas que se desencadearam a partir do ambiente de empresa e geraram não apenas a normatização das condições de trabalho sem a colaboração do Estado, mas também o modelo de democracia social que se contraporia à solução de força preconizada por Marx para a conquista de uma sociedade menos desigual. Cabe destrinçar cada um desses fatos determinantes para o nascimento e consolidação do direito laboral. 1.2 Os fatores econômicos que inspiraram o direito do trabalho Nos estertores do século XVIII, os trabalhadores perceberam a influência danosa da primeira revolução industrial na oferta de trabalho e recusaram, por isso, a submissão a normas inspiradas nos princípios da revolução burguesa, especialmente nos postulados da igualdade e liberdade que os supunham, no plano artificial das abstrações jurídicas, semelhantes a empresários que os submetiam, inclementemente, a condições injustas de trabalho. Cabe-nos estudar, portanto e analiticamente, os atributos do trabalho que justificaram a nova regência, ou melhor, impende analisar o fenômeno social que motivou o surgimento do direito do trabalho. Antes de detalhar as condições em que o trabalhador prestara serviço naquele novo modelo de organização social, ou seja, na empresa que emergira com a primeira revolução industrial, convém, por certo, relembrar o significado e as derivações desse conceito (revolução industrial). 1.2.1 A revolução industrial Poderia causar estranheza o uso indiscriminado do vocábulo revolução para designar uma trans- formação nos meios de produção – como é o caso da revolução industrial – e também alguns movi- mentos de ruptura política, como a Revolução Francesa de 1789 e, na mesma Inglaterra, a Revolução Gloriosa, um século antes. Ensina-nos Fábio Konder Comparato que “revolutio, em latim, é o ato ou efeito de revolvere (volvere significa volver ou girar, com o prefixo re indicando repetição), no sentido literal de rodar para trás e no figurativo de volver ao ponto de partida, ou de relembrar-se”(6). Anota Comparato que o uso político do vocábulo revolução “começou com os ingleses, no sentido de uma volta às origens e, mais precisamente, de uma restauração dos antigos costumes e liberdades. [...] O termo revolution é assim usado, pela primeira vez, para caracterizar a restauração monárquica de 1660, após a ditadura de Cromwell”(7). Deu-se, porém, um giro semântico a partir da Revolução Francesa, pois a mesma palavra que expressava o retorno ao regime político anterior passou a signi- ficar uma mudança completa de valores e na ordem dos fatos, com o sinal claramente prospectivo da promessa de um mundo novo. O grande movimento que eclodiu na França em 1789 veio operar na palavra revolução uma mudança semântica de 180º. Desde então, o termo passou a ser usado para indicar uma renovação (5) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2013. p. 84. (6) COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 124. (7)Idem, ibidem. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 21 completa das estruturas sociopolíticas, a instauração ex novo não apenas de um governo ou de um regime político, mas de toda uma sociedade, no conjunto das relações de poder que compõem a sua estrutura. Os revolucionários já não são os que se revoltam para restaurar a antiga ordem política, mas os que lutam com todas as armas – inclusive e sobretudo a violência – para induzir o nascimento de uma sociedade sem precedentes históricos.(8) Nos dias que correm, o termo revolução é polissêmico, embora preserve a conotação de ruptura que lhe foi dada pela Revolução Francesa. Lembra Paulo Bonavides(9) que pode tal palavra significar, para os historiadores, a “transformação fundamental de uma situação existente, não importa em que domínio”; enquanto para os juristas a revolução é essencialmente “a quebra do princípio da legalidade, a queda de um ordenamento jurídico de direito público, sua substituição pela normatividade nova que advém da tomada do poder e da implantação e exercício de um poder constituinte originário”. Muito próximo e até se relacionando intrinsecamente com o conceito jurídico, o conceito político de revolu- ção: a “modificação violenta dos fundamentos jurídicos de um Estado”. Interessa o tema sobretudo aos sociólogos e eles, quando instados ao conceito de revolução, concebem-na, como ocorrera a Marx, como “a busca retroativa de um desenvolvimento obstaculizado”, o que corresponderia, na sociedade de classes em constante conflito, ao momento em que “as forças materiais de produção na Sociedade caem em contradição com as relações de produção existentes”. Ainda no campo sociológico, Ortega y Gasset observou que a revolução “não é barricada mas um estado de espírito”, rematando enfim que “o revolucionário não se rebela contra os abusos da socie- dade, conforme fazia o homem medieval, mas contra os usos, quer dizer, contra as instituições, como faz o homem moderno”. O mestre Bonavides, de cujo ensinamento extraímos várias destas breves notas, acrescenta: “se a mudança se refere ao pessoal de governo, não houve revolução, mas golpe de Estado; se a mudança, porém, atingiu a Constituição política e a forma de governo, já é possível falar em revolução, a saber, revolução política; se, porém, as transformações se verticalizarem mais [...], com ascensão de uma nova classe ao poder ou aparição de um novo sistema de camadas sociais, redistribuição de propriedade ou até mesmo sua abolição [...], aí o cientista político reconhecerá então a revolução social”(10). Como se pode perceber, o termo revolução não comporta, sob o ponto de vista conceitual, redu- ção sociológica, jurídica ou política. Os seus vários sentidos denotam mudança e não raro se interpe- netram os vários matizes dos fatos ou atos que sociólogos, juristas e cientistas políticos classificam, ao mesmo tempo, como revolucionários. O juslaboralista Evaristo de Moraes Filho(11) atribui a autoria da expressão revolução industrial a Arnold Toynbee, situando-a em escrito de 1884, e nos remete a trecho pinçado da obra de Blanqui (célebre revolucionário e socialista francês que passou na prisão quase trinta anos de sua vida): Enquanto a Revolução Francesa fazia suas grandes experiências sociais em cima de um vulcão, a Inglaterra começava as suas no terreno da indústria. O fim do século XVIII assinalou-se naquele país por descobertas admiráveis, destinadas a modificar a face do mundo e aumentar de modo inesperado o poder de seus inventores. As condições de traba- lho sofreram a mais profunda modificação que haviam experimentado desde a origem das sociedades. Duas máquinas, imortais desde então, a máquina a vapor e a máquina de fiar, transformaram o velho sistema comercial e fizeram nascer no mesmo momento produtos materiais e questões sociais, desconhecidas dos nossos pais. Os pequenos trabalhadores iriam tornar-se tributários dos grandes capitalistas; a máquina-ferramenta substituía a roda de fiar, e o cilindro a vapor sucedia a economia doméstica. O autor francês se referia ao maquinismo e à nova realidade social que dele emergia. E que progresso teve, afinal, a máquina, ao fim do século XVIII? Historiando a Idade Contemporânea, (8) COMPARATO, op. cit., p. 125. (9) BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10a edição. São Paulo : Malheiros Editores, 1997. p. 402. (10) BONAVIDES. Op. cit. p. 408. (11) MORAES FILHO, Evaristo de. Do Contrato de Trabalho como Elemento da Empresa. São Paulo: LTr, 1993. Edição fac-similada, nota 33 da Parte I. p. 78. 22 – Augusto César Leite de Carvalho Cláudio Vicentino(12) anota que a revolução industrial se iniciou com a mecanização do setor têxtil, cuja produção tinha amplos mercados nas colônias, inglesas ou não, da América, África e Ásia. Alinha, entre as principais invenções mecânicas do período, a máquina de fiar, o tear hidráulico e o tear mecâ- nico. Em 1712, Thomas Newcomen inventou a máquina movida a vapor, sendo sua invenção aperfei- çoda por James Watt (1765). Em 1805, surgiu o barco a vapor e em 1814, a locomotiva a vapor, sendo assim os transportes igualmente influenciados pela descoberta do vapor como força motriz. Em verdade, a associação entre o maquinismo e a evolução dos meios de transporte tem um efeito singular: a um só tempo, produzia-se em série e se distribuía o bem produzido em mercados antes não explorados, o que estimulava novos investimentos na produção desse e de outros bens. Inicialmente, a Inglaterra monopolizou a industrialização. Os ingleses abandonaram inclusive a produção e a exportação de produtos primários(13), transferindo-as para as colônias que, situando-se em zona temperada, possuíam solo fértil para a agricultura que era, na grande ilha europeia, substitu- ída pela criação de carneiros que proveriam as novas indústrias têxteis(14). É fato, porém, que o padrão inglês de industrialização exigia investimentos não muito elevados e tecnologia pouco complexa, o que permitiu a outros povos (Alemanha, EUA, França, Japão e Rússia) inserir-se gradualmente, ao decorrer o século XIX, no mesmo modelo de produção fabril que caracterizou a primeira revolução industrial(15). Sobreveio, porém, a segunda revolução industrial, configurando-se afinal por uma maior escala de produção imposta pelo produção de novos bens que exigiam investimentos de maior monta, a exemplo da produção de energia elétrica, automóvel, química, petróleo, aço etc. Pochmann explica: O surgimento de grandes empresas, por meio de fusão e cartéis, e a união dos capitais industrial e bancário (financeiro) viabilizaram, para poucos empresários, a possibilidade de produção e difusão de uma nova onda de inovação tecnológica. As dificuldades adicionais de acesso à Segunda Revolução Industrial e Tecnológica tornaram mais complexas as possibili- dades de transição das nações periféricas para as nações do centro capitalista. Assim, entre 1890 e 1940, as exportações mundiais de produtos manufaturados estiveram concentradas em apenas 5 países (Inglaterra, Estados Unidos, França, Japão e Alemanha), que respon- diam por cerca de 80% do total do comércio internacional (Chirot, 1977). A bem dizer, a segunda revolução industrial teve início na última metade do século XIX, quando se descobriu a eletricidade (o dínamo a ensejar a substituição do vapor), como fonte alternativa de energia para a indústria, e invenção de Henry Bessemer permitiu a transformação do ferro em aço, este suplantando aquele por suas características de dureza, resistência e baixo custo – a invenção revolucionou a indústria metalúrgica, que passou a produzir o aço em larga escala. Ao início do século XX, a Inglaterra dá sinais de fragilidade na sua condição de potência hege- mônica, agravando-se esse quadro em razão das duas guerras mundiais e da depressão econômica de 1929. A seu turno, os Estados Unidos já se apresentavam como a principal economia do centro capitalista e, no segundo pós-guerra, assumiram afinal a posição de hegemonia(16). A evolução tecnológica se intensificou desde a inserção do petróleo (motor de combustão interna) como fonte energética e, em vista do atual processo de informatização da indústria, já há quem se refira a uma terceira revolução industrial, não se podendo abstrair que a agilidade dos atuais meios de comunicação e a globalização dos mercados, mediante a formação de blocos econômicos e interação entre estes, está por transmudar, como lembra o Professor José Eduardo Faria, a sociedade industrial em uma nova sociedade informacional, na qual o tempo de exploração comercial das invenções indus- triais se acelera na mesma proporção em que tais invenções são superadas por outras que revelam maior avanço tecnológico, contando-se esse tempo à razão de semanas ou meses, sequer de anos... (12) VICENTINO, Cláudio. História Geral. São Paulo: Scipione, 1997. p. 284. (13) Anota Marcio Pochmann (POCHMANN, Marcio. O Emprego na Globalização. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p. 20) que “a Inglaterra pôde comportar apenas 9% de sua força de trabalho no setor primário, em 1900, enquanto os Estados Unidos possuíam 37% de sua população ativa no campo, a Alemanha 34%, a França 43%, a Itália 59%, a Espanha 67%, o Japão 69%, o México 71%, a Índia 72%, o Brasil 73%, a Rússia 77% e a China 81%, conforme aponta a pesquisa de Morris & Irwin (1970)”. (14) Sobre o tema, ver, por todos, PRADO JR, Formação do Brasil Contemporáneo. São Paulo: Brasiliense, 2000, passim. (15) Cf. POCHMANN, op. cit., p. 20. (16) Cf. POCHMANN, op. cit., p. 22. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 23 O alto investimento em pesquisa e a expansão do mercado – mediante a globalização da economia – se justificariam, assim, como fórmula medicinal para o tempo mínimo por que uma invenção industrial se converte em lucro. O paralelismo entre a questão social vivenciada no final do século XVIII (ou desde então) com a realidade de nossos dias nos autoriza, quando menos, a diagnosticar a causa recorrente do conflito entre capital e trabalho: a evolução do maquinismo e da tecnologia sempre exigiram o desemprego como custo social. É irresistível lembrar, contudo, a visão otimista de Domenico de Masi, que concebe o desemprego estrutural, causado pela automação em todos os setores da economia, como uma fase de transição que desembocará na libertação do trabalho, tal como a humanidade outrora se libertou da escravidão e, por meio do direito do trabalho, libertou-se da fadiga. De Masi(17) nos traz o alento: Quando comparada à libertação da escravidão, que caracterizou a Idade Média, e à liber- tação da fadiga, que caracterizou a sociedade industrial, a libertação do trabalho, que irá caracterizar a sociedade pós-industrial, delineia-se com traços peculiares. Posto que as máquinas se incumbirão de quase todo o trabalho físico, assim como de boa parte do traba- lho intelectual do tipo executivo, o ser humano irá guardar para si o monopólio da atividade criativa que, por sua própria natureza, dá muito menos margem do que a atividade industrial para a alocação de tarefas e para a divisão entre tempo de trabalho e tempo livre. De modo diferente do desemprego, que necessariamente é acompanhado pelos males da miséria e da marginalização, a libertação do trabalho admite formas de vida muito mais livres e felizes. Ainda não alcançamos, decerto, esse promissor estágio. Como ainda tende a ocorrer num regime de dominação do capital, o trabalhador que assistiu ao nascimento do maquinismo, no final de século (XVIII), não convivia apenas com a ameaça de desemprego. Aceitava ele qualquer condição de traba- lho, e a chamada meia-força (mulheres e crianças) despendia, em contrassenso, ainda mais força de trabalho em troca de pior remuneração. Mas se rebelava a massa trabalhadora contra essa situação indigna, a que fora injustamente lançada. A realidade social indicava uma tensão insuportável entre a necessidade de o trabalhador garan- tir a subsistência e, do outro lado, a oferta de trabalho que rareava na mesma proporção em que se desenvolvia o maquinismo, sobretudo após a inserção da energia elétrica no processo produtivo. O direito do trabalho veio sendo conquistado pelos trabalhadores na exata medida em que a pressão desses pontos extremos rompeu o tênue fio do individualismo jurídico (fundado no axioma: “quem diz contratual, diz justo; depende do indivíduo assumir ou não obrigações”) e inspirou na classe proletária o anseio de um novo Direito. A origem primeira do direito do trabalho nos remete, contudo e certamente, à realidade vivenciada, ao final do século XVIII, pelos trabalhadores da Europa Ocidental, pois nessa região se desenvolveu, mais intensamente, o emprego industrial e a consequente necessidade de resgatar a dignidade do trabalho humano. Não deve causar estranheza a circunstância de não nos atermos à experiência soviética, embora a ela se refiram os homens de nosso tempo quando, desavisadamente, pretendem estabelecer alguma correlação inexorável entre o regime comunista e o direito do trabalho vigente entre nós. É preciso antecipar que o marxismo não se coaduna com a presença de um Estado, menos ainda de uma estrutura estatal que, sendo provedora de direitos laborais, legitime o modo de produção capitalista. Além disso, parece-nos assistir razão a Hobsbawn(18), quando afirma o historiador: Com exceção dos românticos que viam uma estrada reta levando das práticas coletivas da comu- nidade aldeã russa a um futuro socialista, todos tinham como igualmente certo que uma revolução na Rússia não podia e não seria socialista. As condições para uma tal transformação simplesmente não estavam presentes num país camponês que era sinônimo de pobreza, ignorância e atraso, e onde o proletariado industrial, o predestinado coveiro do capitalismo de Marx, era apenas uma minúscula minoria, embora estrategicamente localizada. (17) DE MASI, Domenico. Desenvolvimento sem trabalho. Tradução de Eugênia Deheinzelin. São Paulo: Esfera, 1999. p. 11. (18) HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 64. 24 – Augusto César Leite de Carvalho 1.2.2 O trabalho humano, produtivo, alheio e livre Que o direito do trabalho disciplina o trabalho humano, não há dúvida. As relações jurídicas de direito privado têm a pessoa como sujeito, regra geral. Quando pormenorizamos as características da relação jurídica de trabalho, percebemos, contudo, que o direito laboral cuida exclusivamente do trabalho prestado pelo homem, pessoa física ou natural, não lhe interessando o serviço realizado por pessoa jurídica ou ideal. Não é demasia lembrar, ainda, que o direito do trabalho trata o homem como tal, sublimando inclusive o fato de a prestação de trabalho importar o dispêndio de energia humana. Não mais se iguala o homem ao semovente ou à coisa – objeto da locação que retorna ao proprietário quando cessa o contrato. A saber, a razão de o direito do trabalho existir é decerto a perspectiva de o trabalho ser um valor social que dignifica o homem na era contemporânea e a necessidade de o trabalho humano exigir uma regência normativa que o associe à dignidade da pessoa que o realiza. Trabalho produtivo e lazer não se distinguem pela técnica acaso utilizada (o mesmo método de pescar pode servir a uma atividade profissional ou simplesmente prazerosa), mas se diferenciam pela característica, que só o primeiro revela, de o homem “usar seu esforço tendo como finalidade próxima a obtenção através deste dos meios materiais, dos bens econômicos de que necessita para subsistir”, como ensina Olea(19). Trabalho por conta alheia, certamente, porque na empresa que surgira após a abolição das corpo- rações de arte e ofício, a partir da inversão do capital burguês na aquisição de maquinário e contrata- ção de pessoal, a novidade estava não apenas na divisão e técnica de trabalho mas, sobremodo, no fato de os operários serem contratados para movimentar a engrenagem empresarial em troca de uma remuneração que significava apenas parte do produto de seu trabalho. A outra parte era convertida em lucro. Nessa perspectiva, a alienação do trabalho era o resultado dessa produção coletivizada de merca- dorias em que o trabalhador não se identificava no objeto que ajudara a criar. Em suma, ao trabalhador já não cabia o fruto de seu labor, que era atribuído, na nova forma de produção, ao titular da empresa (mais adiante, diria Marx: utilidade do trabalho – salário = plus valia). O trabalho livre diferia, por igual, daquele que até então prevalecia nas organizações produtivas. Lembremos que a Antiguidade conheceu, predominantemente, o trabalho escravo. Segadas Viana(20) anota que “aos escravos eram dados os serviços manuais exaustivos não só por essa causa como, também, porque tal gênero de trabalho era considerado impróprio e até desonroso para os homens válidos e livres [...] Na Grécia havia fábricas de flautas, de facas, de ferramentas agrícolas e de móveis onde o operariado era todo composto de escravos. Em Roma os grandes senhores tinham escravos de várias classes, desde os pastores até gladiadores, músicos, filósofos e poetas”. Aristóteles, que concebia o homem como um ser político, já preconizava, a seu modo, que a real igualdade consistia em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Com essa propo- sição pretendia, porém, justificar a escravidão e a dizia mesmo necessária para que outros homens pudessem pensar. Supondo, em um vaticínio não confirmado pela História, que a automação viria libertar o homem do trabalho, afirmou Aristóteles(21) que “se cada instrumento pudesse, a uma ordem dada, trabalhar por si, se as lançadeiras tecessem sozinhas, se o arco tocasse sozinho a cítara, os empreendedores não iriam precisar de operários e os patrões dispensariam os escravos”. O homem se libertou do trabalho escravo que se revelava como uma forma legitimada de violência, mas a transição para o modelo atual de trabalho, na modalidade de emprego, não se deu linearmente, pois se seguiu a Era Medieval e, nela, uma sociedade dividida em rígidos estamentos: os senhores feudais e os servos. A servidão era imposta a quase todos os camponeses e se diferenciava do trabalho (19) OLEA, Manuel Alonso. Introdução ao direito do trabalho. Tradução de Regina Maria Macedo Nery Ferrari e outros. Curitiba: Gênesis, 1997. p. 48. (20) SÜSSEKIND, Arnaldo, MARANHÃO, Délio; VIANA, Segadas. Instituições de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1992. p. 27. (21) Cf. DE MASI, Domenico, op. cit., p. 14. Igual remissão faz Segadas Viana, op. cit. p. 28. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 25 escravo porque o servo se ligava à terra e pelo seu uso pagava diversos tributos(22), passando a ter novo amo quando a terra era vendida. A Baixa Idade Média(23) assistiu a transformações sociais e econômicas que serviram à progres- siva estruturação do sistema capitalista de produção. A sociedade estamental foi gradativamente se desintegrando e, nesse mesmo toar, a economia autossuficiente, típica do feudalismo, foi sendo subs- tituída por uma economia comercial. O crescimento demográfico(24) e o renascimento urbano, com a emancipação pacífica ou não das cidades onde mais florescia a atividade comercial, deram origem a uma nova sociedade, agora estruturada em classes e a habitar cidades ou burgos(25). Surgem, nesse contexto, as corporações de arte e ofício(26). Nessas cidades, as corporações de mercadores, que buscavam garantir o monopólio do comércio local, e as corporações de ofício, visando cada uma delas à monopolização de certa arte ou ofício, eram influenciadas pela cultura cristã conhecida como escolástica e, sob a sua doutrina, condenavam a usura. Por isso, uma mercadoria deveria sempre ser vendida pelo preço da matéria-prima utilizada mais o valor da mão de obra empregada(27). Apenas os companheiros (ou oficiais) eram remunerados como se fossem protótipos de assalariados, pois o mestre-artesão retribuía o trabalho dos aprendizes, que ocupavam a base da pirâmide corporativa, por meio de alimentos, vestuário e alojamento, além do aprendizado. Com o passar do tempo, muitos dos mestres se enriqueciam e exerciam, com rigor, a exclusivi- dade da atividade artesanal. Os companheiros se uniam com o intuito de conquistar as parcelas de monopólio asseguradas à mestria, quando não se resignavam ante a ausência de perspectiva econô- mica mais favorável. Noutro passo, a burguesia, que se fortalecia economicamente, interessava-se na instituição de um poder central que reduzisse a influência política da nobreza, não tardando a se constituírem as monarquias nacionais, que grassaram por toda a era moderna. Os avanços tecnológicos, de que tratamos no subitem relativo à revolução industrial, e, mais adiante, as novas técnicas de divisão do trabalho prometiam alargar oportunidades e permitir que o homem se libertasse, de uma vez por todas, dos grilhões da escravatura e da servidão, sem as amar- ras que o sistema das corporações impunha ao desenvolvimento de atividades econômicas. Contudo, o trabalho livre que surgiu na empresa moderna não era livre por completo, uma vez que se caracterizava exatamente pelo fato de o trabalhador ser livre (ou livre de coação absoluta) para escolher entre prestar ou não trabalho, embora não estivesse investido de igual liberdade no tocante ao tempo, lugar e modo de executar essa prestação laboral. Olea conclui: “A liberdade a que estamos aludindo se refere ao momento do estabelecimento da relação de alheamento, sendo, portanto, seu sentido o de que aquela, no trabalho forçado, fica anulada frente à presença de uma violência invali- dante do consentimento”(28). 1.3 Os fatores sociais que inspiraram o direito do trabalho O trabalho penoso que se desenvolvia na indústria têxtil do fim do século XVIII propiciava, em contraponto, a concentração dos trabalhadores nas cidades e, sobretudo, no chão da fábrica, onde se (22) A exemplo da corveia (trabalho gratuito nas terras do senhor em alguns dias da semana), da talha (percentagem da produção das tenên- cias) e da banalidade (tributo cobrado pelo uso de instrumentos ou bens do senhor). A servidão medieval sofreu influência, em sua forma- ção, de instituições romanas e germânicas, a exemplo da clientela (relação de dependência social entre os indivíduos na sociedade romana, influenciando o modo como se constituiu a relação senhor-servo na ordem feudal), do colonato (instituído pelo Império Romano, impunha a fixação do homem à terra, objetivando conter o êxodo rural e a crise de abastecimento causada pelo fim da escravatura) e do precarium (entrega de terras a um grande senhor em troca de proteção). Cf. VICENTINO, Cláudio. História Geral. São Paulo : Scipione, 1997. p. 110. (23) A Baixa Idade Média estendeu-se dos séculos X ao XV. (24) Crescimento demográfico proporcionado pelo fim das invasões na Europa e pela redução dos níveis de mortandade que as grandes epidemias provocaram. (25) Burgu, em latim, significa fortaleza, referindo-se, assim, às muralhas que circundavam as cidades. (26) Segundo Niall Ferguson, “as origens de todas as corporações de ofício remontam ao período medieval: a dos tecelões, a 1130; a dos padei- ros, a 1155; a dos vendedores de peixe, a 1272; a dos ourives, dos alfaiates mercantes e a dos comerciantes de peles, a 1327; a dos comerciantes de seda, a 1364; a dos comerciantes de panos, a 1384; a dos merceeiros, a 1428. Essas guildas exerciam considerável poder sobre seus setores específicos da economia, mas também tinham poder político. Eduardo III reconheceu isso quando declarou ser “um irmão” da Guilda dos Alfaiates – mais tarde, Alfaiates Mercantes” (FERGUSON, Niall. Civilização: Ocidente x Oriente. Tradução de Janaína Marcoantonio. São Paulo: 2012, p. 66). (27) Vicentino, op. cit., p. 139. (28) Olea, op. cit. p. 57. 26 – Augusto César Leite de Carvalho aguçavam, a um só tempo, os sentimentos de indignação e solidariedade entre os que vivenciavam aquelas mesmas condições adversas de trabalho. 1.3.1 Os primeiros movimentos de insurreição dos trabalhadores Os movimentos obreiros de insurreição surgiram na Inglaterra e, mais adiante, também nos países que se inseriam no processo de industrialização. Vale a pena referir o modo como reagiram os traba- lhadores nesses países. 1.3.1.1 A reação dos trabalhadores na Inglaterra Os trabalhadores almejavam uma condição mínima de trabalho que pudesse ser imposta ao industrial capitalista e, para alcançarem o objetivo, se rebelaram. Inicialmente na Inglaterra, onde o luddismo e a revolução cartista davam o sinal do inconformismo. Ned Ludd comandou trabalhadores que atribuíam às máquinas a culpa pelos males que os afli- giam. O luddismo foi o movimento obreiro que se opôs, portanto, à mecanização do trabalho vinda a reboque da primeira revolução industrial, e pode ser ilustrado por carta que Ludd endereçou a um certo empresário de Hudersfield, em 1812: “Recebemos a informação de que é dono dessas detes- táveis tosquiadoras mecânicas. Fica avisado de que se elas não forem retiradas até o fim da próxima semanal eu mandarei imediatamente um de meus representantes destruí-las... E se o senhor tiver a imprudência de disparar contra qualquer dos meus Homens, eles têm ordem de matá-lo e queimar toda a sua casa”.(29) Por sua vez, os cartistas surgiram quando, em 1832, o parlamento inglês aprovou o Reform Act, uma lei eleitoral que privou os operários do direito ao voto. Os trabalhadores reagiram e formularam suas reivindicações na “Carta do Povo”, um documento com quase trezentas mil assinaturas e conte- údo político que fundava, assim, o movimento operário conhecido como cartismo(30). Esclarecem Olga Coulon e Fabio Pedro(31): [...] o movimento cartista ajudou os operários ingleses a melhorarem suas condições de vida e deu-lhes experiência de luta política. Assim, em 1833, surgiu a primeira lei limitando a 8 horas de trabalho a jornada das crianças operárias. Em 1842 proibiu-se o trabalho de mulhe- res em minas. Em 1847, houve a redução da jornada de trabalho para 10 horas. Em 1842, os cartistas encaminharam nova carta, em que reclamavam a existência de milhares de homens morrendo de fome na Escócia, Irlanda e País de Gales e denunciavam: “a jornada de trabalho, especialmente nas fábricas, excede o limite das forças humanas” e “o salário por um trabalho que se presta nessas condições ruins de uma fábrica é insuficiente para manter a saúde dos obreiros e asse- gurar o conforto tão necessário depois de um desgaste intenso da força muscular [...]”. Os cartistas tentaram deflagrar motins e greves gerais, porém, quando não fracassaram, foram reprimidos à força. 1.3.1.2 A reação dos trabalhadores na França O movimento revolucionário dos trabalhadores eclodiu na França, em 1848, inclusive com maior ressonância na Europa e influência decisiva para que na Alemanha, por igual, se iniciasse a revolução obreira. Diferente da Inglaterra, a França era antes um país de vocação agrária, em que o pequeno agricultor era sacrificado por pesados impostos, destinados a custear a burocracia e a casta militar. Contudo, o processo de industrialização se acelerou , também na França, em prejuízo do artesa- nato e do pequeno proprietário, originando a proletarização do homem da cidade. Ainda sobre o movi- mento obreiro francês, observa De La Cueva que “durante toda la monarquía, desde la restauración de los Borbones, fué Francia un verdadero volcán. Bastaría recordar los dos grandes movimientos (29) Cf. COULON, Olga Maria Fonseca; PEDRO, Fabio Costa. Os Movimentos Operários e o Socialismo. Disponível em: http://br.geocities. com/fcpedro/cartism.html. (30) DE LA CUEVA, Mario. Derecho Mexicano Del Trabajo. México: Editorial Porrua, 1961. p. 29. (31) Idem, ibidem. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 27 huelguísticos de los trabajadores de la sede de Lyon de 1831 y 1834 y la organización, desde 1821, de diversas sociedades secretas”(32). Ainda na França, intensificava-se o trânsito do socialismo utópico, em que a crítica ao regime se associava à intenção de suplantá-lo por meio da tentativa – malsucedida – de convencer a burguesia a promover ou aceitar a transformação social. Em 1848, surge o Manifesto Comunista de Marx e Engels, que ao historicismo hegeliano incrementava a ideia de o regime burguês ser uma etapa transitória e, no processo histórico, o advento de uma sociedade regida pelos princípios do socialismo seria a consequência necessária da evolução das forças econômicas. A História, para Marx, era a história da luta de classes, classes essas que se digladiavam visando à conquista dos meios de produção. Assim inspirado, Marx conclamava: “Proletários de todo o mundo, uni-vos”. Não obstante a pouca tolerância à greve e ao associativismo, a duras penas o trabalhador francês adquiriu consciência de classe e promoveu a divulgação da doutrina marxista, com reflexos positivos na evolução do direito do trabalho, mesmo após Napoleão III ser alçado a imperador, após o golpe de estado que restaurara a monarquia, em 1851. Mas, num embaraço a esse processo, a história obrigou o povo francês a se unir em razão da guerra franco-prussiana, vencida pela Alemanha em 1870. A derrota da França exigiu de seu povo uma significativa indenização de guerra. 1.3.1.3 A reação dos trabalhadores na Alemanha Já na Alemanha, a industrialização teve impulso somente na segunda metade do século XIX, quando já era inegável o poder político e econômico da Inglaterra. À semelhança do que ocorrera entre os ingleses, que promoveram a revolução cartista, o progresso industrial produziu na Alemanha um intenso movimento obreiro. A primeira insurreição de trabalhadores na Alemanha terá sido, segundo Jaques Droz(33), a suble- vação dos tecelões da Silésia, em 1844. O autor explica: Na origem da revolta é preciso colocar o fardo das imposições feudais que continuavam a pesar sobre a classe rural da Silésia mesmo com a abolição da escravatura: trabalhadores a domicílio, obrigados a vender o produto do seu trabalho a negociantes que comercializavam em seguida as mercadorias, os tecelões eram sobrecarregados pelos foros censitários e pelas prestações em dinheiro, sem falar dos impostos do Estado; a sua situação agravou-se com o encerramento dos mercados americanos e a criação de uma indústria têxtil na Polô- nia, e isto num quadro de um mercado onde a concorrência inglesa se fazia sentir duramente e cuja produção estava tecnicamente mal organizada. As revoltas que tiveram lugar em Peterswaldau e em Langenbielau, no mês de junho de 1844, resultaram na destruição de residências, confiscando-se títulos de propriedade e dizimando-se máqui- nas. Embora não houvesse violência contra pessoas, os levantes daquele ano foram afinal reprimi- dos por forças militares que, mobilizadas, aplicaram penas variadas a oitenta e sete tecelões. Anota Jaques Droz(34) que o proletariado de fábrica era de pouca expressão numérica, mas a construção de ferrovias, especialmente em Saxe, teve papel relevante no processo de industrialização na Alemanha, desencadeando cerca de quarenta greves entre 1844 e 1848. 1.3.2 A organização das profissões A alusão a esses movimentos obreiros permite verificar que, após o impacto da primeira revolu- ção industrial, os trabalhadores inconformados com as condições precárias de trabalho se uniam em coalizões, formadas para veicular alguma específica reivindicação e logo dissolvida, após a vitória ou insucesso de cada insurgência. Os sindicatos vieram depois, quando as vantagens de se instituí- rem organismos permanentes foram percebidas pelos trabalhadores. Sanseverino situa entre 1815 e 1848 a fase das coalizões e anota que “o mundo do trabalho encaminhou-se, definitivamente, rumo (32) De La Cueva, op. cit., p. 32. (33) DROZ, Jaques. O Movimento Operário na Alemanha e o Neo-hegelianismo. Disponível em: http://www.pco.org.br/biblioteca/origens/ movimentooperarioalemanha.htm. (34) Idem, ibidem. 28 – Augusto César Leite de Carvalho à consciente conquista da liberdade sindical” quando publicado o Manifesto Comunista de 1848, por Marx e Engels(35). O capitalismo comercial e, mais adiante (século XVIII), o capitalismo industrial, forjaram o traba- lhador livre e investido de liberdade cívica. Ao trabalhador, dava-se a liberdade de contratar e a para- doxal perspectiva de ajustar assim a própria espoliação, como alternativa para sua sobrevivência. Observa Bourguin: [...] nos sistemas anteriores, ou havia associação do trabalho e da propriedade – neste caso, o trabalhador gozava de liberdade cívica –, ou o trabalhador não era proprietário, mas então não era também um cidadão livre. A alternativa era bem clara na era pré-capitalista. Mas o capitalismo empreendeu a grande aventura de associar, nas massas de homens sempre crescentes, a ausência completa de propriedade a uma completa liberdade pessoal e a uma completa igualdade política(36). O sindicato foi, na sequência, a forma associativa que se constituiu no sistema capitalista de produção, visando à defesa dos interesses coletivos dos trabalhadores. Conspiraram para o seu surgi- mento, contudo, o fim das corporações medievais e sobretudo a ruptura da estrutura econômico-social, o maquinismo e a transformação do homem, enfim, de artesão em operador da máquina que, a custo menor e em maior quantidade, operava a mutação da matéria. A produção de bens ou serviços já não mais dependia da aptidão artística ou especialização do homem profissional, podendo mulheres e crianças prestar, com salário reduzido, o mesmo trabalho. Esse sentimento de angústia e desamparo por que passava o trabalhador é associada por Deveali às causas sociais do sindicalismo, em passagem emblemática de sua obra: “Essa transformação de caráter psicológico tem, na nossa opinião, uma influência preponderante na formação da mentalidade classista que é o efeito e a causa, por sua vez, da união de massas indiferençadas, unidas exclusivamente por uma dor comum, por um sentir comum e pelo mesmo desejo de libertação, se não de vingança”(37). O sindicalismo não teria trajetória exitosa, porém, caso tivesse prescindido da greve, como meio de pressão para novas conquistas obreiras, e não houvesse viabilizado as convenções coletivas de traba- lho, em detrimento do monopólio estatal na produção normativa. Esses três institutos (sindicato, direito de greve e convenção coletiva) percorreram a mesma estrada, sendo inicialmente proscritos, em seguida tolerados e, afinal, reconhecidos pela ordem jurídica. A história do sindicalismo, quando relacionada com a institucionalização das convenções coletivas e da greve, revela o modo como reagiu a classe operária à consagração, pela revolução burguesa, do princípio da autonomia da vontade individual. Em suma, os referidos institutos jurídicos expressam, hoje, o modo de atuação da vontade coletiva. 1.4 Os fatores políticos que inspiraram o direito do trabalho As razões de o direito do trabalho ter o seu berço na Europa Ocidental envolvem duas premis- sas relevantes de caráter essencialmente político que são, em rigor, vetores com sinais invertidos: a) quando comparado com os povos orientais, o Ocidente oferecia uma estrutura de poder, especialmente na pequena Inglaterra, que permitia a liberdade de atuação dos novos empresários, detentores de capital, quer para inovarem e desenvolverem atividade econômica, quer no tocante à disseminação de novas técnicas de produção; b) quando confrontada com a liberdade de empresa que veio a reboque do Estado burguês, a regulamentação das condições de trabalho importou a redução do poder social e político dos detentores do capital, assim sucedendo por meio de ações de governo que buscavam prevenir insurgências obreiras ou mediante da negociação direta entre trabalhadores e empresários. Vejamos qual a influência de cada um desses dois fatores políticos, nos subitens seguintes. 1.4.1 A permeabilidade do Ocidente à fragmentação do poder Não foi por vocação natural ou congênita que a Ásia assistiu, quase passivamente, à difusão das novas formas de interação socioeconômica sem ingressar, por longo tempo, na corrida competitiva (35) SANSEVERINO, Luisa Riva. Curso de Direito do Trabalho. Tradução de Élson Guimarães Gottschalk. São Paulo: LTr, 1976. p. 10. (36) Apud Evaristo de Moraes Filho, op. cit., p. 79. (37) Apud RUPRECHT, Alfredo J. Relações Coletivas de Trabalho. Tradução de Edílson Alkmin Cunha. São Paulo: LTr, 1995. p. 52. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 29 pela evolução industrial e de costumes que marcou, entre nós, a era contemporânea. Se é certo que “a agricultura asiática era consideravelmente mais produtiva que a europeia”(38) e se “foram os chineses que revolucionaram pela primeira vez a produção têxtil, com inovações como a roda de fiar e a bobina para enrolar fios de seda, exportadas para a Itália no século XIII”(39), por que razão os ocidentais, espe- cialmente os ingleses, deflagraram a revolução industrial? Niall Ferguson se propõe a responder a essa pergunta citando alguns fatores que teriam impul- sionado o progresso europeu na direção de um novo modelo civilizatório, em detrimento de manter-se estacionado o quadro evolutivo do Oriente. Primeiro, a configuração geopolítica da Europa(40), a qual não impedia que ela estivesse sempre conflagrada, com disputas entre os seus países e no interior deles; mas essas lutas constantes estimularam um significativo incremento em tecnologia militar e no aperfeiçoamento de embarcações mais fáceis de manobrar e mais difíceis de serem alvejadas, além de incentivarem alguma criatividade na arrecadação de fundos para as grandes campanhas. A criação de novas e inéditas instituições societárias para captação de dinheiro leva à conjectura inevitável: [...] embora elas tenham aumentado a receita do reino, também diminuíram as prerrogativas reais ao criar, nos primórdios do Estado moderno, novos grupos de interesse que perdura- riam até nossos dias: banqueiros, debenturistas e diretores de empresas.(41) Parece importante a Ferguson ressaltar, em segundo plano, que “décadas de conflito interno garantiram que nenhum monarca europeu jamais se tornasse forte o suficiente para ser capaz de proibir a exploração ultramarina”(42). O contrário se deu quando, na China, morreu o Imperador Yongle em 1424 e, com ele, as ambições ultramarinas até então comandadas pelo almirante Zheng He. Essas expedições chinesas, com embarcações muito maiores que aquelas usadas pelos colonizadores euro- peus ao fim do mesmo século, não visavam primordialmente à expansão de seus domínios, pois mais importante que o escopo comercial era o reconhecimento, pelos povos vizinhos, da supremacia do poder de Sua Alteza imperial(43). Ao explicar por que, entre os ingleses, “a cidade nunca reverenciou a Coroa”, o mencionado histo- riador observa que Henrique V era, oficialmente, rei da Inglaterra, de Gales e reivindicava o reino da França, mas, “na prática, na Inglaterra rural, o verdadeiro poder estava nas mãos da grande nobreza, os descendentes dos homens que haviam imposto a Carta Magna sobre o rei João, bem como milha- res de nobres proprietários de terras e inumeráveis corporações, eclesiásticas e laicas”(44). Enquanto isso, “a China era governada de cima para baixo por uma burocracia confuciana, recrutada com base no sistema de exames que talvez seja o mais exigente de toda a história”(45). Quando se deu o colapso da dinastia Ming, em meados do século XVII, a economia chinesa, inteiramente fechada a outras fontes de inspiração ou influências tecnológicas externas, submergiu em um quadro de devastação. Elucida Ferguson: “O sistema Ming havia criado um grande equilíbrio – impressionante para fora, mas frágil para dentro. O campo era capaz de sustentar um número enorme de pessoas, mas só à base de uma ordem social estática, que literalmente parou de inovar. Foi uma espécie de armadilha. E, quando o menor detalhe deu errado, a armadilha foi acionada. Não havia recursos externos com os quais contar”(46). (38) FERGUSON, op. cit., p. 52. O autor esclarece que “na Ásia Oriental, um acre de terra era suficiente para sustentar uma família, tamanha era a eficiência do cultivo do arroz, ao passo que, na Inglaterra, o número médio estava próximo de 20 acres”. (39) Ferguson, op. cit., p. 54. (40) Ferguson, op. cit., p. 63: a configuração geográfica da Europa fazia os seus países protegidos por densas florestas e por cadeias monta- nhosas como Alpes e Pirineus, além de muitos rios que interligavam esses países em várias direções, enquanto a China tinha só três grandes rios que fluíam na mesma direção, o que a tornava mais susceptível à invasão de outros povos, sobretudo dos mongóis. (41) Anota Ferguson, op. cit., p. 64: “Outra inovação fiscal que transformou o mundo foi a ideia holandesa de conceder direitos de monopó- lio comercial a empresas de capital aberto em troca de uma participação em seus lucros, e uma compreensão de que as empresas atuariam como fornecedoras de serviços navais contra as potências inimigas. A Companhia Holandesa das Índias Orientais, fundada em 1602, e sua imitação britânica epònima foram as primeiras verdadeiras corporações capitalistas, com seu patrimônio líquido dividido em ações negoci- áveis e pagando dividendos em moeda corrente a critério de seus diretores. Mas no Oriente não surgiu nada que lembrasse essas instituições incrivelmente dinâmicas”. (42) Op. cit., p. 64. (43) Op. cit., p. 58. (44) Op. cit., p. 65. (45) Op. cit., p. 69. (46) Op. cit., p. 71. 30 – Augusto César Leite de Carvalho Decaíram assim os povos orientais que viveram seu apogeu civilizatório no século XV, época em que eram pobres os países da Europa ocidental. Mas a abertura ao conhecimento científico – tanto em favor de novas técnicas de produção quanto no que toca a fórmulas medicinais que cessavam endemias – e a susceptibilidade ao poder econômico fizeram a Inglaterra seguir ciclo inverso de organização social. A propósito, sustenta Niall Ferguson: [...] como a população da Inglaterra cresceu rapidamente, no fim do século XVII, a expansão ultramarina foi fundamental para que o país não caísse na armadilha identificada por Thomas Malthus. O comércio transatlântico trouxe um influxo de novos nutrientes, como batata e açúcar – um acre de cana-de-açúcar produzia a mesma quantidade de energia que doze acres de trigo –, além de muito bacalhau e arenque. A colonização permitiu a emigração da população excedente. Com o tempo, o efeito foi um aumento de produtividade, renda, nutri- ção e até mesmo estatura média.(47) Se o sopro de liberdade fez o Ocidente tomar a dianteira no progresso científico e econômico que desencadearia avanços significativos na qualidade de vida dos povos ocidentais, por outro lado exigiu, em razão do modo como se constituía a empresa contemporânea, que novos marcos regulatórios surgissem para compensar a espoliação do trabalho a pretexto de realizar-se amplamente esse anseio libertário. É o que se verá no subitem que segue. 1.4.2 A negociação coletiva que restringe a liberdade individual O final do século XVIII assistiu ao nascimento da primeira geração dos direitos humanos, aquela que se traduz nas liberdades civis e políticas. A Declaração de Direitos da Virgínia (1776) proclamava: Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, como os meios de adquirir e possuir a propriedade de bens, bem como de procurar e obter a felicidade e a segurança. A seu turno, o art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França de 1789, reiterava que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. É verdade que a preocu- pação dos norte-americanos era mais a de consolidar a sua própria independência em relação à coroa britânica, enquanto “os franceses consideraram-se investidos de uma missão universal de libertação dos povos”(48). Assinalando que as grandes etapas históricas de invenção dos direitos humanos coin- cidem com as mudanças nos princípios básicos da ciência e da técnica, Comparato observa com a acuidade de sempre: Foi justamente no sentido francês, e não na acepção inglesa, que a transformação radical na técnica de produção econômica, causada pela introdução da máquina a vapor [...] na Ingla- terra, tomou o nome de Revolução Industrial.(49) Nessa quadra histórica em que se festejavam os direitos de liberdade, uníam-se a liberdade de exercer qualquer profissão, sem os limites da sociedade estamental ou dos grêmios corporativos, e o modo de reagir o operariado às ações da empresa. Criaram-se, assim, novos espaços de participação política dos trabalhadores que os fariam atuantes na normatização das condições de trabalho e na construção de uma sociedade que lhes parecesse menos injusta. A circunstância de a empresa ser uma coletividade, não se esgotando na dimensão individual as agruras vivenciadas pelos trabalhadores que nela mourejavam, porque todos o faziam em condições semelhantes, traduziu-se em um campo fértil à coletivização também das condutas reativas desses trabalhadores. Por assim dizer, os operários resistiam coletivamente às ações danosas do ser coletivo, que era a organização produtiva na qual laboravam. (47) Op. cit., p. 72. (48) COMPARATO, op. cit., p. 51. O autor remata que, efetivamente, o espírito da Revolução Francesa difundiu-se, em pouco tempo, a partir da Europa, a regiões tão distantes quanto o subcontinente indiano, a Ásia Menor e a América Latina. (49) Op. cit., p. 52. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 31 A um só tempo, os trabalhadores organizados inauguravam uma nova maneira de regular a vida social. Desde essa época até os dias atuais, passaram a atuar diretamente, sem a intervenção do Estado, na elaboração de normas jurídicas que viriam a disciplinar as suas condições laborais. Em um primeiro momento, as convenções coletivas surgiram como gentlemen’s agreement, ou seja, como um pacto que não podia ser cobrado coercitivamente e comportava, no caso de descum- primento, apenas sanções morais. A possibilidade de os próprios atores sociais regularem as relações de trabalho que porventura os unisse importava, na linha do pensamento liberal, um ato de demasiada condescendência com a ação dos sindicatos, em detrimento dos ideais burgueses que proscreviam, a pretexto de conjurarem as velhas corporações de ofício, os corpos intermediários. Mas as convenções coletivas brotavam incessantemente e solucionavam conflitos, ganhando legitimidade em razão de sua natural eficácia. Além disso, a ação política dos trabalhadores não se esgotava na elaboração da norma coletiva, imiscuindo-se gradualmente nos recintos do Estado Liberal que pareciam guardados para a ação política do empresariado, investido de poder econômico. A esse propósito, o advento da social democracia alemã revela o modo como as coletividades de trabalhadores se organizaram politicamente, ilustrando como aprenderam a valer-se dos instrumentos de ação democrática para ocupar espaços políticos antes reservados à burguesia ou, residualmente, a classes hegemônicas de variado matiz. Em rigor, os alemães sofreram clara influência do Manifesto Comunista e das ideias de Lassalle. Ferdinand Lassalle foi personalidade marcante do trabalhismo alemão, que em 1863 convocou o congresso obreiro por meio do qual se constituiu a Associação Geral de Trabalhadores Alemães. Os seus fundadores, em declaração de princípios, firmavam: “somente o sufrágio universal e direto pode assegurar uma representação adequada e segura dos interesses sociais da classe obreira alemã, assim como a eliminação dos antagonismos de classe.” Foi a urgência de praticar a democracia, após o estabelecimento do império germânico, com um Reichstag eleito por voto popular amplo, o que uniu, em 1875, os einsenachers marxistas aos lassallistas, todos pressionados pela necessidade de fundirem os dois partidos socialistas alemães em um único, o Partido Social Democrático Alemão. Uniram-se em Gotha com as vistas voltadas para a perspectiva de sucesso eleitoral. Quando lembramos que Marx propunha a substituição da classe hegemônica pela via revolucio- nária, bem assim a substituição da sociedade estatal em sociedade não estatal, parece paradoxal a necessidade que se apresentava aos socialistas, na maior parte da Europa ocidental (inclusive França e Alemanha), de apresentarem aos eleitores programas imediatos de reforma dentro do sistema político e econômico. O chefe de governo era responsável perante o parlamento, parecendo, assim, inviável a obtenção do socialismo integral, a substituição revolucionária da classe dominante, sem a colaboração dos parlamentares. Sobre essa união entre marxistas e lassalistas traduzir, então, um recuo de Marx, porque incom- patível com sua doutrina a ascensão do proletariado pela via eleitoral, é elucidativa a observação de George Cole: O Partido Social Democrático Alemão de 1875, embora adotasse em grande parte o marxismo como credo histórico, na prática aceitava essa necessidade (de apresentar um projeto de reforma dentro do sistema), sem a qual não teria sido possível a fusão com os lassalistas. Marx, que recebera de seus adeptos alemães um exemplar adiantado da proposta das condi- ções da fusão, protestou energicamente contra o que considerava uma traição aos princípios socialistas; seus adeptos suprimiram o longo e arrazoado protesto (que foi publicado como Crítica ao Programa de Gotha, somente muitos anos após sua morte). Marx não publicou suas opiniões, compreendendo que os eisenachers o repudiariam se o fizesse. A democracia social nasceu em consequência de um compromisso ao qual o homem geralmente conside- rado como seu profeta era violentamente contrário(50). Como anota Mario de la Cueva, a Alemanha vivia enfim “uma extraordinária contradição: um progresso industrial incomparável e um grande movimento socialista, perigo grande para o progresso (50) COLE, George. Ideologias Políticas. Org. Anthony de Crespigny e Jeremy Cronin. Tradução de Sérgio Duarte. Brasília: Editora UnB, 1998. p. 80. 32 – Augusto César Leite de Carvalho industrial, pois a crescente agitação ameaçava destruir a paz social e deter, por greves e movimentos obreiros, o trabalho normal nas fábricas”(51). Bismarck, o Chanceler de Ferro, percebera a importância do movimento obreiro e entabulara negociação com Lassalle. Todavia, a morte de Ferdinand Lassalle, em duelo, no ano de 1864, evidentemente significou um estorvo nesse processo de conquistas dos trabalhadores alemães. De toda sorte, o temor dessa influência socialista em meio à classe proletária fez Bismarck preca- ver-se, expedindo uma regulamentação minudente das relações de trabalho, em que inclusive limitava a vontade dos contratantes no que tocava, entre outros assuntos, às medidas de proteção à saúde e à vida dos trabalhadores, às normas para o trabalho de mulheres e crianças e às disposições a propósito da vigilância obrigatória das empresas. (51) DE LA CUEVA, op. cit., p. 36, tradução livre. CAPÍTULO II HISTÓRIA DO DIREITO COLETIVO DO TRABALHO 2.1 Direito coletivo e institutos afetos – sindicato, greve e convenção coletiva Não há como dissociar o sindicato, o direito de greve e a convenção coletiva do trabalho, institutos que são a melhor expressão do fenômeno social mais expressivo dos dois últimos séculos, o sindicalismo. O sindicalismo nasceu como um movimento espontâneo dos trabalhadores que estavam concen- trados em torno das cidades industriais e, movidos pelo instinto gregário, perceberam que a sua união os fortalecia na luta contra as condições desumanas de trabalho que lhes estavam sendo impostas. Não sem razão, a Inglaterra que se fez berço da revolução industrial gerou a primeira forma de asso- ciativismo a que se pôde emprestar o atributo de sindicato: a trade union. Passado o primeiro impacto da Grande Revolução, os trabalhadores formaram coalizões, que se dissolviam, como se viu no capítulo anterior, após a vitória ou insucesso do movimento. A partir de meados do século XIX, percebe-se a importância de se criarem instituições permanentes de defesa dos empregados nas contendas ou negociações com os empregadores, nascendo então os sindicatos e, como seu desiderato, a ideia de liberdade sindical. É preciso ver que o sindicato não derivou de outras formas precedentes de associativismo, sendo merecedora de poucos aplausos a doutrina que sugere os colégios romanos, as guildas (entre germânicos e saxônicos) ou as corporações de arte e ofício como organizações que se tenham convertido em sindicatos, quando estes experimentavam o seu estado germinal. Não há investigação histórica que permita certificar, por exemplo, que trabalhadores assalariados tivessem ingresso nos colégios de Roma. É o que observa Russomano, a acentuar que os fins preponderantemente mutualistas dos collegia, dada a “sua finalidade de ajuda recíproca entre os que se dedicavam ao mesmo ofício e para defesa dos interesses resultantes da similitude das posições por ele ocupadas na vida romana”. O movimento colegial guarda semelhanças, porém, com a experiência vivida pelos sindicatos. Após se expandirem, num crescimento espontâneo, e passarem a exercer influência no encaminha- mento dos problemas do Império, o Senado Romano proibiu o seu funcionamento, à exceção apenas dos oito colégios criados por Numa Pompílio. Em estudo proveitoso, Russomano assinala que se seguiu a represália, mas “as novas forças se organizam e dispõem-se a enfrentar, ao se sentirem poderosas, a resistência do Estado”. A Lex Clodia (ano 59 a. C.) reconheceu enfim o direito de asso- ciação mas Júlio César percebeu a prosperidade dos colégios e resolveu novamente aboli-los. Em 56 a. C, após a morte de César, Augusto editou a Lex Julia, que reconheceu direitos e privilégios dos colégios romanos mas os transformou em órgãos oficiosos do Estado Romano, inclusive quanto à arrecadação de contribuições fiscais. É ainda do mestre gaúcho o remate: A crônica dos colégios mostra que há irresistível tendência à repressão, pelo Estado, das novas forças sociais, que podem atuar, mais tarde, algumas vezes, em tom de contestação, em face do próprio Estado. Sucede-se, em geral, o reconhecimento de sua livre expansão e, logo depois, em uma etapa terciária, o Estado trata de intervir através de sistemas de controle e condução, em proveito próprio, das novas forças desencadeadas pela vida das comunidades. Isso se deu, exatamente, com os colégios romanos. E aquilo que ocorreu em Roma, vários séculos antes de Cristo, ocorre, ainda hoje, neste século interplanetário e tecnológico que levou nossos passos além das estrelas que nossos olhos conheciam(52). As guildas (ou gildas) tinham caráter mercantil e não laboral, tendo dado origem às ligas de merca- dores dos mares do norte europeu. Sobre as corporações de arte e ofício, pode-se dizer que o movimento das companhias (ou compagnonnages – reunião de companheiros com fins reinvindicatórios) significou (52) RUSSOMANO, Mozart Victor. Princípios Gerais de Direito Sindical. Rio de Janeiro : Forense, 1995. p. 8-9. 34 – Augusto César Leite de Carvalho o primeiro momento em que o monopólio dos mestres fora posto à prova, no regime corporativo. Mas é também pertinente, quanto ao mais, a lição de Mozart Victor Russomano(53): As corporações representaram a organização de classes, segundo critério unilateral, dispos- tas essas classes em planos sucessivos e níveis hierárquicos ascendentes (do aprendiz ao mestre). O sindicato, ao contrário, é um movimento bilateral, que parte do confronto entre trabalhadores e empresários e, por isso, os coloca, frente a frente, em sindicatos distintos e opostos, em evidente paralelismo, mas sobre o mesmo plano. O sindicato foi, como também já visto no capítulo precedente, a forma associativa que se consti- tuiu no sistema capitalista de produção, visando à defesa dos interesses coletivos dos trabalhadores. Igualmente se delineou que o sindicalismo está intrinsecamente ligado a outros dois institutos jurídicos que se inscrevem entre os direitos fundamentais dos trabalhadores: a negociação coletiva e a greve. 2.2 O sindicalismo no sistema capitalista de produção É fato, porém, que o movimento sindical não incorporou aos seus objetivos a revolução socialista, ao menos como regra. No Ocidente capitalista, os sindicatos têm lutado, o mais das vezes, pela implementação de medidas compensatórias que são outorgadas aos trabalhadores pelo direito laboral, como observa Ricardo Antunes(54): Pode-se dizer que junto com o processo de trabalho taylorista/fordista erigiu-se, particular- mente durante o pós-guerra, um sistema de ‘compromisso’ e de ‘regulação’ que, limitado a uma parcela dos países socialistas avançados, ofereceu a ilusão de que o sistema de metabolismo social do capital pudesse ser efetiva, duradoura e definitivamente controlado, regulado e fundado num compromisso entre capital e trabalho mediado pelo Estado [...]. O ‘compromisso fordista’ deu origem, progressivamente, à subordinação dos organismos insti- tucionalizados, sindicais e políticos, da era da prevalência social-democrática, convertendo esses organismos em verdadeiros cogestores do processo global de reprodução do capital. Por isso, era inevitável que o sindicalismo de enfrentamento cedesse lugar, gradualmente, a um novo modelo, que Ruprecht denomina sindicalismo de participação, no qual as corporações de traba- lhadores consideram a possibilidade de colaborar na gestão da empresa e do Estado, reorientando assim a sua função social. É Alfredo Ruprecht quem nota, dizendo secundar De La Cueva: [...] o sindicalismo pertence ao futuro e sonha com uma sociedade fundada na justiça social. Seu fim primordial era econômico: melhorar as condições de vida do trabalhador. No meado do século XIX, sua finalidade tinha um nítido traço político, uma vez que a convenção cole- tiva e sua ação não eram suficientes para obter o que desejava e, então, era preciso partir para a organização política mesmo. No começo deste século já deixa de ser exclusivamente um órgão de luta para se transformar num órgão de cooperação(55). Não há como desvincular o movimento sindical da inserção dos direitos sociais em várias cartas políticas editadas a partir da Constituição mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar (Alemanha), que alargaram assim o conteúdo e os horizontes dos direitos fundamentais (antes restritos aos direitos civis e direitos políticos). 2.3 O sindicalismo sob intervenção totalitária Mas sofreu duro golpe o sindicalismo ainda nas primeiras décadas do século XX, por obra ou influência do regime fascista. Observam Wilson Batalha e Sílvia Marina Batalha(56): [...] segundo a Declaração VI da Carta del Lavoro, as corporações (os sindicatos entre estas) constituíam a organização unitária das forças da produção e lhe representavam integral- mente os interesses. Constituíam, portanto, órgãos do Estado, compostos de representantes (53) RUSSOMANO, op. cit., p. 15. (54) ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999. p. 38. (55) RUPRECHT, op. cit., p. 54. (56) BATALHA, Wilson de Souza Campos; BATALHA, Sílvia Marina Labate. Sindicatos, Sindicalismo. São Paulo: LTr, 1994. p. 29. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 35 dos trabalhadores e dos empregadores das várias categorias econômicas, atuando-se nelas a integração das forças econômicas e das forças políticas do País. Objeto de sua atividade era a disciplina da produção e do trabalho [...] Eram instituídas por decreto do Chefe do Governo. Esse sistema corporativista passou a vigorar nos vários países que se fizeram receptivos ou se renderam a tal concepção de Estado totalitário, a exemplo da França (durante a ocupação nazista), Alemanha, Espanha (sob o regime de Franco e da Falange), Portugal (sob o mando de Salazar) e Brasil, neste sob o Governo Vargas. O Decreto n. 19.770, de 1931, exigia a unicidade, a neutralidade e a nacionalidade dos sindicatos, impedindo que estes veiculassem a doutrina marxista – cuja vocação para a universalidade era uma ameaça ao regime que, como visto, também perseguia a totalidade – e extraindo do movimento asso- ciativo a característica, a ele tão própria, de congregar, naturalmente, trabalhadores predispostos ao combate das ações patronais que promovem o trabalho indigno, injusto, desumano. Se não contarmos o curto período de vigência da Constituição de 1934, que previa a pluralidade e a autonomia sindical, concluiremos que o ordenamento jurídico brasileiro está, desde a década de 30, a impor a regra de o sindicato dever ser o único a representar uma dada categoria profissional, na base territorial que o seu estatuto delimitar. Assim se dá quanto à categoria profissional e, por igual, no tocante à categoria econômica, que reúne empregadores exercentes da mesma atividade econômica. Em outros países do Ocidente, o retorno à democracia sindical teve influência da Convenção n. 87 da Organização Internacional do Trabalho, editada em 1948 e atualmente catalogada como uma das oito convenções fundamentais, ou seja, convenções que exigem o respeito dos Estados-membros independentemente de ratificação. O Brasil avançou quanto à autonomia sindical, que é uma das mani- festações do princípio da liberdade sindical e está relacionada à vedação de qualquer interferência do Estado na constituição e estruturação interna dos sindicatos. Entretanto, a ratificação e o cumprimento da Convenção n. 87 se inviabiliza, entre nós, porque não há liberdade, como se analisará em seguida, para a filiação do trabalhador a qualquer sindicato ou ainda para a criação de novos sindicatos onde uma entidade sindical anterior já exista. 2.4 O difícil retorno a modelo afinado com o princípio da liberdade sindical No direito brasileiro, mantém-se a regra da unicidade sindical, não obstante o bafejo de demo- cratização ensaiado em assembleia constituinte que resultou na Carta de 1988. Apesar de o art. 8º da atual Constituição consagrar que “é livre a associação profissional ou sindical” e seu primeiro inciso prescrever que “a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organiza- ção sindical”, o inciso segundo restringe a liberdade de criar sindicato ao estabelecer que “é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissio- nal ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município”. Em outras palavras, o trabalhador é livre para sindicalizar-se, mas, ao optar por exercer esse direito, não lhe cabe escolher o sindicato a que irá associar-se, pois deverá inscrever-se, então e necessariamente, como sócio do sindicato único que estará habilitado a representar sua categoria profissional. Embora este tema deva ser retomado no capítulo dos princípios do direito do trabalho, especialmente no subitem dedicado aos princípios regentes do direito coletivo, algumas considerações são logo antecipadas, porque relevantes para que se compreenda a história do sindicalismo no Brasil. Segundo a regra geral, a categoria profissional é definida em razão da atividade econômica preponderante do empregador, não tendo influência, em princípio, a natureza do serviço prestado pelo empregado. Por exemplo, integram a categoria dos trabalhadores da construção civil todos os empregados das construtoras, ainda que exerçam funções que não comportem qualquer afinidade de interesses (engenheiros, agentes de portaria, técnicos de contabilidade e assistentes de enfermagem, se são empregados da construtora, compõem a mesma categoria representada pelo sindicato dos trabalhadores da construção civil, o qual se contrapõe ao sindicato igualmente único da indústria da construção civil). 36 – Augusto César Leite de Carvalho A exceção é a categoria profissional diferenciada, composta por trabalhadores que, segundo o art. 511, § 3º da CLT, exercem profissões ou funções diferenciadas por força de estatuto profissional especial ou em consequência de condições de vida singulares. É possível afirmar que motoristas e aeronautas, por exemplo, integram categoria profissional diferenciada, porquanto adquiriram tal condi- ção antes da Constituição de 1988, em época na qual o Ministério do Trabalho outorgava cartas sindi- cais (sem as quais não se constituía o sindicato) e delimitava a representação do novo sindicato. Mas a verdade é que o modelo de organização sindical está defasado e não se tem mais certeza sobre o modo como se constitui uma categoria desse tipo. Existem, inclusive, profissões regidas por lei própria, como médicos, advogados e engenheiros, cuja configuração como categoria profissional diferenciada não é aceita pela jurisprudência e por boa parte da doutrina. Para o trabalhador de nossos dias, saber se integra, ou não, categoria profissional diferenciada é importante porque, em conformidade com a Súmula 374 do TST, estará ele regido por acordo coletivo subscrito pelo sindicato dessa categoria – e, do outro lado, por seu empregador – na hipótese de ele se enquadrar nessa exceção, distinguindo-se dos demais empregados da mesma empresa que estariam regidos, segundo a regra geral, pela norma coletiva assinada pelo sindicato da categoria profissional contraposta à da atividade econômica ou empresarial. A restrição à liberdade de escolher o sindicato e de criar novos sindicatos é resquício de período, como se viu, em que se adotou o modelo fascista, de inspiração corporativista, fundado na premissa de o sindicato ser órgão do Estado e por isso não se poder cogitar da fragmentação desse ente, inclusive porque lhe era assegurado o direito de cobrar tributo para financiar sua atuação – qual seja, o imposto hoje eufemisticamente denominado contribuição sindical. A preservação, nos tempos que correm, desse tributo revela o descompasso do sistema brasileiro em relação ao princípio da liberdade sindical, dado que a contribuição sindical compulsória destoa da espontaneidade que caracteriza o movimento associativo e não nega a sua origem, pois se viabiliza por meio de dispositivos do Código Tributário Nacional que incorporam os sindicatos à estrutura estatal. Em rigor, a superação do modelo atual de organização sindical não é tema de fácil resolução. Se é fato que as limitações, já expostas, à liberdade de sindicalizar-se e de formar sindicato conspi- ram contra a autonomia da vontade dos trabalhadores, também o é que a capilarização excessiva da representação sindical, a pretexto de termos sindicatos inteiramente livres, estimularia o surgimento de sindicatos débeis, criados pela interferência direta e inescrupulosa de patrões que pretenderiam monitorar a ação da entidade supostamente representativa dos interesses inconvenientes. A experiência tem infelizmente demonstrado que esse comportamento é às vezes tentado por alguns empregadores menos conscientes de sua responsabilidade social. Ao permitir a dissociação (descolamento de categorias similares ou conexas, antes unidas em razão de serem reduzidos os grupos de trabalhadores em atividades idênticas) ou o desmembramento (descolamento pela frag- mentação da base territorial) de sindicatos já existentes, a jurisprudência tem envidado esforços para relativizar os limites da unicidade sindical e não raro se tem deparado com a criação forjada de sindi- catos de categorias profissionais (dissociados ou desmembrados) que representam interesses surpre- endentemente patronais, denunciando a possibilidade de fraude ou desvirtuamento mesmo em regime de unicidade ou monismo sindical. Daí se falar hoje, em movimento de aparente contenção ideológica, no princípio da agregação, que impediria a partição de categorias profissionais quando assim sucede com vistas à fragilização da representação obreira. Um esforço de contemporizar os riscos da liberdade sindical absoluta talvez se devesse alinhar com estudos recentes que dissociam a unicidade da exigência de anterioridade, ou seja, o sindicato seria único – por categoria e base territorial – mas essa representação poderia migrar para outra enti- dade sindical sempre que se observasse estar enfraquecida a representatividade do sindicato anterior e pujante a do novo sindicato. A propósito, a representatividade não se confunde com a representação, porquanto aquela denota estar o ente legitimado pela vontade dos trabalhadores e esta atende apenas a aspectos formais. CAPÍTULO III HISTÓRIA DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL 3.1 Pré-história do direito do trabalho: trabalho escravo e corporações de arte e ofício no Brasil O trabalho de escravos, dos servos de gleba e dos aprendizes e companheiros em corporações de arte e ofício antecedeu o modo de prestar trabalho que, mais adiante, ambientou-se na empresa capitalista e provocou o surgimento do direito laboral. Mas também se costuma dizer que, no Brasil, o direito do trabalho não seria o resultado desse quadro evolutivo, porquanto teria migrado para a nossa ordem jurídica, como um pacote inteiro de leis, pela intervenção de Vargas. Ainda que a teoria da generosidade getulista agrida a memória de todos quantos antes se inte- graram aos movimentos de insurreição contra a exploração do trabalho humano(57), decerto que a universalidade do direito fundamental, especialmente do direito fundamental a um trabalho digno, torna irrelevante, em boa parte, a procura da realidade mais próxima, vale dizer, a discussão sobre o direito do trabalho vigente no Brasil ser um legado de nossas próprias agruras e conflitos ou, por outro lado, se a história do trabalho no Ocidente bastaria ao aparecimento de um direito laboral em nossas plagas. De toda sorte, dúvidas existem sobre a influência das formas antigas de organização do trabalho – especialmente a escravidão e as corporações – no modo de se organizar o trabalho no âmbito da empresa que emergiu com a primeira revolução industrial. Não há, por exemplo e à toda vista, relação de causalidade entre o trabalho escravo e a relação de emprego. O que há de extraordinário na história do trabalho humano, no Brasil, é a conversão do trabalhador escravo em trabalhador empregado, sem que se vivenciasse intensamente a experiência das corporações de arte e ofício. Esforcemo-nos, pois, por rememorar um pouco da pré-história do emprego, em terras brasileiras. 3.1.1 As corporações de ofício na Europa e a analogia com o emprego O trabalho em regime gremial ou corporativo exibia algumas características coincidentes com a relação laboral própria da empresa capitalista, além de outras que o faziam diferente. As diferenças mais expressivas se encontravam no modo de se constituir a organização em que se realizava o traba- lho. No plano das relações individuais, eram, porém, parecidas as condições em que se trabalhava sob as ordens dos mestres ou, mais adiante, dos empresários. As coincidências estavam presentes, por exemplo, na circunstância de que as ordenanças gremiais relativas ao período de prova, disciplina, duração do contrato e tempo de trabalho seguiam orientação análoga à que tem o atual direito do trabalho(58) e também na peculiaridade de os aprendi- zes, companheiros e mestres serem trabalhadores livres(59). Evidenciavam-se, porém, as dessemelhanças. A saber, a produção era sobretudo artesanal nas corporações de arte e ofício, a elas não se ajustando as ideias de alienação e divisão do trabalho. Ademais, a revolução industrial foi contemporânea ao fim do regime corporativo e, possivelmente, com este não se harmonizaria uma vez que a hierarquia interna das empresas não teria a formação profissional como pressuposto, sendo possível a qualquer pessoa, inclusive a mulheres e crianças, participar da cadeia de produção nas empresas que surgiam. Os grêmios ou corporações profissionais desapareceriam definitivamente com a revolução indus- trial, ainda que fossem igualmente incompatíveis com os cânones da Revolução Francesa de 1789. (57) Vide MORAES, Apontamentos de direito operário, p. XXXII. (58) Cf. VIDA, MONEREO, MOLINA. Manual de Derecho del Trabajo, p. 64. (59) Idem, ibidem. Os autores advertem, porém, que a liberdade de trabalho dos aprendizes era seriamente afetada, em muitos casos, pela combinação de uma longa duração de seus contratos – eram comuns contratos de seis anos – com um regime de desvinculação ou desate contratual muito rigoroso. 38 – Augusto César Leite de Carvalho Aparentemente, os fatores econômicos são comumente mais influentes que as normativas de iniciativa política. 3.1.2 A escravidão na América e especialmente no Brasil No Brasil, os fatos foram diferentes. Enquanto a Europa via desaparecerem suas velhas organiza- ções corporativas e surgirem as empresas capitalistas, o Brasil ainda vivia um período de escravidão de negros originários da África. Em obra publicada em 1942, o historiador Caio Prado Junior argu- mentava que para compreender o trabalho livre no Brasil era necessário admiti-lo em sua perspectiva histórica: No terreno económico, por exemplo, pode-se dizer que o trabalho livre não se organizou ainda inteiramente em todo o país. Há apenas, em muitas partes dele, um processo de ajus- tamento em pleno vigor, um esforço mais ou menos bem-sucedido naquela direção, mas que conserva traços bastante vivos do regime escravista que o precedeu(60). O trabalho forçado foi utilizado tanto no Brasil como nos Estados Unidos(61). Sem embargo, é necessário entender as diferenças entre a colonização das zonas temperadas da América, inclusive das terras norte-americanas, e a colonização de zonas tropicais como aquela que teve lugar no Brasil. Embora a compreensão das causas da escravatura tenha a ver com a falta de mão de obra nas colônias da América, é interessante observar que a emigração de ingleses na direção do Novo Mundo a partir do século XVI teve significativo incremento com a transformação econômica vivida pela Ingla- terra desde o advento da revolução industrial. É que o surgimento da indústria têxtil provocou o deslo- camento do campesino inglês que abandonava a lavoura porque nada mais tinha a cultivar senão as pastagens dos carneiros e ovelhas cuja lã iria abastecer as novas fábricas. Os campesinos migravam para as colônias situadas na América em busca de uma nova socie- dade que lhes oferecesse garantias de sobrevivência não mais oferecidas pelo continente europeu. Portanto, o que levou novos colonos para as zonas temperadas da América, cujas condições naturais se assemelhavam às do Velho Continente, não foram as razões comerciais da colonização, até então dominantes(62). Caio Prado Junior observa, a propósito da ocupação inglesa na América, que se esta- beleceu a pequena propriedade, do tipo camponês, nas zonas temperadas (Nova Inglaterra, Nova York, Pensilvânia, Nova Jérsei e Delaware), estabelecendo-se a grande propriedade, do tipo planta- tion, somente ao sul da baía de Delware(63). Nos trópicos, os fatos se davam em outro contexto. Para estabelecer-se em zonas tropicais e subtropicais da América do Sul, o colono europeu, sobretudo os espanhóis e portugueses, emigravam de países ainda não industrializados, que produziam gêneros alimentícios suficientes para seu próprio consumo, precisando importar somente produtos naturais das zonas quentes(64). Queriam encontrar estímulos diferentes e mais persuasivos nos trópicos e em realidade os encontraram, pois as diferen- ças de condições climáticas atuaram, verdadeiramente, no sentido de proporcionar aos países colo- nizadores a oportunidade de obter gêneros alimentícios inexistentes na Europa, ou que nela não se produziam, a exemplo de açúcar, pimenta, tabaco e, mais adiante, anil, arroz e algodão. Quando veio para os trópicos, o colono europeu não trouxe consigo a disposição de trabalhar ele próprio em um ambiente tão difícil e estranho. Ele vinha “como dirigente da produção de gêneros de grande valor comercial, como empresário de um negócio rendoso; mas só a contragosto como (60) PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporáneo. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 3. (61) Cf. FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 123. O autor adverte: “É interessante observar que a evolução diversa que teve o estoque de escravos nos dois principais países escravistas do continente: os EUA e o Brasil. Ambos os países começaram o século XIX com um estoque de aproximadamente um milhão de escravos. As importações brasileiras, no correr do século, foram cerca de três vezes maiores do que as norte-americanas. Sem embargo, ao iniciar-se a Guerra da Secessão, os EUA tinham uma força de trabalho escrava de cerca de quatro milhões e o Brasil na mesma época algo como 1,5 milhão. A explicação desse fenômeno está na elevada taxa de crescimento vegetativo da população escrava norte-americana, grande parte da qual vivia em propriedades relativamente pequenas, nos Estados do chamado Old South. (...) O fato de que a população escrava brasileira haja tido uma taxa de mortalidade bem superior à de natalidade indica que as condições de vida da mesma deveriam ser extremamente precarias”. (62) Cf. PRADO JR, op. cit., p. 15. (63) Cf. PRADO JR, op. cit., p. 119. (64) Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 47. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 39 trabalhador. Outros trabalhariam para ele”(65). A exploração dos trópicos, não sem razão, teria essa característica: ela se realizaria em ampla escala e em grandes unidades produtivas – fazendas, enge- nhos de cana-de-açúcar e vastas plantações, semelhantes às plantations das colônias inglesas em Virginia, Maryland e Carolina. Nas plantações no sul dos Estados Unidos e nos trópicos, muitos colonos europeus tiveram que se submeter à condição degradante de escravos antes que se adotasse a escravidão de negros africa- nos. Ainda assim, a escravidão de colonos foi temporária e seria inteiramente substituída, não voltando a ser tentada nas outras colônias tropicais, inclusive no Brasil, já que Espanha e Portugal, aos quais pertencia a maioria delas, não tinham mão de obra excedente e disposta a emigrar a qualquer preço(66). Em rigor, as condições naturais de clima e tipo de terreno foram mais determinantes, provavel- mente, que a índole dos colonizadores. Apesar de seguir as mesmas premissas até aqui sustentadas, Sérgio Buarque de Holanda assinala que o surgimento da indústria na nação britânica, no século XIX, fez gerar uma falsa ideia acerca da gente inglesa: “A verdade é que o inglês típico não é industrioso, nem possui em grau extremo o senso da economia, característico de seus vizinhos continentais mais próximos. Tende, muito contrário, para a indolência e para a prodigalidade, e estima, acima de tudo, a ‘boa vida’. Era essa a opinião corrente, quase unânime, dos estrangeiros que visitavam a Grã-Breta- nha antes da era vitoriana”(67). Cabe dizer que os portugueses foram os precursores na prática de escravizar os mouros e, na sequência, os escravos africanos, levados a Portugal pelas expedições ultramarinas e subjugados como presas de guerra ou fruto de resgates(68). Entretanto, a escravidão moderna, nas colônias ameri- canas, era diferente daquela que se constituía na sociedade dos antigos. Observam Lilia Schwarcz e Heloisa Starling: As cidades gregas e o Império Romano podem ser considerados os maiores exemplos de sociedades escravocratas da Antiguidade – no auge desse Império, na Itália havia de 2 milhões a 3 milhões de escravos, que representavam 35% a 40% da população total. No entanto, diferentemente do que aconteceu na escravidão moderna, nas antigas civilizações o trabalho compulsório não significava a principal força para a produção de bens e realização de serviços. Mesmo como o declínio do Império Romano e a concentração de cativos nas tarefas domésticas, o sistema se manteve vigente(69). A crueza do método escravista a partir do seu resgate no século XVI é igualmente assinalado por Prado Jr.: Nada mais particular, mesquinho, unilateral. Em vez de brotar, como a escravidão do mundo antigo, de todo o conjunto da vida social, material e moral, ela nada mais será que um recurso de oportunidade de que lançarão mão os países da Europa a fim de explorar comer- cialmente os vastos territórios e riquezas do Novo Mundo(70). Antes de tentar a escravidão de negros africanos, os portugueses fizeram escravos aos nativos. Os aborígenes foram escravos durante dois séculos, sendo brutalmente explorados pelos colonos ou, alternativamente, eram confinados em aldeias jesuítas pelos padres da Companhia de Jesus. Assim ocorreu até que a legislação engendrada pelo Marquês de Pombal adotasse as linhas mestras da organização jesuíta e ordenasse que os indígenas fossem preparados para a vida civilizada, dando-se então o incremento do tráfico negreiro(71). A legislação pombalina foi revogada pela Carta Régia de 12 de maio de 1798, recomeçando as atrocidades contra os nativos(72). Contudo, os efeitos da legislação de Pombal eram notáveis e muitos (65) PRADO JR, op. cit., p. 17. (66) Cf. PRADO JR, op. cit., p. 18. (67) HOLANDA, op. cit., 1995, p. 45. O autor remata: “[...] Em 1664, no panfleto intitulado England’s treasure by foraigne trade, Thomas Mun censurava nos seus compatriotas a imprevidência, o gosto da dissipação inútil, o amor desregrado aos prazeres e ao luxo, a ociosidade impudica – lewd idleness – ‘contrária à lei de Deus e aos usos das demais nações’”. (68) Em dados estatísticos de 1541, estimava-se que cerca de 10 a 12 mil escravos entravam em Portugal, vindo da Nigrícia, anualmente. Cf. HOLANDA, op. cit., p. 54. (69) Op. cit., p. 79. (70) Op. cit., p. 278.. (71) Cf. PRADO JR, op. cit., pp. 89-90 (72) Cf. PRADO JR, op. cit., p. 94. O autor observa que a reação dos portugueses se acentuou após a vinda da Corte para o Rio de Janeiro. A 40 – Augusto César Leite de Carvalho eram os índios integrados à civilização ou, por outro lado, resistentes a essa prática de aculturação ou de trabalho forçado(73). Por tal razão, a migração de negros cresceu desde a primeira metade do século XIX até a proibição do tráfico em 1850. Nos primeiros anos desse mesmo século, a terça parte da população brasileira era composta por negros africanos, havendo muita miscigenação no restante(74). Além do trabalho no cultivo da cana e na mineração, os serviços domésticos também eram realizados por escravos(75). Enquanto se desenvolvia a revolução industrial na Europa, o elemento fundamental da economia brasileira era a propriedade, nela se realizando a monocultura por escravos africanos. Anotam Lilia Schwarcz e Heloisa Starling que a partir do século XVI a empresa colônia girou em torno da cana-de- -açúcar, influenciando a formação de vilas e cidades, a defesa de territórios, a divisão de propriedades, as relações com diferentes grupos sociais e até a escolha da capital(76). Dir-se-iam medonhas as condi- ções de trabalho, a exemplo do que sucedia no engenho Sergipe do Conde situado no Recôncavo baiano: Labutava-se dia e noite, em duas turmas, que lidavam com a moagem e o cozimento. O setor que cuidava da purga, secagem e encaixotamento precisava de um período apenas. No entanto, permanecia em atividade por dezoito horas ou mais. Além disso, aos domingos e feriados, na maioria dos engenhos os escravos trabalhavam na produção agrícola de alimen- tos para consumo próprio, ou na pesca em algum rio próximo, sem os quais sua dieta ficaria ainda mais reduzida e pobre. Independente do setor, a jornada alcançava o limite da exaustão. Para ajudar a aliviar o cansaço e a manter o ritmo ensandecido, a labuta era acompanhada por cantos, que também uniam o grupo, melhoravam o moral e auxiliavam a vencer o jugo das horas ininterruptas de trabalho.(77) A boa qualidade das terras do Nordeste brasileiro contribuiu para que assim se organizasse a agricultura, cabendo notar que a partir do século XVIII a mineração se somou à agricultura como outra grande atividade econômica na colônia portuguesa, embora os métodos continuassem os mesmos: a extração de minerais em larga escala com o auxílio de escravos. O terceiro setor da economia colonial foi o extrativo, que se desenvolveu quase exclusivamente na região amazônica e consistiu na atividade de extração de caucho, cacau, salsaparrilha, noz de pixurim e outros produtos. A atividade extrativa se organizou de forma distinta, porque não tinha como base a propriedade territorial, deslocando-se livremente os colhedores em meio à floresta em busca do produto. Ainda assim, os empresários exploravam um número significativo de trabalhadores e estava presente, como nas demais atividades desenvolvidas na época colonial, a figura da grande unidade produtora(78). A proclamação da independência em 1822 não transformou os aspectos estruturais da economia. Sublinha Prado Jr.(79): Chegamos ao cabo de nossa história colonial constituindo ainda, como desde o princípio, aquele agregado heterogêneo de uma pequena minoria de colonos brancos ou quase bran- cos, verdadeiros empresários, de parceria com a metrópole, da colonização do país; senho- res da terra e de toda sua riqueza; e doutro lado, a grande massa da população, a sua substância, escrava ou pouco mais que isto, máquina de trabalho apenas, e sem outro papel no sistema. Carta Régia de 13 de maio de 1888 declarou guerra contra a tribo dos Botocudos, o Aimorés, permitindo o aprisionamento de índios e sua utilização gratuita a serviço dos comandantes da guerra. (73) Assinala Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 48, que “os antigos moradores da terra foram, eventualmente, prestimosos colaborado- res na indústria extrativa, na caça, na pesca, em determinados oficios mecânicos e na criação do gado. Difícilmente se acomodavam, porém, ao trabalho acurado e metódico que exige a exploração dos canaviais”. (74) Cf. PRADO JR, op. cit., p. 100. O autor observa que antes de começarem as grandes importações do século XIX já existiam mais de 5 ou 6 milhões de negros introduzidos no Brasil. (75) Cf. ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. São Paulo: Publifolha, 2000. p. 235. (76) SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras: 2015. p. 67. (77) SCHWARCZ e STARLING, op. cit., p. 77. (78) Cf. PRADO JR, op. cit., p. 122. (79) Op. cit., p. 125. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 41 3.1.3 A escravidão inibiu as corporações de ofício no Brasil Em meio a tal realidade, não pareceria razoável que se forjassem no Brasil as corporações profis- sionais. Depois do fracasso das primeiras tentativas de industrialização(80), remanesceram nas cidades somente os mecânicos que trabalhavam por encomenda e a quem se pagava somente o feitio. Por isso, os mecânicos nunca formaram grêmios profissionais à maneira de como procediam na Europa. Como esclarece Capistrano de Abreu(81), eles “eram para isso muito poucos, e se nas cidades podiam viver de um só ofício, em lugares de população menos densa precisavam de sete instrumentos para ganhar a subsistência. Mesmo nas cidades faziam-lhes concorrência os oficiais escravos”. À diferença do que sucedeu em outros países, inclusive na América espanhola(82), a escravidão e a hipertrofia da monocultura na estrutura da economia colonial impediu, no Brasil, qualquer tentativa séria de engendrar o modelo corporativo nas outras atividades produtoras. Consoante sobrevisto, a preponderância do trabalho de escravos africanos e mesmo a indústria caseira, que produzia o sufi- ciente para garantir a independência dos ricos, obstaculizaram a circulação de mercadorias e propicia- ram a escassez de artífices livres na maior parte das vilas e cidades. Talvez por isso, eram muitas as queixas contra mecânicos que violavam impunemente os estatutos de seu ofício ou se recusavam aos exames prescritos, graças à benevolência de certos magistrados(83). Era comum que mecânicos abandonassem seus ofícios, quando mais capacitados e portanto mais prestigiados em suas cidades, quase sempre na busca de desfrutar regalias normalmente nega- das aos que exerciam, simplesmente, a referida atividade. A seu turno, existiam pessoas que, apesar de figurarem entre os nobres, dedicavam-se aos serviços mecânicos como meio de vida, sem perder as prerrogativas da aristocracia. A indisciplina frente aos estatutos da corporação de ofício chegava ao ponto de as lojas comerciais terem que vender coisas muito variadas e até se compravam “ferraduras a um boticário e vomitórios a um ferreiro”(84). À semelhança do que ocorria na Europa, a legislação estatal regulava o funcionamento das corporações, mas a verdade é que a lei brasileira, sob influência da reforma liberal, aboliu corporações que sequer existiam. Até a primeira Constituição brasileira, a Ordenação do livro I, título 88, impunha aos mestres a preparação dos aprendizes em tempo razoável, ensinando-lhes a ler e escrever. Nesse mundo apenas de fantasia, o art. 179, XXV, da Constituição brasileira de 1824, a única carta constitucional do período imperial, predizia: “Ficam abolidas as Corporações de Officios, seus Juízes, Escrivães e Mestres”. Agiam os legisladores como se as corporações do tipo europeu aqui também estivessem instaladas. 3.1.4 As leis trabalhistas surgiram antes da abolição da escravatura As leis brasileiras parecem, às vezes, obedecer a uma cronologia própria, que não raro se disso- cia dos fatos sociais por elas disciplinados. Extinguiram, por exemplo, corporações que em verdade inexistiam e, em uma primeira e açodada análise, poder-se-ia argumentar que o trabalho livre foi regu- lado quando ainda vigorava o trabalho escravo. É que, sob a influência do ideário liberal preceituado pela Revolução Francesa, com feições individualistas, surgiram ao início do século XIX as primeiras leis que viriam regular os contratos escritos de prestação de serviços, sendo que a primeira dessas leis, em 1830, vedava tais contratos “aos africanos bárbaros, à exceção daqueles que atualmente existem no Brasil” (artigo 7o da Lei n. de 13 de setembro de 1830). A segunda lei foi editada em 1837 (Lei n. 108, de 11 de outubro de 1837) e regulava o contrato de locação de serviços celebrado por escrito, favorecendo a colonização agrícola. (80) Conforme explicaremos adiante, a partir do século XVIII há alguma tentativa de se iniciar a atividade de comércio e de indústria no Brasil, mas em 1785 o “Alvará de Dona Maria” ordenou a extinção de todas as fábricas e manufaturas existentes na colônia, para que não fossem prejudicadas a agricultura e a mineração. Em 1808, dá-se a vinda da Família Real para o Brasil e, então, o Príncipe Regente Dom João VI restabelece a liberdade industrial por meio do Alvará de 1o de abril de 1808. (81) Op. cit., p. 241. (82) Cf. HOLANDA, op. cit., p. 57. O autor anota a prosperidade dos grêmios de oficiais mecânicos em Lima logo no primeiro século após a conquista do Peru. (83) Cf. HOLANDA, op. cit., p. 58. (84) Cf. HOLANDA, op. cit., p. 59. 42 – Augusto César Leite de Carvalho Observa Catharino(85) que o Código Comercial trouxe avanços notáveis para a época, pois, embora editado em 1850, continha normas de proteção em favor dos trabalhadores no comércio, que, no Brasil, antecedeu a indústria e estava em expansão nos centros urbanos. É certo que ainda tratava o contrato de emprego como uma locação, mas prescrevia regras sobre o labor de altos-empregados e ainda sobre acidente de trabalho, aviso–prévio, indenização por ruptura antecipada de contrato a prazo, justa causa, trabalho marítimo etc. O mencionado conjunto de normas, versando todas sobre o trabalho livre, antecedeu a abolição da escravatura, mas essa ordem dos fatos não o tornou completamente inócuo. Assim se deu porque, já em 1850, no Nordeste do Brasil, a população livre superava a escrava na maior parte dos municípios, sendo que, em 1870, havia quatro trabalhadores rurais para um escravo, na lavoura nordestina. Além disso, as fugas em massa e a campanha abolicionista levaram o sistema da escravidão a colapso, na região do café, a partir de 1886. Os referidos aspectos fizeram com que ocorresse, no Nordeste, o cambão, que era um sistema de colonato em que homens livres e pobres pagavam o direito de usar um pequeno trato de terra com trabalho gratuito para o senhor de engenho ou com a entrega de parte de sua produção. No Sudeste, os colonos livres e igualmente pobres se somavam aos antigos escravos, agora empregados, sendo que em São Paulo, mesmo antes da abolição da escravatura, os escravos já eram substituídos por imigrantes. Em síntese, o trabalho escravo inviabilizou a existência das corporações de ofício no Brasil e, por outro lado, a escravatura não cessou apenas em razão da lei abolucionista. A nossa ordem jurí- dica regulou o trabalho subordinado quando ainda havia escravidão de negros africanos e aboliu o regime de corporações profissionais sem atentar para a circunstância de que punha termo ao que nem propriamente existia. Mas nada interferiu, ou interfere hoje em dia, na necessidade de o trabalhador brasileiro ser regido por lei trabalhista que segue a ordem universal: protege-se o empregado porque a dignidade do trabalho humano é princípio fundamental. 3.2 A substituição do escravo africano pelo imigrante europeu A pesquisa sobre as circunstâncias nas quais evoluiu o trabalho humano no Brasil, que mais adiante se daria no ambiente da empresa e sob a regência do direito do trabalho, não pode ser defla- grada a partir do emprego industrial, como de resto ocorreria se adotássemos, puramente, a perspec- tiva daqueles que concebem a origem do direito laboral nos lindes do modelo de trabalho subordinado que surgiu com a primeira revolução industrial. O Brasil estava entre os países que dependiam da monocultura agrícola de exportação. Em meados do século XIX, a classe dirigente da economia cafeeira despertou para a possível conveniência de adotar no Brasil o sistema por meio do qual se implementou a emigração inglesa para a América no período colonial, nele se dando a venda pelo imigrante do seu trabalho futuro. O empresário financiava a vinda do imigrante, que se obrigava a permanecer a seu serviço por tempo determinado. Celso Furtado(86) nos conta que um grande plantador de café, o senador Vergueiro, decidiu inovar na tentativa de superar o maior embaraço para as plantações cafeeiras destinadas sobretudo à expor- tação. Vergueiro adotou o modelo da imigração inglesa com adaptações importantes: obteve do governo brasileiro o custeio da passagem das famílias estrangeiras para o Brasil e não se estabeleceu, entre nós, um tempo máximo pelo qual o imigrante permanecia obrigado a trabalhar para reembolsar as despesas de sua viagem. Em 1852 e valendo-se de tais benesses, o mencionado senador trans- feriu oitenta famílias de camponeses alemães para a sua fazenda em Limeira e, na sequência, mais de duas mil pessoas foram transferidas, principalmente de Estados alemães e da Suíça, até 1857. Furtado anota com propriedade: Com efeito, o custo real da imigração corria totalmente por conta do imigrante, que era a parte financeiramente mais fraca. O Estado financiava a operação, o colono hipotecava o (85) CATHARINO, José Martins. Compêndio universitário de direito do trabalho. São Paulo: Editora Jurídica e Universitária, 1972. p. 21. (86) FURTADO, op. cit., p. 131. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 43 seu futuro e o de sua família, e o fazendeiro ficava com todas as vantagens. O colono devia firmar um contrato pelo qual se obrigava a não abandonar a fazenda antes de pagar a dívida em sua totalidade. É fácil perceber até onde poderiam chegar os abusos de um sistema desse tipo nas condições de isolamento em que viviam os colonos, sendo o fazendeiro prati- camente a única fonte do poder político. A reação na Europa – onde tudo que dizia respeito a um país escravista suscitava imediata preocupação – não tardou. Em 1867 um observador alemão apresentou à Sociedade Internacional de Emigração de Berlim uma exposição em que pretendia demonstrar que os ‘colonos’ emigrados para as fazendas de café do Brasil eram submetidos a um sistema de escravidão disfarçada. Evidentemente o caminho tomado estava errado, e era indispensável reconsiderar o problema em todos os seus termos.(87) É fato que em 1859 se proibiu a emigração alemã para o Brasil, pois se formou na Europa uma opinião amplamente contrária ao império escravista da América, assim sucedendo por influência, sobretudo, dos viajantes europeus que por aqui passavam e percebiam a forma primitiva da vida dos colonos, dado que a vida econômica das colônias era mesmo extremamente precária. Mas ao início do século XX já era muito expressiva a quantidade de imigrantes nas fábricas brasi- leiras. Observa Mascaro Nascimento(88) que, no Estado de São Paulo, os brasileiros eram menos de 10% dos 50.000 operários. Na capital paulista, mais de 62% dos operários eram imigrantes, sendo a maioria absoluta de italianos. No Rio de Janeiro de 1906, a maioria dos operários era imigrante, formada principalmente por portugueses e espanhóis. De par com essa miríade de trabalhadores estrangeiros, vários deles cônscios do direito a uma condição mais digna de trabalho e a cerrarem fileiras no movimento anarquista(89), sobressaía uma doutrina jurídica marcadamente reivindicatória, em que figuravam, com destaque, Evaristo de Moraes, Sampaio Dória, Carvalho Netto e Francisco Alexandre. Mas a realidade era adversa, ainda assim, para os trabalhadores. 3.3 O direito do trabalho e a industrialização no Brasil A atividade econômica que se desenvolvia no Brasil, enquanto o feudalismo vicejava na Europa, era restrita à depredação de nossas riquezas naturais e usava, em larga escala, a mão de obra indí- gena. Nota Catharino(90) que no Brasil não houve sistema feudal e as corporações de ofício tiveram escassa importância. Explica o autor que a colonização começou com as sesmarias e com as capita- nias hereditárias, que abriram o ciclo de uma economia rural baseada na propriedade, na enfiteuse, no trabalho escravo de africanos e no servil ou semiescravo, somente em algumas regiões se iniciando a atividade de mineração. A partir do século XVIII, surgem algumas iniciativas que visavam introduzir a atividade industrial no Brasil, mas o “Alvará de Dona Maria”, em 1785, ordenou a extinção de todas as fábricas e manufaturas existentes na colônia, para que não fossem prejudicadas a agricultura e a mineração. Em 1808, com a vinda da Família Real para o Brasil, o Príncipe Regente Dom João VI restabelece a liberdade industrial por meio do Alvará de 1o de abril de 1808. Começam a funcionar, já em 1810, as primeiras indústrias têxteis, no Rio de Janeiro e na Bahia, além de siderurgias em Minas Gerais e São Paulo. Em 1850, o Visconde de Mauá inaugura uma oficina de fundição e um estaleiro naval, que nos primeiros onze anos alcançou a produção de setenta e dois navios, a vapor e à vela. É de se notar que o Brasil formava entre os muitos países que constituíam a economia periférica. Marcio Pochmann esclarece: (87) FURTADO, op. cit., p. 132. (88) FERRARI, Irany; NASCIMENTO, Amauri Mascaro. MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. História do trabalho, do direito do traba- lho e da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 1998. p. 149. (89) Opuseram-se, na Europa, as organizações anarcos-sindicalistas espanholas e o movimento anarquista histórico, fundado pelo russo Michael Bakunin (1814-1876). Em um de seus textos, Bakunin (BAKUNIN, Michael Alexandrovich. Textos anarquistas. Seleção de Daniel Guérin. Tradução de Zilá Bernd. Porto Alegre : L&P, 1999. p. 157), ao combater, como usualmente fazia, a necessidade de uma fase transi- tória de ditadura do proletariado, preconizada por Marx, defende: “Esta é uma contradição flagrante. Se seu Estado for efetivamente um Estado Popular, que razões haveria para suprimi-lo? E se, por outro lado, sua supressão é necessária para a emancipação real do povo, como se poderia qualificá-lo de Estado Popular? Polemizando com eles, fizemos com que reconhecessem que a organização livre das massas trabalhadoras, que a liberdade ou a anarquia, isto é, de baixo para cima, é a finalidade última da revolução social e que todo Estado, inclu- sive o Estado Popular, é um jugo, o que significa que, de um lado, gera o despotismo e, de outro, a escravidão”. (90) CATHARINO, op. cit., p. 17. 44 – Augusto César Leite de Carvalho [...] países como Alemanha, Estados Unidos, França e Inglaterra, que juntos representa- vam apenas 13% da população mundial, foram responsáveis por 74% da produção total de manufatura do mundo durante o começo do século XX [...]. Em relação ao emprego industrial, que geralmente revela relações de trabalho e de remuneração menos precá- rias, verificou-se que ele se concentrou em poucos países, ao passo que 75% do total da ocupação no setor primário estavam associados às economias periféricas.(91) Conforme sobredito, o início do século XX assistiu, no Brasil, a uma significativa imigração de europeus, especialmente italianos e ibéricos. Também é certo que eles não assumiram posição de absoluta passividade. Observa Evaristo de Moraes(92) que os primeiros anos da República foram de grande agitação, não apenas porque a Lei n. Áurea significou a primeira grande lei social entre nós, como também porque à pena da Princesa Isabel faltou uma complementação necessária, qual seja, “uma lei de reforma agrária que fixasse o homem à terra, lhe tornasse proprietário, dividisse os latifúndios, com radical alteração do sistema rural até então vigente, a fim de que, com o novo regime, não se desorganizasse a produ- ção dos campos”. Essa providência era cobrada por espíritos iluminados, como Silva Jardim, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. Sobre as citadas leis não modificarem, também nos centros urbanos e significativamente, as condições de trabalho, basta verificar que, em sua tese de doutoramento, o jovem médico Raul Sá Pinto(93) afirmava, em um tempo no qual já havia sido abolida a escravidão e proclamada a República, ainda desejar que “os operários tenham, em breve, como primeiro passo para a sua tardia integração social, residências, senão ótimas, ao menos salubres e decentes, que os sosseguem do espantalho dos atuais cortiços lôbregos, onde lhes falta o ar, a água e todos os princípios essenciais da higiene”. Em remate, afirmava o doutorando: No Brasil, país grande em todos os sentidos – na extensão incalculável do seu território, na opulência esplendorosa da sua natureza, na inteligência pujante dos seus filhos – parece incrível mas é verdade, os operários vivem na mais contristadora das misérias – famintos, rotos, desabrigados e esfalfados. E nada se tem feito por eles, que – coitados! – se encon- tram, agora, como sempre, nas mesmas condições lamentabilíssimas. Há notícia, para nós veiculada por Evaristo de Moraes Filho(94), que “mulheres ainda que grávidas e crianças de tenra idade eram obrigadas a mourejar nos serviços mais pesados e penosos, durante mais de doze horas, com salários ínfimos, a fim de poderem contribuir, de qualquer forma, com alguma coisa, para o orçamento doméstico”. Talvez por isso, Amauri Mascaro Nascimento(95) releva iniciativas precedentes e afirma que o período liberal do direito do trabalho se iniciou, mesmo, quando abolida a escravidão e proclamada a República. E havia, ademais, um claro obstáculo à ação protetiva do Estado. É que, além de o Estado liberal não agir – abstinha-se de intervir por pressupor a igualdade e a liberdade dos que protagonizam rela- ções jurídicas –, esse modo de pensar justificou a revogação(96) de leis, editadas ao tempo do Império, que regulavam a locação de serviços, também fazendo com que os legisladores civilistas não atentas- (91) POCHMANN, Marcio. O emprego na globalização: a nova divisão internacional do trabalho e os caminhos que o Brasil escolheu. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p. 21. O autor remata: “A forte dependência da monocultura agrícola de exportação era uma das prin- cipais marcas da periferia, que se utilizava disso para financiar as importações de produtos manufaturados do centro industrializado. Em 1900, por exemplo, o Brasil tinha quase 80% de sua pauta de exportação dependente das culturas de café (61%) e borracha (18%), assim como o Egito possuía 87% das exportações associadas ao algodão, Gana 77% dependentes do cacau e do ouro, Romênia com 76% de cereais, Indonésia com 60% de tabaco e açúcar e Argentina com mais de 2/3 de produtos primários”. (92) MORAES, Evaristo de. Apontamentos de direito operário. São Paulo : LTr, 1998. p. XXXII. (93) A defesa da tese aconteceu em 1907. Apud MORAES, Evaristo de. Apontamentos de direito operário. p. XXX. (94) Em prefácio à obra de seu pai, Evaristo de Moraes, Apontamentos de Direito Operário (p. XXV). (95) FERRARI, Irany. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. História do trabalho, do direito do traba- lho e da Justiça do Trabalho. p. 148. (96) Mais adiante, quando o Vice-Presidente Manuel Vitorino Pereira, no exercício da Presidência, vetou projeto de lei que regulava a loca- ção agrícola, assim justificou o veto: “O papel do Estado nos regimes livres é assistir como simples espectador à formação dos contratos e só intervir para assegurar os efeitos e as consequências dos contratos livremente realizados. Por esta forma o Estado não limita, não diminui, mais amplia a ação de liberdade e de atividade individual, garantindo os seus efeitos” (Vide MORAES, Evaristo de. Apontamentos de direito operário. p. XL). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 45 sem para a relevância social do trabalho. Comentando o projeto do Código Civil de 1916, Evaristo de Moraes, em obra publicada em 1905(97), ironiza: Efetivamente, a redação final do projeto do Código Civil Brasileiro – que temos presente – principia por epigrafar, à moda velha, o conjunto das relações dos trabalhadores ou assa- lariados, para com seus patrões ou empregadores: da locação de serviços. Dispensa ao assunto 22 artigos. Ao lado, o legislador cogitara da locação de casas, muito mais detalha- damente. Isso denuncia todo o espírito da grande obra republicana, sob o ponto de vista da legislação social [...]. O Estado liberal se manteve inerte quando devia agir, estendendo a sua proteção em favor da hipossuficiência econômica do trabalhador individual. Ainda assim, o direito do trabalho no Brasil se construiu como uma resposta à pressão social, mas com participação tímida de normas coletivas, elaboradas mediante a ação direta dos trabalhadores, por meio de seus sindicatos. A Europa já havia vivenciado a reação do proletariado, alimentada por movimentos socialistas de largo espectro e contida pelas medidas compensatórias empreendidas pela socialdemocracia, quando o operariado brasileiro se insurgiu e obteve a intervenção estatal. O Estado brasileiro era liberal, mas estava atento à experiência europeia e, por isso, promulgou normas que regulavam a jornada de menores cujo trabalho era permitido a partir de oito anos de idade (Decreto n. 1313/91), o privilégio de salário pago a trabalhadores rurais (Decreto n. 1150/04) e uma das seis primeiras leis, em todo o mundo, sobre férias remuneradas, fixando-as em quinze dias para empregados de estabelecimentos comerciais, industriais, bancários e de instituições beneficentes (Lei n. 4982/25), além do Código de Menores de 1927 (Decreto n. 17934-A), que proibía o trabalho de menores de doze anos e limitava o trabalho de outros menores. O Estado totalizante, da primeira era Vargas, consolidou a legislação trabalhista e, em 1943, editou a CLT. As indústrias de base, especialmente a siderurgia e a petroquímica(98), surgiram com a legisla- ção trabalhista e a Justiça do Trabalho, tudo em um pacote de intervenção estatal que auspiciava a definitiva modernização do Brasil. A um só tempo, Vargas introduzia a fonte do problema – mediante o estímulo à industrialização de bens de capital e de consumo – e os métodos de solução, tentando quei- mar etapas do processo de industrialização vivido pelos países que compunham a economia central. A CLT foi seguida de legislação que contribuiu para a atenuação das condições adversas em que se dava o trabalho do empregado brasileiro, abrindo caminho para a constitucionalização dos direitos sociais de índole trabalhista. A Constituição de 1988 elevou, enfim, ao nível de direito fundamental as condições mínimas de trabalho a que pode ser submetido o empregado no Brasil, articulando-se assim com o princípio – que gravou em seu texto como fundamento da nossa República – da dignidade da pessoa humana. A Consolidação das Leis do Trabalho interveio em demasia, porém e contraditoriamente, na atua- ção dos sindicatos. Ao estudarmos a origem do direito coletivo do trabalho, vimos que a influência do ideário fascista deu ensejo, no Brasil dos anos 20, à intervenção do Estado no movimento sindical, a partir da adoção do princípio da unicidade sindical (um só sindicato representa a categoria em uma certa base territorial, sendo vedada a formação espontânea de uma nova entidade sindical), da institui- ção do imposto sindical (atualmente denominado contribuição sindical) e, até a Carta Política de 1988, através da investidura dos sindicatos por meio de Carta de Reconhecimento outorgada pelo Ministério do Trabalho. Tal intromissão do Estado, em assunto marcadamente corporativo, transindividual, neutralizou a atividade dos sindicatos brasileiros que representavam categorias economicamente fracas ou mal organizadas, no exato período em que políticas de pleno emprego permitiam a reivindicação de condi- ções mais justas de trabalho sem a ameaça da retaliação patronal. (97) Op. cit. p. 23. (98) Em verdade, o Conselho Nacional do Petróleo foi instituído em 1938 e a Companhia Siderúrgica Nacional foi fundada em 1941. CAPÍTULO IV FONTES DO DIREITO DO TRABALHO 4.1 Conceito Que são fontes do direito? Certamente se está diante de uma metáfora, usando-se a palavra fonte para se exprimir origem ou fundamento. Origem ou fundamento do direito, por óbvio. Com Bobbio(99), poderíamos dizer que fontes do direito “são aqueles fatos ou atos dos quais o ordenamento jurídico faz depender a produção de normas jurídicas”(100). 4.2 As fontes materiais e as fontes formais do direito Os autores, inclusive os laboralistas, preferem certamente classificar as fontes do direito em fontes materiais (também ditas reais ou primárias) e fontes formais. As fontes materiais são representadas pelos fatores sociais ou históricos determinantes no surgimento da norma e estas, as fontes formais, revelam-se nos mecanismos e modalidades mediante os quais o Direito transparece e se manifesta, na síntese feliz de Mauricio Godinho Delgado(101). A compreensão é facilitada se associamos as fontes materiais aos movimentos obreiros referidos nos capítulos precedentes, bem assim às teorias e prin- cípios filosóficos que os fizeram afrontar o Estado burguês. As fontes formais se manifestam na Constituição, leis e outras espécies normativas que servem à exteriorização do direito – se fôssemos mais rigorosos, diríamos que a fonte formal não seria a lei, mas sim a atividade legislativa. Por conseguinte, é fácil perceber que, cronologicamente, as fontes materiais antecedem as fontes formais, nestas se convertendo no instante em que o emissor virtual da norma elege, entre as condutas que a sociedade não repele por indesejáveis, aquela que deve ser prescrita em regra jurídica, garan- tida por sanção. Este é um momento de decisão, por isso dizendo Miguel Reale, sobre as fontes do direito, “que são (estas) sempre estruturas normativas que implicam a existência de alguém dotado de um poder de decidir sobre o seu conteúdo, o que equivale a dizer um poder de optar entre várias vias normativas possíveis, elegendo-se aquela que é declarada obrigatória, quer erga omnes, como ocorre nas hipóteses da fonte legal e da consuetudinária, quer inter partes, como se dá no caso da fonte juris- dicional ou na fonte negocial”(102). Em sendo editada a norma, ou melhor, em surgindo afinal a fonte formal de direito, vale recor- dar o que diz Bobbio, na introdução da obra A Era dos Direitos, a propósito do dilema com que se pode defrontar o intérprete do direito que, questionando o fundamento do direito aplicável a um caso concreto, esteja a buscar o componente da equidade ou justiça na norma a aplicar: O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter. No primeiro caso, investigo no ordenamento jurídico positivo, do qual faço parte como titular de direitos e deveres, se há uma norma válida que o reconheça e qual é essa norma; no segundo caso, tentarei buscar boas razões para defender a legitimidade do direito em questão e para (99) BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: UnB, 1996. p. 45 (100) Para a doutrina positivista, a classificação das fontes deve levar em conta a supremacia da lei, como manifestação da soberania do Estado, distinguindo-as como fonte originária – é o poder originário, vale dizer, “a fonte das fontes”, que dá unidade ao ordenamento jurí- dico – e fontes derivadas. Entre as fontes derivadas, encontram-se as fontes reconhecidas (o costume, por exemplo, que preexiste ao Estado, mas é por ele reconhecido ou recepcionado) e as fontes delegadas (o ordenamento jurídico, quando concebido como uma construção esca- lonada de normas, pressupõe a delegação do poder constituinte ao legislador ordinário e deste ao poder judiciário). Nota-se, porém, que essa classificação visualiza o direito sob o aspecto estritamente formal. Cf. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Tradução de Márcio Pugliesi e outros. São Paulo: Ícone, 1995. p. 164. (101) DELGADO, Mauricio Godinho. Fontes do direito do trabalho. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. Vol. I. São Paulo: LTr, 1993. p. 94. (102) REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 11. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 47 convencer o maior número possível de pessoas (sobretudo as que detêm o poder direto ou indireto de produzir normas válidas naquele ordenamento) a reconhecê-lo(103). A lição de Bobbio nos é útil sempre que instados à indicação da fonte formal de um direito qual- quer e denota a preocupação de investigar o sentido do justo, na norma posta. Assim se comportam, com maior ou menor rigor, vários filósofos do direito, inclusive aqueles que privilegiam, no Direito, o seu aspecto formal. Mas há deles que, ao discernirem sobre a legitimidade de um direito qualquer, não parecem inquietar-se com a eterna dicotomia entre Direito e Justiça(104). Cabe recordar que Hans Kelsen, o mais festejado expoente do positivismo jurídico, concebia a teoria pura do direito sem qualquer susceptibilidade, ao explicar a norma jurídica, a juízos de valor subjetivo(105). Não lhe interessava, ao delimitar o universo de conhecimento a que haveria de se dedi- car a ciência jurídica, indagar quais as fontes materiais do direito ou, em suas palavras, aquelas que “influenciam a função criadora e a função aplicadora do Direito, tais como, especialmente, os princípios morais e políticos, as teorias jurídicas, pareceres de especialistas e outros”(106). Kelsen argumentava, por isso, que “só costuma designar-se como fonte o fundamento de vali- dade jurídico-positivo de uma norma jurídica, quer dizer, a norma jurídica positiva do escalão superior que regula a sua produção. Neste sentido, a Constituição é a fonte das normas gerais produzidas por via legislativa ou consuetudinária; e uma norma geral é a fonte da decisão judicial que a aplica e que é representada por uma norma individual”. Concluía: “Num sentido jurídico-positivo, fonte do Direito só pode ser o Direito”(107). Como observa Maria Helena Diniz(108), “a teoria kelseniana, por postular a pureza metódica da ciência jurídica, libera-a da análise de aspectos fáticos, teleológicos, morais ou políticos que, porventura, estejam ligados ao direito”. Esse aparente desprezo às fontes materiais do direito se reduz, porém, na mesma medida em que se acentua a crítica ao purismo sugerido pelos positivistas. Não se pode esquecer que o Direito pressupõe uma fonte material e uma fonte formal, aquela assegurando a legitimidade desta. Os apli- cadores do Direito, inclusive do direito laboral, esforçam-se por aplicar o melhor direito e por vezes se esquecem de examinar a afinidade deste com sua fonte material. O mau-vezo é, aliás, diagnosticado por Roberto Lyra Filho, litteris: As fontes materiais do Direito são esquecidas, no instante mesmo em que intervêm as formais e se constitui o marco normativo, para servir como dogma. O espírito legalista ou, mais amplamente, normativista, ao admitir outras fontes formais da mesma origem social, esquece que as fontes materiais continuam funcionando, na dialética jurídica, para validar ou invalidar cada preceituação em devenir(109). Por seu canto, o laboralista Tarso Genro proscreve o “velho fetiche da legitimidade, tomada no seu sentido jurídico e filosófico burguês”, na concepção do Estado, inclusive do Estado socialista. O autor enumera as razões que o fazem seguro de seu ponto de vista, a saber: Em primeiro lugar, a validade ou invalidade de cada manifestação normativa não surge da legitimidade do poder que a emite, já que também a autoridade legítima prescreve normas e sanções injustas e que se chocam com a emergência do novo, pois ‘as fontes materiais continuam funcionando’[...]. Em segundo lugar, a legitimidade não é a medida do Direito justo, mas sua exteriorização numa conjuntura histórica determinada, que está sob pressão permanente da realidade histórica de onde emanam as fontes materiais. O Direito pode (103) BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 15. Sem grifo no original. (104) Por exemplo, cabe lembrar, no ponto extremo dessa visão formalista do Direito, a acepção purista que emprestou Kelsen ao princípio (que intitula princípio da legitimidade) de que a norma de uma ordem jurídica “é válida até a sua validade terminar por um modo determi- nado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade de uma outra norma desta ordem jurídica” (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 233). (105) O juízo de valor objetivo, segundo Kelsen, consistia, simplesmente, na relação de conformidade ou desconformidade entre uma conduta humana e uma norma considerada objetivamente válida. (106) Op. cit., p. 259. (107) Op. cit., p. 259. (108) DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 278. (109) LYRA FILHO, Roberto. Para um Direito sem Dogmas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1980. p. 38. 48 – Augusto César Leite de Carvalho proceder de autoridade legítima e se opor às fontes materiais [...], perdendo a validade pela sua ineficácia social ou por exteriorizar injustiça flagrante [...](110) Bem se vê a importância do tema. E ainda que não se imagine o Direito como um fenômeno social objetivo(111), mas como objeto – perfeitamente delimitado – da ciência jurídica, decerto que não será menor a relevância das fontes materiais, bastando lembrar, de par com o art. 5o da Lei n. de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Tem pertinência, por derradeiro, o art. 1o da Constituição, quando diz serem a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho fundamentos do Estado Democrático de Direito, rematando o art. 3o, I, da mesma Carta Política, que se constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Identificados, assim, os fundamentos e objetivos do Estado brasileiro, carece de validade a norma de escalão inferior que irromper contra esse desafio nacional. Tratemos, em seguida, das fontes formais do direito do trabalho, dadas as peculiaridades a ele inerentes. Compreender o modo muito especial como se exterioriza a norma trabalhista é fundamental ao nosso estudo. 4.2.1 As fontes formais do direito do trabalho Move-nos a lei do menor esforço quando dizemos serem a lei e outras espécies normativas fontes formais do direito. Usando a metáfora de Du Pasquier, corrige-nos Maria Helena Diniz(112) quando afirma que assim como a fonte de um rio não é a água que brota do manancial, mas é o próprio manancial, a lei não representa a origem, porém o resultado da atividade legislativa. Continuaremos, porém, a fazer (pouco) caso desse equívoco semântico, por entendermos que do novo significado já se apropriou a linguagem técnica. Continua elucidativa a classificação das fontes formais proposta, faz muito tempo, por Orlando Gomes e Elson Gottschalk(113), que subdividem as fontes formais do direito do trabalho em quatro cate- gorias, quais sejam: • fontes de produção estatal; • fontes de produção autônoma (ou profissional); • fontes de produção mista; • fontes de produção internacional. 4.2.1.1 Fontes de produção estatal Fonte de produção estatal é a Constituição, sobremodo a que enumera direitos sociais, pres- crevendo-os. As cartas constitucionais assim operam desde a Constituição do México de 1917 e a de Weimar, editada na Alemanha em 1919(114), havendo marcante influência da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948. Desde então, observa Bobbio: Todas as declarações recentes dos direitos do homem compreendem, além dos direi- tos individuais tradicionais, que consistem em liberdades, também os chamados direitos sociais, que consistem em poderes. Os primeiros exigem da parte dos outros (incluídos aqui os órgãos públicos) obrigações puramente negativas, que implicam a abstenção de determinados comportamentos; os segundos só podem ser realizados se for imposto a outros (incluídos os órgãos públicos) um certo número de obrigações positivas. (110) GENRO, Tarso Fernando. Introdução Crítica ao Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988. p. 50. (111) Em que a norma é inferida das relações preexistentes e pode ser um sintoma de relações que vão nascer. É uma visão oposta à daqueles que reduzem o direito à norma legal. (112) Op. cit., p. 284. (113) GOMES, Orlando, GOTTSCHALK, Élson. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 39. (114) Embora a doutrina se refira, normalmente, à Constituição de Weimar, é certo que a Constituição de Querétaro, no México, continha capítulo dos direitos sociais e surgiu em 1917, dois anos antes. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 49 Também são fontes formais, de produção estatal, as leis, regulamentos ou qualquer outra espécie normativa que provenha do Estado. Todas elas são fontes heterônomas (não autônomas), dado que elaboradas e postas a viger por terceiro (o Estado), não integrante da relação de trabalho. É tempo de perceber que todas as fontes formais de produção estatal não se encarregam de esgotar a proteção ao empregado, não a exaurem; garantem, em vez disso, um conteúdo mínimo ao contrato de trabalho, em atenção à dignidade do trabalhador. A cláusula contratual pode assegurar mais, nunca menos, que a previsão legal. 4.2.1.2 Fontes de produção autônoma Fontes de produção autônoma são as convenções coletivas de trabalho, os acordos coletivos de trabalho e os regulamentos de empresa. Foi malsucedida a tentativa de incluir, nesse rol, os “contratos coletivos”, pois a lei que previa essa nova modalidade de fonte jurídica foi revogada(115). As fontes de produção autônoma destacam-se pela característica de serem elaboradas pelos próprios interessados na normatização do vínculo de trabalho, ou seja, pelo empregador e pelos empre- gados, estes sempre representados pela sua entidade sindical. A nosso pensamento, e não obstante o papel secundário que lhes é atribuído por alguns doutrina- dores de reputação merecida(116), as fontes de produção profissional ou autônoma(117) se apresentam como o mecanismo que revelaria maior aptidão a tornar efetiva a proteção ao trabalho e ao mercado de trabalho, pela possibilidade que dão aos próprios atores sociais de adaptar a regra jurídica, sem prejuízo da garantia mínima já referida, a novas realidades ou condições de trabalho, surgidas como corolário das mutações econômicas ou inovações tecnológicas que movimentam o nosso cotidiano. É pena que se desvirtue, por vezes, essa função das normas coletivas, preconizando-se o seu uso como um instrumento de redução de direitos trabalhistas indisponíveis. A convenção coletiva de trabalho nasceu como forma de os trabalhadores, organizados em torno do sindicato que defendia os seus interesses, obterem condições de trabalho que o Estado, por inércia, não lhes estava a assegurar. O acordo coletivo de trabalho surgiu posteriormente, distinguindo-se da convenção pelo fato de apenas o sindicato obreiro participar de sua elaboração, do outro lado se apre- sentando o(s) empregador(es). Na convenção coletiva de trabalho, também o empregador está repre- sentado pelo sindicato da categoria econômica, de que é membro. Voltaremos ao assunto quando tratarmos, no próximo capítulo, do princípio da autodeterminação coletiva. O regulamento de empresa é, da empresa, o estatuto. No uso de seu poder de organização, em que está investido por ser o titular da empresa, o empregador estrutura a sua unidade produtiva, instituindo a divisão de trabalho que lhe apraz. O poder de dirigir a empresa é inerente ao capitalismo, em qualquer de suas formas, não se podendo olvidar, neste passo, o prestígio que a ordem jurídica liberal confere ao direito de propriedade – ocorre, porém, e sobretudo em alguns países mais maduros na experiência de os trabalhadores participarem da gestão da empresa, de também os empregados contribuírem na elaboração do regulamento de empresa. São exemplos de regulamentos de empresa os planos de cargos e salários e os quadros de carreira que disciplinam as relações trabalhistas em inúmeras organizações empresariais. 4.2.1.3 Fonte de produção mista Fonte de produção mista é a sentença normativa, que ultima os processos coletivos (a Constitui- ção e a CLT os denominam dissídios coletivos) instaurados quando é malsucedida a negociação direta entre sindicato profissional e o empregador ou sua representação sindical. Também aqui se diferencia (115) A tentativa de incluir, entre as fontes formais autônomas, os contratos coletivos, fora encetada mediante a alusão dessa nova figura – que teria âmbito nacional e estimularia a negociação contínua das condições de trabalho – na Lei n. 8542/92, por gestões do laboralista João de Lima Teixeira Filho. Mas malogrou, sendo finalmente derrogados os dispositivos, que tratavam do citado contrato coletivo, pela Medida Provisória 1540-31/97. (116) Cf. GOMES e GOTTSCHALK, op. cit., p. 49. (117) Segundo classificação proposta por Kelsen, as fontes autônomas são elaboradas pelos próprios destinatários e por isso se distinguem das fontes de produção heterônoma. 50 – Augusto César Leite de Carvalho o direito laboral, em vista do poder normativo assegurado à Justiça do Trabalho pelo artigo 114, §2o, da Constituição. Toda negociação coletiva está, em princípio, vocacionada a resultar na celebração de uma convenção ou de um acordo coletivo de trabalho. O sistema jurídico sempre permitiu que, frustrada essa tendência natural à composição, pudesse ser instaurado o dissídio coletivo a fim de a Justiça do Trabalho proferir uma sentença normativa, ou seja, uma decisão judicial que se reveste de uma peculiaridade extraordinária: a de produzir norma jurídica. Normalmente, as decisões judiciais apenas exigem o cumprimento de normas preexistentes, não criando outras normas jurídicas. Contudo, após a edição da Emenda Constitucional n. 45/2004, o citado artigo 114, §2º da Cons- tituição passou a exigir, para a instauração do dissídio coletivo, a existência de “comum acordo”. Vale dizer, o dissídio coletivo somente pode iniciar-se nos casos em que a Justiça do Trabalho for provocada por ambos os polos da relação conflituosa: empregados (necessariamente pelo sindicato respectivo) e empregador(es). Ressalvou-se apenas a hipótese de “greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público”, quando o Ministério Público pode ajuizar o dissídio coletivo (art. 114, §3o da Constituição). Na prática, a exigência de comum acordo entre as partes desavindas tem propiciado a agonia do dissídio coletivo e, por extensão, da sentença normativa que a ele sobreviria. Decerto assim sucede porque é de nossa tradição que se ajuízem processos judiciais apenas quando o esforço da negocia- ção já fora levada ao extremo, acirrando-se o conflito e a essa altura se inviabilizando que os conten- dores elejam, como cavaleiros medievais, o palco do duelo que gostariam de protagonizar. O Tribunal Superior do Trabalho tem contemporizado o rigor da nova regra, ao afirmar que o comum acordo é exigível para a instauração do dissídio coletivo de natureza econômica (em que as condições de trabalho e salário são revistas), não se o exigindo para dissídios coletivos de natureza jurídica (nos quais se questiona a interpretação de normas coletivas preexistentes). 4.2.1.4 Fontes de produção internacional Fontes de produção internacional são sobretudo os tratados referidos pelo art. 5o, §2o, da Constitui- ção, a saber: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes [...] dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Esses tratados interna- cionais podem se inserir em nossa ordem jurídica, convertendo-se em norma, quando o Brasil é deles signatário ou, em se tratando de convenção internacional, a conversão em norma jurídica ocorre quando o país ratifica a convenção a ele submetida por organismo supranacional. Assim se dá, especialmente, com as convenções da Organização Internacional do Trabalho, que ganham força normativa quando ratificadas pela autoridade competente do Estado-membro – no Brasil, pelo Congresso Nacional, sendo questionada, pela doutrina especializada e em face do que dispõem os artigos 49, I, e 84, VIII, da Cons- tituição, a necessidade de ato de promulgação posterior, pelo Presidente da República. Dois aspectos se afiguram muito relevantes acerca das normas de direito internacional que veiculam conteúdo trabalhista. O primeiro é atinente à inserção pela EC n. 45/2004(118), na Constitui- ção Federal, do art. 5º, §3º, segundo o qual “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quin- tos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. O fato de os direitos trabalhistas se constituírem, regra geral, como direitos sociais – ou seja, direitos humanos de segunda geração(119) – autoriza concluir que teremos convenções da Organização Internacional do Trabalho com eficácia de emenda constitucional. Mesmo em relação a normas internacionais que não se ajustam ao quórum ou à regência temporal da EC n. 45/2004, o Supremo Tribunal Federal lhes tem atribuído o nível de supralegalidade(120). (118) Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004, com eficácia a partir de 2005. (119) Ou direitos humanos de segunda dimensão, para os teóricos que rejeitam classificação que sugira alguma cronologia entre as catego- rias de direitos humanos. Considerando a época em que foram reconhecidos pela ordem jurídica, os direitos humanos de primeira geração seriam os direitos de liberdade; os de segunda geração, os direitos sociais; os de terceira geração, aqueles que contemplam interesses metain- dividuais. (120) Vide STF, RE 466.343-SP. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 51 O segundo aspecto relevante trata, em verdade, do compromisso firmado em 1998 por todos os Países-membros da OIT, inclusive o Brasil, de “respeitar, promover e realizar, de boa-fé” os princípios relativos aos direitos fundamentais no trabalho. Conforme se extrai da página oficial da OIT(121), esses princípios fundamentais são “a liberdade de associação e o reconhecimento efectivo do direito de negociação colectiva, a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, a abolição efectiva do trabalho infantil e a eliminação da discriminação em matéria de emprego e de profissão”. O que mais importa, segundo a mesma fonte: “Esta Declaração relativa aos direitos fundamentais no trabalho sublinha que todos os Estados-Membros têm a obrigação de respeitar os princípios funda- mentais nela consagrados, quer tenham ou não ratificado as convenções da OIT correspondentes”. Das oito convenções fundamentais da OIT – as quais tratam dos temas acima referidos – o Brasil não ratificou apenas a Convenção n. 87, que consagra a liberdade sindical. Essa omissão, embora se explique pelas razões de que tratamos nos capítulos dedicados à história do direito coletivo e aos princípios regentes da autonomia coletiva, destoa, como visto, do compromisso assumido pelo Brasil em 1998 de respeitar tal convenção internacional independentemente de ratificá-la. Assinala Luciano Martinez: O exercício pleno da liberdade sindical forma [...] a base de toda a fortaleza do movimento associativista laboral, constituindo, por isso, o pressuposto essencial para o desenvolvimento sustentável do diálogo entre o capital e o trabalho. Diante disso, e por ser a liberdade sindi- cal instituto integrante do amplo continente dos direitos humanos laborais, é que as normas internacionais se ocupam da sua proteção na certeza de que tal atuação favoreceria (como parece ter favorecido) o concerto de trabalhadores para a defesa e a reivindicação de melho- res condições de trabalho e de produção(122). A expectativa de qualquer norma estatal ou profissional é a de atribuir o mesmo ônus financeiro a todos os empresários e assegurar, assim, a cada um deles melhor ou mais equânime condição de competir. Também o Direito Internacional do Trabalho tem como objetivos, como ensina Arnaldo Sussekind(123): [...] por meio de convenções internacionais: a) universalizar as normas de proteção ao trabalho, esteadas nos princípios da justiça social e da dignificação do trabalho humano; b) estabelecer o bem-estar social geral como condição precípua à felicidade humana e à paz mundial; c) evitar que razões de natureza econômica, decorrentes do ônus da proteção ao trabalho, impeçam que todas as nações adotem e apliquem as normas tutelares consubstan- ciadas nos diplomas internacionais. Tal preocupação teve os seus motivos bem ilustrados em reportagem do jornalista Jaime Spitzco- vsku, para o jornal Folha de São Paulo(124): Turnos de mais de 12 horas diárias de trabalho para conseguir alcançar a produtivi- dade exigida. Trabalhar em pé. Cortar, durante o dia e parte da noite, veludo, um tecido grosso, com tesouras e sem usar luvas. O esforço deixa marcas nas mãos. Esse cenário despontava numa fábrica de brinquedos de Xangai, um dos corações industriais da China neocapitalista. O milagre asiático, agora desafiado pela crise financeira, usou como um de seus combustíveis na decolagem a exploração da mão de obra. As principais vítimas são mulheres e crianças. O trabalho infantil também municiou a economia paquistanesa, indiana e de alguns países árabes. Mãos pequenas tecem tapetes com mais destreza, argumentam os fabricantes. Na China, a opção por mão de obra feminina também busca argumentos para sobreviver. As mulheres seriam mais habilidosas para cortar o veludo. Na Tailândia e no Sri Lanka, vi mulheres e crianças vítimas de exploração sexual. São exemplos asiáticos de um problema global. O órgão da OIT que elabora a regulamentação internacional do trabalho é a Conferência Internacio- nal do Trabalho, composta de quatro delegados de cada Estado-membro, sendo dois deles designados (121) http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/html/portugal_visita_guiada_03b_pt.htm (122) MARTINEZ, Luciano. Condutas antissindicais. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 89. (123) SÜSSEKIND, Arnaldo. Instituições de Direito do Trabalho / Arnaldo Sussekind, Délio Maranhão, Segadas Viana. Vol. II. São Paulo: LTr, 1993. p. 1245. (124) Terceiro caderno, p. 9. Edição de 14/abr/1998. 52 – Augusto César Leite de Carvalho pelos respectivos governos, um pelos empregadores e um pelos trabalhadores(125). Existem várias convenções da OIT ratificadas pelo Brasil, entre elas se incluindo as que cuidam da proteção à mater- nidade (Convenção n. 3/1919), da igualdade de tratamento entre estrangeiros e nacionais quando víti- mas de acidentes do trabalho (Convenção n. 19/1925), da eliminação do trabalho forçado (n. 29/1930), da indenização por enfermidade profissional (n. 42/1934), de férias (ns. 52/1936 e 132/1970), da inspe- ção do trabalho na indústria e no comércio (n. 81/1947), da proteção do salário (n. 95/1949), do direito de sindicalização e relações de trabalho na administração pública (n. 151/1978), de segurança e saúde dos trabalhadores (n. 155/1981), da reabilitação profissional e emprego de pessoas com deficiência (n. 159/1983), dos serviços de saúde no trabalho (n. 161/1985), da proibição às piores formas de trabalho infantil (n. 182/1999) etc.(126) Há, por fim, outras normas imperativas de direito internacional, enumeradas, com visível atuali- dade, por Amauri Mascaro Nascimento(127). O autor lembra que, além das convenções internacionais da OIT e dos tratados internacionais – sejam os tratados bilaterais (a exemplo do Tratado Bilateral de Itaipu, em que Brasil e Paraguai regeram as relações surgidas na fronteira de seus territórios, a partir da construção da Usina de Itaipu) ou multilaterais – há ainda as normas comunitárias, que são as normas vigentes para o âmbito de uma comunidade internacional (Comunidade Europeia, Mercosul etc.) e os contratos coletivos internacionais que “resultam das negociações coletivas internacionais, como a convenção coletiva da indústria de automóveis (General Motors – Ford), comum às empresas instaladas no Canadá (Toronto) e Estados Unidos da América (Detroit)”. 4.3 Métodos de integração da norma jurídica A força normativa dos princípios constitucionais e mesmo as cláusulas abertas que facultam ao juiz alguma discricionariedade na proteção dos direitos gerais ou típicos da personalidade têm promo- vido, na ordem jurídica, uma clara reorientação no tocante à antiga regra de só poder o magistrado julgar conduta ou apreciar fato jurídico que esteja descrito ou regulado em texto de lei stricto sensu. Não se trata, obviamente, de autorizar o juiz a decidir em detrimento do que prescreve a lei, mas sim de abrir o sistema jurídico à normatividade de preceitos constitucionais ou legais que, sem descre- verem condutas, veiculam a preeminência de valores morais cuja inderrogabilidade confere identidade e coerência ao ordenamento jurídico. A liberdade de decidir com base nos postulados da dignidade da pessoa humana ou da não discriminação não daria respaldo, por exemplo, a decisão judicial que atribuísse a esses princípios constitucionais um significado diferente daquele que lhe fora dado pelo legislador (se a lei estabelece um tratamento desigual para certo suporte fático denotativo de desigualdade, o julgador haverá de respeitar esse elemento legal de discriminação). O espaço de interlocução política continua reservado ao Poder Legislativo, sendo-lhe vedada apenas a elaboração de leis que se revelem indiferentes às normas abertas da Constituição, ou que deliberadamente as vulnere. É fato, porém, que muitas leis infraconstitucionais foram editadas quando ainda não se cogitava, no Brasil, de um texto constitucional garantista, menos ainda de uma legislação de direito civil que se deixasse permear pela proteção geral dos direitos da personalidade, típicos ou atípicos. Por isso, tais leis devem ser interpretadas com parcimônia, porquanto ainda se ressentem de algum exagero na exigência de que se observe o princípio da legalidade, aqui compreendido como a vedação a qualquer veredicto judicial cuja fórmula não corresponda, stricto sensu, a algum raciocínio lógico antes desen- volvido pelo legislador ordinário. O art. 126 do CPC de 1973 continha norma não mais repetida no CPC de 2015, pois reiterava o que está previsto no art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro a propósito de o (125) Cf. Sussekind, op. cit., p. 1261. A Conferência Internacional do Trabalho também elabora as recomendações – que se distinguem das convenções porque somente estas são submetidas à ratificação pelos Estados-membros, enquanto as recomendações são submetidas à autoridade competente para que esta tenha a iniciativa de propor legislação sobre a matéria – e elabora, enfim, as resoluções, que tratam de matéria não inserida na ordem do dia da CIT e, por isso, sujeitas à maioria simples, enquanto as convenções e recomendações dependem de maioria de dois terços dos presentes, em votação dupla (p. 1270). Os outros órgãos da OIT são o Conselho de Administração e a Repartição Internacional do Trabalho, o primeiro com funções administrativas e esta última consistindo em uma secretaria técnico-administrativa. (126) Vide http://www.oitbrasil.org.br/convention (127) NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 70. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 53 juiz recorrer, subsidiariamente, ou como métodos de integração da norma jurídica, à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. Os dois códigos enfatizam, porém, que “o juiz só deci- dirá por equidade nos casos previstos em lei”, como vem de ilustrar antigo acórdão do Supremo Tribunal Federal(128): Não pode o juiz, sob a alegação de que a aplicação do texto da lei à hipótese não se harmoniza com o seu sentido de justiça ou equidade, substituir-se ao legislador para formular ele próprio a regra de direito aplicável. Mitigue o juiz o rigor da lei, aplique-a com equidade e equanimidade, mas não a substitua pelo seu critério. Os métodos de integração da norma trabalhista, referidos pelo art. 8o da CLT, estão em quanti- dade mais expressiva, verbis: As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. 4.3.1 A jurisprudência como fonte subsidiária Quanto à jurisprudência, a tradição jurídica não a tinha, aprioristicamente, como fonte formal de direito, porquanto não se revestisse ela de força normativa ao sinalizar a orientação predominante dos órgãos de jurisdição, juízes e tribunais, na interpretação e aplicação do direito positivo. Ao que aqui nos interessa, a palavra jurisprudência indica o pensamento médio dos órgãos de jurisdição que pode ser inferido à consulta dos precedentes judiciais(129). Diversamente do que sucedia nos países adeptos da técnica stare decisis, historicamente afinada com o sistema common law – no qual os precedentes judiciais devem ser seguidos pelos juízes que apreciarem, após o leading case, matéria semelhante –, no Brasil a jurisprudência, ao menos até advir o CPC de 2015, não possuía efeito vinculante sequer para os juízes, por mais que tal aspecto promovesse alguma perplexidade no meio social. Sacrificava-se a expectativa de coerência sistêmica, bem assim a segurança jurídica e a igualdade de tratamento em proveito da autonomia funcional dos julgadores, valor igualmente correlacionado à confiança na atuação jurisdicional. E por que o art. 8º da CLT ainda se refere à jurisprudência como fonte formal de direito? A expli- cação é, em rigor, histórica: a ensinamento de Evaristo de Moraes Filho(130), o artigo 902 da CLT, atual- mente derrogado, “facultava ao TST estabelecer prejulgados com força vinculativa e compulsória, in abstracto, obrigando a todas as instâncias inferiores investidas da jurisdição da Justiça do Trabalho”. O nominado professor desde sempre sustentara a inconstitucionalidade do tal dispositivo consolidado, por entender que o mesmo ensejava verdadeira ditadura do judiciário. Essa inconstitucionalidade fora afinal reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, sendo vitorioso, nesse sentido, o voto do Ministro Xavier de Albuquerque. Apesar disso, há ao menos três razões para que consideremos a possibilidade de estarmos a assis- tir uma reaproximação ao antigo modelo hermenêutico, no qual era maior o prestígio da jurisprudência e não se vislumbrava, nessa premissa, qualquer laivo de despotismo judicial: primeiro, o advento de súmulas do STF com efeito vinculante e, por igual, o advento de decisões do mesmo STF ou em proces- sos coletivos revestidas de efeito erga omnes contaminam, definitivamente, a universalidade da regra segundo a qual a decisão judicial vincularia apenas as partes da relação processual; segundo, basta ler os artigos 894 e 896 da CLT para se inferir a possibilidade de os recursos interpostos perante o TST serem trancados pela singela razão de a decisão recorrida estar em consonância com enunciado da Súmula de Jurisprudência Uniforme do Tribunal Superior do Trabalho; terceiro, a Lei n. 13.015, de 2014, instituiu um inovador sistema recursal em que os tribunais regionais e o TST decidirão as matérias repe- titivas uma só vez e com afetação a outros processos que tratem do mesmo tema. É tão evidente o propósito de internalizar a experiência dos países que adotam o common law, notadamente no que toca à força persuasiva da jurisprudência já consolidada pelos tribunais, que a Lei n. 13.015/2014 contempla a retratação dos tribunais regionais após a matéria repetitiva ser apreciada (128) Ac da 1a T., RE 93.701-3-MG, de 24.9.85, Rel. Min. Oscar Corrêa, RBDP 50/159. (129) O vocábulo tem outro sentido, que aqui não nos interessa, quando significa – ainda há quem assim se refira – a ciência jurídica. (130) MORAES FILHO, Evaristo; MORAES, Antonio Carlos Flores de. Introdução ao Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1991. p. 144. 54 – Augusto César Leite de Carvalho por seu órgão de uniformização ou pelo TST(131) e, prenunciando o que estava por vir no novo CPC, os §§16 e 17 do art. 896-C da CLT consagram agora as técnicas do distinguishing e do prospective over- ruling, ou seja, a permissão para os juízes desconsiderarem os precedentes quando o contexto factual ou jurídico destoar do caso-líder(132) e a faculdade de o TST modular, no tempo, os efeitos da súmula de sua jurisprudência(133). É certo que essas técnicas não estariam afinadas com o sistema tradicional (civil law) de aplicação das normas, no Direito brasileiro. Inegável, portanto, a importância sempre crescente da jurisprudência na compreensão e aplica- ção da ordem jurídica, o bastante para que se possa, ao menos no plano teórico, relativizar a antiga parêmia segundo a qual os precedentes judiciais não passariam de mera orientação para os intérpre- tes do Direito. Há uma movimentação contínua das leis processuais na direção de emprestar maior segurança jurídica por meio do respeito, ou caráter vinculativo, da jurisprudência assente nos tribunais. 4.3.2 A analogia A analogia consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante. Os tribunais trabalhistas, por exemplo, têm aplicado aos digitadores, por analogia, a regra relativa a intervalos em meio à jornada de trabalho, instituída pelo art. 72 da CLT em benefício dos mecanógrafos – o computador não compunha a realidade do legislador, quando incluído o tal preceito no texto consolidado. A Súmula n. 346 do TST findou por consolidar tal entendimento. 4.3.3 Equidade e outros princípios Refere-se ainda o art. 8o da CLT à equidade e outros princípios e normas gerais de direito, princi- palmente do direito do trabalho. Em princípio, a equidade estaria arrolada entre os princípios gerais de direito, sendo certo que tanto aquela palavra como esta expressão têm significado de difícil apreensão, em boa doutrina. Carlos Maximiliano(134), sobre a equidade e remetendo às lições de Aristóteles, diz ser ela: [...] a mitigação da lei escrita por circunstâncias que ocorrem em relação às pessoas, ao lugar e aos tempos; no parecer de Wolfio, uma virtude, que nos ensina a dar a outrem aquilo que só imperfeitamente lhe é devido; no dizer de Grocio, uma virtude corretiva do silêncio da lei por causa da generalidade das suas palavras. A equidade judiciária compele os juízes, no silêncio, dúvida ou obscuridade das leis escritas, a submeterem-se por um modo esclarecido à vontade suprema da lei, para não cometerem em nome dela injustiças que não deshonram (sic) senão os seus executores. A sua utilidade decorre dos inconvenientes que acarretaria a aplicação estrita dos textos. A frase – summum jus, summa injuria – encerra o conceito de Equidade. Mas a equidade nem sempre tem o caráter apenas integrativo (servindo à norma que existe, mas é demasiadamente genérica, precisando ter o seu campo de incidência ou efeitos jurídicos mais bem delimitados) ou o interpretativo (quando serve à definição de conteúdo da norma preexistente), uma vez que também se fala da equidade substitutiva, quando o juiz estabelece uma regra que supre a falta de uma norma legislativa. A lição é de Bobbio(135), para quem juízo de equidade é aquele “que não aplica normas jurídicas positivas (legislativas e, podemos até acrescentar, consuetudinárias) preexistentes. No juízo de equidade, o juiz decide segundo sua consciência ou com base no próprio sentimento de justiça”. Percebe-se que a noção de sentimento de justiça está agregada ao conceito de equidade, vários teóricos assim se posicionando. Em verdade, o conceito de equidade é difuso, como o é, por (131) Art. 896-C, §11, II da CLT. (132) Art. 896-C, § 16 – A decisão firmada em recurso repetitivo não será aplicada aos casos em que se demonstrar que a situação de fato ou de direito é distinta das presentes no processo julgado sob o rito dos recursos repetitivos. (133) Art. 896-C, § 17 – Caberá revisão da decisão firmada em julgamento de recursos repetitivos quando se alterar a situação econômica, social ou jurídica, caso em que será respeitada a segurança jurídica das relações firmadas sob a égide da decisão anterior, podendo o Tribu- nal Superior do Trabalho modular os efeitos da decisão que a tenha alterado. (134) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1947. p. 212. (135) BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 171. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 55 igual, a compreensão do que vêm a ser os princípios gerais de direito. Não são poucos os estudiosos que os associam aos direitos inerentes à natureza humana, atraindo assim, via reflexa, toda a crítica por vezes direcionada aos jusnaturalistas. A tendência positivista dos que interpretam ou aplicam o direito do trabalho, inclusive no Brasil, tem induzido a doutrina a orientar que o juiz deve decidir com equidade, e não por equidade. Mas há que se ressalvar a jurisdição normativa, quando os tribunais se utilizam da equidade (não há direito preexistente) como fonte de direito, na solução dos conflitos coletivos do trabalho. A existência dos princípios especiais do direito do trabalho, citados pelo artigo 8o da CLT, denun- cia a autonomia do direito do trabalho. Mas desses princípios trataremos em capítulo à parte, dada a influência de seu estudo nas etapas seguintes do nosso curso. 4.3.4 Usos e costumes O dispositivo consolidado se reporta ainda aos usos e costumes. Não há, entre estes e aque- les, sinonímia perfeita. O uso é a conduta habitual no âmbito de uma relação intersubjetiva, é o comportamento do empregador em relação a seu empregado. O costume, ensina Mauricio Godinho Delgado(136), é “a prática habitual concernente a determinada empresa, categoria, região etc., firmando uma norma de comportamento geral, impessoal, aplicável ad futurum a todos os trabalhadores integra- dos no mesmo inclusivo contexto”. “Por essa razão”, prossegue o professor e magistrado das Minas Gerais, “é que a legislação comum, elaborada com técnica jurídico-doutrinária mais precisa que a seguida pela CLT, aponta refe- rência exclusiva a costumes como fonte normativa auxiliar, silenciando sobre os usos”. No Brasil, o uso é conotativo de ajuste tácito. Por isso e na forma dos artigos 444 e 468 da CLT, o uso obriga o empregador, que não pode alterar os hábitos que incute ou estimula no empregado, se tal alteração das condições de trabalho implicar prejuízo para este. O empregador que usa forne- cer utilidades alimentícias como incremento ao salário, inova gratificação e a paga habitualmente ao empregado sem que lei o exija, ou mesmo estabelece jornada menor que a prevista em lei confere caráter contratual a esses usos e não os pode suprimir ou alterar unilateralmente. O costume se apresenta como norma geral, sem relação com vínculo específico de trabalho. Contempla, portanto, uma coletividade de pessoas que se habituaram a comportar-se de determinada maneira, incorporando as consequências econômicas desse agir em seu patrimônio jurídico. Não raro, o conteúdo da norma consuetudinária passa a compor o direito escrito num segundo momento, nota- damente quando os interlocutores sociais – de um país como o nosso – não resistem à influência de sua índole positivista e transferem o costume à fluidez das normas coletivas, sempre permeáveis à incorporação de novas conquistas obreiras. A norma consuetudinária se transmuda em norma conven- cional. Ideal ou praticamente, é interessante que assim suceda. Isso ocorreu, por exemplo, quando da inserção em convenções coletivas e mesmo em lei fede- ral das gratificações semestrais e natalinas, valendo lembrar, aqui e também, passagem da obra de Amauri Mascaro Nascimento(137): Um sentimento moral de praticar o bem levou Leclaire, industrial da França, em Paris, no ano de 1827, a reunir os seus operários, na fábrica de sua propriedade, e distribuir-lhes o dinheiro de uma sacola, proveniente dos resultados do empreendimento durante o ano. Desse modo resultou a prática da participação dos empregados nos lucros da empresa. 4.3.5 Direito comparado O artigo 8o da CLT refere, enfim, o direito comparado que seria, segundo Carlos Maximiliano, o processo sistemático (de interpretação da norma) levado às suas últimas consequências naturais e lógicas. Ensina, em remate, o prestigiado hermeneuta: (136) Op. cit. p. 103. (137) Op. cit. p. 196. 56 – Augusto César Leite de Carvalho Efetivamente, deve confrontar-se o texto sujeito a exame com os restantes, da mesma lei ou de leis congêneres, isto é, com as disposições relativas ao assunto, quer se encontrem no Direito Nacional, quer no estrangeiro... Pouco a pouco se foi universalizando, quanto ao Direito, a cultura humana; de um estudo particularista, de fronteiras limitadas, âmbito restrito, passou-se a uma vista de conjunto, ampla, de horizontes vastíssimos(138). Já tratamos desse assunto quando mencionamos as fontes de produção internacional e ao estudo delas remetemos o nosso interlocutor. Cabe ressaltar, porém, que não têm relevância, no processo sistemático acima definido, apenas as normas elaboradas pelos organismos internacionais para apli- cação nos Estados-membros, entre eles o Brasil. Interessam, agora, as normas que disciplinam as relações de trabalho em outros países, na verificação do alcance e sentido da norma trabalhista a viger em nosso território. 4.3.6 Prevalência do interesse público ou do interesse coletivo Em seguida, reza o citado preceito consolidado que a norma ou princípio trabalhista será aplicado sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. O interesse do empregado é, o mais das vezes, o interesse dos seus colegas de trabalho na mesma empresa, podendo extrapolar o diâmetro empresarial e se apresentar como o interesse de toda uma categoria profissional. A informatização do trabalho, especialmente o teletrabalho (que se desenvolve em domicílio ou em home-offices, por meio de uma conexão virtual ou telemática a um computador central, normalmente instalado na sede da empresa), tem contribuído para afastar o empregado de seus pares e, nessa medida, o sentimento de solidariedade social que fez surgir o direito do trabalho como um direito de conquista. Todavia, enquanto o vínculo de emprego existir predominantemente em estabelecimentos empresariais, é necessário que se perceba a prevalência do interesse público sobre o interesse individual, numa gradu- ação em que o interesse transindividual, social ou coletivo, ocupa o degrau intermediário. Seria a hipótese de se perguntar: essa regra implicaria sobrepor o interesse na manutenção da empresa industrial ao interesse individual do trabalhador, quando este quer manter condições de traba- lho incompatíveis com a automação da fábrica, necessária à manutenção desta no mercado compe- titivo? Intuímos que sim, mas não há regra absoluta. Para nós, o limite seria o da razoabilidade e, num plano concreto, tornar-se-ia impossível, sempre, a subtração dos direitos sociais assegurados ao trabalhador pela Carta Política da União. 4.3.7 Direito civil como fonte subsidiária Na sequência, o parágrafo único do art. 8o da CLT prevê que o direito comum será fonte subsidi- ária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste. Portanto, a aplicação do direito civil somente será possível quando for omissa a norma trabalhista e houver compatibilidade com os princípios fundamentais do direito do trabalho. A compatibilidade exigida para a subsidiariedade da norma civil certamente deverá existir em relação ao princípio da proteção, sobretudo com este. Possível, pois, é a aplicação subsidiária da norma de direito civil que está a reger um contrato de adesão, mas muito difícil será essa subsidiariedade quando o direito comum ou civil estiver a regular um contrato paritário. A bem dizer, a subsidiariedade do direito civil era vista com muita reserva, dado que o antigo Código Civil de 1916 revelava-se exacerbadamente formalista, desprestigiando as causas e a boa-fé objetiva subjacente aos contratos, além de ser lacônico quanto à proteção dos direitos da personalidade. O atual Código Civil, editado em 2002, mudou inteiramente esse cenário, pois os seus artigos 421 e 422 estabelecem que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” e que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Outros vários dispositivos estão afinados com esse novo horizonte jurídico, a exemplo daquele que invalida o contrato cuja causa determinante e (138) Op. cit. p. 164. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 57 comum às partes for ilícita (art. 166, II), do que universaliza o princípio da primazia da realidade sobre a forma dos contratos (art. 167), faz imprescritível o efeito da nulidade (art. 169) ou autoriza a resolução do contrato em consequência de tornar-se excessivamente oneroso para uma das partes (art. 478). Por sua vez, o artigo 11 proclama que, salvo exceções legais, “os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. A doutrina tem enfatizado que há um direito geral da personalidade a contemplar todas as condições necessárias à realização dos atos da vida civil, porquanto só está apto a protagonizá-los aquele que está plenamente investido dos direitos à vida, à liberdade, à preservação de sua integridade física, imagem, nome e inti- midade. E que o caráter irrenunciável desses direitos da personalidade os pressupõe inatos ao homem e os faz, por igual, absolutos, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis, inexpropriáveis e vitalícios. Como a Constituição assegura a reparação por danos extrapatrimoniais ou morais, inclusive se impingidos aos trabalhadores, e as mudanças no art. 114 da Constituição, advindas com a EC n. 45/2004, ampliaram a competência da Justiça do Trabalho para que fosse indiscutivelmente dela a tarefa de apreciar as lesões aos direitos da personalidade ocorridas no ambiente de trabalho, conclui- -se que a subsidiariedade do direito civil, antes vista com desconfiança, atualmente está a enriquecer o direito do trabalho com novas perspectivas que elevam sobremodo o patamar civilizatório no qual se devem situar os sujeitos da relação laboral. São muitos os processos judiciais que remetem a dispo- sitivos do Código Civil com vistas à solução de conflitos atinentes à interpretação dos contratos ou à realização dos direitos da personalidade, matérias não regidas pela legislação trabalhista. 4.3.8 Direito ambiental como fonte supletiva Embora o artigo 8º da CLT seja de um tempo em que não se havia amadurecido quanto à impor- tância das questões ambientais, impulsionadas somente a partir da Declaração de Estocolmo de 1972, é certo que a Constituição estende ao meio ambiente de trabalho a proteção que assegura, em seu artigo 225, ao meio ambiente em geral. A combinação dos seus artigos 200, VIII e 225 resulta no direito fundamental a um meio ambiente de trabalho ecologicamente equilibrado. Nada há de propriamente extraordinário nessa ampliação da ordem jurídico-trabalhista, ante a constatação, preconizada por jusambientalistas e teóricos do direito constitucional, acerca da ubiqui- dade dos princípios regentes do direito ambiental. Têm caráter transversal, ressonando em todos os ramos da ciência jurídica, os postulados da sustentabilidade, da colaboração, da proteção e da precau- ção, bem assim o princípio poluidor-pagador. Ilustrativamente, pois não cabe exaurir o tema nesta parte propedêutica de nosso curso (voltare- mos ao tema no capítulo que tratará da perspectiva existencial do direito do trabalho), vale lembrar que o desenvolvimento econômico deve respeitar os limites impostos pela exigência de vida, saúde e digni- dade dos trabalhadores para fazer-se sustentável, afinando-se com esse princípio da sustentabilidade o artigo 170 da Constituição: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Também não se pode permitir que subsista atividade econômica sem o cumprimento das medi- das de prevenção contra o adoecimento funcional ou o acidente de trabalho típico, cabendo sempre a exigência de proteção contra os riscos conhecidos e de precaução quanto aos riscos prováveis. A incidência dos princípios do direito ambiental não mais permite que se prestigie apenas a monetização dos danos ao ambiente de trabalho, pagando-se, por exemplo, adicional de insalubridade enquanto se assiste, passivamente, à sujeição do empregado a condições de trabalho nocivas à sua saúde e à intangibilidade de seu direito à vida, acima dos limites de tolerância. O princípio do poluidor-pagador impede, ademais, que se exonere o empregador da sua obriga- ção de prevenir ou reparar a lesão ao empregado a pretexto de ser elevado o custo de tal prevenção ou indenização. Quem polui, paga. Não se justifica a atividade produtiva que serve ao aviltamento da condição humana. 4.4 Eficácia da norma trabalhista no tempo e no espaço Dir-se-ia, ab initio, que a norma trabalhista tem eficácia imediata e é vigente nos contratos executados em território nacional. Estudemos, porém, uma e outra regra, separadamente, inclusive 58 – Augusto César Leite de Carvalho porque regidas por ramos distintos da ciência jurídica. Como lembra Estêvão Mallet(139), os conflitos entre leis no tempo constituem objeto do direito intertemporal ou transitório, enquanto os conflitos no espaço são tratados pelo direito internacional privado. 4.4.1 Eficácia da norma trabalhista no tempo A propósito da eficácia da norma trabalhista no tempo, cabe recordar que à norma jurídica é vedado o efeito da retroação, ou seja, a possibilidade de alcançar situações jurídicas consolidadas sob a regência de norma anterior. O art. 5o, XXXVI, da Constituição, estatui que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, sendo esta, não há dúvida, a melhor expres- são do princípio da irretroatividade (relativizado pelo Direito Penal, é verdade, quando a nova lei surge para beneficiar o réu – art. 5o, XL, da Constituição). Mas é imperioso não confundir retroatividade com efeito imediato. Imaginemos, pois, uma relação jurídica que fora constituída por contrato, sob o império de certa lei. Em princípio, a nova lei não pode- ria retroagir para incidir sobre relação constituída por ato jurídico aperfeiçoado antes de sua vigência. Contudo, o contrato de emprego é de trato sucessivo e, por isso, tal relação jurídica se protrai no tempo, alternando-se o pagamento do salário e o trabalho em ciclos que se repetem. Se, por hipó- tese, surge uma nova lei que estabelece outros parâmetros (mais favoráveis ao trabalhador) para a composição ou o reajuste de salários, dá-se a aplicação imediata do novo preceito legal, notadamente quando se apresenta este revestido de cogência ou imperatividade – visa-se, nesse passo, à proteção do sujeito ou parte hipossuficiente. Havendo aplicação imediata, a lei nova incidirá apenas quanto aos atos ainda não realizados, preservando-se a incidência da lei antiga quanto aos atos consumados sob a sua regência. É como dizer: se a regra fosse a aplicação, pura e simples, da intangibilidade do ato jurídico perfeito, a consequência seria a preservação das cláusulas contratuais de origem, tornando-se incólume a relação jurídica antiga à incidência da nova lei. Como se aplica o efeito imediato da lei superveniente, esse novo estatuto normativo não terá qualquer influência nas situações jurídicas que se consolidaram com base na lei revogada (salários quitados, v. g.), mas passará a reger as situações jurídicas ainda expectantes, não consolidadas, o direito por nascer, ainda não exercitável nem exigível (salários vincendos, v. g.). Assim, no direito do trabalho, diz-se aplicar-se, das leis que o regem, o efeito imediato. A obser- vação, pertinente, é de Amauri Mascaro Nascimento, afirmando secundar Caldeira e De Ferrari(140): A vigência imediata é uma qualidade da ordem pública em que se fundam as disposições trabalhistas. Se, por exemplo, uma lei nova reduz a jornada de trabalho, seria impossível esperar que se celebrassem novos contratos de trabalho para que a redução entrasse em vigor. O mesmo ocorreria se, estabelecido legalmente um tipo de salário mínimo, ficasse admitido que continuariam sendo pagos salários inferiores aos trabalhadores. 4.4.2 Eficácia da norma trabalhista no espaço Quanto à eficácia da norma trabalhista no espaço, importa saber qual o elemento de conexão(141) eleito pela nossa ordem jurídica para a identificação do território em que haverá de viger tal ou qual norma. No âmbito interno, apenas as leis federais podem disciplinar a relação de trabalho (art. 22, I, da Constituição) e estas têm vigência em todo o território nacional. Interessa lembrar, porém, que temos normas autônomas, ressaindo entre elas o regulamento de empresa, com eficácia nos limites da orga- nização empresarial a que concerne, e as normas coletivas (sentenças normativas, convenções e acordos coletivos de trabalho) que, por efeito da unicidade sindical prevista no art. 8o, II, da Constitui- ção, tutelam somente os empregados que pertencem à categoria profissional envolvida na negociação (139) Revista LTr 62-03/330. (140) Op. cit., p. 270. (141) Segundo Irineu Strenger, referido por Mallet, elemento de conexão é o vínculo que relaciona um fato qualquer a determinado sistema jurídico. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 59 coletiva que as fizera surgir, desde que trabalhem na base territorial do sindicato que representa os interesses dessa categoria. No âmbito externo, nem sempre é tão singela a tarefa de identificar o elemento de conexão e, por meio dele, qual o direito a regular a relação entre trabalhadores – brasileiros ou não – que são contratados em um país e prestam serviço em outro ou em diversos países. Qual a norma trabalhista a prevalecer? Aquela vigente no Brasil ou o direito estrangeiro? Embora se assista, hoje, a uma alteração em textos de lei que teria reduzido o campo de inci- dência daquela que seria a regra geral, ainda se pode considerar que a regra mais relevante é a da territorialidade (princípio da lex loci executionis), consagrado inclusive na antiga Súmula 207 do TST, que preconizava: A relação jurídica é regida pelas leis vigentes no país da prestação de serviço e não por aquelas do local da contratação. Esse critério, que elege o local da execução do contrato, e não o da constituição deste, como elemento de conexão, está em desacordo com o artigo 9º da LINDB(142), mas guarda conformidade com o art. 198 do Código Bustamante(143) e continua prevalecendo em nosso país, como veio a decidir o Tribunal Superior do Trabalho, o Ministro Milton de Moura França como relator, a lembrar que “os direi- tos e obrigações trabalhistas são regidos pela lei do local em que são prestados os serviços – lex loci executionis, face ao contido nos artigos 17, da Lei n. de Introdução ao Código Civil e 198, do Código de Bustamante, verdadeiro Código de Direito Internacional Privado, vigente no Brasil, porque ratificado pelo Decreto n. 18.871, de 13 de agosto de 1929”(144). O que teria, então, motivado o cancelamento da Súmula 207 pelo TST? A resposta a essa inda- gação precisa enfrentar os efeitos, em nosso sistema jurídico, da Lei n. 7.064/1982, como adiante se pretende demonstra. Até recentemente, dizia-se que o elemento de conexão, para se definir a legislação que regeria o trabalho do migrante, seria, como visto, o local de trabalho (ou seja, a lei do país em que teria ocorrido a prestação de serviço), apresentando-se como excepcional a situação dos empregados que prestavam serviço de engenharia porque para eles, em razão do previsto em lei específica (Lei n. 7.064/1982), adotava-se a lei brasileira se fossem contratados no Brasil para prestar trabalho no exterior ou se fossem transferidos para o exterior quando estivessem a laborar em nosso país. A Lei n. 11.962, de 2009, promoveu, contudo, mudança significativa na regra regente do elemento de conexão sob exame. Atendendo à tendência do direito comparado(145) e à nossa jurisprudência, já então seduzida pela necessidade de universalizar a exceção que até então contemplava somente a atividade de engenharia, a mencionada lei alterou a redação da Lei n. 7.064/82 para estender a sua eficácia a outras atividades. E o que há de regra extraordinária na Lei n. 7.064/82? Além de estabe- lecer alguns direitos laborais compatíveis com a realidade do trabalhador migrante, a mencionada lei, como já visto, faculta a aplicação da lei brasileira aos trabalhadores contratados no Brasil para traba- lhar no exterior e àqueles que para lá são transferidos quando já laboravam no Brasil. Em outras palavras: com o novo texto atribuído à Lei n. 7.064/82 em 2009, todos os trabalhado- res, não apenas os que se enquadram na atividade de engenharia, desde que domiciliados no Brasil e aqui contratados para prestar serviço (não transitório(146)) no exterior, ou para lá transferidos, benefi- ciam-se da regra exceptiva: “a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que (142) Art. 9o da Lei n. de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: “para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”. (143) Art. 198 do Código Bustamante: “Também é territorial a legislação sobre acidentes do trabalho e proteção social do trabalhador”. O Código Bustamante é um anexo da Convenção de Direito Internacional Privado, adotada na Sexta Conferência Internacional Americana em Havana. Vigora no Brasil desde 1929. (144) Revista LTr 61-10/1373. (145) Art. 1.4 do Estatuto dos Trabalhadores da Espanha: “La legislación laboral española será de aplicación al trabajo que presten los traba- jadores españoles contratados en España al servicio de empresas españolas en el extranjero, sin perjuicio de las normas de orden público aplicables en el lugar de trabajo. Dichos trabajadores tendrán, al menos, los derechos económicos que les corresponderían de trabajar en territorio español.” (146) Art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 7.064/82 – Fica excluído do regime desta Lei n. o empregado designado para prestar serviços de natu- reza transitória, por período não superior a 90 (noventa) dias, desde que: a) tenha ciência expressa dessa transitoriedade; b) receba, além da passagem de ida e volta, diárias durante o período de trabalho no exterior, as quais, seja qual for o respectivo valor, não terão natureza salarial. 60 – Augusto César Leite de Carvalho não for incompatível com o disposto nesta Lei n. (Lei n. 7.064/82), quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria”. Além dessa exceção (que hoje incide tanto ou mais que a regra geral da territorialidade), a doutrina também relativiza o rigor do princípio lex loci executionis em pelo menos duas outras situações, a saber: • Em consonância com o art. 7o da LINDB, a lei do país em que for domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. Em suma, não se deve perquirir o local da prestação de serviço, mas sim o domicílio, quando se quiser saber, verbi gratia, se o empregado tem ou não maioridade trabalhista. • É eficaz a norma trabalhista vigente no local onde o contrato é normalmente execu- tado(147), ou, para outro segmento doutrinário, o direito vigente no país onde tem sede o empregador – ou ainda, como propõe Mallet(148), a lei do local em que se encontrar o centro de direção econômica do grupo empregador –, quando o empregado presta serviço transitório ou ocasional em vários países, o que se acentua no atual processo de formação de comunidades ou blocos econômicos, integrando países em profusão, na esteira da regionalização do mercado e do capital. O direito do trabalho é assim. A multiplicidade dos seus centros de positivação, o pluralismo jurí- dico, impõe ao estudioso o desassombro de recorrer a norma jurídica de variada origem, em busca do direito mais benéfico ou na persecução do direito razoável. Desvendar a norma aplicável ao caso concreto, tirar-lhe o véu e a fazer eficaz, nem sempre se revela tarefa fácil. Para se desincumbir de tal ofício, a assimilação dos princípios do direito laboral será subsídio indispensável e a eles nos dedica- remos no capítulo seguinte. (147) Cf. MARANHÃO, Délio. Instituições de Direito do Trabalho. Vol. I. São Paulo: Freitas Bastos, 1974. p. 131. (148) Revista LTr 62-03/333. CAPÍTULO V PRINCÍPIOS DE DIREITO DO TRABALHO 5.1 Conceito e funções do princípio A espécie humana investiga, sem cessar, a primeira forma de vida, prometendo explicar a evolu- ção dos seres animados para formas atuais e aperfeiçoadas. Quando enaltece o tronco primitivo de que teria derivado, o homem quer não apenas revelar a razão de sua existência, mas justificar-se como peça qualificada de um ecossistema, afirmando-se como parte integrada a um todo. Extrai da incindi- bilidade do conjunto a imprescindibilidade do elemento. Também a norma está, por gênese, integrada a um conjunto harmônico: o ordenamento jurídico ou sistema normativo. Essa harmonia entre as espécies normativas tem a precedência dos princípios como explicação mais lógica, pretensamente invencível. E a mesma interação, notada entre os seres vivos e a natureza, sucede entre a norma e o sistema jurídico. Não é esta a hora ou a vez de identificarmos, na teoria dos sistemas, quais as possíveis carac- terísticas do sistema jurídico(149). O que nos interessa agora, numa análise liminar, é enfatizar que o eventual contraste entre a regra legal e o princípio deverá implicar a ilegitimidade daquela ou a satura- ção deste, a necessidade de seu redimensionamento. O ideário que empresta harmonia às normas é enunciado, portanto, em postulados, que intitulamos princípios. A essa altura, poder-se-á imaginar, com razão, que estamos retornando ao tema fontes do direito, em cuja abordagem tratamos do húmus social em que a norma teria nascimento, especialmente a norma trabalhista. Mas o nosso interlocutor haverá de fazer uma concessão e perceberá a necessi- dade de estudarmos, isoladamente, os princípios, se recordar, desde logo, que estavam eles a formar entre as fontes materiais e também em meio às fontes formais do direito laboral. Há princípios que são inferidos do sistema e outros cuja previsão é explícita. Ilustrativamente, poderíamos sustentar que o princípio da continuidade não está consagrado em sua literalidade, mas é possível extraí-lo da ordem jurídica, como veremos em seguida, porque há, no texto das leis, uma clara tentativa de preservar o contrato de emprego pelo maior tempo possível e sem embargo de traumas ou intercorrências operacionais que lhe dificultem o curso natural. Por sua vez, os princípios da proteção, da autonomia coletiva, da boa-fé e da primazia da realidade têm previsão em norma jurídica expressa, como igualmente estudaremos. Ao tratarmos das fontes formais de direito do trabalho, acentuamos que os princípios constitucionais devem prevalecer quando afrontados por regra legal, pois revestidos de força normativa e inscritos em norma de hierarquia superior. Essa passagem do campo programático (os princípios, sob a ordem consti- tucional anterior, eram assimilados como meras diretrizes que serviriam a inspirar o legislador e contribuir na interpretação da lei, no máximo a suprir-lhe a lacuna) para o campo normativo deixa perplexos alguns teóricos do Direito que preferem, por isso, assumir uma linha intermediária de argumentação. É o caso, segundo nos parece, daqueles que enfatizam ter o princípio função normativa (seria norma generalíssima), sem ser propriamente fonte formal, porque esta, a exemplo da lei, é “uma norma desenvolvida em seu conteúdo e precisa em sua normatividade: acolhe e perfila os pressupostos de sua aplicação, determina com detalhe o seu mandato, estabelece possíveis exceções”. O argumento é de Gordillo Cañas(150), para quem o princípio, ao contrário da lei, “expressa a imediata e não desen- volvida derivação normativa dos valores jurídicos: seu pressuposto é sumamente geral e seu conteúdo normativo é tão evidente em sua justificação como inconcreto em sua aplicação”. (149) Conforme Bobbio, o sistema pode ser dedutivo, quando as normas derivam de princípios gerais; opera-se processo indutivo, quando extraímos os conceitos gerais a partir das normas, na jurisprudência sistemática; e aplica-se enfim a teoria da compatibilidade, numa terceira e mais prestigiada opção, em que a existência de sistema pressupõe apenas a inexistência de normas antinômicas (BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução por Maria Celeste C. J. Santos. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 75). (150) Apud BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 262. 62 – Augusto César Leite de Carvalho Mas é certo que os princípios denunciam os valores que imperam na ordem jurídica e por isso são fonte material desta. O argumento, há pouco esgrimido, de o princípio não ser também fonte formal de direito convive, dificultosamente, com o aspecto de estar ele, sobretudo a partir da ordem jurídica inau- gurada com a Constituição de 1988, revestido da característica de ser norma. A um só tempo, inspira o legislador, baliza e supre a atividade legislativa, conferindo-lhe legitimidade. Bem se vê, portanto, a importância dos princípios e assim se explica a atenção que se usa dedicar ao seu estudo. Num parêntese, é preciso frisar que se sustenta a função normativa dos princípios em outras searas do direito, não sendo esta uma orientação que anime, exclusivamente, os expoentes do direito do trabalho. Com tal ponto de vista, o constitucionalista Paulo Bonavides(151) transcreve a lição sempre luminosa de Bobbio, extraída da obra Teoria dell’ Ordinamento Giuridico: Os princípios gerais são, a meu ver, normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais. A palavra princípios leva a engano, tanto que é velha questão entre os juristas se os princípios gerais são normas. Para mim, não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras [...] Para sustentar que os princípios gerais são normas, os argumentos são dois, e ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles [...]. Em segundo lugar, a função para qual são extraídos e empregados é a mesma cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso(152). Tal peculiaridade dos princípios (são, a um só tempo, fontes materiais e normas de direito do trabalho), potencializa ainda uma característica que, regra geral, é-lhes inerente, qual seja: a norma que provém do princípio permite que dela o princípio se extraia. Há sempre essa via de mão-dupla que, a bem dizer, torna mais facilitada a tarefa de conferir a legitimidade que fará, quando presente, eficaz a norma trabalhista. Essa dupla função dos princípios (fonte material e norma), com ênfase para os princípios espe- ciais do direito laboral, precisa ser mais bem esclarecida e, com esse propósito, cabe lembrar que o artigo 8o da CLT refere os princípios como um dos métodos de autointegração do ordenamento jurídico, quando falta a lei trabalhista ou o contrato e essa lacuna precisa ser colmatada. A ser assim, apenas quando a norma escrita não oferecesse a solução para o conflito estaríamos aptos a recorrer às fontes formais secundárias, apelando para os princípios, principalmente do direito do trabalho. Nessa mesma linha, a lição de Plá Rodriguez, para quem os princípios assim se definem: [...] linhas diretrizes que informam algumas normas e inspiram direta ou indiretamente uma série de soluções, pelo que podem servir para promover e embasar a aprovação de novas normas, orientar a interpretação das existentes e resolver os casos não previstos(153). Todavia, há princípios que têm sede na Constituição, conforme veremos adiante. Em relação a esses princípios constitucionais, não se aplica o artigo 8o da Consolidação das Leis do Trabalho, pois o conflito entre a norma maior e a regra legal inferior (exempli gratia, uma lei cujo preceito contrarie o postulado da isonomia, com matriz na Carta Magna) faz esta última, a lei, ineficaz. Nessa hipótese de antinomia, é certo que o princípio constitucional não pode ser tratado como norma secundária. Está assentado que os princípios funcionam como fontes materiais e normas gerais do direito do trabalho. Mas há uma terceira função, a que eles se prestam, com inegável importância: referimo-nos ao auxílio que dão os princípios ao operador da norma trabalhista, quando instado ele a interpretá-la. Essa função interpretativa será percebida, em seguida, quanto tratarmos do princípio da proteção. Por ora, devemos sistematizar a matéria, a partir da carta constitucional, enlevando inicialmente a influência do princípio da dignidade humana na compreensão e aplicação de todo o direito do trabalho para, na sequência, e em boa parte inspirados na lição de Plá Rodriguez, passarmos a enumerar os princípios especiais do direito do trabalho, notadamente aqueles mais explorados pelos laboralistas que se dedicaram à principiologia. (151) Op. cit. p. 236. (152) Op. cit. p. 158. (153) RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Tradução de Wagner Giglio. São Paulo: LTr, 1978. p 16. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 63 5.2 Preeminência do princípio constitucional da dignidade (da pessoa) humana A dignidade humana não é o único valor jurídico que, associando-se à realidade vivenciada pelos sujeitos da relação de trabalho, tem expressa referência no texto constitucional. Também se reporta a Constituição ao valor social do trabalho e, sempre que o faz, esforça-se por combiná-lo com a livre iniciativa e assim proclamar que a liberdade de empreendimento se legitima na exata medida em que se concilia com a função social que lhe é imanente. É o que se extrai, claramente, do artigo 1º, III (o qual eleva a dignidade humana à categoria de fundamento da República) e do artigo 170 da Carta Magna: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. O princípio da dignidade da pessoa humana igualmente não exaure a sua atuação no âmbito do direito laboral, pois interfere em setores variados da vida e do Direito. Mas, voltando os olhos à realidade dos que vivem um liame empregatício, uma tarefa deveras interessante seria a de identifi- car os direitos sociais que salvaguardariam, em qualquer sítio onde se realizasse o labor humano, as condições de trabalho mínimas, abaixo das quais não haveria trabalho digno. Estaríamos a contrastar a diversidade das pautas de direitos sociais com o caráter necessariamente transcendental de um atributo que é imanente ao gênero humano em qualquer atmosfera cultural, qual seja, a dignidade. Embora se alardeie que dignidade humana é um conceito impreciso, um conceito aberto, importa apurar o seu significado próximo, a sua latitude conceitual, com vistas a identificar, na expressão jurí- dica, um conteúdo propriamente normativo. A dignidade humana não pode ser um programa de ação, pois é antes uma norma que aspira efetividade. E é assim, sobremodo, quando se tenta decompor a dignidade da pessoa humana, atentando-se, então, para a parte da expressão que associa um valor transcendente (dignidade) à outra parte (pessoa humana) que faz referência ao homem concreto e individual, à sua realidade idiossincrática, inextensível desde logo a toda a humanidade(154). Ainda no plano semântico, nota-se que a palavra dignidade possui tríplice sentido, pois qualifica, à primeira vista, um modo de proceder e também a pessoa que assim procede: o sujeito é digno porque se comporta dignamente. O seu terceiro sentido – que nos interessa de imediato – não deriva de uma conduta, nem mesmo de um padrão de conduta, senão de uma qualidade inerente ao ente, homem ou mulher, não importando seu modo de conduzir-se. A dignidade da pessoa humana é, já agora, um pressuposto de qualquer conduta, um limite externo e de caráter tutelar imposto à ação que atinge o homem, que ao homem se refere. Estende-se esse limite ao mundo potencial dos contratos, vale dizer, à esfera de liberdade – que tem, paradoxalmente, também a dignidade humana como fundamento. A liberdade de contratar não é plena, se prescinde da igualdade. Talvez por isso, e com alguma fineza de espírito, Flauber nos teria provocado: “Que é, pois, a igualdade, se não a negação de toda liberdade, de toda superioridade e até da Natureza mesma?”(155). Daí se depreende uma evidente correlação lógica: se a dignidade é uma qualificação comum a todos os seres humanos, a sua realização normativa terá sempre a igualdade como um pressu- posto. As pessoas seriam igualmente dignas. É como se tivéssemos uma porção de humanidade que nos faria credores do mesmo tratamento, não obstante as nossas pontuais dessemelhanças. Nesse bocado de gente residiria nossa intangível dignidade, vale dizer, a dignidade da pessoa humana – que se reporta, ao dizer de Jorge Miranda, “a todas e cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta”(156). A questão, uma vez mais, se renova: seria possível delimitar, exempli gratia por meio da enume- ração dos direitos fundamentais, a parcela inviolável de direitos que nos conferiria identidade? Assim se referiu Boaventura Souza Santos: (154) Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV – Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 1998. p. 169. O autor distingue em nota: “Da mesma maneira que não é o mesmo falar em direitos do homem e direitos humanos, não é exactamente o mesmo falar em dignidade da pessoa humana e dignidade humana. Aquela expressão dirige-se ao homem concreto e individual; esta à humanidade, entendida ou como qualidade comum a todos os homens ou como conjunto que os engloba e ultrapassa”. (155) Apud DOMÉNECH, Antoni. El Eclipse de la Fraternidad. Barcelona: Crítica, 2004. p. 27. (156) Op. cit., p. 168. 64 – Augusto César Leite de Carvalho Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.(157) Com igual sentido, Bobbio adverte que “o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concretude de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente etc”(158). Como regra, as constituições de estados democráticos que se seguiram às de Querétaro e Weimar repousam na dignidade da pessoa humana a unidade de sentido e de valor que conferem ao sistema de direitos fundamentais nelas consagrado(159). Como antes mencionado, o art. 1o, III, da Constituição brasileira diz ser a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República. O desafio de atribuir conteúdo a esse princípio, tão caro às democracias garantistas, não se exaure, porém, nas elucubrações de uma aventura teórica, antes se justificando pela força normativa que qualifica os princípios constitu- cionais(160), exigindo-lhes um significado jurídico. 5.2.1 A importante contribuição do positivismo jurídico na conceituação da dignidade humana É acertado dizer que o positivismo jurídico enfatiza a distinção entre justiça e validade da norma. Como ressalta Ferrajoli, ele próprio um expoente dessa vertente teórica, essa divergência – ou mesmo indiferença – entre a norma justa e a norma válida “não significa, em absoluto, que o Direito não incor- pore valores ou princípios morais e não tenha, ao menos nesse sentido, alguma relação conceitual necessária com a Moral: o que seria absurdo, dado que todo sistema jurídico expressa pelo menos a Moral de seus legisladores, qualquer que seja esta”(161). Ainda em conformidade com Ferrajoli, o posi- tivismo jurídico se resolve em duas assertivas: • que a moralidade (ou a justiça), porventura presente em uma norma, não implica sua juri- dicidade (sua validade ou, de forma ainda mais genérica, sua pertinência a um sistema jurídico); • que a juridicidade (a validade) de uma norma não implica sua moralidade (sua justiça). Bem entendido, estamos a nos ambientar no plano teórico do positivismo jurídico e especulando, em outra dimensão (dogmático-normativa), sobre o conteúdo de um princípio, o da dignidade humana. Não nos interessa conjecturar sobre as características do direito positivo(162) (que é assunto afeto à teoria das normas), mas sim acerca do que significa aquele princípio, o da dignidade, segundo a análise positivista(163). (157) Apud PIOVESAN, Flávia. Discriminação. In Fórum Internacional sobre Direitos Humanos e Direitos Sociais. Org. Tribunal Superior do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004, p. 336. (158) BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 68. (159) Cf. Jorge Miranda, op. cit., p. 166, reportando-se ao art. 1o da Constituição de Portugal e, em nota, também às Constituições da Irlanda, da Alemanha, da Índia, da Venezuela, da Grécia, da Espanha, do Peru, da China, do Brasil, da Namíbia, da Colômbia, da Bulgária e de Cabo Verde, todas elas a prestigiar a dignidade da pessoa humana. (160) Ver, entre outros: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 1982. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, cap. 8, passim. (161) FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: una discusión sobre derecho y democracia. Tradução para o espanhol de Andrea Greppi. Madrid: Editorial Trotta, 2006, p. 12. (162) Segundo Tércio Ferraz Junior, “direito positivo, podemos dizer genericamente, é o que vale em virtude de uma decisão e só por força de uma nova decisão pode ser revogado. O legalismo do século passado entendeu isto de modo restrito, reduzindo o direito à lei, enquanto norma posta pelo legislador. No direito atual, o alcance da positivação é muito maior” (FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. A Ciência do Direito. São Paulo: Atlas, 1980. p. 41). O autor complementa: “Decisão é termo que tomamos num sentido lato, que ultrapassa os limites da decisão legislativa, abarcando, também, entre outras a decisão judiciária...” (163) Ao diferenciá-lo da hermenêutica jurídica e do realismo jurídico, Dworkin (apud HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia. Vol. I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 247-250) observa que o positivismo jurídico “pretende, ao contrário, fazer jus à função da estabilização de expectativas, sem ser obrigado a apoiar a legitimidade da decisão jurídica na autoridade impugnável de tradições éticas. Ao contrário das escolas realistas, os teóricos Hans Kelsen e H. L. A. Hart elaboram o sentido normativo próprio das proposições jurídicas e a construção sistemática de um sistema de regras destinado a garantir a consistência de decisões ligadas a regras e tornar o direito independente da política. Ao contrário dos hermeneutas, eles sublinham o fechamento e a autonomia de um sistema de direitos, opaco em relação a princípios não jurídicos”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 65 E não se há tratar, aqui, apenas do caráter formal das proposições ajustadas ao positivismo jurí- dico(164), pois, caso o propósito do presente ensaio fosse, assim e apenas, o de considerar um conceito abstrato de dignidade humana, satisfaria decerto o que se extrai de fascículo emblemático da encíclica Rerum Novarum. Antes de esboçar tal conceito, argumenta o papa Leão XIII: A ninguém é lícito violar impunemente a dignidade do homem, do qual Deus mesmo dispõe com grande reverência, nem colocar impedimentos de modo a impedir que ele alcance a vida eterna; pois, nem mesmo por livre arbítrio, o homem pode renunciar a ser tratado segundo sua natureza e aceitar a escravidão do espírito; porque não se trata de direitos cujo exercício seja livre, senão de deveres para com Deus que são absolutamente invioláveis. Após afirmar que era impossível cumprir o desígnio (pregado pelos socialistas) de ver a todos, em uma sociedade civil, elevados ao mesmo nível, e reiterar Santo Tomás ao dizer que “a propriedade particular é um direito natural do homem: o exercício desse direito é coisa não apenas permitida, sobretudo a quem vive em sociedade, senão absolutamente necessária”, Leão XIII insinua o possível significado da dignidade humana: Não é justo nem humano que se exija do homem tanto trabalho a ponto de fazê-lo, por excesso de fadiga, embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo. A atividade do homem, limi- tada como a sua natureza, tem limites que não se podem superar. O exercício e o uso a aper- feiçoam, mas é preciso, de vez em quando, que se a suspenda para dar lugar ao repouso. A dignidade da pessoa humana estaria malferida sempre que o limite razoável de fadiga, abstra- tamente considerado, fosse excedido para o homem ou a mulher que estivessem a prestar trabalho. Mas esse significado, sendo embora formal (porque abstrato), não poderia ser adotado pela teoria positivista enquanto não fossem superados dois obstáculos: a) a sua inspiração mística ou religiosa (assim é porque Deus não tolera a fadiga e somente por isso, ou isso basta); b) a existência, em uma análise a priori, de trabalho que se revelaria indigno sem o componente da fadiga, a exemplo daquele que se realiza em tenra idade, ou sob ameaça física ou moral, ou ainda a envolver o comércio do corpo humano, ou enfim a implicar, de algum modo, a degradação da pessoa que trabalha. Parece-nos, então, que a melhor – e não por acaso a mais festejada – contribuição do positivismo jurídico, a respeito do sentido de dignidade da pessoa humana, teria sido legado por Kant, o filósofo setecentista que iluminou o mundo da razão a partir de Königsberg(165). É evidente que Kant não podia ambientar o seu conceito de dignidade sob a perspectiva do direito social, inclusive porque seguia Rousseau – a quem reverenciava como “o Newton da moral” – e concebia a constituição da sociedade civil a partir da vontade geral: a expressão da consciência pura de cada indivíduo, voz interior autô- noma que Rousseau supõe idêntica para todos(166). Gurvitch explica: Se todo direito tem como fundamento último a vontade geral, que não é outra coisa senão um ingrediente imanente à consciência individual, e se toda possibilidade de fazê-la triun- far reside na instituição de uma relação contratual, todo direito se reduz unicamente ao direito individual.(167) Mas, como Rousseau, também Kant dizia ser a dignidade moral indissociável da pessoa humana, dotada de razão e de vontade livre, sem que mais nenhum outro ser vivente o seja. Dignidade, (164) Eros Grau (GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 26) observa que o pensa- mento jurídico moderno tem a marca do formalismo e do positivismo. Mas o formalismo, cujas construções se apoiam em um discurso abstrato, é insuficiente para explicar o direito. Mesmo no plano abstrato, o direito é um produto histórico-cultural, que não pode ser completamente abarcado por explicações lógicas ou racionais. Quanto ao positivismo, que tem a recusa a qualquer referência metafísica como postulado básico, diz-se que a) não admite ele a existência de lacunas e estas existem no sistema jurídico; b) encontra dificuldades insuperáveis para explicar os conceitos indeterminados, as normas penais em branco e as proposições carentes de preenchimento com valorações, caindo em discricionariedade que se converte em arbítrio do juiz; c) é enfim inoperante diante dos conflitos entre princípios, remetendo a sua solução à discricionariedade do juiz ou negando o caráter normativo dos princípios; d) não tem como tratar da legitimi- dade do direito e, por isso, a legalidade ocupa o lugar desta no seu quadro. (165) A pequena cidade em que nasceu e viveu (1724-1804), sem dela jamais ter saído. (166) A vontade geral não se opõe à vontade individual (pois seria a vontade individual comum a todos), mas sim à vontade particular (que variaria de indivíduo a indivíduo). Rousseau esclarece: “Que a vontade geral seja em cada indivíduo um ato puro do entendimento que prevalece no silêncio das paixões, [...] ninguém ponha em dúvida”. Apud GURVITCH, Georges. La Idea del Derecho Social. Tradução para o espanhol de José Luis Monereo Pérez y Antonio Márquez Prieto. Granada: Calmares, 2005. p. 289. (167) Op. cit., p. 292. 66 – Augusto César Leite de Carvalho assim, é “o atributo de um ser racional que não obedece a nenhuma outra lei senão a que ele mesmo se dá”(168). Nesse contexto, Kant distingue entre aquilo que tem preço e o que tem dignidade: No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outro como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço e, portanto, não tem equivalente, então ela tem dignidade(169). Ora, se o homem é o único ser racional e pode fixar fins para si próprio, deverá ele, assim abstra- tamente considerado, ser o fim em si mesmo de toda intervenção humana: “a pessoa não pode ser tratada (por outra pessoa ou por si mesma) meramente como um meio, se não que tem que ser, em todo momento, utilizada como fim; nisso consiste a sua dignidade”(170). E quando estaria o homem a ferir a dignidade de outra pessoa, por impor-lhe conduta em que essa pessoa seria considerada um meio, não um fim? Que nos valhamos, inicialmente, dos exemplos que outros teóricos, debruçados sobre a proposi- ção kantiana, já esboçaram. Starck, citado por Hoerster(171), enumera as seguintes hipóteses de ações que estariam a violar o princípio da dignidade humana, por não cogitarem do homem como um fim: • algumas sanções estatais como a pena de morte, a prisão perpétua sem possibilidade de liberdade intercorrente (por meio de indulto, por exemplo), as penas cruéis como a tortura e a prisão em célula “solitária” por tempo prolongado, sem contato com outras pessoas; • determinados métodos de interrogatório em processo penal, como o uso de narcóticos, o detector de mentiras, o hipnotismo e a tortura; • a negação de audiência judicial. Mas Starck também se refere a hipóteses em que a dignidade humana não seria atingida por medida estatal, mas sim por ação de outros indivíduos, devendo a dignidade do lesado ser protegida eficazmente pelo Estado, inclusive mediante a incursão do autor em normas penais. Os exemplos seriam os seguintes: • ataques à vida ou à honra; • incitação ao ódio, a medidas violentas ou arbitrárias contra indivíduos ou grupos. A partir da mesma concepção kantiana do princípio da dignidade humana, Jorge Miranda(172) indica preceitos da Constituição portuguesa que impedem seja o homem tratado como meio. O consti- tucionalista da Universidade de Lisboa inclui casos afetos também aos direitos sociais, cabendo trans- crever alguns desses exemplos: • a garantia da integridade pessoal contra a tortura e as penas cruéis, degradantes ou desuma- nas (art. 25), inclusive em processo penal (art. 32); • os direitos à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (art. 26, n. 1); • as garantias contra a utilização abusiva de informações relativas às pessoas e famílias (arts. 26, ns. 2 e 35); • o direito de resposta e retificação na imprensa (art. 37, n. 4); • a proteção dos cidadãos em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistên- cia ou de capacidade para o trabalho (art. 67, n. 4); • o direito de habitação que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar (art. 65, n. 1); • a proteção da família para a realização pessoal de seus membros (art. 67, n. 1). (168) Kant, em Metafísica dos Costumes, apud HOERSTER, Norbert. En Defensa del Positivismo Jurídico. Tradução para o espanhol de Ernesto Garzón Valdés. Barcelona: Gedisa Editorial, 2000. p. 92. (169) Kant, apud Miranda, op. cit., p. 169. Ou apud Hoerster, op. cit., p. 92, ambos a transcrever excerto de Metafísica dos Costumes. (170) Kant, apud Hoerster, op. cit., p. 92. (171) Op. cit., p. 93. (172) Op. cit., p. 16. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 67 5.2.2 A adoção do princípio da dignidade na relação entre capital e trabalho No mundo do trabalho, a justificação dos direitos sociais de índole trabalhista a partir da premissa de que o homem não deve prestar o seu labor em condições que o façam somente vegetar, ou que o tornem um mero instrumento de prazer ou cobiça, pode ser aclarada com base em remissões várias, a saber: • a proibição de trabalho além da periodicidade diária e/ou semanal que permite ao empregado usar o salário para prover sua alimentação, moradia, descanso, lazer etc.; • a proibição de despedida arbitrária, pois esse modo de dispensar o empregado implica consi- derar o valor social do trabalho como um postulado menos relevante que o da livre iniciativa, instrumentalizando o trabalhador; • a garantia de salário que assegure a satisfação das necessidades vitais do trabalhador e de sua família, sendo esse o fim a ser alcançado; • a garantia de trabalho sem risco, a qual pode ser extraída das normas que impõem sanção jurídica para a hipótese de acidente de trabalho; • a proibição de trabalho insalubre ou perigoso (os quais conduziriam o empregado a enfermi- dade ou morte), de novo subtraindo-lhe o interesse de trabalhar para proporcionar a si e a aos seus a provisão de bens que lhes proporcionem felicidade; • a proibição de trabalho infantil em circunstâncias que inviabilizem a sua formação acadêmica, moral e física; • a adoção de sistema de revista de trabalhadores que exponha a intimidade destes, sobretudo quando se distinguem os meios de segurança patrimonial aplicados aos empregados e à clientela. A dificuldade de encontrar o mínimo existencial que asseguraria uma vida digna e, no particular, um trabalho digno reclama, evidentemente, uma atuação discricionária dos que promovem ou atuam o direito, dos seus intérpretes enfim. Ademais, a resignação ou a anuência do trabalhador que é avil- tado em sua condição humana não interfere na qualificação da conduta patronal – cabe lembrar, pelo seu apelo ilustrativo, trecho da obra de Ingo Sarlet(173) em que ele faz referência à “polêmica deci- são do Conselho de Estado da França, que considerou correta a decisão do prefeito da comuna de Morsang-sur-Orge, ao determinar a interdição de estabelecimento (casa de diversão) que promovia espetáculos nos quais os espectadores eram convidados a lançar um anão o mais longe possível, de um lado a outro do estabelecimento. Para o Conselho do Estado [...] os ‘campeonatos de anões’ não poderiam ser tolerados por constituírem ofensa à dignidade da pessoa humana, considerando esta (pela primeira vez no direito francês) como elemento integrante da ordem pública, sendo irrelevante a voluntária participação dos anões no espetáculo, já que a dignidade constitui bem fora do comércio e é irrenunciável”. Mas voltemos à formulação kantiana para explorar a concepção de que o uso da energia de traba- lho apenas como um meio, sem atentar para a condição humana de quem realiza o labor, revelaria a inobservância do postulado da dignidade. Em dado momento, Hoerster, professor de filosofia do direito na universidade de Manguncia, especula sobre exemplo curioso, que ele mesmo formula: “suponhamos que viajo em um táxi: uso o taxista?” O questionamento é intrigante, pois importa decidir se a utilização do taxista e de seus servi- ços apenas como um meio para o filósofo chegar ao seu destino (alcançando o seu fim pessoal) signi- ficaria uma violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. Ou se seria válido, como pareceu a Hoerster, argumentar que não se estaria a utilizar o taxista meramente como um meio uma vez que ele, o taxista, também estaria interessado em promover o deslocamento do filósofo e este lhe pagaria o preço ajustado ou o habitual. Outro seria o caso, pondera Hoerster(174), se de antemão ele tivesse o plano – e também o realizasse – de estafar o taxista, não lhe pagando a tarifa cobrada pela viagem. (173) SARLET, Ingo W. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 112. (174) Op. cit., p. 94. 68 – Augusto César Leite de Carvalho Também não se haverá de contrapor o princípio da dignidade da pessoa humana à ação que vise coibir uma ação ilegítima, a exemplo daquela, referida por Hoerster(175), em que vítima contumaz de furtos instala um sistema de alarme que permite flagrar o agente do delito, este compreendido como meio da investigação. Ainda que o sentido de legitimidade nos transporte para outra discussão de fôlego, qual seja, a de confundi-la com legalidade (como propõem Kelsen e outros teóricos positivis- tas), é certo que não se tem mais essa visão anacrônica do Direito, de um Direito que não se deixava permear por qualquer juízo de valor ou critério de proporcionalidade. Na perspectiva de quem pretende aplicar essas considerações teóricas ao mundo do trabalho, poderíamos lembrar o flagrante preparado de prestação laboral que consista na exploração de “jogo do bicho” e ponderar, ainda com Hoerster, que “o princípio da dignidade humana proíbe frustrar a livre autodeterminação humana (o furto ou, no nosso exemplo, o trabalho capitulado como contravenção penal) na medida em que esta é eticamente legítima”(176). Bem entendido, legítima seria a ação humana em abstrato, não a ação específica de furtar ou praticar contravenção penal. O problema se resolveria com a exigência de que a licitude da ação humana seria um pressuposto para a dignidade do trabalho que por ela se desenvolvesse. E então se abre, mesmo para Norbert Hoerster, uma fissura no conceito puramente formal até aqui desenvolvido: “se o princípio da dignidade humana [...] somente pode ser sensatamente entendido no sentido que implica proteger as formas legí- timas da autodeterminação humana, então é inevitável que a aplicação desse princípio esteja vinculada a um juízo valorativo moral”(177). É que nem sempre a ilicitude se esgota na transgressão à lei, por vezes se configurando na ação que, embora socialmente reprovável, não está descrita em tipo penal algum. O formalismo e o individualismo de Kant sempre despertaram a crítica de outros grandes pensa- dores(178), mas convém não desprezar a elaboração, embasada em sua obra, de um conteúdo jurídico para o princípio da dignidade da pessoa humana: valor imanente ao ser humano que impede seja ele tratado como meio, posto deva ser tratado como fim. Importa perceber que o significado assim atribu- ído a esse princípio tem rica aplicação no âmbito do direito trabalhista, pois é causa primeira da tutela dos direitos sociais. Ainda mais quando esse seu conteúdo jurídico se reveste de força normativa, a exemplo do que sucede a todos os princípios constitucionais. A evolução do conceito, a ponto de o princípio correlato ganhar a preferência dos Estados demo- cráticos na decisão sobre o que haveria de dar unidade de sentido e valor aos seus sistemas de direi- tos fundamentais, não pode prescindir, ainda hoje, do significado que lhe deve ser atribuído a partir da distinção kantiana entre as coisas que têm preço e aquelas que, não podendo ser substituídas pelo equivalente, possuem dignidade. A razão e a vontade livre de que somente o homem é possuidor impe- diriam que as intervenções humanas não tivessem a pessoa como fim, tendo-a apenas como meio. Sob tais premissas, a sentença de Kant é definitiva: “a pessoa não pode ser tratada (por outra pessoa ou por si mesma) meramente como um meio, se não que tem que ser, em todo momento, utili- zada como fim; nisso consiste a sua dignidade”. No mundo do trabalho, é possível reportar-se, conforme sobrevisto, a vários direitos sociais de índole trabalhista que se justificam na premissa kantiana. 5.3 Princípios especiais do direito do trabalho É tradição, no direito do trabalho, seguir o modo como Plá Rodriguez sistematizou os princípios desse ramo especial do direito privado. Ao seu modo de abordar o tema acrescemos somente a alusão aos postulados constitucionais e, dentre eles, a autonomia coletiva, com o objetivo de conferir-lhe atualidade. Nesse panorama, os princípios especiais de direito do trabalho são os seguintes: (175) Op. cit., p. 95. (176) Op. cit., p. 96. (177) Cf. Hoerster, op. cit., p. 96. (178) Arthur Schopenhauer (apud Hoerster, op. cit., p. 91) opôs: “Essa frase tão infatigavelmente repetida por todos os kantianos: ‘há que tratar sempre a pessoa como um fim e nunca como um meio’ soa certamente importante e, por isso, é sumamente adequada para todos aqueles que desejam ter uma fórmula que os libere de todo pensamento; porém, vista com clareza, é uma expressão sumamente vaga, impre- cisa, que aponta muito indiretamente a sua intenção e que, para cada caso de sua aplicação, requer previamente uma explicação, precisão e modificação especial; mas é geralmente insuficiente, diz pouco e, ademais, é problemática”. A seu turno, Proudhon (apud Gurvitch, op. cit., p. 370) se sentia distanciado de Kant “pelo caráter abstrato de seu idealismo, pela ausência do ponto de vista ideo-realista, por seu individu- alismo e seu nominalismo a respeito do ser social, pela falta de reflexão sobre a totalidade e a ordem”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 69 • Princípio da proteção; • Princípio da irrenunciabilidade; • Princípio da continuidade; • Princípio da primazia da realidade; • Princípio da razoabilidade; • Princípio da boa-fé; • Princípio da igualdade de tratamento; • Princípio da autodeterminação coletiva. 5.3.1 Princípio da proteção O direito civil, ou sua versão mais vetusta, tem a igualdade como pressuposto. Imaginam-se pessoas que, por estarem em igual condição, podem instituir contratos entre si e, nestes, ajustar o que manifesta mais claramente a vontade de cada qual. O direito do trabalho, como já se percebeu, parte de pressuposto diverso: a desigualdade entre os contratantes. Por isso, relativiza o princípio da autonomia da vontade individual, que inspira o direito obrigacional comum e, para compensar a infe- rioridade econômica do empregado, estende-lhe uma rede de proteção, um rol de direitos mínimos e indisponíveis que asseguram a dignidade do trabalhador (dir-se-ia: do trabalho humano). Como afirma Couture, em remissão feita por Plá Rodriguez, “o procedimento lógico de corrigir as desigualdades é o de criar outras desigualdades”. As contituições republicanas vêm ressaltando essa tendência protecionista quando incluem entre os direitos fundamentais os direitos sociais do trabalhador. Embora fosse maior tal preocupação no constituinte de 1988, é certo que, ao comentar o texto da Carta Política de 1967, já observava Pontes de Miranda(179): A desigualdade econômica não é, de modo nenhum, desigualdade de fato, e sim a resultante, em parte, de desigualdades artificiais, ou desigualdades de fato mais desigualdades econô- micas mantidas por leis. O Direito que em parte as fez pode amparar e extinguir as desigual- dades econômicas que produziu. Exatamente aí é que se passa a grande transformação da época industrial, com a tendência à maior igualdade econômica que há de começar, como já começou em alguns países, pela atenuação mais ou menos extensa das desigualdades. Em três momentos se revela, mais claramente, o princípio da proteção. Estamos a cuidar, nesse passo, das seguintes técnicas (ou princípios derivados, como prefere parte da doutrina): • a regra in dubio pro operario • a norma mais favorável • a condição mais benéfica Sobre a regra in dubio pro operario, devemos frisar que se trata de técnica de interpretação: quando a norma permite interpretação dúbia ou mais de uma interpretação, deve prevalecer aquela que aproveita ao trabalhador. É importante relembrar que o direito do trabalho surgiu como uma técnica de proteção ao obreiro que, por ser economicamente hipossuficiente, estava por ajustar condições indignas de trabalho, aviltantes para o ser humano. Em princípio, toda norma trabalhista parte desse mesmo pressuposto e, se mais de um sentido lhe couber, é de preferir-se aquele que justifica a sua existência, ou seja, privilegia-se a exegese que se mostra apta a oferecer uma condição mais justa de trabalho. Quando enfatizamos estar versando sobre regra de interpretação é porque rejeitamos o uso, que a jurisdição trabalhista emprestou outrora à técnica in dubio pro operario, dizendo-a aplicável quando, no processo do trabalho, os elementos de prova produzidos por empregado e empregador apresentas- sem igual grau de convencimento. A orientação doutrinária e pretoriana, hoje prevalecente, consagra, ao (179) in Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1/69. T. IV, p. 689. 70 – Augusto César Leite de Carvalho revés, a regra de distribuição da carga probatória, como solução para o hipotético conflito, na consciência do julgador, à hora de valorar a prova. A dúvida sobre qual das partes produziu elemento de prova mais convincente não poderá beneficiar, necessariamente, ao empregado. Embora sejam vários os dispositi- vos legais que cometem ao empregador o ônus da prova(180), se couber tal ônus ao empregado deverá ele se desvencilhar eficientemente do encargo, sob pena de ver sucumbir a sua pretensão. E o meio de prova eficaz é aquele que convence, tem força de persuasão, numa análise rigorosamente subjetiva. A técnica da norma mais favorável é de utilização frequente, aplicando-se, já agora, quando normas trabalhistas estão em aparente conflito. No direito comum, observa-se a hierarquia das normas, predisposta em forma piramidal. A partir da Constituição (que teria validade, segundo Kelsen, assegurada em norma pressuposta, a norma fundamental), as normas de escalão inferior teriam uma norma de esca- lão superior a fixar a autoridade legisladora ou a forma a ser observada por esta norma infra ordenada. A norma supraordenada, ainda em consonância com as lições de Hans Kelsen, seria então o fundamento de validade da norma abaixo escalonada – a Constituição em relação às leis ou normas gerais, estas em relação às sentenças ou normas individuais. Logo, o conflito entre normas, no direito comum, é sempre aparente, resolvendo-se pela supre- macia da norma acima escalonada ou, em se tratando de normas com igual hierarquia, aplicam-se os critérios da cronologia (lex posterior derogat legi priori) ou da especialidade (lex specialis derogat legi generali). O direito do trabalho, por seu turno, é composto inicialmente por normas internacionais, estatais ou autônomas que asseguram um mínimo de proteção ao trabalhador, não se apelando para o critério hierárquico, por isso, quando há dúvida sobre qual a norma trabalhista a ser aplicada. Nesses casos, e sem que se cogite de violação da hierarquia das normas, aplica-se a norma mais favorável, aquela que apresenta a conquista mais significativa do conjunto de trabalhadores (avançando o nível de proteção porque assim autorizada pela norma de hierarquia superior). O critério da norma mais favorável é uma expressão do princípio protetivo que tem base explícita na Constituição: o artigo 7o da Carta Magna o consagra ao prever que aos direitos sociais ali elenca- dos se somarão outros que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores urbanos e rurais. A partir de tal preceito, todo o sistema jurídico-trabalhista, seja no plano constitucional ou mesmo legal, dispõe sobre o conteúdo mínimo do contrato de emprego, reservando a outras normas ou mesmo cláusulas contratuais a tarefa de alargar a proteção do trabalhador subordinado. À sociedade, por meio da atuação legislativa ou de outros centros de positivação jurídica, cabe estabelecer os limites que suportará na consecução desse propósito de expandir a tutela. A pretensão expansionista, no sentido da proteção sempre maior, importa, em contraface e por definição, a vedação do retrocesso. É relevante, portanto, o aspecto de o princípio da proteção ser princípio constitucional. Mas a norma trabalhista é elaborada, muita vez, em vista de uma realidade social particularizada ou, quando provém do Estado, abstrai de certas peculiaridades do labor desenvolvido por alguns de seus destinatários, em tal ou qual empresa. Por exemplo: a convenção coletiva que estatui férias por um período maior pode prever a remuneração destas em valor menor, quando confrontada com um acordo coletivo de trabalho. Como identificar, em hipótese assim descrita, qual a norma mais favorável? A merecer registro, há três correntes teóricas a propósito do método ideal para a indicação dessa norma prevalente, a saber: • a teoria atomista ou da acumulação, que implica, ensina Ruprecht(181), “se tome de cada norma o que é mais conveniente ao trabalhador, fracionando dessa maneira as leis para buscar em cada uma o mais favorável”; • a teoria do conjunto ou do conglobamento, a mais correta segundo o citado laboralista, vez que pressupõe ter “a norma um conteúdo unitário, pelo qual não é possível tomar preceitos de outra que não foram considerados ao serem estabelecidos”; • a teoria orgânica ou da incindibilidade dos institutos, igualmente explicada pelo autor argen- tino, como “uma forma da teoria da conglobação, porém mais moderada. Por ela, toma-se o (180) Atribuem ao empregador o ônus da prova os seguintes artigos da CLT: art. 29 (sobre o contrato e suas condições especiais), art. 74 (quanto à jornada de trabalho nas empresas com mais de dez empregados), arts. 135 e 141 (acerca da concessão de férias), art. 464 (paga- mento de salários), art. 477 (verbas da cessação do contrato) etc. (181) RUPRECHT, Alfredo J. Os Princípios do Direito do Trabalho. Tradução de Edilson Alkmin Cunha. São Paulo : LTr, 1995. p. 24. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 71 conjunto de cláusulas referentes a cada instituto previsto pela norma. De maneira que, se um instituto é mais favorável numa determinada lei, é tomado em seu conjunto; mas se outro insti- tuto também previsto na dita lei é menos benéfico que o que determina outra norma jurídica, toma-se este último”. Greco, citado por Ruprecht(182), critica a teoria da acumulação e argumenta, com razão, que acei- tá-la significaria adotar “um critério de sabor eminentemente demagógico que, especialmente no caso da convenção coletiva, rompe a unidade da disciplina sindical da relação de trabalho e viola a harmo- nia, o equilíbrio e a vinculação orgânica entre as distintas condições estabelecidas em convenções”. Parece claro que a teoria da incindibilidade dos institutos vem a ser mero aperfeiçoamento da teoria do conjunto ou do conglobamento e é a preferida pela maioria dos autores, à expressão de Américo Plá Rodriguez(183), verbis: “O conjunto que se leva em conta para estabelecer a comparação é o integrado pelas normas referentes à mesma matéria, que não se pode dissociar sem perda de sua harmonia inte- rior. Mas não se pode levar a preocupação de harmonia além desse âmbito”. Em verdade, os intérpretes e agentes do direito do trabalho reportam-se genericamente ao conglobamento quando aplicam a regra da incindibilidade dos institutos, fazendo dela, com razão, uma modalidade daquele. Adotando-se, assim, a teoria do conjunto ou conglobamento, na sua modalidade que preconiza a incindibilidade dos institutos, identifica-se qual a norma mais favorável em relação ao adicional de periculosidade e quanto a este instituto jurídico se aplicará somente a norma escolhida. Outra norma poderá prevalecer no tocante ao 13o salário e ao repouso semanal, mas quanto a esses outros institu- tos apenas essa outra norma terá eficácia, assim por diante. As três teorias seriam inadequadas, porém, quando o conflito se apresenta entre normas vigentes em países diversos. Tal conflito haveria de ser dirimido pelo princípio da territorialidade ou em confor- midade com os elementos de conexão cogitados no capítulo precedente. Por isso e ao comentar a antiga Súmula 207 do TST, Francisco Antônio de Oliveira, secundando Délio Maranhão, transcrevia a pertinente orientação de Ernesto Krotoschin: A primazia do direito mais favorável deve limitar-se ao mesmo ordenamento jurídico, não sendo admissível sua extensão ao terreno internacional, porque, nessa hipótese, ver-se- -ia o juiz, muitas vezes, ante a dificuldade, praticamente insuperável, de determinar qual dos ordenamentos, considerados em conjunto, o mais favorável, já que não seria possível submeter uma só relação jurídica a direitos distintos(184). Tal entendimento está a merecer, porém, ao menos duas ressalvas: a primeira é concernente ao grau de competitividade entre as economias de todo o mundo contemporâneo, não devendo o direito do trabalho endossar, simplesmente, a prática do dumping social, que consiste na redução de direitos bási- cos dos trabalhadores a uma condição que tangencia o trabalho degradante, pela legislação ou pela leni- ência de determinado país, com vistas a atrair mão de obra que no país de origem seria mais onerosa. A segunda ressalva à corrente teórica segundo a qual não se adotaria a primazia da norma mais favorável ao cotejo entre normas de diferentes países é, em certa medida, uma consequência da ressalva anterior. Segundo a atual redação da Lei n. 7.064/1982, qualquer trabalhador brasileiro pode optar pela regência da legislação brasileira se for contratado no Brasil para prestar serviço no exterior ou se for transferido para o exterior quando já laborava em nosso país. Essa opção pela lei trabalhista brasileira, que decerto ocorre nos casos em que ela é mais favorável, evita que o trabalhador migrante seja trasla- dado para país desprovido de proteção trabalhista e assim se submeta a emprego degradante. A regra da condição mais benéfica pressupõe a sucessão de normas trabalhistas, expressando o respeito ao direito adquirido no direito laboral. Já não mais se apresentam normas que vigoram simultane- amente, mas uma norma que passa a viger em detrimento de outra anterior, com conteúdo diverso. Aplica- -se, entre nós e do mesmo modo como sucede quando as normas têm vigência concomitante, a condição mais benéfica. Essa orientação fez surgir, a propósito da sucessão de regulamentos de empresa, a Súmula 51, I do TST: “As cláusulas regulamentares, que revoguem ou alterem vantagens deferidas anteriormente, só atingirão os trabalhadores admitidos após a revogação ou alteração do regulamento”. (182) Op. cit. p. 25. (183) Op. cit. p. 60. (184) OLIVEIRA, Francisco Antônio. Comentários aos Enunciados do TST. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 531. 72 – Augusto César Leite de Carvalho Tal regra sofria séria restrição quando se estava a decidir sobre a ultra-atividade das normas coletivas de trabalho (sentenças normativas, convenções ou acordos coletivos de trabalho), ou seja, perquiria-se quanto a sobreviger, por exemplo, a convenção coletiva anterior quando se esgotasse o seu prazo de vigência, fixado em uma de suas cláusulas (a cláusula de vigência é uma imposição do artigo 614, §3o, da CLT). Até setembro de 2012, dissentiam os dois órgãos fracionários de jurisdição mais relevantes na formação da jurisprudência trabalhista: enquanto a Seção de Dissídios Coletivos admitia a ultra-atividade(185), a Seção de Dissídios Individuais do TST, por suas duas subseções, deci- dia que as cláusulas normativas não eram ultra-ativas, não se incorporando ao contrato de trabalho após exaurir-se a vigência da norma coletiva. O entendimento da Seção de Dissídios Individuais parecia contrariar a nossa ordem constitu- cional, pois a atual Constituição, após enaltecer a importância dos processos de negociação cole- tiva, valorizando a necessária observância das convenções e acordos coletivos de trabalho (artigo 7o, XXVI), prescreve, com absoluta coerência, uma notória limitação ao poder normativo da Justiça do Trabalho (artigo 114, §2o.): “Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”(186). Se a sentença normativa não pode reduzir ou suprimir conquistas obreiras asseguradas mediante convenção ou acordo coletivo, infere-se que essas normas coletivas são as que já tiveram exaurido o seu período de vigência, ou seja, aquelas que vigoravam até a última data-base, pois se elas ainda estivessem vigorando decerto não seria instaurado o dissídio coletivo. A conclusão beira a obviedade: se a sentença normativa não pode infringir o conteúdo das convenções e acordos coletivos de traba- lho, induz-se que esse conteúdo subsiste, obviamente subsiste. Logo, as melhores condições de trabalho asseguradas em convenção coletiva anterior não pode- riam ser suprimidas mediante ação normativa do Estado (Poder Judiciário), ou melhor, somente uma nova convenção coletiva, nunca uma sentença normativa, poderia reduzir direitos consagrados em convenção coletiva anterior. Ives Gandra Martins Filho(187) já endossava essa orientação, nominava os membros do Tribunal Superior do Trabalho e festejados laboralistas que a perfilhavam, com base em artigos doutrinários que fizeram publicar, enfatizando, por derradeiro, a necessidade, externada em acórdão da mencionada corte trabalhista, de “as denominadas conquistas da categoria, decorrentes de acordos coletivos, convenções coletivas ou decisões normativas anteriores, para que possam ser apreciadas, devem ser especificadas uma a uma, como as demais cláusulas da representação, sob pena de julgar-se inepto o pedido a respeito”(188). Irresistível é rematar que o entendimento contrário somente avultava a posição desfavorável do trabalhador brasileiro no processo coletivo de negociação: negando-se a sobrevigência das conquistas obtidas em conflitos coletivos precedentes, estimulava-se o empregador à resistência, pura e simples. O empregador que se recusava a negociar obtinha, por meio dessa sua omissão e deslealdade, o proveito de obter a supressão dos direitos anteriormente conquistados pelos trabalhadores por meio de normas coletivas precedentes. Curiosamente e de modo pouco explicado, a Medida Provisória n. 1540-31/97 derrogou o §1o do artigo 1o da Lei n. 8.542/92 que, dispondo sobre política nacional de salários, prescrevia: “As cláusu- las dos acordos, convenções ou contratos coletivos de trabalho integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser reduzidas ou suprimidas por posterior acordo, convenção ou contrato coletivo de trabalho”. Se a intenção era retirar a expressão contrato coletivo (vez que não vingara o novo instrumento de negociação), poderia ter dado nova redação ao dispositivo, mas sem extirpá-lo do (185) Precedente Normativo n. 120 da SDC: “A sentença normativa vigora, desde seu termo inicial até que sentença normativa, convenção coletiva de trabalho ou acordo coletivo de trabalho superveniente produza sua revogação, expressa ou tácita, respeitado, porém, o prazo máximo legal de quatro anos de vigência.” (186) Sem itálico no original. Na redação original desse dispositivo, nele se lia: “Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitra- gem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respei- tadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho”. Na redação que lhe deu a Emenda Constitucional 45/2004, o artigo 114, §2º manteve a regra da ultra-atividade das normas coletivas, conforme se vê no texto acima. (187) MARTINS FILHO, Ives Gandra. Processo Coletivo do Trabalho. São Paulo: LTr, 1996. p. 45. (188) TST-RO-DC 90551/93.4, Rel. Min. Manoel Mendes de Freitas, DJU de 27.10.94, p. 29266. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 73 mundo jurídico – até porque a regra subsistia e era esclarecedora quanto à sobrevigência das demais normas coletivas, fazendo repercutir o preceito constitucional. Desprezava-se, enfim, a influência do direito comparado, que majoritariamente se inclinava pela ultra-atividade da norma coletiva. Embora devamos voltar ao tema no subtítulo dedicado ao princípio da autodeterminação coletiva, cabe antecipar que em setembro de 2012 o Pleno do TST modificou a orientação contida na Súmula 277 para então consagrar: “As cláusulas normativas dos acordos cole- tivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho”. Antes de concluirmos a referência ao princípio da proteção, cabe lembrar que Ives Gandra da Silva Martins Filho, ministro do TST que fora relator na SBDI 1 do leading case acerca da “garan- tia de indenidade” (TST-E-RR 763300-19.2003.5.14.0900), sustenta que deva ser acrescida às três regras derivadas do princípio da proteção aquela que intitula “princípio da indenidade”, definindo-a com clareza: “o exercício do direito de ação e o acesso à justiça pelo trabalhador, para postular direito que o empregador lhe esteja eventualmente sonegando, não pode ser motivo de retaliação e dispensa por parte do patrão. Assim, a dispensa do trabalhador, quando motivada pela não desistência de reclama- ção trabalhista ajuizada contra o empregador, possui conotação retaliativa e discriminatória, configu- rando abuso de direito, sendo nulo o despedimento e fazendo jus o empregado à reintegração [...]”(189) 5.3.2 Princípio da irrenunciabilidade Ao nada conduziria a fixação de salário e de jornada mínima, mediante norma trabalhista, se aos sujeitos da relação de emprego fosse permitido ajustar aquele ou esta em dimensão menor. A impos- sibilidade de o empregado dispor do direito trabalhista é inerente, pois, à natureza deste, guarda perti- nência com a ratio legis. Definida por Plá Rodriguez, a irrenunciabilidade vem a ser “a impossibilidade jurídica de privar-se voluntariamente de uma ou mais vantagens concedidas pelo direito trabalhista em proveito próprio”. Essa irrenunciabilidade é referida, às vezes, como indisponibilidade ou imperatividade. O caráter imperativo não é o da norma, porque toda norma o tem (enquanto ordem), mas concerne à pecu- liaridade de ser inderrogável (jus cogens) a norma trabalhista. Ao cogitar de indisponibilidade, parte da doutrina mantém a sua atenção voltada para a essência do princípio, porém lhe empresta maior amplitude, já que o direito indisponível não é apenas irrenunciável, mas igualmente insusceptível de ser objeto de transação. Renúncia e transação não se confundem mesmo. Aquela consiste em ato unilateral de disposi- ção de direito incontroverso; esta, em ato bilateral que comporta o eventual sacrifício ou privação de direito controvertido. A controvérsia pode residir na existência do direito ou na ocorrência de seu fato gerador – dúvida haveria, por exemplo, sobre o direito a certo padrão salarial ou acerca de ter havido a prestação de trabalho que daria ensejo à remuneração. A distinção entre renúncia e transação pode ser mais bem percebida nos processos que tramitam perante a Justiça do Trabalho. Nestes, as partes são induzidas, sempre que possível, à conciliação, dada a natureza alimentar das prestações supostamente devidas pelo empregador ou, num pleonasmo, a premência de se prover alimentos. Ainda assim, o juiz deve recusar a homologação da proposta de acordo que importe renúncia, ante a certeza do direito e de seu fato gerador. Quando há incerteza sobre o direito ou quanto ao fato que o gera, opera-se a transação válida, apta a pôr fim ao litígio. Há mais, a propósito do princípio que ora analisamos: é bom ver que a mencionada indisponibili- dade não tem o vício de consentimento como pressuposto necessário. Se pudéssemos imaginar que o direito do trabalho seria indisponível porque a vontade do empregado estaria presumidamente viciada, restaria sempre a opção da prova em contrário e, nesse caso, ressurgiria a eficácia dos contratos que malferissem os princípios que encerram a dignidade do trabalho humano. Assim, interessa perceber que o empregado não precisará provar que aceitara tal ou qual condição de trabalho porque cerceada a sua vontade, como ocorre em contratos paritários, no direito comum. (189) MARTINS FILHO, Ives Gandra. Manual Esquemático de Direito e Processo do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 75. O autor faz remissão à obra “Garantia de Indenidade no Brasil”, de nossa autoria, lançada em 2013 pela Editora LTr. 74 – Augusto César Leite de Carvalho No contrato trabalhista, a cláusula que previr aquém da garantia normativa é automaticamente substi- tuída por esta garantia: a cláusula legal substitui a cláusula contratual. 5.3.2.1. A indisponibilidade e a prescrição de pretensões trabalhistas A prescrição extintiva ou liberatória significa a inexigibilidade da pretensão quando o seu titular deixa escoar-se o prazo, estabelecido em lei, para deduzi-la em juízo. Difere da decadência porque o prazo previsto para esta inibe a constituição do direito, enquanto o implemento do prazo prescricio- nal, sendo suscitado pelo devedor em processo judicial, inviabiliza o exercício do direito preexistente (mediante ação condenatória). Como são raros os direitos trabalhistas cujo nascimento depende de ação constitutiva(190), maior relevância tem, em nosso estudo, a prescrição trabalhista, especialmente aquela fundada no artigo 7o, XXIX, da Constituição, que, entre os direitos sociais do trabalhador urbano ou rural, prevê: [...] ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extin- ção do contrato de trabalho. A essa altura, poderia questionar-se o estudioso da ciência jurídica: não seria a prescrição traba- lhista, sob o enfoque prático, a renúncia tácita de um direito irrenunciável? Se o direito trabalhista é indisponível e a sua inobservância faz nula a cláusula ou alteração contratual infringente, como compa- tibilizar a prescrição trabalhista com o axioma universal de que contra ato nulo o direito não prescreve? Duas regras são, aqui, inolvidáveis: • A primeira regra é atinente ao aspecto de esses direitos imprescritíveis não impedirem a prescrição das prestações pecuniárias correspondentes. Por exemplo, o direito a alimentos é imprescritível, mas a pretensão para haver prestação alimentícia prescrevia em cinco anos(191) e passa a prescrever em dois anos(192); • A segunda regra tem a ver com o grau de indisponibilidade que, a depender da origem, o direito trabalhista ostenta. Em vista disso, os juslaboralistas usam diferenciar a prescrição parcial (que alcança apenas as prestações exigíveis antes do prazo extintivo) da prescrição total (que atinge todas as prestações, inclusive aquelas com exigibilidade recente, caso a lesão tenha ocorrido antes do prazo liberatório). Em capítulo seguinte, reservado apenas ao tema da prescrição trabalhista, veremos que a indis- ponibilidade absoluta, que gera a prescrição apenas de parcelas exigíveis mais de cinco anos antes do ajuizamento da ação perante a Justiça do Trabalho, corresponde à lesão a direito previsto em lei. A indisponibilidade relativa, que corresponde à prescrição total, é concernente ao direito assegurado em outras fontes normativas, que não a estritamente legal. 5.3.3 Princípio da continuidade A empresa, no mundo moderno, tem a propensão à continuidade. O empresário a quer duradoura, próspera, sempre lucrativa. Constituir uma empresa significa reunir e organizar os fatores de produção (matéria-prima, capital e trabalho) com vistas à produção de bens ou serviços. Portanto, o trabalho, ou melhor, a contratação de trabalho humano vem a ser um elemento da empresa, como bem assentado por Evaristo de Moraes Filho(193), litteris: A tendência do direito moderno faz-se no sentido de incorporar o contrato de trabalho ao orga- nismo da empresa, na sua manifestação mais duradoura que é o estabelecimento. Deve-se (190) Exemplo, talvez singular, de prazo decadencial em direito do trabalho é aquele que corre contra o direito de o empregador ajuizar inquérito para apuração de falta grave cometida por empregado estável, em alguns casos de estabilidade. Em rigor, quando se afirma que o prazo decadencial flui contra a constituição do direito, diz-se em gênero, incluindo-se os casos de alteração ou desconstituição da relação jurídica. Este livro se encerra com capítulo destinado ao exame da estabilidade, sendo a matéria, ali, mais bem analisada. (191) Artigo 178, §10, I, do Código Civil de 1916. (192) Artigo 206, §2o, do Código Civil de 2002. (193) MORAES FILHO, Evaristo de. Do Contrato de Trabalho como Elemento da Empresa. São Paulo: LTr, edição fac-similada, 1993, p. 268. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 75 esta transformação de ponto de vista ao direito do trabalho, já que o direito comercial do século XIX, muito preocupado com o lado patrimonial do estabelecimento, demorava-se mais na sua composição material, ou mesmo imaterial, mas sempre como coisa. Talvez em nenhum escritor daquela centúria poderemos encontrar os serviços expressamente colocados como elemento essencial da organização comercial ou industrial. A primeira noção é de conjunto. A organização que contém o contrato de trabalho como um de seus órgãos transfere a este algumas de suas características, entre estas a pretensão à continuidade. E, ainda nessa medida, é imperioso perceber que o direito do trabalho, vocacionado à proteção do trabalhador, não poderia olvidar a permanência, a conveniência de ser estável a relação jurídica que une empregado e empregador, na formulação de suas normas. Uma pioneira manifestação desse princípio da continuidade foi certamente a estabilidade no emprego, assegurada até 1966 ao empregado brasileiro que contasse dez anos de serviço, na mesma empresa – a partir de 1967, a aquisição de estabilidade decenal era possível apenas para os empre- gados rurais e para os empregados urbanos que não optavam pelo regime do FGTS, não o sendo mais para qualquer trabalhador a partir de quando a atual Constituição universalizou o direito, até então alternativo, ao regime do FGTS. É curioso notar que, no Brasil e fora do âmbito dos funcionários públicos, o direito à estabilidade surgiu em 1923, inicialmente em favor dos ferroviários e como forma de assegurar o provimento de fundos previdenciários(194). Alguns autores, nacionais e estrangeiros, intitulam o princípio (da continuidade) como o da esta- bilidade, tal a relevância que dão ao direito de ser estável. Várias outras proposições e normas traba- lhistas estão, porém, inspiradas no princípio da continuidade, algumas delas sendo enumeradas pelo professor Américo Plá Rodriguez: a preferência pelos contratos de duração indefinida; a amplitude para a admissão das transformações do contrato; a facilidade para manter o contrato, apesar dos descumprimentos ou nulidades em que se haja ocorrido; resistência em admitir a rescisão unilateral do contrato, por vontade patronal; a manutenção do contrato nos casos de substituição do empregador. Quando estudarmos as situações especiais em que se operam as alterações do contrato de emprego, a sucessão de empregadores, as causas de suspensão ou interrupção do contrato, os limites da altera- ção contratual e as restrições ao contrato a termo, será certamente dilucidada, inferida com ainda maior clareza, a importância do princípio em tela, a sua influência na elaboração da norma trabalhista. 5.3.4 Princípio da primazia da realidade A lição é de Américo Plá Rodriguez(195): “O princípio da primazia da realidade significa que, em caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge de documentos ou acordos, deve- -se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos”. Em suma, entre o que expressem os documentos e a realidade contrastante, prevalecerá sempre a realidade. Os exemplos podem ser em número expressivo. Mas podemos lembrar os contratos simulados de sociedade ou mesmo prestação autônoma de serviço, ou ainda a existência de contratos, igualmente forjados, de locação de veículo (com a inclusão de cláusula em que o locador, como proprietário do veículo, obriga-se a estar disponível para a sua condução, em situação semelhante à do motorista-em- pregado). Quando, não obstante essa outra nomenclatura, nota-se a presença de todos os elementos distintivos do contrato de emprego (identificá-los-emos ao estudarmos os sujeitos do citado contrato), a solução judicial acertada é o reconhecimento da relação empregatícia, assegurando-se ao empregado todos os direitos trabalhistas. Também no que concerne ao conteúdo (conjunto de prestações exigíveis) do contrato de emprego, não interessa saber, por exemplo, se o empregado fora classificado como escriturário ou motorista. Se ele presta trabalho como digitador, legítima é a sua pretensão de ver equiparado o seu salário ao dos demais digitadores. (194) Lei n. 4682, de 24/01/23 – Lei n. Eloy Chaves. (195) Op. cit., p. 217. 76 – Augusto César Leite de Carvalho O princípio da primazia da realidade é às vezes confundido com a teoria do contrato-realidade, esta última tendo sido proposta por Mario de La Cueva ao refletir sobre a natureza jurídica do contrato de trabalho. Vivia-se uma era de resistência à hegemonia do modelo capitalista e aos institutos que lhe eram afins, como a propriedade e o contrato. As teorias relacionista, sobretudo na Alemanha, e institucionalista, com origem na França, sustentavam o início da relação de trabalho, respectivamente, a partir da incorporação do trabalhador no estabelecimento ou da adesão do trabalhador ao estatuto da empresa (instituição que, a exemplo de outras – família, igreja ou estado – pressupunha o trinômio ideia, hierarquia e estatuto). Essas teorias anticontratualistas não preponderaram, mas tiveram marcada influência na evolução do direito obreiro. A mencionada teoria do contrato-realidade surge como uma forma mitigada de se negar à relação de trabalho subordinado a origem em um contrato de natureza civil. Sustenta De La Cueva que o contrato de trabalho se aperfeiçoa quando se inicia a prestação laboral, e não ao tempo em que há o ajuste de vontades. Em pertinente passagem de sua obra, transladada por Plá Rodriguez(196), elucida De La Cueva: A doutrina [...] não se fixou nessa característica do contrato de trabalho, que o distingue dos contratos de direito civil, e não se deu conta de que somente fica completo o primeiro pelo fato real de seu cumprimento, e de que é a prestação de serviço, e não o acordo de vonta- des, o que faz que o trabalhador se encontre amparado pelo Direito do Trabalho; ou dito em outras palavras, a prestação de serviço é a hipótese ou pressuposto necessário para a aplicação do Direito do Trabalho. Quando tratamos do princípio da primazia da realidade estamos em âmbito mais restrito. Já não mais nos ocupa a necessidade de indicar a natureza do contrato que dá origem ao vínculo de emprego, mas cuidamos de perceber, tão somente, que documentos expressando hipótese diversa da real não têm efeito jurídico, porque haverá de prevalecer, sempre, a realidade. E se o ajuste inicial previa o labor em condições diferentes, também essa circunstância não terá maior relevo, pois interessará o fato real, a verdadeira condição de trabalho, a partir do instante em que a energia de trabalho esteve disponível. É irresistível ressaltar, enfim, que o princípio da primazia da realidade merece ênfase no direito do trabalho, pois é a virtual adversidade do sistema produtivo, e não o ato de vontade suposto e exteriorizado, que impõe a proteção ao empregado. Não se trata de princípio setorial, exclusivo do direito que protege a dignidade do trabalho humano. O artigo 167 do Código Civil em vigor fez migrar para a esfera cível das relações sociais uma nova regra, que invalida(197) os contratos simulados, preservando o vínculo que se disfarçou. Litteris: “É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”. 5.3.5 Princípio da razoabilidade O princípio da razoabilidade não comporta uma definição precisa. Reduzido à sua expressão mais simples, “consiste na afirmação essencial de que o ser humano, em suas relações trabalhistas, procede e deve proceder conforme à razão”, como ensina Plá Rodriguez(198). Basta lembrar as atuais incursões do segmento empresarial em áreas intocadas do direito do trabalho, sempre a dizer da inadequação deste ao novo processo de globalização e à complexidade da atividade produtiva, para que se perceba a necessidade, ainda que pontual, de o aplicador do direito recorrer ao critério da razo- abilidade, da ação em conformidade com a razão, quando instado à tarefa de interpretar ou aplicar a norma abstrata. Essa elasticidade (inexistência de conteúdo concreto) e a subjetividade (que não implica discernir com base em um particular juízo de valor, mas em consonância com a noção objetiva – própria ao homem médio – do que seja justo ou razoável) são características desse princípio, que vem ganhando importância maior na exata medida em que sucedem as mutações sociais e econômicas em nosso tempo. Amauri Mascaro Nascimento(199) é enfático, ao afirmar que “o princípio da norma favorável ao (196) Op. cit. p. 218. (197) O Código Civil de 1916 previa a anulabilidade do contrato dissimulado. O novo código prescreve a nulidade. (198) Op. cit. p. 251. (199) NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo : Saraiva, 1997. p. 285. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 77 trabalhador, que cumpre importante finalidade, não é absoluto, tem exceções, uma vez que o direito do trabalho admite acordos coletivos de redução da jornada e dos salários, de dispensas coletivas ou voluntárias [...] O princípio protetor, central no direito do trabalho, não é mais importante que o da razoabilidade, de modo que este é o princípio básico e não aquele”. Pinho Pedreira(200) registra que apesar de os autores não virem considerando o princípio da razoa- bilidade, o Tribunal Superior do Trabalho, em acórdãos da lavra do Ministro Marco Aurélio, nos anos de 1987 e 1988, assentara que “rege o direito do trabalho, da mesma forma que a própria vida gregária, o princípio da razoabilidade” e que “vigora em direito do trabalho, com tríplice missão informadora, interpretativa e normativa, o princípio da razoabilidade”. O professor Luiz de Pinho Pedreira da Silva transporta para sua obra ementas oriundas de julgamentos do Supremo Tribunal Federal, em que o princípio da razoabilidade é referido na solução de matéria constitucional ou administrativa, sugerindo ainda algumas situações em que o direito do trabalho é claramente informado pelo princípio ora examinado. Os autores mencionam sempre a importância de se verificar o limite do razoável quando se quer delimitar o direito de o empregador variar as condições de trabalho do empregado (jus variandi) como decorrência de estar investido do poder de dirigir a empresa. Há também uma inegável carga de subje- tividade, v. g., na decisão em que se diz da necessidade de uma transferência do trabalhador para estabelecimento diverso, ou ainda da alteração de suas funções em aparente violação do pactuado, ou enfim do cabimento e proporcionalidade de uma punição disciplinar. O exercício do poder diretivo precisa acontecer em conformidade com a razão objetiva. O mesmo se proclama no tocante ao reconhecimento da relação de emprego nas famosas zonas cinzentas: vendedor viajante ou representante autônomo? Carregador empregado ou biscateiro? Empregado ou sócio? Diretor ou empregado ou diretor-empregado? Representante legal de sociedade comercial contratada ou trabalhador subordinado? Foge ao limite do razoável, por exemplo, admitir que trabalhadores que executam iguais tare- fas, em idênticas condições, sejam uns classificados como autônomos e outros, como empregados. Também o desate contratual e a posterior contratação das mesmas pessoas, mas agora como traba- lhadores autônomos, supostamente convertidos em titulares de pessoas jurídicas que desenvolve- rão as mesmas atribuições em iguais condições, denunciam, com razoável presteza, a existência de contrato de emprego disfarçado (os intérpretes do direito do trabalho denominam esse fenômeno, ironicamente, como pejotização do empregado). Bem assim a conversão do trabalhador pretensa- mente autônomo em empregado, sem que se modifique o perfil do trabalho – é razoável entender que houve emprego, desde sempre. E o que dizer da simulada contratação de trabalhadores autônomos para a execução de serviço relacionado com a atividade-fim do empresário (o operador de caixa no banco, o motorista na transpor- tadora, o operador de máquina na indústria etc.)? A razão objetiva reclama a existência de contratos de emprego quando se cogita de serviços indispensáveis à continuidade da empresa. Mas, de toda sorte, vale a advertência de Plá Rodriguez(201): Não se trata, como se compreenderá, de critério absoluto e infalível, porque a vida real é bastante rica em possibilidades de aspectos e aparências muito diferentes, que às vezes parecem inverossímeis, de tão complexas. Tem-se dito com razão que a vida real é mais fecunda que a imaginação mais frondosa do legislador ou do jurista. E todos temos presen- tes casos práticos tão complexos que, se não soubéssemos serem autênticos, os descarta- ríamos por seu inverossímil conjunto de complicações e peculiaridades. Mas, de qualquer forma, atua como um critério adicional, complementar, confirmatório, suficiente quando não há outros elementos de juízo. 5.3.6 Princípio da boa-fé Tendência em acreditar em tudo e em todos, assim é definida a boa-fé pelos dicionaristas, dando ao termo a indicação da ingenuidade, inocência ou falta de malícia. No casamento putativo, os efeitos do vínculo aproveitam ao cônjuge inocente ou a ambos e seus filhos, se aqueles não conheciam o (200) SILVA, Luiz de Pinho Pedreira da. Principiologia de Direito do Trabalho. Salvador : Gráfica Contraste, 1996. p. 206. (201) Op. cit., p. 257. 78 – Augusto César Leite de Carvalho vício que o inquinava. Mas essa boa-fé-crença não tem relevância em nosso estudo, uma vez que trataremos da boa-fé-lealdade, ou boa-fé objetiva, assim definida por Forero Rodríguez, em excerto escolhido por Alfredo Ruprecht(202): A boa-fé significa que as pessoas devem celebrar seus negócios, cumprir suas obrigações e, em geral, ter com os demais uma conduta leal, e que a lealdade no Direito desdobra-se em duas direções: primeiramente, toda pessoa tem o dever de ter com as demais uma conduta leal, uma conduta ajustada às exigências do decoro social; em segundo lugar, cada qual tem o direito de esperar dos demais essa mesma lealdade. Age de boa-fé o sujeito da relação de trabalho, qualquer deles (empregado ou empregador), que tem conduta honesta em relação ao outro, não se valendo de comportamento insidioso ao executar a parte que lhe cabe no contrato. Não obstante a conflituosidade quase sempre latente nas relações de trabalho, empregado e empregador não são adversários, devendo mover a ambos o mesmo desejo de prosperidade para a empresa, que alimenta a fonte do salário e do lucro. Os artigos 482 e 483 da CLT, ao indicarem a casuística da justa causa, em verdade estão a elencar hipóteses em que a conduta do empregado ou do empregador acarreta a quebra da confiança que um no outro depositava. Não há melhor expressão, no direito do trabalho em vigor no Brasil, da função informadora do princípio da boa-fé. No âmbito da negociação coletiva de trabalho, exige-se do empregador que proveja o sindicato da categoria profissional de informações necessárias e verdadeiras sobre a condição econômica, finan- ceira e técnica da empresa, sempre que à pauta de reivindicações, formulada pelos trabalhadores, for oposto embaraço dessa ordem. É preciso ressaltar que o princípio da boa-fé se irradiou de outros foros jurídicos para o âmbito do direito do trabalho. E ganha vigor em todas as searas do direito, pois, lembra-nos Miguel Reale(203), os artigos 113(204), 187(205) e 422(206) do atual Código Civil referem-se ao princípio da boa-fé porque revelam a opção do legislador por normas genéricas ou cláusulas gerais, sem a preocupação de excessivo rigorismo conceitual, “a fim de possibilitar a criação de modelos jurídicos hermenêuticos, quer pelos advogados, quer pelos juízes, para contínua atualização dos preceitos legais”. Reale enumera os três princípios fundamentais que nortearam a elaboração do Código Civil de 2002: a eticidade, a socialidade (que se opõe ao individualismo jurídico) e a operabilidade (no sentido de estabelecer soluções normativas de modo a facilitar a interpretação e a aplicação da nova ordem legal). O princípio da boa-fé objetiva nos remete ao princípio da eticidade e evidencia a intenção de superar o formalismo jurídico do Código Civil de 1916, pois, diz-nos Reale, “não era possível deixar de reconhecer, em nossos dias, a indeclinável participação dos valores éticos no ordenamento jurídico, sem abandono, é claro, das conquistas da técnica jurídica, que com aqueles deve se compatibilizar”. 5.3.7 Princípio da igualdade de tratamento Em qualquer ramo do direito, a igualdade é compreendida, enquanto princípio, como o tratamento igual aos iguais, desigual aos desiguais, na medida da sua desigualdade. Pode parecer estranho que o postulado tenha influência na formação e aplicação de um ramo do direito privado que surgiu sob o pressuposto da desigualdade (entre patrões e empregados, provedores do capital e trabalho). Mas é ver que estamos a cuidar da igualdade entre os empregados e não entre estes e o empregador, porquanto fosse esta última contrariada pela realidade. Alfredo Ruprecht(207) reproduz a melhor compreensão que desse princípio esboçou a doutrina, litteris: (202) Op. cit., p. 86. (203) REALE, Miguel. Visão geral do novo Código Civil. 2002. In: Jus Navegandi, n. 54. [Internet] http://www1.jus.com.br/doutrina/texto. asp? (204) Art. 113 do novo Código Civil: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. (205) Art. 187 do novo Código Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. (206) Art. 422 do novo Código Civil: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. (207) Op. cit., p. 102. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 79 Quanto ao conteúdo, o princípio da igualdade de tratamento não significa uma completa igualação. Não atenta contra nenhuma proibição o fato de uma pessoa ser tratada especial- mente, mas o empregador, enquanto procede de acordo com pontos de vista gerais e atua segundo regulamentações estabelecidas por ele mesmo, não deve excetuar arbitrariamente, de tais regras, um trabalhador individual. É arbitrário o tratamento desigual em casos seme- lhantes por causas não objetivas. Por seu turno, Pinho Pedreira(208) explica que a adequação do princípio da igualdade ao direito do trabalho iniciou-se entre os germânicos, mas que essa ideia se propagou e, a partir da Alemanha, passou a informar o direito laboral na Espanha, França, Portugal, Itália e em importantes países latino- -americanos, como Argentina, México e Colômbia, sendo a Convenção n. 111 da OIT, que versa sobre a discriminação em matéria de emprego e ocupação, ratificada igualmente pelo Brasil. Parece importante recordar que os artigos 5o e 461 da Consolidação das Leis do Trabalho, que tratam da igualdade de salário para trabalho de igual valor, têm o mesmo fundamento de validade, a mesma matriz constitucional, qual seja, o artigo 5o da Constituição, a consagrar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O princípio da igualdade de tratamento se manifesta, o mais das vezes, em seu enfoque negativo, ou melhor, não a preconizar uma atitude positiva e igualitária do empregador, mas, com igual inspi- ração, a impedir que o empregador discrimine um ou alguns empregados sem uma causa objetiva – revela-se assim uma norma proibitiva, por isso sendo intitulado o princípio sob exame de princípio da não discriminação. Essa causa objetiva – fator de discriminação – deve ter nexo lógico com o ato discriminatório, como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello(209). A idade maior ou menor não justifica, por exemplo, o tratamento desigual que diga respeito ao pagamento de participação nos lucros ou em resultados da empresa, se não interferiu, abstratamente, na obtenção do lucro dividido. O mesmo se pode advogar quando o empregador oferece condições desiguais pelo fato de o empregado ser de etnia ou origem que a ele desagrada, sendo desigual apenas nessa medida. E está superada a velha orientação doutrinária, no sentido de o princípio da igualdade apenas se aplicar ao direito público, sendo oposto ao Estado. Observa Pinho Pedreira(210), secundando Luciano Ventura, que movimentos contrários à discriminação racial nos Estados Unidos ou às discriminações políticas e sindicais nos postos de trabalho, na Itália, provocaram tensões ásperas e generalizadas e “determinaram que se passasse a reconhecer a natureza da autoridade privada do empregador, cujo poder, assim como o estatal, não poderia deixar de estar sujeito a limites, que o inibissem de praticar arbitrariedade”. Não se pode esquecer que a empresa, enquanto propriedade daquele que provê o capital, tem imantada a sua função social. A produção de bens ou serviços ali desenvolvida não interessa apenas ao empresário, que dela quer, com razão, auferir lucro, mas aproveita a toda a sociedade. Justifi- cam-se, nessa medida, a ordem econômica e social incluída no texto constitucional (artigo 170) e as normas infraconstitucionais que inibem o abuso do poder econômico. Sobressai, a propósito, a Lei n. 9.029, de 1995, que proíbe “a adoção de qualquer prática discri- minatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as hipó- teses de proteção ao menor previstas no inciso XXXIII do artigo 7º da Constituição Federal” (art. 1o). Após capitular como crime algumas práticas discriminatórias vedadas aos empregadores, o art. 4o da citada lei faculta ao empregado que sofreu a despedida discriminatória a opção de ser reintegrado no emprego ou receber em dobro a remuneração que lhe seria paga durante o período de afastamento. O Tribunal Superior do Trabalho já teve oportunidade de fazer cumprir esse postulado da igualdade em favor de empregados que não eram estáveis no emprego mas foram discriminados, por exemplo, em razão de idade (TST-RR-462.888/1998, DJ 26/09/2003) ou de serem portadores do vírus da AIDS (E-RR-439.041/98). Mais recentemente, o TST editou a Súmula 443 de sua jurisprudência: “Presume-se (208) Op. cit., p. 180. (209) MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo : RT, 1978. p. 24. (210) Op. cit., p. 185. 80 – Augusto César Leite de Carvalho discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego.” A um só tempo, a alta corte do trabalho consagra a proibição de que se discrimine o trabalhador acometido de doença estigmatífera e distribui a carga probatória de modo a presumir o intuito discrimi- natório quando, presentes os indícios, o empregador (suposto ofensor) não produz prova de que teria despedido o trabalhador por motivo outro e lícito. É plural, aliás, o modo como se concretiza o princípio da igualdade de tratamento no direito do trabalho. A sua função interpretativa sobressai na aplicação do artigo 461 da CLT, este a prescrever a equiparação salarial entre empregados que executam trabalho de igual valor. Noutro viés, o seu caráter normativo é pronunciado quando o empregador institui tabela salarial, mesmo sem a atrelar a quadro de carreira porventura homologado pelo Ministério do Trabalho, e deixa de assegurar a algum empregado, em detrimento dos demais, o salário ali previsto; ainda quando as condições de trabalho, mesmo outras, afora o salário, não são iguais para os empregados em condições de igual- dade; também quando o empregador pune de modo discriminatório um empregado em relação a seus colegas que cometeram igual falta em idênticas circunstâncias e grau de participação. A doutrina e a jurisprudência trabalhista são pródigas na indicação de hipóteses em que o prin- cípio da igualdade de tratamento merece ser referido. Por outro lado, a necessária correlação entre a diferença que justifica o tratamento desigual e o elemento de discriminação pode ser bem ilustrada em orientação jurisprudencial preconizada na Súmula 451 do TST: “Fere o princípio da isonomia instituir vantagem mediante acordo coletivo ou norma regulamentar que condiciona a percepção da parcela participação nos lucros e resultados ao fato de estar o contrato de trabalho em vigor na data prevista para a distribuição dos lucros. Assim, inclusive na rescisão contratual antecipada, é devido o paga- mento da parcela de forma proporcional aos meses trabalhados, pois o ex-empregado concorreu para os resultados positivos da empresa”. Por derradeiro, vale ressaltar, sob o escólio de Pinho Pedreira(211), que ao empregador cabe o ônus de provar o motivo justo que teria tornado lícita a desigualdade de tratamento, retirando-lhe a aparência de arbitrariedade; também que “o princípio do tratamento igual funciona somente em favor do empregado, jamais em benefício do empregador, constituindo um fator de alinhamento por cima. Não pode este exigir do empregado a devolução de uma prestação que os demais não receberam”. A bem dizer, o princípio constitucional revela um valor a ser alcançado, desafiando o Estado Democrático de Direito. Quando lhe atribuímos força normativa, apresenta-se o princípio não apenas como um item na pauta do legislador, mas sobretudo como uma meta a ser atingida pelos que atuam o direito positivo, sempre visando à sociedade ideal. 5.3.8 Princípio da autodeterminação coletiva As negociações coletivas de trabalho produzem normas trabalhistas e para tanto já mostravam talento mesmo antes de o Estado percebê-las. Ao despertar para a força da ação coletiva, o Estado reprimiu a atuação sindical, tolerou-a numa etapa histórica seguinte e, enfim, reconheceu a sua legi- timidade. Mas houve tempo em que o regime fascista barrou o avanço do sindicalismo e o Estado nacionalista, por inspiração e obra de Benito Mussolini, disseminou-se em vários países, impondo ao sindicato a condição de órgão integrante de sua estrutura (estrutura estatal). O modelo fascista pressupunha o fim da luta de classes e, propondo então nova missão para o sindicato, dizia estar ele apto à colaboração institucional entre capital e trabalho, subordinando-se os interesses individuais e grupais aos interesses gerais da produção nacional e do Estado. O sindicato era o órgão do Estado voltado à consecução desse desiderato. Nascia o modelo corporativista italiano, adotado enfim pela comissão de estudiosos do direito do trabalho que elaborou a primeira versão de nossa CLT, especialmente na parte em que esta regulava os conflitos coletivos. As ordenanças do governo militar aliado aboliram o ordenamento corporativo na Itália e o exem- plo foi seguido pelas outras nações da Europa ocidental, tão logo tivera fim a Segunda Guerra Mundial. Essa restauração da democracia sindical não ocorreu, porém e em sua plenitude, no Brasil, (211) Op. cit., p.197. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 81 onde institutos como o monopólio da representação, a contribuição compulsória ao sindicato único e o poder normativo da Justiça do Trabalho remanescem, denunciando a inspiração corporativista da nossa estrutura sindical. A doutrina e a jurisprudência têm reclamado, porém, uma nova organização sindical, em conso- nância com a liberdade sindical preconizada na Convenção n. 87 da OIT. Nessa medida, a Cons- tituição editada em 1988 apresenta clara evolução ao prestigiar, em alguns de seus dispositivos, a negociação coletiva como mecanismo de solução dos conflitos trabalhistas que transcendem os inte- resses individuais dos trabalhadores, assim operando quando reconhece a validade das convenções e acordos coletivos de trabalho (artigo 7o, XXVI), autoriza a flexibilização da jornada e salário mediante concertação coletiva (artigo 7o, VI e XIII), enaltece a função conciliadora da Justiça do Trabalho e exige a precedência da negociação coletiva para que tenha curso o dissídio instaurado pelo sindicato obreiro ou patronal (artigo 114 e §§). Alguns autores invocam, porém, a nossa tradição – dir-se-ia de origem romano-germânica – de judicializar os nossos conflitos e regê-los por norma heterônoma, não devendo ser dócil o operador do direito do trabalho, no Brasil, à influência do costume anglo-saxão no sentido de remeter à via negocial toda e qualquer conquista obreira, suprimindo-se a instância judiciária. É eloquente o trecho seguinte, extratado de artigo doutrinário subscrito pelo Ministro Orlando Teixeira da Costa, à época em que presi- dia o Tribunal Superior do Trabalho(212): O ideal, para esses arautos do contratualismo coletivo hodierno, é que não haja instituições jurídicas que visem à regulação de qualquer vínculo laboral, que as partes relacionadas pelo trabalho prescindam de qualquer presença estatal, por mínima que seja, que não exista nenhuma previsão de conduta para o estabelecimento de relações trabalhistas, pois, assim ocorrendo, melhor será para a livre atuação e para o predomínio daquele que dispuser obje- tivamente de hegemonia. Não se deve cogitar de interesses humanos, mas, tão-somente, de interesses econômicos, cuja preponderância identifica a tese em que se apoia: o materialismo capitalista. Pressupondo uma total liberdade de relacionamento, esquecem-se de que essas relações não são meramente simpáticas, mas se desenvolvem num clima formal, que exige compor- tamentos previsíveis. Eis o pensamento contratualista coletivo que se pretende (e já se está conseguindo) disse- minar no Brasil. Intuímos, porém, que a negociação coletiva é imprescindível à adequação da norma às condições de trabalho novas ou advindas com a alta tecnologia, através da automação. Há necessidade, por vezes, de compatibilizar o salário, fixado à razão da quantidade de serviço, à produção maior obtida por meio da mecanização ou robotização do processo produtivo, eventualmente inadiável em vista da competição com empresas nacionais ou transnacionais que desenvolvem métodos mais avançados de produção. Ou, por outra, a negociação coletiva se faz útil para ajustar salário e jornada a tempos difíceis, em que a ameaça do desemprego pode ser atenuada com a colaboração do sindicato. Do mesmo modo, o progresso da tecnologia empregada em todos os setores da economia pode inovar condições de traba- lho inusitadas, não regidas pela norma positivada mas carentes de regulação específica. Por exemplo, a maior produtividade nas atividades agrícola e pecuária obtida por uso da biotecnia, bem assim a transferência de informação por meio virtual ou eletrônico que permite o controle pelo empregador a distância e, por igual, a realização do trabalho em local mais próximo do cliente ou da fonte produtora de matéria-prima. Todos esses avanços acontecem na área rural, na indústria ou no comércio, com o trabalho confinado em regiões inóspitas, em plataformas marítimas ou em locais de difícil acesso, com a venda mediante o teletrabalho ou o telemarketing etc. O que há de extraordinário na negociação coletiva, quando levada a termo pelo sindicato da cate- goria profissional (que congrega trabalhadores), é que a entidade sindical, diferente do empregado, não se encontra sob coação econômica, não teme a perda do emprego. O sindicato é o ser coletivo, que age impessoalmente em relação aos empregados, no confronto com o empresariado. Os dirigen- tes sindicais não podem ser despedidos, por emulação ou instinto persecutório, pelo empregador(213) e são livres para representar, a qualquer tempo e lugar, os interesses da categoria obreira(214). (212) In Revista Trabalho & Processo, vol. 6, Editora Saraiva, p. 104. (213) Vide artigo 8o, VIII, da Constituição e artigo 543, §3o, da CLT. (214) Vide artigo 543 da CLT. 82 – Augusto César Leite de Carvalho 5.3.8.1 A autonomia coletiva e os princípios da unicidade e da liberdade sindical Em capítulo anterior, tratamos da evolução do direito coletivo do trabalho, inclusive no Brasil. Como vimos, há a candente necessidade de se liberar a organização sindical das amarras do modelo corporativista, o que certamente permitirá não somente a representação, mas sobretudo a representa- tividade dos sindicatos e, de conseguinte, será possível a estes intervir mais objetivamente na reorde- nação do método de trabalho em cada empresa ou segmento econômico. Há dois princípios que são, aparentemente, antinômicos, embora sejam normalmente referidos quando se estuda a estrutura sindical no Brasil. Estamos a cuidar dos princípios da unicidade(215) e da liberdade sindical. Como pudemos verificar ao refletir sobre a origem do direito coletivo do trabalho, a unicidade sindical remonta a um tempo em que o modelo corporativista italiano, de caráter totalitário, negava o conceito de classe, subordinando os interesses individuais e grupais aos interesses gerais da produção nacional e do Estado. Ante o pressuposto de estar superada a concepção da sociedade com classes em eterno conflito, o corporativismo convertia os sindicatos em entidades de direito público ou, noutra perspectiva, transformava-os em entes privados que exerciam funções delegadas do Poder Público, sobretudo as de disciplinar a produção e o trabalho, bem assim a de arrecadar tributo – o imposto sindical(216) – que o provesse de recursos financeiros indispensáveis à realização desse desiderato. A não ser nas hipóteses de categoria profissional diferenciada – em que o enquadramento do trabalhador depende da natureza do serviço por ele prestado –, desvenda-se a categoria a que pertence o empregado consultando-se a atividade econômica de seu empregador. Há, sempre, uma entidade sindical a representar os empresários que desenvolvem alguma atividade, contrapondo-se a esse sindicato um outro, que representa empregados. Quando, do lado patronal ou dos empregados, a categoria não está organizada em torno de seu sindicato, representa-a a federação e, à falta desta, a confederação. A não ser nessa hipótese, à federação cabe a representação dos sindicatos (e não da categoria) e à confederação cabe representar as federações. Até ser editada a Constituição de 1988, o sindicato devia ser, antes, uma associação profissional, que somente adquiria a investidura sindical – vale dizer, o direito de agir como sindicato, representando filiados, ou não, que integrassem a categoria – quando lhe era outorgada a Carta de Reconhecimento, pelo Ministério do Trabalho. Mesmo depois de se transformar em sindicato, a entidade sindical que agia em desacordo com a política oficial de governo podia sofrer intervenção do Estado. A atual Cons- tituição extinguiu essa possibilidade de o Ministério do Trabalho intervir na gestão do sindicato, ao regular a matéria em seu artigo 8o, I: a lei não poderá exigir autorização do Estado par a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão compe- tente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical. Nota-se que a Carta de Reconhecimento não pode mais ser outorgada, formando-se o sindicato mediante o “registro no órgão competente”. Mas, a que órgão competente estaria o constituinte a refe- rir-se? Seria o cartório de registro de pessoas jurídicas, que controla o registro de estatutos das socie- dades civis? Ou seria o Ministério do Trabalho, que sempre possuiu o controle da unicidade, impedindo que novas entidades sindicais surjam para representar uma dada categoria, na mesma base territorial? Após polemizarem os tribunais e tratadistas, por alguns anos, a respeito desse questionamento, o Ministério do Trabalho editou sucessivas instruções normativas em que assumia a responsabilidade pelo cadastro nacional das entidades sindicais, embora a ressaltar, como o fez no intróito da Instrução Normativa n. 1, de 17 de julho de 1997, que o registro sindical, cujo controle ainda lhe cabe, é, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal(217), um “ato vinculado, subordinado apenas à verificação de pressupostos legais, e não de autorização ou de reconhecimento discricionários”. (215) Em rigor, o que usualmente se denomina princípio da unicidade não se reveste da característica de um princípio, pois não veicula propria- mente um valor ou uma diretriz, mas sim a vedação de uma conduta. Seria, a bem dizer, uma regra. O vezo de nos referirmos ao princípio da unicidade se justifica, porém, pela circunstância de remontar a uma compreensão mais abrangente segundo a qual não poderia, no regime corporativista e monopolista, mais de um ente exercer as funções do Estado relacionadas com a regulação do trabalho e da produção. (216) O imposto sindical foi, mais adiante e eufemisticamente, denominado contribuição sindical, que está atualmente referida nos artigos 513, e e 548, a, da CLT. (217) A IN 1/97 faz remissão ao MI 144/SP e à ADIMC 1121/RS, Tribunal Pleno. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 83 Quando o requerimento de registro é publicado do Diário Oficial da União e alguma entidade sindi- cal o impugna, reclamando a representação de empregados ou empregadores naquela base territorial, o Ministério do Trabalho nada decide (salvo quanto a regras de procedimento relativas ao encaminha- mento da impugnação), aguardando que o Poder Judiciário, por provocação das partes interessadas, dirima o conflito. Sobre o princípio da liberdade sindical, insta reproduzir o teor da Convenção n. 87 da OIT, sem embargo de esta não ter sido ratificada pelo Brasil: Artigo 1o Todo País-membro da Organização Internacional do Trabalho, para a qual esteja em vigor a presente Conven- ção, obriga-se a pôr em prática as seguintes disposições. Artigo 2o Os trabalhadores e os empregadores, sem qualquer distinção e sem autorização prévia, têm o direito de cons- tituir as organizações que julguem convenientes, assim como de se filiar a essas organizações, com a única condição de observar seus estatutos. Artigo 3o 1. As organizações de trabalhadores e empregadores têm o direito de redigir seus estatutos e regulamentos administrativos, o de eleger livremente seus representantes, o de organizar sua administração e suas atividades, e de formular seu programa de ação. 2. As autoridades públicas deverão se abster de toda intervenção que vise a limitar esse direito ou a dificultar seu exercício legal. Artigo 4o As organizações de trabalhadores e de empregadores não estarão sujeitas à dissolução ou suspensão por via administrativa. Artigo 5o As organizações de trabalhadores e de empregadores têm direito de constituir federações e confederações, assim como de filiar-se às mesmas, e toda organização, federação ou confederação tem o direito de filiar-se a organizações internacionais de trabalhadores e de empregadores. Artigo 6o As disposições dos artigos 2o, 3o e 4o desta Convenção aplicam-se às federações e confederações de organiza- ções de trabalhadores e de empregadores. É comum se sustentar, com apoio na Convenção n. 87 da OIT, acima transcrita, que o princípio da liberdade sindical se expressa por meio da liberdade individual, da liberdade coletiva e da autonomia sindical. A liberdade individual é a de filiar-se ou não a sindicato e a de escolher o sindicato a que se filiar. Quanto à liberdade coletiva, têm-na os grupos de empregados e empregadores quando lhes é assegurado o direito de constituir novas entidades sindicais, aptas à defesa de seus interesses parti- culares. A autonomia sindical manifesta-se no poder, em que está investida a categoria, de estruturar internamente o sindicato, à sua conveniência. Podemos inferir do artigo 8o, II, da Constituição que a liberdade coletiva não está plenamente garantida, no Brasil, pois “é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município”. Logo, os grupos sociais não podem constituir, livremente, novo sindicato que os represente, na mesma base territorial em que já sejam representados, por sindicato anteriormente constituído. Esse rigor tem sido, porém, atenuado, pois o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir em proces- sos nos quais dois ou mais sindicatos reclamavam a representação de trabalhadores na mesma base territorial, veio a entender que “o princípio da unicidade sindical não significa exigir apenas um sindi- cato representativo de categoria profissional, com base territorial delimitada, mas de impedir que mais de um sindicato represente o mesmo grupo profissional”(218). Assim, o STJ está admitindo o desmem- bramento do sindicato, bastando que a ala dissidente da categoria original constitua nova entidade e (218) Decisão contida em: RE 74986/SP; RE 40267/SP; RE-38726/RJ; MS 1703/DF. A remissão a essas decisões está no intróito da IN 1/97, do Ministério do Trabalho. 84 – Augusto César Leite de Carvalho cada empregado possa ser membro de uma só categoria, vale dizer, da categoria remanescente ou da categoria desmembrada. Além disso, o artigo 37, VI, da Constituição prescreve: “É garantido ao servidor público civil o direito à livre associação”. Como não há remissão ao artigo 8o da mesma Carta Magna, dessume-se que a unicidade sindical não é exigida com o mesmo rigor no tocante à sindicalização de servidores públicos. Tratando da matéria, o Supremo Tribunal Federal(219) decidiu que “a existência, na mesma base territorial, de entidades sindicais que representem estratos diversos da vasta categoria dos servi- dores públicos – funcionários públicos pertencentes à Administração direta, de um lado, cada qual com regime jurídico próprio – não ofende o princípio da unicidade sindical.” A última expressão da liberdade sindical é a que diz respeito à autonomia do sindicato para se organizar internamente. Vários foram os dispositivos da CLT que perderam fundamento de validade quando editada a Constituição em vigor, que veda ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical (artigo 8o, I). Há um preceito da CLT, o seu artigo 522, que teve, contudo, a sua eficácia restaurada em razão do modo abusivo como os sindicatos vinham investindo, em seus órgãos de direção, um número excessivo de empregados. A seu tempo, vamos estudar a estabilidade que o artigo 8o, VIII, da Constituição garante aos dirigentes sindicais. Os tribunais poderiam ter firmado jurisprudência no sentido de a estabilidade não se estender a todos os dirigentes do sindicato, ou a qualquer deles, nos casos concretos em que se reve- lasse abusiva a composição da diretoria sindical. Num primeiro momento, assim se posicionou a jurisprudência(220). Mas o Supremo Tribunal Federal(221) optou por reduzir o número de dirigentes sindicais a sete, tal como estatuído no artigo 522 da CLT. Quando declara a ultra-atividade desse dispositivo, a decisão do STF facilita a tarefa de julgar, pois oferece às partes e ao juiz um raciocí- nio silogístico a que estamos acostumados, dada a nossa tradição romano-germânica. Perdeu-se mais uma oportunidade, porém, de deixar aos interessados a liberdade de agir segundo o Direito e ao Poder Judiciário, a responsabilidade de não intervir na relação associativa, gérmen e escola de democracia, senão para invalidar o ato abusivo. Deduz-se, portanto, que a unicidade sindical, para alguns indispensável na fase embrionária do sindicalismo brasileiro – ao tempo em que o seu oposto, a pluralidade, poderia dispersar os trabalha- dores – e defendida por centrais sindicais e setores expressivos do patronato à época da Assembleia Nacional Constituinte (1988), está, hoje, a engessar a formação e a atuação dos sindicatos, nem sempre representativos. Dados estatísticos apresentados pelo IBGE, no final de 2002, já informavam que apenas metade dos sindicatos realizavam negociações coletivas, não sendo ainda mais inex- pressivo esse número em razão de 62% e 63% dos sindicatos atuantes nas regiões Sul e Sudeste, respectivamente, cumprirem a sua missão supostamente congênita, a de negociar para obter mais justas condições de trabalho. Ademais, a herança do arbítrio estatal fez com que se preservassem associações sindicais forja- das por líderes políticos autoritários ou pelo próprio empregador, com o maldisfarçado objetivo de neutralizar o espaço discursivo e reivindicatório que o sistema capitalista tolera, no ambiente empre- sarial. Soma-se ao peleguismo a criação de milhares de sindicatos, no Brasil, com o intuito pouco dissimulado de arrecadar a contribuição sindical – que seria obrigatória para todos os empregados e empregadores – ou, até sobrevir a EC n. 24/1999, indicar representantes classistas para a Justiça do Trabalho. São as chagas do corporativismo, ainda assim insuficientes para obscurecer a importância da negociação coletiva de trabalho, instrumento de solução dos conflitos coletivos que viabiliza a correção de injustiças e promove a adaptação da norma abstrata à realidade plural e complexa, pres- cindindo da intervenção estatal. (219) STF, RE 159288, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 23.8.1994. (220) TST, RR 290771/96.9, Rel. Min. João Oreste Dalazen. Apud CARRION, Valentin. Comentarios à Consolidação das Leis do Traba- lho. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 423. (221) “O art. 522, CLT, que estabelece número de dirigentes sindicais, foi recebido pela Constituição/88, art. 8o, I” (STF, RE 193345-3-SC, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 13/04/99. Apud CARRION, Valentin. Op. cit. p. 423. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 85 5.3.8.2 A autodeterminação coletiva e a flexibilização do direito do trabalho. O princípio constitucional da proteção ao trabalhador Ao menos no que toca às etapas da produção de bens e serviços ainda não transferidas à máquina, a lógica poderá ser a da flexibilização sem prejuízo das garantias mínimas asseguradas ao trabalho humano. Para tanto, é imperioso que não se faça tabula rasa do caráter geminado atribuído ao valor social do traba- lho e ao valor – igualmente social – da livre iniciativa, pelo artigo 1o, IV, da nossa Carta Magna. Cabe adiantar que flexibilização é neologismo que denota adaptação. Sobre a conveniência de se adaptar a norma trabalhista às excentricidades do mundo do trabalho, nem sempre previstas pelo legislador, já nos posicionamos, defendendo então o respeito às garantias mínimas asseguradas na ordem legal. Mas há um claro movimento, no Brasil de hoje, que tende a estabelecer perfeita sinonímia entre flexibilização e desregulamentação. Houve tempo em que se cogitou, intensamente, de alterar-se o art. 618 da CLT para permitir que convenções e acordos coletivos de trabalho reduzissem direitos assegurados em outros dispositivos consolidados. Essa iniciativa sustentava-se no argumento de que a mudança não atingiria normas constitucionais, mas somente regras insculpidas na CLT. Assim, teria fundamento de validade na Constituição Federal. O argumento desdenhava a relevância, ou a preeminência enfim, que festejados teóricos(222) do direito (sediados, não custa lembrar, em países como Inglaterra, Estados Unidos, Itália e Alemanha, que ocupam o centro da economia mundial) têm atribuído aos princípios constitucionais. Interessa- -nos, em especial, o princípio da proteção, que está topograficamente referido no caput do art. 7º da Constituição e prevalece, também por isso, quando cotejado com o da autodeterminação coletiva, contemplado, secundariamente, em um dos incisos desse preceito constitucional, o inciso XVI. Há princípios que estão positivados, na Carta Constitucional, segundo o conceito, ou melhor, a expressão verbal do conceito que lhes dá o sentido. Por exemplo, os conceitos valor social do trabalho, dignidade da pessoa humana, devido processo legal, contraditório e ampla defesa estão expressa- mente referidos no texto constitucional e, com base nos dispositivos da Constituição que a eles fazem referência, compreende-se toda a dimensão de seu significado. Existem, porém, princípios cujo sentido pode ser sintetizado em conceitos jurídicos conheci- dos por meio de nomenclaturas que não foram adotadas pelo constituinte, a exemplo de efetividade do processo, acesso à Justiça, motivação dos atos administrativos, subsidiariedade da intervenção econômica do Estado. Apesar de a Constituição expressá-los de outro modo, não nos parece haver dúvida, ou dúvida séria, quanto à elevação desses princípios ao nível constitucional. Há, enfim, princípios de direito que nos interessam especialmente, pois eles são extraídos do sistema constitucional, embora a eles não faça alusão explícita ou implícita qualquer de seus dispositi- vos. Por exemplo, a organização judiciária instituída pela Constituição permitiu que constitucionalistas e processualistas sustentassem, como alguns ainda sustentam, estar o princípio da revisibilidade das decisões ou do duplo grau de jurisdição erigido ao nível de princípio constitucional. Mais que isso: a adoção do modelo montesquiano de repartição do poder estatal fez com que se extraísse da organização político-administrativa, consagrada na atual Carta Política, a rigidez do princípio da separação de poderes. Nota-se que o artigo 60, §4o da Constituição inclui esse princípio constitucional entre as cláusulas pétreas, sem que qualquer outro artigo da Constituição a ele faça a mais breve menção, para explicar, enfim, qual o seu conteúdo. Relembramos, então, que todo o ordenamento trabalhista está fundado no pressuposto de a norma estatal assegurar o mínimo de proteção ao trabalhador, ou seja, uma base de direitos que garante a dignidade do trabalho humano. Não há norma legal que esgote a proteção ao empregado, pois ela sempre prescreverá a proteção mínima e tudo o mais poderá ser acrescido mediante negocia- ção coletiva, regulamento de empresa, contrato. É inverídica, a propósito, a afirmação de que a proteção celetista está esclerosada, porque remonta a 1943. Em vez disso, o que se tem é um conjunto de normas que se veio formando ao longo do (222) Podemos lembrar Crisafulli e Bobbio na Itália, Robert Alexy na Alemanha e Ronald Dworkin na Inglaterra e nos Estados Unidos. 86 – Augusto César Leite de Carvalho processo de automação agrícola, industrialização, informatização e mesmo terciarização, vivenciado pelo Brasil em décadas bem mais recentes. A regência das férias individuais e coletivas, como está na atual CLT, é uma mescla de dispositivos editados entre 1977 e 2001; as prescrições sobre os adicionais de insalubridade e periculosidade se inseriram na CLT entre 1977 e 2012; a norma excludente dos que exercem cargo de confiança (art. 62), no tocante à duração do trabalho, é de 1994; a proteção contra a supressão do intervalo intrajornada é também de 1994; a proteção do trabalho da mulher sofreu alterações em 1989 e em 2001; os artigos da CLT que regulam a duração dos contratos sofreram alterações em 1967, em 1977, em 1989 e em 2001; o capítulo que trata da rescisão contratual também sofreu várias alterações, sobretudo em 1970 e em 1989; o título pertinente ao contrato individual do trabalho foi modificado em 1967, 1994 e 1997. Em todos esses dispositivos está sempre prevista uma proteção mínima, assecuratória de um direito trabalhista absolutamente indisponível, sujeito apenas à prescrição parcial, sem embargo de norma mais favorável ao trabalhador, porventura elaborada pelos próprios atores sociais, poder ser construída e a essa norma estatal preferir. Ao lado da regra de interpretação in dubio pro operario e da regra de sobrevigência da condição mais benéfica, essa técnica de impor, mediante lei, um patamar de dignidade do trabalho humano e permitir a edição de normas ainda mais protetivas revela as formas por que se manifesta o princípio da proteção. O poder constituinte originário, que tudo podia, estava autorizado a romper essa tradição do direito trabalhista, deixando às partes, por meio de seus sindicatos, o direito de reduzir direitos, por exemplo. Assim, porém, não operou, pois ressalvou, desde logo, quais as condições contratuais que, embora referidas em lei, poderiam ser objeto de negociação coletiva: a redução ou compensação de jornada (artigo 7o, XIII, da Constituição), a irredutibilidade do salário (artigo 7o, VI) e a jornada reduzida em turnos ininterruptos de revezamento (artigo 7o, XIV). Quanto ao mais, a diretriz é a mesma. O artigo 7o da Constituição enumera os direitos sociais de índole trabalhista que erigiu a direitos fundamentais e assim os introduz: “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”. Aplicou o poder constituinte a mesma técnica, bem se nota, de editar a norma inerente à dignidade do trabalho humano e reservar um grau maior de proteção ao domínio de outras normas. Ao examinar o princípio da proteção, vimos que essa tendência para a expansão do conteúdo protecionista é o modo como repercute, entre nós, o princípio da proibição do retrocesso que informa a teoria dos direitos fundamentais. Portanto, todo o sistema jurídico trabalhista, a partir do texto constitucional, está fundado no prin- cípio da norma mais favorável, que é a expressão mais eloquente do princípio da proteção. E que importância há em se afirmar que o princípio da proteção está consagrado na Constituição? A resposta apela para um truísmo: o caráter normativo de um princípio constitucional impede que norma infra- constitucional, que o desconsidere, revele-se válida. É como dizer: a lei que altere essa lógica interna do sistema trabalhista, permitindo que uma norma coletiva possa derrogar direitos absolutamente indisponíveis, assegurados em norma estatal, carece de fundamento de validade; é, em resumo, inconstitucional. Não se afigura razoável, enfim, a afirmação de que a outorga de maior poder aos sindicatos os fortaleceria. Contra essa ingênua proposição, parece-nos oponível a lucidez do ministro Arnaldo Sussekind, em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo: É preciso considerar que o Brasil é desigualmente desenvolvido, onde regiões plenamente desenvolvidas convivem com outras em vias de desenvolvimento e com algumas preocu- pantemente subdesenvolvidas. Ora, só existem sindicatos fortes, capazes de negociar em posição de equilíbrio com importantes empresas nacionais e transnacionais, onde há espírito sindical. E esse dado sociológico emana espontaneamente das grandes corporações operá- rias, as quais se formam onde há desenvolvimento econômico, sobretudo no setor industrial. Em suma, a negociação coletiva e seus consectários, a convenção e o acordo coletivo de traba- lho, são uma conquista do direito contemporâneo. Mas a alteração pretendida para o artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho seria inconstitucional porque ensaiaria inverter a lógica do sistema, reservando à norma categorial, ainda mais em períodos de crise econômica e ameaça de desemprego, o poder de estabelecer as condições em que a utilização da energia de trabalho se coadunaria com a Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 87 dignidade do trabalho humano. Essa função é estatal e o Estado a realiza quando cumpre o artigo 7o da Constituição, exaurindo-lhe o conteúdo e lhe garantindo efetividade. 5.3.8.3 A autodeterminação coletiva e a ultra-atividade das normas coletivas de trabalho Conforme já adiantamos no subtítulo dedicado ao princípio da proteção, em trecho alusivo à prevalência da condição mais benéfica quando normas sucessivas estiverem a reger a mesma condi- ção de trabalho, a Súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho teve a sua redação alterada em setembro de 2012, pois até então veiculava a orientação segundo a qual as cláusulas normativas das convenções e acordos coletivos de trabalho não vigoravam após encerrar-se o prazo de vigência dessas normas coletivas. A alteração do conteúdo de citada súmula foi significativa porque se superou a tese de que as cláusulas normativas não aderiam ao contrato de emprego, vigorando apenas enquanto vigiam as normas coletivas, para adotar-se o critério da aderência limitada por revogação, ou seja, compreende- -se que “as cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação cole- tiva de trabalho”. Essa inversão de sinal não se deu inopinadamente. Consoante esclarecido em artigo jurídico subscrito pelos Ministros Kátia Magalhães Arruda, Mauricio Godinho Delgado e Augusto César Leite de Carvalho, publicado na Revista do Tribunal Superior do Trabalho(223) e na Biblioteca Digital do TST, já havia por certo da Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho incontáveis prece- dentes(224) que consagravam a ultra-atividade da norma coletiva, além de o Precedente Normativo 120 daquele órgão fracionário estabelecer que é também ultra-ativa a sentença normativa, pois decerto o art. 114, §2º, da Constituição prescreve, sem frestas de intelecção, que a Justiça do Trabalho, ao decidir o conflito, deve respeitar “as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”. Defendeu-se, ainda, que a interpretação sistemática dos artigos 616, §3º e 867, parágrafo único, da CLT não conduziriam necessariamente à eficácia temporalmente limitada das cláusulas normativas, como preconizava a antiga redação da Súmula 277, pois desses dispositivos se extrai que a ordem laboral foi concebida a partir do pressuposto de que não devem existir hiatos de anomia jurídica nas relações coletivas de trabalho, tanto que as normas elaboradas pelas categorias ou pela Justiça do Trabalho devem ganhar vigência, segundo tais preceitos de lei e em situação de normalidade, a partir do dia imediato ao termo final de vigência da norma coletiva anterior. A não aderência das cláusulas normativas gerava, idealmente, um tempo sem norma coletiva, o que inexiste quando assegurada a ultra-atividade da norma coletiva anterior. Ademais, a pesquisa que precedeu a mudança na redação da Súmula 277, como se evidenciou em referido artigo jurídico, pôde constatar que a jurisprudência do STF alusiva ao tema parecia refra- tária à tese da ultra-atividade porque amparada no art. 142, §2º, da Constituição de 1967. É que toda ela remetia – direta ou indiretamente – ao precedente RE 103332, julgado com apoio na ordem cons- titucional revogada. (223) Revista do Tribunal Superior do Trabalho, vol. 78, n. 4, out/dez 2012. (224) CARVALHO, Augusto César Leite de; ARRUDA, Kátia Magalhães; DELGADO, Mauricio Godinho. A Súmula n. 277 e a Defesa da Constituição. Disponível em: http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/28036/2012_sumula_277_aclc_kma_mgd. pdf?sequence=1. Em mencionado artigo jurídico, citam-se os seguintes precedentes da SDC: TST, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, RODC 2010000-68.2008.5.02.0000, Rel. Min. Walmir Oliveira da Costa, julgado em 12/04/2010, DEJT 30/04/2010; TST-R ODC-143900-69.2004.5.04.0000, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, publicação em 09/05/2008; TST-RODC-103100-33.2003.5.04.0000, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, publicação 13/06/2008; TST-RODC-38300-71.2003.5.12.000, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, publicação em 27/06/208; TST-RODC-207600-19-2004.5.04.0000, Rel. Min.ª Dora Maria da Costa, publicação em 29/08/2008; TST-R ODC-6400-80.2007.5.03.0000, Rel. Min. Márcio Eurico Vitral Amaro, publicação 20/02/2009; TST-RODC-140700-48.2004.5.15.0000, Rel. Min.ª Kátia Magalhães Arruda, publicação 27/03/2009; TST-RODC-59300-52.2003.5.04.0000, Rel. Fernando Eizo Ono, publi- cação 26/06/2009; TST-RODC-2013500-16.2006.5.02.0000, Rel. Min. Márcio Eurico Vitral Amaro, publicação 20/11/2009; TST-R ODC-175800-07.2003.5.04.0000, Rel. Min.ª Kátia Magalhães Arruda, publicação 20/11/2009; TST-RODC-95100-91.2004.5.01.0000, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, publicação 26/02/2010; TST-RODC-2033200-41.2007.5.02.0000, Rel. Min.ª Dora Maria da Costa, publi- cação 28/06/2010. 88 – Augusto César Leite de Carvalho Em síntese, foram essas e mais a influência do direito comparado autorizada pelo art. 8º da CLT – o ensaio jurídico (subscrito, como visto acima, pelos ministros Mauricio Godinho Delgado, Kátia Magalhães Arruda e Augusto César Leite de Carvalho) cita a experiência de vários países da América e Europa, como Argentina, Bélgica, México, Paraguai, Venezuela, Uruguai, Alemanha, Países Baixos, Itália, Portugal, França e Espanha que adotam historicamente a ultra-atividade – os motivos de o Tribunal Superior do Trabalho aplicar, desde setembro de 2012 e com forte suporte constitucional e infraconstitucional, a regra segundo a qual as cláusulas normativas perseveram enquanto negociação coletiva superveniente não reduz ou suprime as conquistas obreiras por elas consagradas. Digno de nota o julgamento pelo Tribunal Supremo da Espanha, ao fim de 2014, em que a corte neutraliza os efeitos de recente reforma tendente a flexibilizar direitos dos trabalhadores espanhóis, consistindo uma dessas mudanças na limitação da ultra-atividade das normas coletivas vigentes no país – a referida reforma, instituída em 2012, previa estar limitada a ultra-atividade ao mês de julho de 2013, pois assim surgiriam novas normas coletivas afinadas com o seu escopo flexibilizante. Como observou Baylos Grau, “a ideia era simples porque se resumia à rendição forçada das representações dos traba- lhadores às ofertas dos empresários na negociação coletiva, dado que se não as aceitassem perderiam os trabalhadores a regência da convenção coletiva – definitivamente revogada – e se aplicariam os míni- mos legais de origem estatal, complementados pelas decisões unilaterais do empresário”(225). Os estudiosos do direito do trabalho, na Espanha, insurgiram-se de pronto contra o caráter preca- rizante da medida(226) e, ao decidir finalmente a matéria, o Tribunal Supremo daquele país estabeleceu que as condições de trabalho pactuadas no contrato de trabalho, desde o momento de sua constitui- ção, têm natureza jurídica contratual e por isso seguem exigíveis com base no contrato de trabalho, ainda que expirada a vigência da convenção coletiva(227). A ultra-atividade da norma coletiva de trabalho é, sobretudo, regra de civilidade porque em vez de deixar-se ao empregador a alternativa de recusar-se à negociação com o objetivo de desonerar-se de obrigações trabalhistas, esse escopo passou a ser alcançável somente por meio da negociação coletiva. (225) No original: “La idea era sencilla porque se resumía en la rendición forzada de las representaciones de los trabajadores a las ofertas de los empresarios en la negociación colectiva puesto que de no aceptarlas, perderían los trabajadores la cobertura del convenio colectivo – definitivamente extinguido – y se les aplicaría los mínimos legales de origen estatal, complementados con las decisiones unilaterales del empresario.” (BAYLOS GRAU, Antonio. La ultraactividad de los Convenios y la Reforma Laboral. Disponível em: http://www.nuevatri- buna.es/opinion/antonio-baylos/ultra-actividad-convenios-y-reforma-laboral/20141222170109110642.html. Acesso em 19/jan/2014. (226) No artigo mencionado, Baylos cita artigo subscrito coletivamente por Jordi Agustí , Carlos L. Alfonso, Joaquín Aparicio, Antonio Baylos, Jaime Cabeza, Maria Emilia Casas, Jesús Cruz, Maria Fernanda Fernandez, Jose Luis Goñi, Juan López Gandía, Amparo Merino y Cristóbal Molina. (227) Anota Antonio Baylos Grau (idem, ibidem): “El Pleno de la Sala de lo Social del Tribunal Supremo, por mayoría de sus integrantes, ha establecido que las condiciones pactadas en el contrato de trabajo desde el momento mismo de su constitución, sea directamente o por remisión a lo establecido en el convenio colectivo de aplicación, tienen naturaleza jurídica contractual y por ello siguen siendo exigibles entre empresa y trabajador por el contrato de trabajo que les vincula, aunque haya expirado la vigencia del convenio colectivo de referen- cia, pudiendo en su caso ser modificadas si concurren circunstancias económicas, técnicas, organizativas o productivas, según establece el Estatuto de los Trabajadores y ello sin perjuicio de que continúe la obligación de negociar un nuevo convenio. En el supuesto que ha resuelto ahora el Tribunal Supremo, la empresa entendió que al haber trascurrido un año de vigencia prorrogada o ultra-actividad prevista por el nuevo texto legal de 2012, sin que se hubiera suscrito un nuevo convenio de empresa, dejaba de ser aplicable el anterior y al no existir convenio de ámbito superior, comunicó a los trabajadores que a partir de entonces aplicaría el Estatuto de los Trabajadores. De este modo, abonó la nómina del mes entonces en curso –julio 2013- en dos cuantías diferentes: un período a razón del salario anterior, según en el convenio finalizado, por los días en que aún estaba en vigor el convenio y otra cuantía inferior por el período restante, con arreglo ya al Estatuto de los Trabajadores, siempre según la práctica seguida por la empresa. El Tribunal Superior de Justicia de Baleares declaró no ajus- tada a derecho la conducta empresarial e, interpuesto recurso de casación por la empresa, ha sido desestimado por el Tribunal Supremo”. El texto de la nota informativa finaliza recordando que “Es la primera vez que el Tribunal Supremo se pronuncia sobre esta materia” CAPÍTULO VI A PRESCRIÇÃO TRABALHISTA 6.1 A prescrição e o temor de propor a ação O trabalhador brasileiro é titular de uma gama de direitos que não nasce, o mais das vezes, da negociação coletiva por meio da qual se comprometeria diretamente o seu empregador. Nasce da lei – e assim sucede, talvez, porque o modelo de organização sindical não inspire confiança ou não demonstre capilaridade suficiente para fomentar a representatividade dos atores sociais. Ou decerto porque o grau de assimetria na relação laboral ainda reclame, entre nós, alguma intervenção estatal protetiva e compensatória. O fato é que o empregador nem sempre se revela comprometido com o cumprimento da ordem jurídica marcadamente heterônoma, sequer reconhecendo que a representação política de seus inte- resses predomina, como invariavelmente predominou, na elaboração das leis trabalhistas cuja obser- vância e respeito estaria a recusar. Porque se envolve em uma teia de irregularidades para desafiar a ordem que ajudou a construir, mas entende ilegítima, a relação trabalhista no Brasil parece fadada a promover a insatisfação dos que a protagonizam. Não raro, nela subjaz um conflito latente que mais adiante se transforma em conflito judicializado. A propositura de ação judicial seria o meio de instaurar, ou quem sabe restaurar, a harmonia entre os que contendem em silêncio, o empregador e o empregado que, desavindos, insistem em interagir cordialmente, ambos movidos pela intenção de preservar o vínculo, mas preservá-lo por razões diver- sas, paradoxalmente definidas pela ideia de subsistência: o empresário persegue a continuação de seu negócio; o empregado, a própria sobrevivência. Há, contudo, de os direitos não se autarquizarem na vida social sem um plexo de garantias que os torne efetivos. Direitos que não se mostram aptos à realização apresentam-se como “direitos” por mera concessão verbal, pois tolerante em demasia é a linguagem jurídica. Mesmo a ação judicial, uma garantia por definição, reclama garantias de segundo nível, vale dizer, mecanismos jurídicos que protejam aqueles que a exercem. Regra geral, cometem-se aos atores políticos – responsáveis pelas salvaguardas da atuação do Estado – o oferecimento e a institucionalização dessa rede de proteção que aconchega os que fazem valer os seus direitos subjetivos. Em outra ocasião, e após estudo de algum fôlego acadêmico, já dissemos que a jurisprudência constitucional espanhola instituiu a garantía de indenidad, vale dizer, a imunização de todos quantos exerçam um direito fundamental, inclusive o direito de ação judicial trabalhista. Protege-se o empre- gado contra a represália patronal que consista em ato de retaliação ou mesmo em ato de dispensa. O trabalhador europeu, por obra de construção jurisprudencial que mais tarde se converteu em lei e em directiva da União Europeia, tivera assim assegurado o seu retorno ao emprego sempre que dispen- sado em virtude de ousar a propositura de demanda judicial durante a relação empregatícia. É incipiente, porém, a evolução jurisprudencial a respeito, no Brasil. Se cuidamos da ação judicial individual, a verdade é que o instituto está às voltas com um pensamento jurídico que confina o seu uso, contraditoriamente, aos destituídos de emprego. Quem propõe ação perante a Justiça do Traba- lho não é, regra geral, o empregado, mas aquele que deixou de sê-lo. São de uma tibieza inquietante as tentativas, no campo doutrinário e sobretudo jurisprudencial, no sentido de outorgar cidadania aos trabalhadores que ainda sofrem a lesão, vivenciando-a resignadamente. Mas ainda mais perversa, na perspectiva do empregado que suportou a violação de seus direitos em meio a uma relação trabalhista de médio ou longo tempo, é a percepção, ao desenlace do vínculo, de estarem definitivamente consolidadas as alterações contratuais lesivas que contam mais de cinco anos, não importando se o descumprimento do contrato, pelo empregador, repercutiu, insidiosamente, por todo o restante da relação laboral. Não foi dado ao trabalhador o direito de reclamar sem expor-se ao risco – em verdade, à contingência quase inexorável de perder o emprego – e agora lhe tratam como um credor relapso, daqueles que negligenciam a luta por seu direito em razão de preguiça ou 90 – Augusto César Leite de Carvalho inapetência. A ordem jurídica e seus operadores fazem caso do medo que o empregado tem de apre- sentar sua demanda judicial enquanto o vínculo e o conflito ainda existem, porque o medo não é, neste mundo onde grassa a covardia, um valor jurídico. Decerto que se diria inviável relevar a segurança jurídica no direito do trabalho, dado que estaríamos a cuidar de valor contemplado em todo o ordenamento, nas relações civis de ordem pública ou privada. A segurança jurídica – que é, na hipótese e em última análise, a segurança patrimonial do devedor – não poderia, segundo se diz, ceder lugar à eterna incerteza sobre o dia e hora em que o trabalhador enfrenta- ria afinal o seu empregador, desvestindo-o da potestade exercida sobranceiramente no ambiente empre- sarial para desafiá-lo, testa a testa, à mesa igualitária da audiência trabalhista. A pretexto de assim render ensejo à pacificação social, a racionalidade jurídica ignora a irre- nunciabilidade dos direitos sociais adquiridos e o receio sobremodo compreensível de exercê-los. A prescrição extintiva é o modo como se manifesta a segurança jurídica, incidindo no sistema trabalhista desde a matriz constitucional: ao consagrar o direito de ação na Justiça do Trabalho, o art. 7º, XXIX, da Constituição somente é lembrado pela sua parte final, a parte em que restringe esse direito às pretensões exigíveis há menos de cinco anos, na condição de que não se passem dois anos a partir da dissolução contratual(228). Houve quem defendesse, não sem boa dose de razão, que os cinco anos não prescritos seriam aqueles que antecederiam o final do liame empregatício, sem influência de quando fosse proposta a ação(229). Não há aqui, porém, a defesa de tal ponto de vista, inclusive porque se justifica, também com base em critério de razoabilidade, que se observe, quanto ao prazo quinquenal, a adoção do princípio actio nata: a prescrição flui a partir do nascimento da pretensão. Na prática, o quinquênio é contado retroativamente a partir do ajuizamento da ação, salvando-se dos efeitos da prescrição as prestações exigíveis após esse marco temporal. 6.2 Actio nata como termo inicial do prazo prescricional de cinco anos Não obstante a clareza dessa ideia (actio nata), importa fixar dois pontos que, embora correlatos, nem sempre se apresentam consensuais. O primeiro deles é quase um truísmo: se o salário de cada mês somente é exigível no quinto dia útil do mês subsequente (art. 459, parágrafo único, da CLT), a pretensão relativa a todas as prestações salariais mensais somente prescreve cinco anos após esse prazo previsto para o seu pagamento (ex: a ação proposta em 03/mar/2010 porá a salvo da prescrição quinquenal também o salário do mês de fevereiro de 2005, de resto exigível no quinto dia útil de março de 2005). O segundo ponto de aparente dissensão é concernente à possibilidade de uma tutela jurisdicional declaratória gerar pretensões condenatórias imunes à prescrição. Por exemplo, debate-se sobre estar ou não prescrita a inclusão, no cálculo de adicional por tempo de serviço devido no período não alcan- çado pela prescrição, do tempo de trabalho que, sendo reconhecido em juízo, situar-se-ia em período muito anterior, alcançado pela prescrição. A dúvida: se o tempo de trabalho é anterior ao marco da prescrição quinquenal, a pretensão atinente ao reconhecimento de vínculo de emprego nesse tempo (228) O poder constituinte, frise-se por justiça, não anteviu a hipóstase a que seria conduzida a prescrição, nessa leitura, com sinais trocados, do dispositivo constitucional. Denise Arantes Santos Vasconcelos (Revista LTr 73-01/92, jan/2009), citando Homero Batista Mateus da Silva, historia os debates na Assembleia Nacional Constituinte e relata, assim, que se digladiavam os defensores da não intercorrência de prescri- ção em meio ao vínculo e os que pugnavam pela manutenção do art. 11 da CLT, prevalecendo proposta intermediária. A autora conclui: “[...] a intenção do legislador constituinte foi a de resguardar ao trabalhador maiores condições de lutar por seus direitos na vigência do contrato de trabalho, mesmo estando subordinado ao empregador. Assim, se não houve a interrupção da fluência do prazo prescricional enquanto ativo o contrato de trabalho, ampliou-se esse prazo, na tentativa de reduzir os efeitos da subordinação do empregado ao poder potestativo do empregador. Portanto, a criação de uma nova hipótese de incidência da prescrição trabalhista, prevista na Súmula n. 294 do TST, cujo prazo inicia-se ainda na vigência do contrato de trabalho, apresenta-se, ao nosso ver, contrária ao texto constitucional, na medida em que não se coaduna com a exegese do art. 7º, XXIX”. (229) Plá Rodriguez se refere a uma histórica decisão do Tribunal Constitucional italiano nesse sentido (PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Prin- cípios de Direito do Trabalho. Tradução de Wagner D. Giglio. São Paulo: LTr, 2000, p. 217). Plá observa, sobre o início do prazo prescricio- nal: “Talvez o documento mais significativo nesse sentido seja a sentença do Tribunal Constitucional italiano, datada de 10.6.66, na qual se afirma que o prazo não começa a ser contado senão a partir do término do contrato de trabalho, dada a situação psicológica do trabalhador, que pode ser induzido a não exercer o próprio direito pelo mesmo motivo por que muitas vezes é levado a renunciá-lo, ou seja, pelo temor da despedida: de sorte que a prescrição, decorrente durante a relação de trabalho, produz justamente o efeito que o art. 36 da Constituição (italiana) procurou evitar, proibindo qualquer tipo de renúncia, inclusive a que, em situações particulares, pode estar implícita na falta de exercício do próprio direito, e portanto no fato de deixar-se correr a prescrição’”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 91 longevo somente poderia ser objeto de pretensão de natureza declaratória e, portanto, questiona-se sobre ser possível essa tutela meramente declaratória gerar uma pretensão condenatória não prescrita (a saber: o cômputo desse tempo de serviço no cálculo do adicional referido, especialmente no que toca ao adicional devido nos cinco últimos anos, não atingidos pela prescrição). É certo que apenas as pretensões condenatórias estão sujeitas à prescrição extintiva. A pretensão declaratória não prescreve. Mas, a bem ver, a questão posta não trata da prescrição de pretensões declaratórias, nem da imprescritibilidade de pretensões condenatórias. Ao que parece, confunde-se o termo inicial da prescrição – que é, regra geral, a exigibilidade da pretensão – com o fato gerador dessa mesma pretensão. O direito do trabalho nunca deu guarida a essa confusão: ao tempo em que se postulava a inde- nização de antiguidade (art. 478 da CLT), calculava-se essa parcela em atenção a todo o tempo de serviço, décadas ou vintenas de trabalho que estariam no período alcançado pela prescrição (à época bienal). Não importava: desde que ajuizada a ação no biênio seguinte à cessação do contrato, todo o tempo de labor era considerado, pois o fato gerador da obrigação não interferia na contagem do prazo prescricional – que fluía a partir da exigibilidade da indenização, vale dizer, da dissolução contratual. Uma ilustração seria elucidativa. Pense-se na indenização prevista na Súmula 291 do TST, que corresponde à média mensal de horas extras para cada ano ou período igual ou superior a seis meses em que tenha havido a sobrejornada. Se o empregado houvesse prestado horas extraordinárias durante vinte anos, computar-se-ia a média mensal de todo esse tempo no cálculo da indenização? Depende. Caso o empregado houvesse recebido a paga dessas horas extras por toda essa vintena de anos, a resposta seria afirmativa, dado que o termo inicial da prescrição (a supressão das horas extras) não sofreria interferência da extensão maior ou menor do fato gerador do direito à indenização. Porém, se o empregado não houvesse percebido a remuneração das horas extraordinárias, somente aquelas devidas no quinquênio não prescrito incidiriam no cálculo da indenização – a prescrição quinquenal que atingiria o pleito principal (de remuneração das horas extras) contaminaria o pleito acessório de reflexo desse pagamento habitual no cálculo da mencionada indenização. Logo, as tutelas jurisdicionais declaratórias relativas a tempo mais remoto podem gerar, sim, pretensões condenatórias não prescritas, desde que essas pretensões sejam exigíveis em período não alcançado pela prescrição. Interessa, frise-se uma vez derradeira, a exigibilidade da pretensão deduzida em juízo, não importando verificar a data de seu fato gerador. 6.3 Outras relevantes cizânias jurisprudenciais frente à evolução constitucional e das leis Aceita a primeira premissa – a de o quinquenio prescritivo iniciar-se com a exigibilidade da pres- tação –, parece conveniente abordar aspectos da prescrição trabalhista que têm provocado acentuada inquietação jurisprudencial: 1) a dicotomia entre prescrição total e prescrição parcial, pois se revela interessante a prospecção sobre a fonte jurídica que estaria a autorizá-la ainda hoje; 2) a possibilidade de se adotar o critério actio nata também para o prazo bienal, que teria outro termo inicial (a cessação do contrato, sem atenção ao dia em que teria nascido a pretensão) na carta constitucional. 6.3.1 Os fundamentos tradicionais da prescrição total de cinco anos Conforme mencionamos em escrito anterior(230), são duas as regras que aspiram conciliar a irre- nunciabilidade dos direitos trabalhistas com a prescrição das pretensões fundadas nesses direitos: • A primeira regra é atinente ao aspecto de os direitos imprescritíveis não impedirem a pres- crição das prestações pecuniárias correspondentes. Por exemplo, o direito a alimentos gera pretensão imprescritível, mas a pretensão para haver prestação alimentícia prescrevia em cinco anos(231) e atualmente prescreve em dois anos(232); os direitos da personalidade, como o (230) Nessa passagem do texto, reproduzimos o que explicamos em capítulo anterior e no tópico correspondente à prescrição, capítulo sobre princípios, subtítulo princípio da irrenunciabilidade, do livro Direito Individual do Trabalho, de nossa autoria, publicado pela editora Forense. (231) Artigo 178, §10, I, do Código Civil de 1916. (232) Artigo 206, §2o, do Código Civil em vigor. 92 – Augusto César Leite de Carvalho direito à integridade física, são igualmente irrenunciáveis e imprescritíveis (o seu não exercí- cio não acarreta a sua inexigibilidade após certo tempo), mas o ato lesivo a tais direitos gera pretensão reparatória que prescreve em três anos(233). • A segunda regra tem a ver com o grau de indisponibilidade que, a depender da origem, o direito trabalhista ostenta. Em vista disso, os juslaboralistas usam diferenciar a prescrição parcial (que alcança apenas as prestações exigíveis antes do prazo extintivo) da prescrição total (que atinge todas as prestações, inclusive aquelas com exigibilidade recente, caso a lesão tenha ocorrido antes do prazo liberatório). E que direito trabalhista apresentaria um grau maior (ou menor) de indisponibilidade? Lembra Délio Maranhão(234) que, em matéria de trabalho e diversamente do que ocorre no direito comum (em que a regra é a da disponibilidade dos direitos privados patrimoniais), “a indisponibilidade dos direitos prende-se à natureza predominante dos interesses em jogo”. O citado mestre explica haver indisponibilidade absoluta quando “a tutela legal do trabalho envolve, predominantemente, interesse público (salário mínimo: artigo 7º, IV, da Constituição) ou interesse abstrato da categoria (normas resultantes de convenção coletiva ou sentença normativa)”. Há indispo- nibilidade relativa quando, “por ser o direito, em princípio, disponível, tutelando, predominantemente, interesse individual, cabe ao seu titular a iniciativa de defendê-lo, como no caso do salário do contrato”. Plá Rodriguez(235) nomina vários laboralistas que propõem essa graduação da indisponibilidade, enfatizando que somente De La Cueva e De Ferrari teriam sustentado que todas as normas trabalhis- tas seriam irrenunciáveis. A Súmula 294 do TST orienta: Tratando-se de demanda que envolva pedido de prestações sucessivas decorrente de alte- ração do pactuado, a prescrição é total, exceto quando o direito à parcela esteja também assegurado por preceito de lei. Esquematizando a matéria: se a lesão se dá a direito previsto em lei, fere-se direito de indisponi- bilidade absoluta e, por isso, a prescrição é total; se a lesão se dá a direito não previsto em lei, fere-se direito de indisponibilidade relativa e, por isso, a prescrição é parcial. O Tribunal Superior do Trabalho pareceu reduzir, portanto, as hipóteses de prescrição parcial (menos prejudiciais ao trabalhador), quando, ao editar a Súmula 294 da súmula de sua jurisprudên- cia, não se referiu às normas abstratas de categoria (sentenças normativas, convenções e acordos coletivos de trabalho), reportando-se apenas às normas contempladas em lei. Voltando, portanto, à orientação prevalecente, alguns exemplos poderiam aclará-la: • Considerando um contrato ainda em vigor ou que tenha cessado há menos de dois anos (conforme artigo 7o, XXIX, da Constituição, o transcurso desse biênio, a partir da extinção do contrato, faria prescrita toda e qualquer pretensão relativa ao vínculo de emprego), imagine- mos uma redução salarial ocorrida há sete anos. Duas resoluções possíveis: a) se a redução fez o salário menor que o mínimo legal ou convencional, o empregado terá direito apenas às diferenças salariais exigíveis nos cinco anos que antecederam a sua ação judicial – prescri- ção parcial; b) se a redução alterou, para menos, apenas o salário contratual, sem inobser- vância de texto de lei, a prescrição, sendo suscitada, seria total, nenhuma diferença salarial sendo assegurada ao empregado (conforme veremos em seguida, a jurisprudência tem revisto essa posição extremada, inclinando-se mais recentemente por adotar a prescrição parcial nos casos de redução de salário). • Na mesma relação de emprego imaginada no exemplo precedente, especulemos agora sobre a alteração da jornada de trabalho, que teria sido dilatada de seis para oito horas há dez anos. Por igual, duas soluções: a) se há jornada reduzida por obra de lei, a prescrição será parcial, sendo devidas, como horas extraordinárias, a sétima e a oitava horas prestadas além do limite legal ou convencional; b) se a jornada de seis horas era meramente contratual, a alteração (233) Artigo 206, §3º, V do Código Civil em vigor. (234) MARANHÃO, Délio. Direito do trabalho. Atualização por Luiz Inácio Barbosa Carvalho. Rio de Janeiro : Editora da Fundação Getú- lio Vargas, 1993. p. 40. (235) PLÁ RODRIGUEZ, op. cit., p. 164. A propósito da graduação da indisponibilidade do direito trabalhista, o autor refere as classifica- ções propostas por Barassi, Gottschalk, Durand e Jaussaud, Horacio Ferro e Deveali. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 93 dessa cláusula do contrato ter-se-á consolidado após o transcurso dos cinco anos seguintes, nada sendo devido ao empregado que deixara o prazo se exaurir sem propor a ação judicial devida – prescrição total. No campo conceitual, cabem, todavia, mais duas relevantes observações a respeito da distin- ção entre prescrição total e prescrição parcial: não se confunde a prescrição bienal que flui a partir da cessação do contrato (por alguns chamada igualmente de prescrição total) com a prescrição que é total e quinquenal. A prescrição total a que se refere a Súmula 294 do TST é a quinquenal (sob a vigência da Constituição de 1988(236)), não se distinguindo da prescrição parcial em razão do prazo prescritivo, mas sim pelo efeito devastador que gera, sequer pondo a salvo as prestações exigíveis no lustro anterior ao ajuizamento da ação. Segunda observação: a norma contra cuja violação corre prescrição parcial é a norma inserta em regra legal (em vigor), ou seja, é a lei em sentido estrito, sendo perceptíveis alguns momentos nos quais a jurisprudência adota a prescrição parcial também para os casos em que a violação se dá a norma coletiva de trabalho ou mesmo a norma constitucional. Em verdade, já se colhe na jurisprudência uma visível tentativa de revisitar esse tormentoso tema para estender-se a prescrição parcial às hipóteses de violação de norma coletiva ou de princípios constitucionais, especialmente do princípio da irredutibilidade de salário. A propósito da violação de normas coletivas, pondera-se, na linha das antigas lições de Délio Maranhão (que as incluía entre as normas regentes de direitos absolutamente indisponíveis), que “as convenções coletivas, embora possuam natureza privada e negocial, criam regras jurídicas, isto é, preceitos gerais, abstratos, impes- soais e dirigidos a normatizar situações ad futurum. Correspondem, consequentemente, à noção de lei em sentido material, traduzindo ato-regra ou comando abstrato a todos aqueles a que se destinam. São, desse modo, do ponto de vista substantivo, diplomas desveladores de normas jurídicas típicas”, como observou o Ministro Mauricio Godinho Delgado em julgamento emblemático sobre a matéria(237). E mais candente é a razão para que adote a prescrição apenas parcial nos casos de violação de normas constitucionais, que estão em um grau maior de abstração. Tratemos de pôr em análise essa última observação. 6.3.2 A prescrição total contra a pretensão de matriz constitucional Entre os direitos de indisponibilidade absoluta, vimos que o Tribunal Superior do Trabalho firmou posição no sentido de somente aqueles previstos em lei stricto sensu desencadearem, quando viola- dos, o prazo de prescrição parcial. Poder-se-ia argumentar que, sendo superior à regra legal, a norma constitucional também deveria, se infringida, dar ensejo à prescrição somente das parcelas exigíveis no último quinquênio (prescrição parcial), e não à prescrição total. Isso importaria, por exemplo, a adoção da prescrição parcial em todos os casos de redução salarial, pois o artigo 7o, VI, da Constitui- ção estaria, nesses casos, malferido. Vemos com absoluta docilidade esse ponto de vista. A orientação pretoriana que inicialmente prevaleceu foi firme, contudo, ao aplicar a prescrição parcial somente em casos de violação de lei, em sentido estrito. A alteração de cláusula do contrato, que agride a norma constitucional, mas não um preceito de lei, consolidar-se-ia cinco anos depois, pois contra ela correria prescrição total, e não de parcelas. Exemplo dessa posição está, ainda hoje, na orientação jurisprudencial n. 248 da SDI I do TST, que trata da redução do percentual de comissões, (236) TST, 5a Turma, Proc. n. RR 467793/98, Rel. Min. João Batista Brito Pereira, j. em 03/04/2002, DJ 19/04/92. No mesmo sentido: TST, 2a Turma, Proc. RR 360063/97, Rel. Min. José Luciano de Castilho Pereira, j. 18/12/2001, DJ 01/03/2002. Até ser editada a Constituição de 1988, o prazo de prescrição parcial, no âmbito trabalhista, era de dois anos, como se verifica, exempli gratia, de excerto do acórdão que figurou como caso-líder da Súmula 294 do TST, da lavra do min. Marco Aurélio: “[...] a esta altura é dado concluir que estando o direito às parcelas assegurado por preceito imperativo, a prescrição é sempre parcial, alcançando apenas a demanda alusiva àquelas que se tornaram exigíveis em período anterior ao prazo assinalado em lei para a propositura da ação, o qual, no campo trabalhista, ê de dois anos. O titular do direito atual e inobservado o invoca não com base no contrato, mas na lei, cujas disposições colocara em plano secundário a vontade das partes. Este aspecto levou ORLANDO GOMES à adjetivação mencionada. O direito em si à parcela, porque previsto em preceito imperativo, é, para repetir o mestre baiano, inesgotável, enquanto existir a relação jurídica que aproxima empregado e empregador e os torna detentores de obrigações e senhores de direitos” (TST-IUJ-RR 6928/86.3, Tribunal Pleno, Ac. TP 556/89, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 10/04/1989). (237) TST-RR-141300-68.2004.5.09.0022, 6ª Turma, Min. Mauricio Godinho Delgado, j. 27/04/2011. O ministro relator faz remissão a vários precedentes em igual sentido: TST-RR-63000.17.2007.5.15.0153, Rel. Min. Emmanoel Pereira, 5ª Turma, DEJT de 18/6/2010; TST-A IRR-165341-26.2004.5.02.0465, Rel. Min. Walmir Oliveira da Costa, 1ª Turma, DEJT 19/03/2010; RR-7825/1999-012-09-00.0, DJ 13/04/07, 2ª Turma, Rel. Ministro José Simpliciano Fontes de F. Fernandes, dentre outros. 94 – Augusto César Leite de Carvalho um caso típico de redução salarial. O Tribunal Superior do Trabalho tem entendido que o ato patronal é único, não havendo violação de lei após a sua prática, mas somente na hora de seu cometimento. Contra o ato único do empregador, que fere apenas o contrato, flui a prescrição total, que se opera quando passados cinco anos, contados do ato de alteração contratual. O mesmo se dá na redução salarial que ocorre por via oblíqua, por exemplo, quando o empregador que contratou e realiza o pagamento de triênios reduz indiretamente essa vantagem, passando a pagar quinquênios(238). E seguindo a mesma toada, a orientação jurisprudencial n. 242 da SDI I do TST é, noutra hipótese, taxativa: “Embora haja previsão legal para o direito à hora extra, inexiste previsão (legal) para a incorporação ao salário do respectivo adicional, razão pela qual deve incidir a prescrição total”. Ademais, a lei infringida deveria estar em vigor, para que a prescrição aplicada fosse a parcial. Quando empregados de todo o Brasil postularam reajustes salariais suprimidos por planos econômicos de governo, a jurisprudência trabalhista se posicionou no sentido de a revogação das leis, que previam os citados reajustes, reduzir ao contrato a fonte do direito. Por isso, a orientação jurisprudencial n. 243 da SDI I do TST, que recomenda a prescrição total nessa hipótese. Mas é fato que, em tempo recente, os julgados do TST sinalizam uma compreensão diferente para a matéria, pois se esboça uma clara inclinação em favor da tese que adota a prescrição parcial, apenas parcial, nas hipóteses de redução de salário estritamente contratual. Há inclusive precedentes da Subseção I de Dissídios Individuais (SBDI-1) que aderem a esse entendimento(239) e revelam uma corrente jurisprudencial aparentemente segura na direção de não mais se aplicar a prescrição total em casos de violação do princípio constitucional da irredutibilidade do salário (art. 7º, VI, da Constituição). 6.3.3 A possível influência do atual Código Civil no debate sobre a prescrição total de pretensão fundada em nulidade A nosso pensamento, está a merecer alguma reflexão a importância que o direito do trabalho ou, em verdade, os seus mais qualificados intérpretes têm dado ao princípio da segurança jurídica, em rota sempre ascendente de prestígio a esse postulado e à consequente sublimação da modalidade de prescrição que mais acentuadamente o contempla, a prescrição total. Parece que se foi longe demais, desacoplando-se assim o direito laboral da árvore do direito comum que, em direção oposta, tem consagrado a imprescritibilidade da pretensão derivada de ato nulo. O que justifica a existência do direito do trabalho não é apenas a definição de marcos regulatórios para a atividade empresarial, pois dessa tarefa poderiam cuidar, com séculos de valiosa experiência, outros ramos do direito privado. A proteção à dignidade humana é o verdadeiro foco do direito laboral, cabendo à doutrina e à justiça especializada revelar o conteúdo dos direitos fundamentais de índole social e trabalhista, sempre de modo a assegurar existência e trabalho dignos a todos quantos os titularizem. A máxima efetividade dos direitos fundamentais talvez não combine facilmente com a consoli- dação de atos que lhes sejam lesivos, pondo à prova a fundamentalidade desses direitos. Mas é da validação de tais atos (supostamente nulos) que se cuida quando a jurisprudência trabalhista consagra a prescrição total de pretensões atinentes à redução de salário contratual. A Constituição proscreve não somente a redução do salário legal, mas igualmente o ato patronal que reduz o salário ajustado e assim desestabiliza o meio primário de subsistência do homem que trabalha, perturbando a sua vida (238) Vide orientação jurisprudencial n. 76 da SDI I do TST. (239) E-ED-RR-1285640-75.2003.5.09.0652, SBDI-I, Relatora Ministra Maria de Assis Calsing, divulgado no DEJT de 5/2/2010; E-RR 788038- 71.2001.5.01.0342, SBDI-1, Min. Brito Pereira,, j. 25/11/2010; E-ED-RR-1358956-60.2004.5.04.0900, SBDI-I, Relator Ministro Lelio Bentes Corrêa, divulgado no DEJT de 04/02/2011 e E-RR 701677-16.2000.5.03.0114, SBDI-1, Min. Lélio Bentes Correia, j. 09/06/2011, este último referindo-se aos seguintes precedentes de turmas do TST: RR-13641-92.2003.5.12.0001, 1ª Turma, Relator Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, divulgado no DEJT de 11/12/2009; AIRR-156040-34.2005.5.24.0004, 2ª Turma, Relator Ministro José Roberto Freire Pimenta, divulgado no DEJT de 26/11/2010; RR-58600-82.2005.5.15.0135, 2ª Turma, Relator Ministro Renato de Lacerda Paiva, publicado no DJU de 30/05/2008; AIRR-4305300-11.2002.5.04.0900, 4ª Turma, Relatora Ministra Maria de Assis Calsing, publicado no DJU de 08/06/2007; RR-1409400-24.2001.5.09.0008, 5ª Turma, Relator Ministro João Batista Brito Pereira, divulgado no DEJT de 18/06/2010; RR-158900- 81.2007.5.15.0038, 5ª Turma, Relator Ministro Emmanoel Pereira, divulgado no DEJT de 11/12/2009; RR-1285640-75.2003.5.09.0652, 6ª Turma, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, publicado no DJU de 07/03/2008; A-AIRR-82040-92.2003.5.04.0003, 7ª Turma, Rela- tor Ministro Pedro Paulo Manus, divulgado no DEJT de 05/02/2010 e RR-108400-13.2007.5.04.0201, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, divulgado no DEJT de 03/12/2010. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 95 familiar e gregária, comprometendo enfim o valor social que é conquista imanente ao seu trabalho e é também um valor constitucional. A negociação coletiva é o único modo de legitimar a redução de salário contratual que esteja a ameaçar a sobrevivência da empresa (art. 7º, VI, da Constituição) – fora daí há violação de direito fundamental. E qual, afinal, a regra do Código Civil em vigor sobre os efeitos da prescrição que corre contra a alteração contratual ilícita? Esqueçamos, por um instante, a regência da relação de emprego pelo direito do trabalho e, aproveitando somente a nulidade nele estabelecida para as alterações contratu- ais lesivas (art. 468 da CLT), indaguemos ao direito comum a regra sobre prescrição a ser aplicada à espécie. De início, vale a pena constatar a preocupação, no novo compêndio, de distinguir os casos de prescrição e decadência. O atual código traça uma linha divisória entre os casos nos quais há vícios de vontade que geram anulabilidade do contrato e aqueles outros que dão origem a nulidade contratual. A razão é simples: a anulabilidade exige a intervenção judicial e, por isso, a pretensão contra a cláusula contratual lesiva é de natureza constitutiva, atraindo assim a incidência de prazo decadencial; por sua vez, a nulidade opera sem necessidade de declaração judicial, gerando efeito ex tunc e pretensão condenatória, o que basta para atrair a incidência de prazo prescricional. É lição de propedêutica que a decadência atinge pretensões constitutivas (ou desconstitutivas) e a prescrição alcança pretensões condenatórias. As hipóteses de nulidade e de anulabilidade atendem à política legislativa. A simulação, por exem- plo, era vício de consentimento que gerava anulabilidade sob a regência do Código Civil de 1916 e implica nulidade a partir do novo código (art. 167(240)). Os vícios de consentimento que implicam a anulabilidade da avença, no atual código, são o erro, o dolo, a coação, o estado de perigo, a lesão e a fraude contra credores(241). Em todos esses casos, há necessidade de ação (des)constitutiva com vistas à rescisão contratual e, por isso, o prazo previsto para essa ação é decadencial(242) – sem que se vislumbre um direito preexistente, a inércia da parte inocente impede o surgimento do direito à disso- lução contratual. Sob a regência da Consolidação das Leis do Trabalho (art. 468(243)), a coação moral ou econômica que se presume nas alterações prejudiciais intercorrentes ao contrato impõe a nulidade, assim também sucedendo com o ato resultante da tentativa de fraudar ou desvirtuar a proteção trabalhista(244). A dife- rença de tratamento quanto à coação e à fraude, quando comparada a legislação trabalhista com a civil (que prevê, de modo mais brando, a anulabilidade nesses casos), justifica-se pela singela circunstân- cia de o vínculo de emprego ser caracterizado pela debilidade de um dos seus atores, vulnerabilizado pela premência de subsistir com o salário, enquanto há salário. Houve tempo em que as categorias jurídicas hauridas no direito civil eram assimiladas com acen- tuada reserva pelos juslaboralistas, pois não se compatibilizava com os princípios do direito do traba- lho aquele conjunto de regras extremamente formal (abstraía-se das causas do contrato e da boa-fé objetiva) e de inspiração individualista (o fim social da empresa e dos direitos patrimoniais escapava das balizas do pacta sunt servanda). A verdade, porém, é que o Código Civil de 2002 é boa centelha. Nasceu sob os viçosos pálios da eticidade, da socialidade e da operabilidade, como tantas vezes proclamou o jurista Miguel Reale. Entrou em cena, portanto, para realizar o postulado da dignidade humana e, não bastasse tão auspicioso desígnio, corrigiu atecnias da lei anterior de modo a permitir que os seus princípios e regras ganhassem efetividade. (240) Art. 167 CC – É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. (241) Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I – por incapacidade relativa do agente; II – por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores. (242) Art. 178. É de quatro anos o prazo de decadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico, contado: I – no caso de coação, do dia em que ela cessar; II – no de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em que se realizou o negócio jurídico; III – no de atos de incapazes, do dia em que cessar a incapacidade. (243) Art. 468 CLT – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia. (244) Art. 9º CLT – Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos precei- tos contidos na presente Consolidação. 96 – Augusto César Leite de Carvalho O direito laboral será sempre o sistema compensatório da desigualdade no mundo do trabalho, sendo imprescindível a produção metódica e analítica das normas que visam atender a esse deside- rato, com os olhos voltados à pacificação social. Mas é certo que o direito do trabalho não é um depar- tamento estanque na ordem jurídica, alheio à necessidade de interagir com outros sistemas jurídicos que porventura avancem, mais acesamente, na definição de seus conceitos ou no aperfeiçoamento de suas regras de proteção. Se a norma de direito civil deu nova conformação à invalidade do contrato, explicitando o modo como devem interagir a nulidade contratual e a prescrição extintiva, cabe ao intér- prete do direito do trabalho consultar o novo regramento para somente depois resolver acerca de sua possível subsidiariedade. Sobre o tema, estabelece o art. 169 do Código Civil que “o negócio jurídico nulo não é suscetí- vel de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo”. A norma encerra antiga polêmica entre modelos hermenêuticos, mas a inovação é sobretudo de forma, vale dizer, inova-se a inserção da regra no direito positivo para que se dissipem as dúvidas inconvenientes. Moreira Alves(245), usando de elogiável capacidade de síntese, esclarece: Inovando, o artigo 169 determina que “o negócio jurídico nulo não é suscetível de confir- mação, nem convalesce pelo decurso do tempo”. Em se tratando de negócio jurídico nulo, também no direito romano se acha a regra de Paulo, segundo a qual “quod initio viciosum est, non potest tractu temporis convalescere” (D. 50.17.29). Todavia, em hipóteses excepcio- nais, e por determinação do ordenamento jurídico, pode validar-se um negócio jurídico origi- nariamente nulo com a confirmação dele pela pessoa que possa valer-se de sua nulidade (cfe. Fr. Vat. 294; D. 31.77.17; D. 32.33.2; D. 34.2.13). Em rigor, a jurisprudência reclamava a imprescritibilidade do ato nulo e, a bem dizer, já a afirmava quando a cuidar de interesses e valores de variado matiz. Precedente do Superior Tribunal Justiça revelam essa senda: CIVIL – COMPRA E VENDA DE IMOVEL – NULIDADE DA ESCRITURA – PRESCRIÇÃO – MATERIA DE FATO. I- Resultando provado que a escritura de compra e venda foi forjada, o ato é tido como nulo e não convalesce pela prescrição. A nulidade é perpétua, no sentido de que, em princípio não se extingue por efeito da prescrição, eis que o decurso do tempo não convalida o que nasceu inválido. II- Matéria de prova em que se forrou a causa, não se a examina no especial. III- Recurso não conhecido. (REsp 12.511/SP, Rel. Ministro Waldemar Zveiter, Terceira Turma, julgado em 08/10/1991, DJ 04/11/1991 p. 15684) Também a doutrina assim se posicionava, como se extrai das lições de Caio Mário da Silva Pereira(246): O ato nulo é frustro nos seus resultados, nenhum efeito produzindo: quod nullum este nullum producit effectum. [...] Nem a vontade das partes nem o decurso do tempo pode sanar a irre- gularidade. A primeira, para tanto, é ineficaz, por não ser o ato nulo passível de ratificação. O segundo não opera o convalescimento, senão longi temporis, porque o defeito de origem subsiste, até que a autoridade judiciária pronuncie a ineficácia: quod ab initio vitiosum este non poteste tractu temporis convalescere. É de se reiterar, entretanto, que a imprescritibilidade da pretensão consequente de ato nulo não implica ipso jure a imprescritibilidade da pretensão trabalhista de natureza condenatória que lhe é correlata, pois é certo que a Constituição impõe a prescrição das parcelas após o quinto ano de sua exigibilidade (art. 7º, XXIX). Assim poderíamos sintetizar: a alteração contratual nula não convalesce após cinco anos, embora prescrevam as prestações, apenas as prestações correspondentes, se devi- das mais de cinco antes do ajuizamento da ação. Ilustrando essa ideia, dir-se-ia que a adoção da regra de direito civil, na relação de emprego, resulta- ria na aplicação somente da prescrição parcial em todos os casos nos quais incidisse a nulidade prevista no art. 468 da CLT, ou seja, prescreveriam apenas as parcelas exigíveis antes do prazo quinquenal (245) ALVES, José Carlos Moreira. O novo Código Civil brasileiro: principais inovações na disciplina do negócio jurídico e suas bases romanísticas. Disponível em: http://www.dirittoestoria.it/5/Tradizione-Romana/Moreira-Alves-Codigo-civil-brasileiro-Negocio-juridico.htm (246) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Introdução ao Direito Civil, vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 641. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 97 sempre que se postulassem horas extras em razão de alteração contratual relativa, por exemplo, ao elastecimento de jornada ajustada ao início do vínculo ou, noutra hipótese, à redução direta ou indireta de salário previsto em contrato. A alteração contratual, por ser nula, não convalesceria pelo decorrer do tempo, não obstante as prestações devidas em razão da citada alteração estivessem sujeitas à prescrição quinquenal. 6.3.4 A jurisprudência trabalhista sobre a prescrição da pretensão que investe contra o negócio jurídico nulo A regra de direito civil, a da imprescritibilidade da pretensão alusiva aos efeitos de ato nulo, já predominou no direito do trabalho. Dela cuidava o antigo Pré-julgado 48 do TST(247), mais adiante convertido no antigo Enunciado 168 do TST: “Na lesão de direito que atinja prestações periódicas, de qualquer natureza, devidas ao empregado, a prescrição é sempre parcial e se conta do vencimento de cada uma delas e não do direito do qual se origina”. Mas percebe-se que esse modo de compreender e aplicar a prescrição vigorou plenamente, na jurisprudência trabalhista, somente até 25/mar/1985, ou seja, até quando o órgão máximo da Justiça do Trabalho editou o Enunciado 198 e, com ele, a regra de restar inexigível, após o decurso do prazo de prescrição trabalhista (à época de dois anos), a pretensão nascida de ato único do empregador. Predizia o Enunciado 198 do TST: “Na lesão de direito individual que atinja prestações periódicas devidas ao empregado, à exceção da que decorre de ato único do empregador, a prescrição é sempre parcial e se conta do vencimento de cada uma dessas pres- tações, e não da lesão do direito.” A expressão “ato único do empregador” mostrou-se, em verdade, extremamente dúbia(248), pois rendia ensejo a pelo menos três significados: a) o ato patronal de efeito instantâneo (v. g. um ato puni- tivo de advertência ou suspensão disciplinar, ou ainda um desconto salarial em mês específico); b) o ato patronal que, não consistindo em alteração do contrato, surtia efeitos que repercutiam na conti- nuidade do vínculo (v. g. o enquadramento funcional); c) a alteração unilateral do contrato com efeitos igualmente sentidos no restante da relação laboral (v. g. a transferência abusiva para outra localidade, a redução do salário contratual, o aumento da jornada sem extrapolação do limite legal). Se era para fazer alusão ao primeiro desses significados, o novo verbete (Enunciado 198), por dizer o óbvio, não parecia necessário. Provavelmente por essa razão, seis dos ministros que integra- vam o Pleno do TST votaram pela desnecessidade da alteração(249), outros três se insurgindo contra a sua redação(250). É certo que, no âmbito trabalhista, a Constituição atual inviabiliza, por ora, o debate sobre o tema, pois impõe(251) a prescrição de cinco anos a partir da exigibilidade da pretensão e, na hipótese sob análise, inexistiriam pretensões exigíveis no quinquênio que antecederia a propositura da ação. Logo, a prescrição total incide inexoravelmente contra a pretensão esgrimida para invalidar o ato único do empregador, nessa sua primeira modalidade. O mesmo se diz no tocante à prescrição total do segundo tipo de pretensão, qual seja, aquela que se rebela contra ato patronal não caracterizado como alteração do contrato mas cujos efeitos refletem no restante da contratualidade. É, ilustrativamente, o caso de enquadramento em plano de cargos e salário que se mostre lesivo ao trabalhador. A inércia do empregado faz consolidar-se o enquadra- mento original e supostamente ilícito, não obstante se salvem as diferenças salariais que derivem de (247) Caso-líder: E-RR 836/74. (248) À época em que se julgou o IUJ por meio do qual se editou a Súmula 294, o voto vencido do Ministro Barata Silva traduziu a perplexi- dade dos membros do TST a propósito do sentido que deveriam dar à expressão “ato único do empregador”: “Via de regra, todo ato lesivo ao empregado, atinge-o no salário, e desta forma, alcança prestações de trato sucessivo. Por outro lado, ê sempre possível que o empregador atue de forma a modificar as condições contratuais, com prejuízo para o trabalhador, e nesse sentido, todas essas modificações, tais como, supressão de horas extras habituais, alteração do critério de pagamento de determinada parcela, desvio de função, etc, poderiam facilmente ser caracterizadas como ato único do empregador e, mesmo repercutindo em prestações de trato sucessivo, tenderiam a configurar a hipó- tese contida no Enunciado n. 198 desta Corte.” Ainda sobre a dubiedade da expressão “ato único”, ver Denise Arantes Santos Vasconcelos (op. cit., p. 93). (249) Ministros Alves de Almeida, João Wagner, Orlando Teixeira da Costa, Hélio Regato, Pajehu Macedo Silva e Coqueijo Costa. (250) Ministros Fernando Franco, Ildélio Martins e Marco Aurélio. (251) Impõe-no o art. 7º, XXIX da Constituição, sem que norma inferior elasteça, como poderia elastecer (art. 7º, caput), o prazo assim previsto. 98 – Augusto César Leite de Carvalho desvio funcional no caso de se verificar que a norma regulamentar violada ainda subsiste no período não alcançado pela prescrição (Súmula 275 do TST(252)). A adoção da prescrição total na terceira hipótese é, porém, susceptível a crítica no momento atual. É que já agora teríamos uma alteração unilateral e prejudicial ao empregado, que se revelaria nula com base no art. 468 da CLT, não convalescendo essa nulidade pelo decurso do tempo em vista da incidência do art. 169 do Código Civil. Nada há no texto da Constituição ou da CLT que imponha ou sugira a prescrição total referida, para a espécie, pela Súmula 294 do TST: Tratando-se de ação que envolva pedido de prestações sucessivas decorrente de alteração do pactuado, à pres- crição é total, exceto quando o direito à parcela esteja também assegurado por preceito de lei.(253) À leitura do julgamento do incidente de uniformização de jurisprudência por meio do qual o Pleno do TST deliberou pela edição da Súmula 294, observa-se que o eminente Ministro Marco Aurélio, relator do IUJ(254), enumerou – assim procedendo em sintonia com as conjecturas jurídicas daquele momento – os motivos que o faziam receptivo à adoção da prescrição total sempre que o direito violado não estivesse contemplado em lei. Os seus fundamentos poderiam ser assim esquematizados: • Em princípio, o engessamento das cláusulas contratuais deveria ser questionado sob o argu- mento seguinte: “Os preceitos legais trabalhistas encerram garantias mínimas ao trabalhador, em virtude de intervenção do Estado com o fito de corrigir o desequilíbrio econômico entre as partes contratantes. Observando-as (que) as partes podem, a partir daí, contratar o que melhor lhes aprouver. Frente ao contido nos artigos 9º, 444 e 468 da Consolidação das Leis do Trabalho, diz-se, então, que as normas trabalhistas são imperativas quanto aos interesses dos empregados e dispositivas em relação àqueles que se colocaram no âmbito do patrimônio do empregador. Os avanços patronais no campo social são plenamente válidos e devem ser esti- mulados, porquanto oportuno se mostra o princípio da autonomia na manifestação da vontade”. • A CLT conteria dois dispositivos que tratavam da prescrição (artigos 11 e 119), sendo que enquanto o art. 11 estaria a estabelecer que “prescreve em dois anos o direito de pleitear a reparação de qualquer ato infringente de dispositivo nela contido”, o art. 119, no capítulo regente do salário mínimo, seria explícito quanto à adoção da prescrição parcial: “Prescreve em 2 (dois) anos a ação para reaver a diferença, contados, para cada pagamento, da data em que o mesmo tenha sido efetuado”. Portanto, a regra geral seria a prescrição total, reservan- do-se a prescrição parcial para as hipóteses de violação de preceito imperativo. • A prescrição da pretensão relativa à invalidade da alteração contratual contaminaria a preten- são concernente às prestações salariais mais recentes. Sob a égide da Constituição de 1967 e do antigo Código Civil, assim se manifestou, em seu voto vencedor, o Ministro Marco Auré- lio: “O legislador trabalhista pátrio, atento ao caráter informativo dos princípios de direito, teve presente o da irrenunciabilidade, apontando como elemento definidor da licitude da alteração contratual a ausência de prejuízo para o empregado, ficando relegada a plano secundário a manifestação de vontade deste. A pedra de toque do sistema é, portanto, o artigo 468 da Consolidação das Leis do Trabalho. Ora, se o empregador, contando, ou não, com a manifes- tação de vontade do empregado, causa-lhe prejuízo ao alterar o que fora contratado além da garantia mínima prevista em lei, dúvidas não pairam sobre o cometimento de um ilícito traba- lhista, a teor do disposto no artigo 468 da Consolidação das Leis do Trabalho, no que asse- gura não o direito em si a qualquer parcela, mas à intangibilidade do contrato de trabalho. Verificado o ato, surge no patrimônio do prestador dos serviços um direito atual – o de ver (252) SUM-275    PRESCRIÇÃO. DESVIO DE FUNÇÃO E REENQUADRAMENTO – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005 I – Na ação que objetive corrigir desvio funcional, a prescrição só alcança as diferenças salariais vencidas no período de 5 (cinco) anos que precedeu o ajuizamento. II – Em se tratando de pedido de reenquadramento, a prescrição é total, contada da data do enquadramento do empregado. (253) Sobre o tema, observa Denise Arantes Santos Vasconcelos (op. cit., p. 92) que “a definição da prescrição total encontra-se, hoje, consubstanciada na Súmula n. 294 do TST”. Em nota, a autora remata que, “nesse sentido, já decidiu o Tribunal Superior do Trabalho ao editar a Súmula n. 409 que dispõe: ‘409 – Ação rescisória. Prazo prescricional. Total ou parcial. Violação do art. 7º, XXIX, da CF/88. Matéria infraconstitucional [...] – Não procede ação rescisória calcada em violação do art. 7º, XXIX, da CF/88 quando a questão envolve discussão sobre a espécie de prazo prescricional aplicável aos créditos trabalhistas, se total ou parcial, porque a matéria tem índole infraconstitucional, construída, na Justiça do Trabalho, no plano jurisprudencial [...]’”. (254)TST-IUJ-RR 6928/86.3, Tribunal Pleno, Ac. TP 556/89, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 10/04/1989. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 99 mantidas as condições primitivas – e exigível: neste instante nasce o direito de ação. A partir do surgimento da ação exercitável tem início a contagem do prazo prescricional. O empregado conta com dois anos para pleitear a declaração e a reparação do direito, no interesse de preservar o statu quo ante, com o pagamento das diferenças das parcelas satisfeitas de forma imprópria, ou seja, com base nas condições que resultaram da alteração do contrato. Decorridos mais de dois anos da prática do ato violador do direito via alteração do contrato de trabalho, forçoso é concluir pela prescrição total. As diferenças pleiteadas não têm vida própria. A condenação em satisfazê- -las pressupõe o julgamento da controvérsia em torno da modificação contratual introduzida, ou seja, o exame do ato do empregador frente ao disposto no artigo 468 da Consolidação das Leis do Trabalho. Se quanto a esta pretensão a demanda já se encontra fulminada pelo biênio, quanto â outra descabe falar em prescrição parcial. As diferenças pleiteadas consubstanciam direito aces- sório, jungidas ao principal, no caso, aquele pertinente à preservação das condições contratuais, como se infere da relação entre principal e acessório instituída pelo artigo 58 do Código Civil.” O ministro relator, à semelhança do procurador do trabalho que emitira parecer no IUJ, transcreveu decisão do STF nesse sentido: ‘Quando é um direito reconhecido, sobre o qual não se questiona, aí, são as prestações que vão prescrevendo, mas se o direito às prestações decorre do direito à anulação do ato, é claro que, prescrita a ação em relação a este,não é possível julgar prescritas apenas as prestações, porque prescreveu a ação para reconhecimento do direito do qual decorre- ria o direito ãs prestações. Do contrário seria admitir efeito sem causa’ (Ac. la. Turma-STF, DJU de 11/09/81, p. 8794, RE-94.679-9-SP, Relator Ministro Soares Munõz). Da mesma forma decidiu o Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE-94.136-3: ‘Decreto n. 20.910/32, artigo 19 – Gratificação pro labore. Extinção da ação para obter o benefício. Precedentes: Prescrição referente ao próprio direito ou vantagem reclamado, a cuja postulação se deixou ficar inerte o interessado, no decurso do prazo extintivo, e não prescrição referente às prestações de trato sucessivo decorrentes de um direito reconhecido ou de uma situação permanente. Espécies distintas. Recurso Extraordinário conhecido e provido’. (STF-94.136-3, Relator Ministro Rafael Mayer, 1ª Turma, DJU de 19.09.81, p.91591). O acórdão da lavra do Ministro Marco Aurélio seguiu a linha de argumentação condizente com as regras de direito civil que vigoravam à época. Não havia dispositivo legal que assegurasse a impres- critibilidade dos efeitos do ato nulo e, na seara trabalhista, era mesmo ampla, como de resto ainda é, a doutrina que distingue a indisponibilidade absoluta dos direitos previstos em lei da indisponibilidade relativa dos direitos previstos apenas em contrato ou norma não estatal, justificando-se a aplicação da prescrição parcial somente na primeira hipótese. Nos dias que correm, a matriz jurídica é bem outra: suprindo a omissão das leis trabalhistas (e da antiga lei civil), teríamos o art. 169 do Código Civil a consagrar que negócio jurídico nulo não conva- lesce pelo decurso do tempo, prestando-se a especificidade do direito do trabalho para agregar que a alteração contratual que prejudica o empregado é nula e, portanto, insusceptível de prescrição que a consolide. De jure ferenda, dir-se-ia que não persiste a relação de acessoriedade entre a prescrição que afetaria a nulidade da alteração contratual e, por derivação, a prescrição das parcelas salariais daí decorrentes, pois a alteração contratual que contraria o art. 468 é nula e não susceptível de prescrição, sob a nova ordem. Logo, salvam-se as prestações salariais exigíveis no quinquênio que antecede a propositura da ação judicial. A subsidiariedade das normas compatíveis de direito comum, autorizada pelo art. 8º da CLT, conduz inexoravelmente a esse desfecho. Acerca dos argumentos metajurídicos revisitados pelo Ministro Marco Aurélio, especialmente a premissa de que “os avanços patronais no campo social são plenamente válidos e devem ser estimu- lados, porquanto oportuno se mostra o princípio da autonomia na manifestação da vontade”, caberia ponderar que estamos, já agora, sob a regência de uma ordem constitucional que elevou a direito fundamental a irredutibilidade do salário originalmente previsto em contrato e excluiu desse espec- tro apenas a redução salarial ocorrida pela via da negociação coletiva. Há, visivelmente, uma nova conformação para os valores jurídicos sob exame. Os dispositivos que consagram a liberdade de empreendimento a associam à dignidade humana e à valorização do trabalho (artigos 1º, III e 170 da Constituição), não a contemplando como um valor per se: só há livre iniciativa se justa é a condição de trabalho. 100 – Augusto César Leite de Carvalho De tudo se extrai a propriedade da tese que consubstanciaria o resgate da regra outrora consa- grada pela Súmula 168 do TST, porquanto a adoção universal da prescrição parcial reincluiria o direito do trabalho no sistema de direito privado que proscreve a consolidação jurídica de atos nulos, quais- quer atos nulos. 6.3.5 A extinção do contrato como único termo inicial da prescrição bienal Outra matéria instigante é, como visto, acerca da possibilidade de se aplicar, por extensão, o prazo bienal de prescrição a hipóteses não mencionadas na carta constitucional. E a primeira obser- vação, na espécie, diz com a característica de o biênio prescritivo ter-se desgarrado, sob a vigência da Constituição de 1988, da premissa segundo a qual os prazos de prescrição devem iniciar-se com o surgimento da pretensão. O princípio actio nata tende à universalidade, mas a ordem jurídica pode consagrar uma ou outra exceção. Desde que a prescrição não flua, em atentado à lógica, desde antes do nascimento do direito correspondente de ação, é certo que a lei pode estabelecer um termo inicial diferenciado para algum prazo prescricional, um termo inicial que porventura não coincida com o aparecimento da pretensão. É o caso, por exemplo, do biênio prescritivo instituído a partir da dissolução do contrato (art. 7º, XXIX, da Constituição). Embora a prescrição trabalhista quinquenal se inicie com a lesão ao direito, o poder constituinte estabeleceu um limite secundário, a ser observado nos casos em que há a cessação do vínculo de emprego. Comportando restrição de direito e, portanto, interpretação restritiva, o prazo bienal somente se opera quando o liame empregatício se dissolve e a partir da data na qual esse evento acontece. Fora daí, seria de aplicar-se apenas a prescrição quinquenal. Há, porém e pontualmente, a adoção, pela jurisprudência trabalhista, do prazo bienal de pres- crição em temas que não lhe são afetos. Algumas cortes regionais o aplicam, por exemplo, quando pronunciam a prescrição intercorrente ou mesmo a prescrição da pretensão executória (art. 884, §1º da CLT), a pretexto de que o fazem em razão de a relação jurídica já haver cessado. Adotam a prescri- ção de dois anos porque o contrato se rompeu, quando a Constituição só a contempla a partir do fim do contrato, não o aplicando pelo fato singelo de o contrato haver terminado. O critério constitucional para a adoção do prazo bienal é alusivo à contagem do prazo, mas a jurisprudência inova um critério de cabimento que a norma constitucional não reconhece. Outra vertente jurisprudencial que incorria na mesma senda, a de ajustar a prescrição bienal a hipótese não prevista na Constituição ou em lei, era aquela anteriormente preconizada na antiga reda- ção da Súmula 326 do TST, a saber: “Em se tratando de pedido de complementação de aposentado- ria oriunda de norma regulamentar e jamais paga ao ex-empregado, a prescrição aplicável é a total, começando a fluir o biênio a partir da aposentadoria”(255). Se a jurisprudência constitucional já se consolidou no sentido de a aposentadoria espontânea não implicar a terminação do vínculo de emprego, por que haveria de a prescrição bienal fluir a partir da aposentadoria? Mais inquietante é a hipótese em que a complementação dos proventos da aposentadoria se inicia algum tempo após o contrato cessar e mesmo depois de o empregado aposentar-se. É o que se dá, exempli gratia, quando o trabalhador continua a contribuir para o plano de previdência privada depois de dissolver-se o seu emprego e após estar recebendo os proventos da aposentadoria pagos pela Previdência Social, assim persistindo até completar o período aquisitivo de seu direito à citada complementação, a ser paga pela entidade de previdência privada. A simples adoção da Súmula 326 implicaria a imposição de prescrição (bienal) que se iniciaria antes do direito subjetivo de ação surgir, havendo precedentes do TST que, nesse caso, não aplicam tal verbete por essa óbvia razão. 6.3.6 Súmulas 326 e 327 do TST – a complementação de proventos da aposentadoria Há grandes empresas que criaram planos de complementação de proventos da aposentadoria com vistas a impedir que os seus empregados sofressem redução em seus ganhos quando optassem (255) Redação revista, como se observará adiante, em maio de 2011. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 101 por dela se afastar, na ocasião em que se aposentassem. Regra geral, essas empresas instituíram entidades de previdência complementar, com personalidade jurídica própria, que progressivamente assumiram o custeio e a gestão dos fundos de pensão. A lei de regência da previdência complementar é a Lei n. Complementar n. 109/2001, que em seu artigo 75 prediz: Sem prejuízo do benefício, prescreve em cinco anos o direito às prestações não pagas nem reclamadas na época própria, resguardados os direitos dos menores dependentes, dos incapazes ou dos ausentes, na forma do Código Civil. Ao ressalvar o direito ao benefício, mas submetendo as prestações aos efeitos da prescrição quin- quenal, o citado dispositivo legal adota, ao que parece, a regra da prescrição parcial. Portanto, existe fundamento consistente para que se adote a prescrição parcial da pretensão alusiva à complementa- ção de proventos da aposentadoria. A prescrição quinquenal e parcial seria, portanto, a regra universal na seara trabalhista, aplicando-se inclusive para os trabalhadores aposentados, que muita vez não mais se sujeitam ao comando patronal. É certo, porém, que por vezes o empregador ou a entidade de previdência complementar que se comprometeu a completar os proventos da aposentadoria não honra a obrigação assumida. E então o trabalhador aposentado deduz pretensão em juízo visando à obtenção do direito à complementação de proventos ou à diferença do valor que vem sendo pago a menor. Até maio de 2011, o Tribunal Superior do Trabalho vinha resolvendo as contendas relativas a essa matéria com base nas suas Súmulas 326(256) e 327(257), mas era visível que a acesa controvérsia sobre as hipóteses em que a pretensão atingia o fundo do direito fazia a corte trabalhista ampliar os casos nos quais adotava a prescrição total referida na Súmula 326, esvaziando-se, em verdade, a eficácia da Súmula 327, esta a recomendar a prescrição parcial e quinquenal. Prova dessa gradual multiplicação dos casos em que se aplicava a prescrição total e bienal, prevista na Súmula 326, foram os processos assim julgados de modo a frustrar pretensões que, não obstante fossem concernentes a diferenças de complementação de proventos que já se vinha rece- bendo, eram atinentes à incorporação, na complementação de proventos da aposentadoria, de verbas somente recebidas durante o vínculo de emprego(258) ou de parcelas obtidas em processos trabalhis- tas anteriores(259). A SBDI-1 e as turmas do TST também passaram a aplicar a Súmula 326 para fazer malograr a pretensão de que fosse calculada a complementação de proventos com base em regula- mento de benefício alterado quando ainda vigia o contrato de emprego(260). Com o tempo, o TST afastava-se da ideia inicial, segundo a qual somente incidiria a prescrição to- tal de dois anos nos casos em que o próprio direito à complementação de proventos estava em debate. Na concepção original, aplicar-se-ia, fora dessa hipótese, a prescrição parcial de cinco anos. (256) Súmula 326 (texto revisto em maio de 2011) – Em se tratando de pedido de complementação de aposentadoria oriunda de norma regulamentar e jamais paga ao ex-empregado, a prescrição aplicável é a total, começando a fluir o biênio a partir da aposentadoria. (257) Súmula 327 (texto revisto em maio de 2011) – Complementação dos proventos de aposentadoria. Diferença. Prescrição parcial. Tratando-se de pedido de diferença de complementação de aposentadoria oriunda de norma regulamentar, a prescrição aplicável é a parcial, não atingindo o direito de ação, mas, tão somente, as parcelas anteriores ao quinquênio. (258) Precedentes do TST, inclusive da lavra deste articulista, no sentido de aplicar a prescrição total referida na Súmula 326 nos casos em que a parcela jamais integrou a complementação de proventos: TST-E-ED-RR-147100-69.2007.5.22.0003, Relator Ministro Vieira de Mello Filho, SDI-I, DEJT 11.6.2010; TST-E-RR-2103300-24.2006.5.09.0012, Relatora Ministra Maria de Assis Calsing, SDI-I, DEJT 04.6.2010; TST-E-RR-1560040-17.2002.5.09.0004, Relator Ministro Augusto Cesar Leite de Carvalho, SDI-I, DEJT 04.6.2010; TST-E-ED-RR-106000-05.2002.5.03.0112, Relatora Ministra Rosa Maria Weber Candiota da Rosa, SDI-I, DEJT 04.6.2010; TST-E- -RR-98500-56.2004.5.03.0001, Relator Ministro Horácio Senna Pires, SDI-I, DEJT 23.4.2010; TST-E-RR-583/2004-004-04-00.4, Relator Ministro Lelio Bentes Corrêa, SDI-I, DEJT 13.11.2009. (259) Precedentes da SBDI-1 do TST: TST-E-ED-RR 28640-64.2008.5.09.0872, Relator Ministro Horácio Raymundo de Senna Pires, DEJT 29/04/2011; TST-E-RR 203200-17.2003.5.03.0099, Relator Ministro Renato de Lacerda Paiva, DEJT 19/04/2011; TST-E-ED-RR 369200- 43.2007.5.09.0020, Relator Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, DEJT 19/04/2011; TST-E-ED-RR 21100-60.2004.5.03.0099, Relatora Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, DEJT 25/03/2011. Nesses julgamentos, aqui destacados porque todos muito próximos à mudança da orien- tação jurisprudencial, a SBDI-1 entendeu que se a parcela era obtida em processo trabalhista anterior, fluía a prescrição total de dois anos a partir do trânsito em julgado da sentença exarada no processo anterior, quando essa ação anterior fosse ajuizada antes da aposentadoria, ou fluía o biênio desde a aposentadoria, se a ação anterior fosse ajuizada após o interessado aposentar-se. (260) Precedentes da SBDI-1 do TST, inclusive da lavra deste articulista, no sentido de aplicar a prescrição total nessa hipótese: E-ED- -RR – 57800-54.2004.5.06.0001, Rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho, julgado em 22/06/2010, DEJT 28/06/2010; E-ED- -RR-279400-61.2004.5.02.0001, Rel. Min. Maria de Assis Calsing, DEJT de 07/05/2010; E-ED-RR-32040-89.2003.5.15.0033, Rel. Min. Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT de 30/04/2010; E-ED-RR-247900-06.2000.5.02.0069, Rel. Min. Lelio Bentes Corrêa, DEJT de 19/03/2010; ED-E-RR-230200-11.2000.5.15.0051, Rel. Min. Vantuil Abdala, DEJT de 29/10/2009. 102 – Augusto César Leite de Carvalho O que prevaleceu em maio de 2011, em reunião plenária dos ministros do TST, foi o retorno a essa orientação inicial, ou seja, retomou-se a expressa recomendação de que se adotasse a prescrição quinquenal de parcelas em todos os casos nos quais a complementação de proventos da aposentado- ria já está sendo recebida e o autor da ação postula apenas diferenças do valor que está a perceber. A prescrição total de dois anos ficou reservada à pretensão de receber a complementação, ela própria e por inteiro, não uma sua fração. As Súmulas 326 e 327 ganharam a redação seguinte: Súmula 326 – A pretensão à complementação de aposentadoria jamais recebida prescreve em 2 (dois) anos contados da cessação do contrato de trabalho. Súmula 327 – A pretensão a diferenças de complementação de aposentadoria sujeita-se à prescrição parcial e quinquenal, salvo se o pretenso direito decorrer de verbas não recebidas no curso da relação de emprego e já alcançadas pela prescrição, à época da propositura da ação. Sem embargo de a nova orientação parecer-nos um considerável avanço, é fato que a incidência da Lei n. Complementar n.109/2001 implicaria, em princípio, a adoção sempre do prazo quinquenal, inclusive na hipótese de o interessado jamais haver recebido qualquer valor a título de complementa- ção de proventos. A Súmula 326 se refere, contudo, ao prazo bienal porque a maioria dos ministros do TST, pela judiciosa razão de que a pretensão seria remissiva às obrigações que integram o conte- údo do contrato de trabalho, entenderam que ela se tornaria inexigível dois anos após a cessação do contrato(261). É evidente que esse termo inicial de prescrição não será adotado quando a data da cessação do contrato não coincidir com a da aposentadoria, ou mesmo com a data em que se tornar exigível a complementação de proventos(262). E se afigura igualmente importante observar que a parte final da Súmula 327 incorpora, em verdade, o conteúdo da antiga orientação jurisprudencial 156 da SBDI-1(263), cancelada exatamente para que o seu enunciado pudesse galgar, desse modo, a dignidade de súmula. A relação, nesse caso, é de acessoriedade: se inexigível, porque prescrita, a pretensão de receber a parcela que seria inclu- ída na base de cálculo da complementação de proventos, prescrita igualmente estará a pretensão de receber a diferença correspondente na previdência complementar. 6.3.7 A prescrição total de pretensão reparatória. A actio nata e os fundamentos da Súmula 278 do STJ Antes de a Justiça laboral apreciar a matéria alusiva aos danos morais e materiais resultantes de acidente de trabalho típico ou de doenças relacionadas com o trabalho, fazia-o a Justiça comum. É natural que os novos juízes se abeberem da experiência acumulada pelos juízes de antes, que enfren- taram o tema por longo tempo e aprofundaram a sua análise. Quando houve de decidir sobre o marco inicial da prescrição que se opera contra a pretensão do trabalhador acidentado de obter a reparação do dano sofrido em razão do acidente, o Superior Tribunal de Justiça editou, para pôr cobro a controvérsias, a Súmula 278 de sua jurisprudência, a saber: O termo inicial do prazo prescricional, na ação de indenização, é a data em que o segurado teve ciência inequí- voca da incapacidade laboral. Na ocasião, o STJ fez expressa referência ao art. 178, §6º, II, do Código Civil de 1916, que dizia prescrever em um ano “a ação do segurado contra o segurador e vice-versa, se o fato que a autoriza se verificar no país, contado o prazo do dia em que o interessado tiver conhecimento do mesmo fato”. O art. 206, §1º, II, b do Código Civil de 2002 prevê, em igual sentido, que o citado prazo de prescrição flui a partir da “ciência do fato gerador da pretensão”. (261) A compreensão de que se trata de obrigação estritamente trabalhista, a atrair inclusive a competência da Justiça do Trabalho, faria vigorar o prazo bienal previsto no art. 7º, XXIX, da Constituição. (262) Além de a aposentadoria espontânea não pôr fim ao contrato de emprego, há casos nos quais o empregado continua contribuindo para o fundo de pensão após aposentar-se, até completar o tempo de contribuição que lhe daria direito à complementação de proventos. Segundo o princípio da actio nata, a prescrição não pode fluir quando ainda não nasceu o direito de ação. (263) OJ 156 da SBDI-1 (cancelada para absorção pela Súmula 327) – Ocorre a prescrição total quanto a diferenças de complementação de aposentadoria quando estas decorrem de pretenso direito a verbas não recebidas no curso da relação de emprego e já atingidas pela prescri- ção, à época da propositura da ação. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 103 De fato, os cinco precedentes(264) citados como embasamento para a edição da Súmula 278 do STJ cuidam de ações movidas em face de seguradoras contratadas por empregadores, porquanto elas tenham resistido à pretensão reparatória(265). E quando aquela Corte foi provocada a propósito de o verbete de sua súmula ser aplicável apenas a questões previdenciárias, decidiu que assim não suce- dia porque o enunciado era pertinente, por igual, às pretensões fundadas no direito comum, deduzidas em face do empregador(266). A compreensão da “ciência inequívoca da incapacidade laboral” como termo inicial do prazo de pres- crição atende, portanto, à diretriz legal, atendendo igualmente ao senso jurídico e sobretudo lógico de que os prazos de prescrição devem iniciar-se na data em que nasce a pretensão (actio nata), nunca antes. Mas a transposição dessa regra para as hipóteses nas quais o devedor acionado não é mais a companhia seguradora, mas sim a empregadora que causou o dano ou implementou condição de trabalho cujo risco gerou a predisposição para o evento danoso(267), deve realizar-se com algum temperamento. Não se questiona, porque incensurável, a adoção da regra que Savigny denominou actio nata, ou seja, a de o prazo de prescrição se iniciar com “o nascimento do direito de ação, provocado pela violação de um direito subjetivo”(268). É importante observar, inclusive, que a jurisprudência traba- lhista tem afirmado, decerto influenciada pelo modelo hermenêutico nascido no Superior Tribunal de Justiça, que a actio nata para a pretensão reparatória, alusiva a dano resultante de acidente ou doença relacionada com o trabalho, é a ciência inequívoca do mal e sua extensão. A partir daí seria aplicada a prescrição cível ou trabalhista, a depender de a lesão consumar-se antes ou depois da Emenda Constitucional n. 45, de 2004 (norma que fixou, em definitivo, a competência da Justiça do Trabalho para decidir a matéria)(269). (264) AgRg no REsp 329.479-SP (4ª T, 09.10.2001 – DJ 04.02.2002), REsp 220.080-SP (3ª T, 11.04.2000 – DJ 29.05.2000), REsp 228.772- SP (4ª T, 09.11.1999 – DJ 14.02.2000), REsp 309.804-MG (3ª T, 06.12.2001 – DJ 25.03.2002) e REsp 310.896-SP (3ª T, 17.05.2001 – DJ 11.06.2001). (265) Prevê o art. 788 do Código Civil: “Nos seguros de responsabilidade legalmente obrigatórios, a indenização por sinistro será paga pelo segurador diretamente ao terceiro prejudicado. Parágrafo único. Demandado em ação direta pela vítima do dano, o segurador não poderá opor a exceção de contrato não cumprido pelo segurado, sem promover a citação deste para integrar o contraditório.” Daniel Luiz Martins de Carvalho e Manuela Ghissoni de Carvalho explicam que a palavra “terceiro” foi utilizada no caput “em seu aspecto puramente jurídico-substancial. Ora, se o dispositivo estabelece justamente uma relação entre segurador e prejudicado, este pode ser considerado terceiro apenas em relação ao contrato de seguro de responsabilidade anteriormente celebrado. Em eventual processo visando a promover o cumprimento da obrigação ali estabelecida, o prejudicado seria, indiscutivelmente, parte legítima, jamais terceiro” (CARVALHO, Daniel Luiz Martins de; CARVALHO, Manuela Ghissoni de. “A Intervenção de Terceiro em Ação Direta da Vítima Contra o Segurador e o art. 788 do Código Civil – uma proposta de interpretação”. In: Reflexos do Novo Código Civil no Direito Processual. Coordenação de Fredie Didier Jr. e Rodrigo Mazzei. Salvador: JusPODIVM, 2007, p. 337). Os autores defendem que ainda não restou inteiramente solucionada pelo legislador a controvérsia doutrinária a respeito da possibilidade de o prejudicado intentar ação direta de reparação contra o segurador do estipulante na generalidade dos seguros de responsabilidade civil, pois o art. 788 estaria viabilizando essa ação direta apenas nos casos de seguro obrigatório. Mas citam, em sentido contrário, a doutrina de Voltaire Marensi, para quem o art. 788 “pôs termo a uma velha celeuma jurisprudencial, isto é, saber se o terceiro prejudicado poderá intentar ação direta contra o segurador”. (266) AgRg no REsp 823.902/GO, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19/09/2006, DJ 02/10/2006, p. 279: Ementa: “[...] O prazo para o exercício do direito de ação pelo acidentado contra o empregador possui como termo inicial a data em que a vítima obteve ciência inequívoca da exata extensão dos danos causados à sua capacidade laboral, a qual, em regra, corresponde à data do laudo pericial”. Na fundamentação, a ministra relatora explicita acerca da Súmula 278 do STJ: “verifica-se, a partir dos precedentes que serviram de base para a criação de tal Súmula, que não há a alegada restrição às ações de direito previdenciário, porquanto é aplicada às ações fundadas no direito comum, de modo que não merece prosperar o argumento do agravante”. Em igual sentido, das mesmas turma e relatora, o REsp 468326/SC, DJ 10/02/2003, p. 206. Também: “O termo inicial da prescrição da pretensão indenizatória não flui da data do desligamento da empresa, mas de quando o operário teve conhecimento da sua incapacidade, origem, natureza e extensão, que no caso corresponde à data do laudo. [...]” (REsp n.. 291.157/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, DJ 03/09/2001). “Na linha do entendimento adotado por este Tribunal, o termo inicial do prazo prescricional, em casos de acidente de trabalho, é a data em que teve o segurado ciência inequí- voca de sua enfermidade, não havendo, para esse fim, documento determinado ou data específica, sendo certo que isso pode ocorrer com o laudo pericial (regra geral) ou em outro momento. [...]” (REsp n.. 159.715/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, DJ 13/12/1999). (267) Em rigor, o STJ adotou, coerentemente, o mesmo entendimento de que a ciência inequívoca da lesão faz fluir o prazo prescricional e que se torna inexigível a pretensão reparatória ao fim desse prazo prescritivo, mesmo se continuada a lesão, nos casos que envolvia os danos causados pelo tabagismo, como se pode extrair, dentre outros, do aresto seguinte: “RESPONSABILIDADE CIVIL. CONSUMIDOR. FATO DO PRODUTO. TABAGISMO. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. INÍCIO DA CONTAGEM DO PRAZO. CONHECIMENTO DO DANO. 1. A pretensão do autor, apoiada na existência de vícios de segurança, é de informação relativa ao consumo de cigarros – responsabilidade por fato do produto. 2. A ação de responsabilidade por fato do produto prescreve em cinco anos, consoante dispõe o art. 27 do Código de Defesa do Consumidor. 3. O prazo prescricional começa a correr a partir do conhecimento do dano. 4. Recurso especial conhecido e provido” (REsp 489.895/SP, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Segunda Seção, julgado em 10/03/2010, DJe 23/04/2010). (268) Cf. THEODORO JUNIOR, Humberto. “Distinção Científica entre Prescrição e Decadência. Um Tributo à Obra de Agnelo Amorim Filho. In: Reflexos do Novo Código Civil no Direito Processual. Op. cit., p. 225. O autor atribui a Savigny a expressão actio nata. (269) RECURSO DE EMBARGOS INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI N.º 11.496/2007. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. DOENÇA OCUPACIONAL. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. PRESCRIÇÃO. 1. Orienta-se o entendimento recente 104 – Augusto César Leite de Carvalho Mas, se é indefectível dizer que o prazo prescricional não pode iniciar-se antes de surgir a preten- são, talvez não se possa dizer, com a mesma ênfase, que a prescrição afetaria, nesse caso, mais que as prestações correspondentes (pensão mensal, reembolso de despesas médicas etc.), também o fundo do direito. É como perguntar: seria de aplicar-se o mesmo entendimento quando a pretensão é deduzida em face do agente causador do dano (não da seguradora) e o dano ainda perdura? É lícito compreender que a pretensão se resolve definitivamente após o prazo prescricional, contado da ciên- cia inequívoca, quando a vítima investe, não contra a sociedade seguradora (que dano nenhum lhe causou), mas sim contra a empresa que lhe subtraiu, à expressão de Pontes de Miranda, algum dos “direitos necessários à realização da personalidade e à sua inserção nas relações jurídicas”(270)? Em outros dizeres, a mesma interrogação: a prescrição há de se consumar se a relação jurídica é de outra grandeza, sobrepujando os mais estreitos limites dos liames securitários, e o dano cometido não esgota instantaneamente a sua ação lesiva, dado que ela se protrai no tempo e continua a gerar inaptidão, às vezes novas sequelas físicas? A título de ilustração, os braços e pernas esmagados por prensas mecânicas podem causar lesão e desconforto progressivos, nascendo o interesse de repara- ção muito após a dor da amputação, ou somente quando a necrose ou apoptose do membro parcial- mente perdido não for mais suportável. Dos males oriundos da absorção do amianto, pode-se dizer que o derrame pleural no mesotelioma é comum e recidivante, podendo ressurgir quando passados mais de cinco anos da primeira vez em que foi diagnosticado; os sintomas da placa pleural podem revelar-se entre três e trinta anos; os da asbestose, de quinze a quarenta anos, pois curtos ou longos, às vezes muito longos, são os períodos de latência(271), tudo a fazer variado e incerto o tempo do diag- nóstico definitivo. E se a doença osteomuscular relacionada ao trabalho é agravada pelas condições de trabalho impostas ao empregado que já recebeu o inditoso diagnóstico de LER-DORT? A prevalecer a opinião de que o transcurso do prazo prescritivo, a partir da ciência inequívoca da patologia, faz prescrita a preten- são reparatória, imuniza-se o empregador que persevera na exposição do empregado aos fatores de risco que o fizeram adoecer, quando lhe devia oferecer terapia e procedimento de reabilitação(272). Na relação entre a companhia seguradora e a empresa segurada, a responsabilidade gravita em torno de um contrato bilateral da classe dos aleatórios, sem conteúdo ou interesse que o faça conta- giado pelos direitos da personalidade. Mesmo quando o empregado, como terceiro prejudicado na relação securitária, postula a indenização diretamente da seguradora, o vínculo que o liga à segura- dora é de natureza processual, posto que ela se subrogue na obrigação atribuível ao empregador, esta sim uma obrigação que remete ao interesse de proteger a integridade física do trabalhador, ou seja, um interesse que toca ao desenvolvimento de sua personalidade, à sua capacidade de ser sujeito de direitos e realizar os atos da vida civil. A aparente impropriedade de conspurcar, mediante prescrição total, a pretensão reparatória dedu- zida em face do empregador tem, como se verá em seguida, três desafios, todos de ordem jurídica, a desta SBDI-I no sentido de que a regra prescricional aplicável à pretensão relativa a indenização por danos morais e materiais decorrente de acidente do trabalho é definida a partir da data em que a parte tem ciência inequívoca do evento danoso. Ocorrido o acidente ou cientifi- cada a parte da incapacitação ou redução da sua capacidade laboral em ocasião posterior ao advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, por meio da qual se definiu a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar tais demandas, a prescrição incidente é a prevista no artigo 7º, XXIX, da Constituição da República, porquanto indiscutível a natureza trabalhista reconhecida ao evento. Contrariamente, verificado o infortúnio anteriormente à entrada em vigor da referida emenda constitucional, prevalece a prescrição civil, em face da contro- vérsia que pairava nas Cortes quanto à natureza do pleito – circunstância que não pode ser tomada em desfavor da parte. 2. Na presente hipótese, consoante consignado pela egrégia Turma, a ciência inequívoca da lesão deu-se com a aposentadoria por invalidez da reclamante, em 05/12/2002 – ou seja, em data anterior à edição da Emenda Constitucional n.º 45/2004. A prescrição incidente, portanto, é a civil, com a regra de transição consagrada no artigo 2.028 do Código Civil de 2002, porquanto não transcorridos mais de dez anos até a data da entrada em vigor do referido Código. 3. Assim, em face da regra contida no indigitado dispositivo de lei, forçoso concluir que a prescrição aplicável, no presente caso, é a trienal, estabelecida no artigo 206, § 3º, V, do atual Código Civil, iniciando-se a contagem a partir da sua entrada em vigor – ou seja, 11/1/2003 – e findando em 11/1/2006. 4. Ajuizada a presente ação em 8/1/2008, deve ser reconhecida a prescrição relativa- mente à pretensão a reparação por danos morais e materiais decorrentes de acidente do trabalho. 5. Recurso de embargos conhecido e não provido (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-ED-RR 1100-83.2008.5.04.0030, Rel. Min. Lelio Bentes Corrêa, julgado em 09/08/2012, publicação em 24/08/2012). (270) MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 2000. t. 7, p. 31. (271) TERRA FILHO, Mário; FREITAS, Jefferson Benedito Pires de; NERY, Luiz Eduardo. Doenças Asbesto-relacionadas. Disponível em: http://www.jornaldepneumologia.com.br/portugues/suplementos_detalhe.asp?id_cap=47. Acesso em 22/mar/2012. (272) Sobre o tema, v. Manual de Procedimentos. Disponível em http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAF3EAB/doencas-relacionadas- -ao-trabalho. Acesso em 22/mar/2012. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 105 superar: a) a lesão aos direitos da personalidade, mesmo quando os compreendemos como direitos imprescritíveis que induzem pretensões sujeitas a prescrição, geram direitos subjetivos cuja exigibili- dade não cessa enquanto perdura a sua vulneração; b) a ordem jurídica não respalda, em princípio, a ideia de lesões permanentes corresponderem a prazos de prescrição que se iniciem antes de cessada a permanência; c) há pretensões, relativas a despesas por tratamento de saúde ou pensionamento, que são oriundas de acidentes de trabalho e somente se tornam exigíveis mais de cinco anos após nascer a primeira pretensão reparatória, não parecendo razoável que elas nasçam prescritas. A nosso ver, há campo para uma mais detida reflexão sobre a matéria. 6.3.8 A prescrição em hipótese de lesão a direitos da personalidade Conforme Francisco Amaral, os direitos da personalidade são imprescritíveis “no sentido de que não há prazo para o seu exercício. Não se extinguem pelo não uso, assim como sua aquisição não resulta do curso do tempo”(273). Para José Jairo Gomes, afirma-se usualmente “que o exercício tardio de direito da personalidade não obstaculiza sua eficácia, por isso ele seria imprescritível. Todavia, não é correto falar- -se em imprescritibilidade nesse caso, haja vista que a prescrição pressupõe a existência de pretensão. Esta decorre da violação a direito subjetivo. Note-se, porém, que a pretensão de reparação de danos decorrentes da ofensa perpetrada contra direito da personalidade sujeita-se à prescrição, mas, nesta hipótese, o que prescreve é a pretensão surgida com a violação do direito”(274). Não parece adequada a afirmação, com viés absoluto, de que seriam imprescritíveis as preten- sões atinentes aos direitos da personalidade. O que não decai é o direito mesmo à titularidade dos bens e valores inatos à condição humana e necessários à celebração de negócios jurídicos, como a vida, a integridade física, a intimidade, a honra, a imagem, o nome enfim. A pretensão, com índole patrimonial, de que se repare eventual lesão a algum desses direitos da personalidade está quase invariavelmente condicionada à prescrição. O mais preeminente desses direitos, o direito à vida, gera pretensão cível ou penal prescrití- vel quando tentado ou consumado o delito de eficácia letal. O tempo faz inexigíveis as postulações concernentes a homicídios ou infanticídios, por exemplo. Outro aspecto é aquele que diz sobre tornar- -se inexigível a reparação quando o prazo prescritivo já fluiu inteiramente a partir do nascimento da pretensão, mas a vulneração do direito inerente à personalidade ainda não cessou. É o que sucede, a bem ver, quando o empregado ainda se submete a fatores de risco na empresa em que contraiu, segundo tem ciência há mais de cinco anos, alguma doença profissional ou relacionada ao trabalho. A sua integridade física, sem a qual estaria inapto aos atos da vida civil, continua sofrendo a lesão, mas a pretensão estaria, por estranha razão, prescrita. A pronúncia de prescrição no tocante às prestações exigíveis há menos de cinco anos comprometeria o caráter irrenunciável, que o art. 11 do Código Civil consagra, dos direitos da personalidade. Parece mais consentâneo conceber-se prescrita apenas a pretensão alusiva às prestações devidas mais de cinco anos antes da propositura da ação. 6.3.9 A lesão continuada e o termo inicial da prescrição Há lesões instantâneas com resultados instantâneos, a exemplo da queda do alto de um andaime que causa dor física, nada mais. Há lesões instantâneas com resultados permanentes, como a queda do mesmo andaime que gera um defeito físico irreversível – pode significar a vulneração de um direito fundamental, matéria versada no subitem anterior, mas decerto não se cuida de lesão permanente ou continuada. Há lesões, enfim, que são permanentes, porque a ação ou omissão lesiva continua inci- dindo no tempo, mantendo o seu efeito danoso e por vezes o potencializando. Sobre o tema, o direito penal é ilustrativo: ao Supremo Tribunal Federal coube, não raro, distin- guir crime permanente de crime instantâneo com resultado permanente, fazendo-o com a costumeira (273) Apud Leonardo de Faria Beraldo (BERALDO, Leonardo de Faria. “Ensaio Sobre Alguns Pontos Controvertidos Acerca da Prescrição no Direito Brasileiro”. In: Prescrição no Código Civil: uma análise interdisciplinar. Coordenação de Mirna Cianci. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 227). (274) Apud Leonardo de Faria Beraldo, op. cit., p. 228. 106 – Augusto César Leite de Carvalho pertinência(275). E o fez porque, quando a ordem jurídica regula o termo inicial da prescrição incidente sobre os atos ilícitos permanentes, tal sucede no âmbito do direito penal para então se estabelecer que “a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr [...] nos crimes perma- nentes, do dia em que cessou a permanência” (art. 111, III, do Código Penal). Há, a propósito, ementa elucidativa do Tribunal Federal da 3ª Região a explicar: “Crime perma- nente é aquele cuja configuração depende da contínua atividade antijurídica do sujeito ativo, cuja cessação enseja o restabelecimento do bem lesado. É o que se verifica nos exemplos paradigmáti- cos adotados doutrinariamente (sequestro, cárcere privado)”(276). Na parte que interessa, enquanto se realiza a conduta ilícita e o seu resultado lesivo, não corre prescrição. Situação próxima é, ainda, a que se refere aos danos ambientais, a cujo respeito assentou o STJ: “A continuada violação do direito de propriedade dos recorridos por atos sucessivos de poluição praticados pela recorrente importa em que se conte o prazo prescricional do último ato praticado”(277). O direito do trabalho deve não ignorar uma regra jurídica que guarda consonância com a lógica do razoável, com a equidade, com a inafastabilidade da atividade jurisdicional frente a violações ou ameaças a direito e, em especial, com a valorização da dignidade humana: a lesão que não cessa, enquanto não cessa, haverá de corresponder a uma pretensão imune à prescrição. 6.3.10 A pretensão que sobrevém à sua própria prescrição – uma heresia jurídica? Os danos materiais resultantes de doenças relacionadas com o trabalho consistem em indeniza- ção que “além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu”, na forma do art. 950 do Código Civil. Quer nas hipóteses em que há lesão instantânea com efeitos diferidos, quer nos casos de lesão permanente, a circunstância de iniciar-se a prescrição quando o empregado tem ciência inequívoca do fato gerador rende ensejo a duas situações que podem criar algum desconforto intelectual, pois contrariam a própria regra da actio nata: a) a pensão mensal configurar-se-ia, ao menos em parte, uma prestação vincenda que, sendo exigida mais de cinco anos após o conhecimento da doença pelo trabalhador, prescreveria antes de a sua cobrança realizar-se; b) as despesas de tratamento que acaso sobreviessem ao quinquênio prescritivo seriam exigíveis somente quando a pretensão corres- pondente já estaria prescrita. O contraponto, quanto à pensão, é a sua exigibilidade desde a lesão ao direito, não obstante a sua cobrança deva produzir-se em momento posterior. Em suma, a faculdade de postular a pensão a partir da ciência da lesão faria condizente o início, desde logo, do prazo prescricional. Se é válido dizer, porém, que a pensão mensal supre a ausência de salário – ou seja, de prestação de natureza alimentar – conclui-se defensável a tese de que, à semelhança dos alimentos stricto sensu, prescre- veria a pensão relativa aos meses que distassem mais de cinco anos da propositura da ação, não o fundo do direito. Mais grave é a possibilidade de o trabalhador acidentado não se interessar por deduzir logo a sua pretensão reparatória e, ante a despesa para tratamento que sobrevenha mais de cinco anos depois, ter que resignar-se ante a constatação de estar alcançado pela prescrição total o desejo de ser ressar- cido. A gravidade reside no aspecto de a despesa haver surgido quando o direito inquestionável de reembolso já era inexigível, força de prescrição. (275) A exemplo do precedente seguinte: “PRESCRIÇÃO – APOSENTADORIA – FRAUDE PERPETRADA – CRIME INSTANTÂNEO DE RESULTADOS PERMANENTES VERSUS CRIME PERMANENTE – DADOS FALSOS. O crime consubstanciado na concessão de aposentadoria a partir de dados falsos é instantâneo, não o transmudando em permanente o fato de terceiro haver sido beneficiado com a fraude de forma projetada no tempo. A óptica afasta a contagem do prazo prescricional a partir da cessação dos efeitos – artigo 111, inciso III, do Código Penal. Precedentes: Habeas Corpus n.s 75.053-2/SP, 79.744-0/SP e Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 83.446-9/RS, por mim relatados perante a Segunda Turma – os dois primeiros – e a Primeira Turma – o último -, cujos acórdãos foram publicados no Diário da Justiça de 30 de abril de 1998, 12 de abril de 2002 e de 28 de novembro de 2003, respectivamente” (HC 84998, Relator  Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 02/08/2005, DJ 16-09-2005 p. 0026). (276) TRF da 3ª Região, ACR 47712 SP 2002.03.99.047712-0, Rel. Juiz André Nekatschalow, DJU 07/07/2004, p. 84. (277) REsp 20645-SC. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 107 Anda bem a jurisprudência, portanto, quando adota a prescrição apenas das parcelas do pensio- namento nos casos em que a ciência da lesão ocorreu mais de cinco anos antes da propositura da ação judicial(278) e, por igual, quando conta o prazo quinquenal a partir de cada despesa médica – ainda quando a despesa se der mais de cinco anos após a ciência inequívoca da lesão que a gerou. 6.3.11 Prescrição contra domésticos, estagiários e avulsos A prescrição é um dado necessário? Quando a lei é omissa, haverá o seu intérprete de encon- trar, ainda que por analogia, um prazo de prescrição contra a pretensão que, não sendo assim, seria imprescritível? Ao que parece, caminhamos para consolidar uma resposta positiva a esses questiona- mentos, decerto a pretexto de enfatizar a importância do princípio da segurança jurídica, que de resto estabilizaria as relações sociais. É possível ilustrar essa tendência com três exemplos, aqueles que tocam aos empregados domésticos, aos estagiários e aos avulsos. Os empregados domésticos, como está visto, estão excluídos da proteção da CLT. São regidos pela Lei n. Complementar n. 150/2015 e pelos incisos do art. 7º da Constituição a que faz remissão o parágrafo único desse mesmo dispositivo constitucional. O art. 43 da mencionada LC 150 estende aos domésticos o prazo de prescrição previsto no inciso XXIX da Constituição, sem embargo de o parágrafo único desse mesmo art. 7º não incluir citado inciso entre aqueles que regeriam o trabalho doméstico. A extensão pela via legal não deve causar, porém, perplexidade. É que, quando nenhuma norma contemplava a prescrição das pretensões trabalhistas dos empregados domésticos, tal não impediu que evoluísse a construção jurisprudencial segundo a qual se aplicaria, aos domésticos, o mesmo prazo prescricional de cinco anos, com término virtualmente antecipado ao final do segundo ano que se seguir à extinção do contrato, previsto no art. 7º, XXIX da Constituição(279). Os estagiários, por sua vez, não se apresentam, como regra, na qualidade de empregados e a lei que rege a sua prestação de trabalho, a Lei n. 11.788/2008, não prevê a prescrição de suas respectivas pretensões. Ante a ausência de norma específica, poderia o aplicador do direito optar por declarar imprescritível a pretensão trabalhista dos estagiários ou fazê-la regida pelas regras genéricas do Código Civil. Entretanto, tem-se preferido adotar aos estagiários, por extensão, os prazos de pres- crição referidos no art. 7º, XXIX da Constituição(280). Algo semelhante ocorre aos trabalhadores avulsos, que não são empregados mas têm assegu- rada, no art. 7º, XXXIV da Constituição, a equiparação de direitos com os trabalhadores com vínculo empregatício. É de se quesionar: seria justo que a eles se estendesse, não um direito, mas a sua inexigibilidade, a eles se aplicando, assim, a prescrição prevista no art. 7º, XXIX, do texto constitucional para a pretensão de empregados? Na mesma linha do que sucede a domésticos e estagiários, mas agora com o argumento de que a isonomia entre trabalhadores avulsos e empregados seria ampla, o suficiente para que eles fossem contemplados com bônus e ônus que proviessem dessa igualdade de tratamento, a jurisprudência logo se firmou na direção de afirmar que os trabalhadores avulsos estavam submetidos à prescrição do art. 7º, XXIX, da Constituição. (278) Nesse sentido, forte jurisprudência que emana do STJ: STJ, REsp 443.869/RS, Rel. Ministra Denise Arruda, 1ª Turma, DJ 24/04/2006, p. 354; STJ, AGA 428430/RS, 2ª Turma, Relator Min. Castro Meira; j. em 24/06/2003, unânime; DJU de 12/08/2003, p. 00213; STJ, RESP 74855/GO, 2ª Turma, Relator Min. Peçanha Martins, j. em 03/06/1996, unânime; DJU de 21/10/1996, p. 40233). (279) AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. EMPREGADO DOMÉSTICO. PRESCRI- ÇÃO. ART. 7º, XXIX, DA CARTA MAGNA. APLICAÇÃO. [...] Na linha dos precedentes desta Corte Superior, o prazo de prescrição cons- tante do inciso XXIX do art. 7º da Constituição Federal é aplicado a todos os trabalhadores, sendo irrelevante a circunstância de a prescrição não estar elencada no rol dos direitos sociais assegurados aos empregados domésticos. A prescrição, com natureza de direito material, não se confunde com o direito subjetivo, tendo a finalidade de extinguir a pretensão (ação de direito material), produzindo efeitos no âmbito do processo (CPC, art. 269, IV). Agravo regimental a que se nega provimento (TST, 1ª Turma, AgR-AIRR – 632-27.2010.5.15.0036 , Relator Ministro Walmir Oliveira da Costa, Data de Julgamento: 27/06/2012, Data de Publicação: 29/06/2012) (280) RECURSO DE REVISTA. PRESCRIÇÃO BIENAL. CONTRATO DE ESTÁGIO. Tratando-se de contrato de estágio firmado entre as partes, a prescrição a ser aplicada é a prevista no artigo 7º, inciso XXIX, da CF, dada a natureza trabalhista do contrato. Mesmo adotando o entendimento expresso na Súmula nº 156 do TST, segundo a qual o prazo prescricional começa a fluir do último contrato, a ação está fulmi- nada pela prescrição total já que o término do período de estágio se deu em 15/01/2010 e a presente ação somente foi ajuizada em 27/01/2012, mais de dois anos depois da extinção do contrato. Recurso de revista conhecido e provido (TST, 6ª Turma, RR 94-80.2012.5.04.0004, Relator Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 24/10/2012. Data de Publicação: 26/10/2012). 108 – Augusto César Leite de Carvalho Em um primeiro momento, vigeu, quanto aos trabalhadores avulsos portuários, a orientação juris- prudencial n. 384 da SBDI-1: “É aplicável a prescrição bienal prevista no art. 7º, XXIX, da Constituição de 1988 ao trabalhador avulso, tendo como marco inicial a cessação do trabalho ultimado para cada tomador de serviço”. Mas esse verbete foi cancelado por deliberação do Tribunal Pleno do TST, após os debates travados em meio à Segunda Semana do Tribunal Superior do Trabalho (10 a 14 de setem- bro de 2012). Em rigor, a matéria exige detida reflexão. É que os personagens da atuação nos portos precisam ser bem compreendidos. Em primeiro lugar, os operadores portuários são empresas (com mais rigor, são pessoas jurídicas) responsáveis pela movimentação de passageiros e mercadorias, bem como de armazenagem destas, na área portuária, sobretudo dos portos explorados ou concedidos pela União (portos organizados). Nessa condição, os operadores portuários se responsabilizam pela remunera- ção do trabalhador avulso, conforme regulavam os artigos 1º, §1º e 18, IV, da Lei n. 8.630/1993 e agora regula o art. 33, §2º da Lei n. 12.815/2013. Os operadores portuários constituem o Órgão Gestor de Mão de Obra e ao OGMO, assim cons- tituído, cabe treinar, habilitar, contratar, dirigir e, sendo o caso, punir o trabalhador portuário, respon- sabilizando-se por arrecadar a sua remuneração junto ao operador portuário e a repassá-la ao avulso (artigos 18 e 19 da antiga Lei n. 8.630/1993 e art. 33 da atual Lei 12.815/2013). Logo, o vínculo se estabelece diretamente entre o trabalhador portuário e o OGMO, não com o operador portuário a quem o avulso presta serviço, ou com o tomador dos serviços enfim. Parece-nos que a tendência jurisprudencial, com clara sinalização a partir do cancelamento da orientação jurisprudencial n. 384 da SBDI-1, é a de abolir a prescrição bienal nos casos de trabalho avulso, salvo se considerado, como termo incial do biênio, a data em que cancelado definitivamente o registro do trabalhador no OGMO(281). Enquanto se mantiver o registro no OGMO e a atuação do trabalhador avulso na área portuária, incidirá somente a prescrição de cinco anos, a contar da lesão. Tal orientação jurisprudencial terminou por ser absorvida pela Lei n. 12.815/2013 que, ao regula- mentar a atuação portuária, dispõe em seu art. 37, §4º: “As ações relativas aos créditos decorrentes da relação de trabalho avulso prescrevem em 5 (cinco) anos até o limite de 2 (dois) anos após o cancela- mento do registro ou do cadastro no órgão gestor de mão de obra”. 6.3.12 Prescrição relativa ao FGTS – redução do prazo pelo STF A prescrição da pretensão de recolhimento ao FGTS sempre foi de trinta anos, assim se mantendo a partir da edição da Lei n. 8.036, de 1990 (art. 23, §5º). A razão para ser assim seria, segundo Vólia Bomfim Cassar, “a semelhança do FGTS com a cota previdenciária (espécie de tributo também), e a antiga lei da previdência, vigente à época da criação do FGTS – Lei n. 3.807/60 (há muito revogada), em seu art. 144, previa a prescrição de trinta anos para a cobrança, pelo órgão previdenciário, das respectivas contribuições”(282). Ao final de 2014, o STF julgou o ARE 709212/DF(283) e, declarando a inconstitucionalidade do art. 23, §5º, da Lei n. 8.036/1990, fixou então “a tese, à luz da diretriz constitucional encartada no inciso XXIX do art. 7º da CF, de que o prazo prescricional aplicável à cobrança de valores não depositados no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) é quinquenal”. Como o STF modulou no tempo os efeitos desse julgamento, a Súmula 362 do TST, em natural reverência à decisão da Corte maior, passou a ter a seguinte redação: I – Para os casos em que a ciência da lesão ocorreu a partir de 13.11.2014, é quinquenal a prescrição do direito de reclamar contra o não recolhimento de contribuição para o FGTS, observado o prazo de dois anos após o término do contrato; II – Para os casos em que o prazo prescricional já estava em curso em 13.11.2014, aplica-se o prazo prescri- cional que se consumar primeiro: trinta anos, contados do termo inicial, ou cinco anos, a partir de 13.11.2014 (STF-ARE-709212/DF). (281) Artigos 19, I, c, 27, §3º e 58 da Lei n. 8.530/1993. (282) CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, out/ 2014, p. 1193. Essa mesma razão histó- rica para a prescrição trintenária foi invocada pelo relator, Ministro Gilmar Mendes, no julgamento do ARE 709212/DF pelo STF. (283) http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ARE709212voto.pdf Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 109 Essa é a regra, ou o modelo hermenêutico para ela construído pelo STF, que haverá de preva- lecer. Sem embargo de serem judiciosos os fundamentos adotados pela corte constitucional, cabe, ao nosso sentir, alguma análise crítica, no campo das tertúlias doutrinárias, à declaração de incons- titucionalidade do dispositivo legal que previa a prescrição trintenária. As razões de submeter a esta respeitosa censura a nova construção jurisprudencial são as que seguem. A prescrição trintenária estava consagrada na Súmula 362 do TST, em sua antiga redação: “É trin- tenária a prescrição do direito de reclamar contra o não recolhimento da contribuição para o FGTS, observado o prazo de 2 (dois) anos após o término do contrato de trabalho”. A um só tempo, adotava-se prazo mais longo quanto à prescrição que observava o princípio da actio nata e se considerava o prazo de apenas dois anos quando se tinha em conta não mais o nascimento do direito de ação (actio nata), mas sim a cessação do contrato, a exemplo do que sucede com todas as outras pretensões trabalhistas. O relator do ARE 709212/DF no STF, Ministro Gilmar Mendes, vislumbrou postura contraditória do TST ao aplicar o prazo previsto em lei (trinta anos) no tocante ao recolhimento e o prazo regulado pela Constituição (dois anos) quanto à prescrição que corre a partir da extinção do contrato, sem atentar, venia maxima, para o aspecto de estar a versar sobre prazos de prescrição trabalhista que observam critérios diferentes para a fixação do termo inicial: o prazo bienal não está atrelado ao princípio da actio nata em relação a qualquer pretensão trabalhista, não apenas ao FGTS, e por isso a lei que dispõe sobre o prazo prescricional que se deflagra com a lesão (ou não recolhimento) não se aplicava, e conti- nua sem aplicar-se, no que concerne ao prazo de prescrição que flui, extraordinária e alternativamente, a partir da cessação do contrato. A identificação da similitude com as prestações previdenciárias como ratio para um prazo mais longo de prescrição também parece demasiadamente ascética, em tema que não comporta neutralidade. O FGTS, como se pode inclusive colher das citações colacionadas no voto condutor do julgamento pelo STF, substituiu, em dado momento, a indenização por tempo de serviço que vigorava em favor de todos os trabalhadores até 1966, tempo em que a eles se assegurava inclusive estabilidade após dez anos de trabalho em determinada empresa. No julgamento do RE 100.249-2, em julho de 1988 (e, portanto, sob a égide da Constituição de 1967), vê-se que o Ministro Néri da Silveira foi enfático: [...] As contribuições para o FGTS não se caracterizam como crédito tributário ou contribuições a tributo compa- ráveis. Sua sede está no art. 165, XIII, da Constituição (de 1967). Assegura-se ao trabalhador estabilidade, ou fundo de garantia equivalente. Dessa garantia, de índole social, promana, assim, a exigibilidade pelo trabalhador do pagamento do FGTS, quando despedido, na forma prevista em lei. Cuida-se de direito do trabalhador. Dá-lhe o Estado garantia desse pagamento. [...] O direito (ao FGTS) que surgiu para substituir a indenização por tempo de serviço haveria de ter igual expressão pecuniária(284), sobretudo porque dali por diante sequer estaria mantida a estabilidade decenal. Quando se encurta o prazo prescricional para cinco anos, como decidiu de lege ferenda o STF, dá-se ao empregador a opção de recolher o FGTS dos cinco anos que supõe sejam os últimos anos do contrato, imunizando-o quanto ao FGTS que equivaleria à indenização de antiguidade relativa aos anos anteriores ao quinquênio. É dizer: a promessa de equivalência entre a antiga indenização por tempo de serviço e o FGTS quebrou-se sutilmente quarenta e oito anos depois de proclamada. Dir-se-ia que a decisão não seria danosa porque, afinal, os empregadores não agem tão desle- almente e também que os contratos de emprego atuais revelam-se normalmente de curta duração, sendo exponencial o número que denota a rotatividade dos empregos no Brasil. Oxalá não o seja! Mas mantém-se a premissa de que o prazo trintenário de prescrição atinente ao FGTS alcançava, não os bons empregadores, mas sim e somente aqueles que não o recolhiam sobre os salários que induvidosamente pagavam aos seus empregados – inclusive porque quanto aos salários controverti- dos, ainda não recebidos pelos trabalhadores, a prescrição sempre foi e continuará sendo quinquenal (Súmula 206 do TST). Logo, apenas os maus empregadores, que deliberadamente negligenciaram a sua obrigação, são beneficiados pela nova orientação jurisprudencial. E não impressiona, por outro lado, o argumento de que os empregados e os sindicatos que os representam, bem assim a advocacia pública, todos têm hoje a possibilidade de acompanhar a regu- laridade dos recolhimentos do FGTS, cobrando-os no prazo de cinco anos se tal não suceder. Em verdade, os entes coletivos precisariam atingir um nível de capilaridade fiscalizatória aparentemente (284) Corresponde o FGTS a: 8% da remuneração x 12 meses + juros = uma remuneração mensal por ano, mesmo valor da indenização de antiguidade. 110 – Augusto César Leite de Carvalho fantasiosa para que estivessem aptos à percepção de que certo cidadão ou membro de categoria estaria sendo lesado, isso sem falar dos déficits de representatividade sindical de que já cuidamos ao estudarmos o princípio da autodeterminação coletiva. E supor que os trabalhadores vão provocar a jurisdição trabalhista em meio aos seus respectivos vínculos, expondo-se à sanha persecutória de empregadores que proveem as suas outras necessidades vitais básicas e às de sua família, parece revelar desconhecimento do justo receio que impede os empregados, enquanto o são, de demandarem contra seus empregadores, por mais acintoso que seja o descumprimento de obrigações trabalhistas(285). Por fim, argumenta-se que o art. 7º, XXIX, da Constituição brasileira não teria ressalvado a possi- bilidade de o prazo prescricional ser maior e, por isso, todo prazo de prescrição, alusivo a pretensão trabalhista, seria de cinco anos. O argumento parece não considerar que a maior elasticidade dos direitos sociais revestidos de índole laboral não se apresenta casuisticamente nos incisos do art. 7º, mas sim na cabeça do artigo e vale para todos os direitos e garantias ali analiticamente consagrados. A lembrar, o caput do art. 7º da Constituição ressalva a superveniência de direitos que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores urbanos ou rurais. De todo modo, não se afigura adequado que a prescrição regida pelo art. 7º, XXIX, da Constituição estenda-se a categorias em relação às quais ela não foi concebida – como há pouco vimos a propó- sito de trabalhadores domésticos, estagiários e avulsos –, e se impeça que citado prazo prescricional possa ser dilatado por lei para a generalidade dos trabalhadores quanto a direito social específico. Haveria, assim, exegese ampliativa que aproveitaria a infratores de direitos fundamentais e interpreta- ção restritiva quanto à efetividade desses mesmos direitos. (285) Sobre o tema: CARVALHO, Augusto César Leite de. Garantia de indenidade no Brasil: o livre exercício do direito fundamental de ação sem o temor de represália patronal. São Paulo: LTr, 2013. CAPÍTULO VII EMPREGADO 7.1 O conceito de empregado a partir da realidade social O direito do trabalho está vocacionado à regulação do vínculo jurídico que, nos moldes alinhados ao sistema capitalista e à concepção de empresa, envolve a atividade do homem em processo de produção de bens ou serviços. Houve, por isso, quem procurasse conceber o trabalhador, regido pelo direito laboral, como aquele que pertencesse a uma determinada classe social. Em suma, seria prote- gido pelo direito do trabalho o integrante da classe dos trabalhadores. A inexatidão dessa ideia fora, porém, anotada com acuidade cirúrgica pelo autor mexicano Mario de la Cueva(286): O conceito classe social [...] é de natureza político-econômica, não é de natureza jurídica e não está apto a explicar a categoria jurídica trabalhador. Ademais, não se compreende por que é preciso que, antes de se definir a existência de uma relação jurídica de trabalho, deva- -se colocar a pessoa dentro de uma classe social. Na realidade ocorre o inverso, ou seja, a existência de uma relação de trabalho determinará que o trabalhador, na perspectiva da posição que ocupa no fenômeno da produção, inclua-se na classe trabalhadora. O critério, aqui como no México, haveria de ser o legal. Se era inviável identificar o destinatário da tutela trabalhista a partir do conceito de classe social, restava a alternativa de a lei lhe traçar o perfil, indicando quem seria, afinal, o trabalhador protegido pelo novo ramo do direito – numa frase: quem haveria de ser o empregado. 7.2 Conceito legal de empregado. Requisitos da prestação laboral Bem se vê que a relação jurídica é definida, inclusive quanto à sua norma de regência, por um de seus sujeitos, o trabalhador. No Brasil, o conceito de empregado está contemplado no art. 3o da Consolidação das Leis do Trabalho, litteris: Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário. Desse conceito legal se extraem os quatro elementos básicos da prestação de trabalho que servem à identificação do empregado. A saber: • da alusão à pessoa física se infere a pessoalidade; • na referência ao serviço de natureza não eventual um segundo e decisivo elemento, a não eventualidade; • a dependência ao empregador implica, como veremos adiante, a subordinação jurídica; • ao lembrar o salário, como contrapartida do trabalho, o legislador enfatiza a onerosidade como quarto e derradeiro pressuposto da prestação laboral que denuncia a caracterização do empregado e, via de consequência, da relação jurídica de emprego. O conceito legal de empregado identifica o destinatário da proteção trabalhista, já o dissemos. O que parte expressiva da doutrina reclama, contudo, é a aparente fossilização dessa diretriz legal, que ignora a atual existência de outros trabalhadores subordinados carentes de proteção jurídica, deixando-os ao desamparo, ao tempo em que estende seu manto protecionista em favor (286) DE LA CUEVA, Mario. Derecho Mexicano del Trabajo. Tradução livre. México: Porrua, 1961. p. 417. Texto original: “El concepto clase social [...] es de naturaleza político-económica y no jurídica y no es apto para explicar la categoría jurídica de trabajador. Además, no se comprende por qué es preciso que, previamente a la existencia de una relación jurídica de trabajo, se coloque la persona dentro de una clase social, siendo así que la realidad será inversa, esto es, la existencia de una relación de trabajo determinará que el trabajador, desde el punto de vista de la posición que ocupa en el fonómeno de la producción, quede incluído en la clase trabajadora”. 112 – Augusto César Leite de Carvalho de altos-empregados (gerentes, diretores técnicos etc.), aptos à livre negociação. Em meio a vários excertos doutrinários, sempre no mesmo sentido, conclui Robortella(287): A tendência é substituir a noção única de subordinação por subordinações diferenciadas, com a consequente gradação protetora, inclusive quanto aos limites de derrogabilidade da lei estatal através de contratos coletivos. O grau de proteção deve centrar-se mais na debilidade contratual do que na intensidade da subordinação; a necessidade econômica e social é que determinará maior ou menor incidência da regra tutelar, num verdadeiro reencontro do direito do trabalho com a teoria da hipossuficiência. Talvez atenuando o rigor desse viés crítico, o sistema de normas sociais ou trabalhistas tem abrandado o seu caráter protetivo em favor de altos-empregados(288), reduzindo, quanto a estes, o nível de proteção. Por outro lado, o mesmo sistema jurídico serve, há algum tempo, à tutela do trabalhador avulso (artigo 7o, XXXIV, da Constituição) e do trabalhador rural que não se enquadra na condição de empregado (artigo 17 da Lei n. 5.889/73), por exemplo. Embora nos pareça auspiciosa a proposta de a lei graduar a proteção jurídica na proporção direta em que ocorrer a dependência do empregado ou sua debilidade contratual, decerto que continuará demandando essa tutela, em grau acentuado, enorme contingente de trabalhadores que prestam serviço pessoal, subordinado, não eventual e oneroso. E porque a estes volta sua especial atenção o direito do trabalho, cabe consolidar o nosso conhecimento sobre cada uma dessas características, reveladoras do contrato de emprego. Antes, porém, e ainda sobre os elementos essenciais da prestação de trabalho (pessoalidade, não eventualidade, subordinação jurídica e onerosidade), uma observação pertinente do professor José Augusto Rodrigues Pinto(289): Em primeiro lugar, considere-se que os elementos essenciais são concorrentes, ou seja, a ausência de qualquer deles basta para a desfiguração do empregado. Isso mostra ser falsa, apesar de generalizada, a crença em que, havendo subordinação, se identifica o empre- gado, quando, na verdade, a identificação só estará completa se ela vier acompanhada da pessoalidade (seu corolário indispensável), da onerosidade e da permanência. 7.2.1 A pessoalidade Regra geral, o trabalhador é contratado porque nele o empresário vislumbra o temperamento adequado, o conhecimento técnico ou a aptidão necessária ao cultivo de sua terra, ao torque de sua engrenagem industrial ou à mercancia que porventura desenvolva. No âmbito dos fatos, o empresá- rio o quer em harmonia com os demais itens de seu empreendimento, sujeitando tal trabalhador, sua inteligência e sua técnica, aos interesses da empresa. Em suma, o empresário escolhe o trabalhador que a ele quer subordinado. E por isso o obreiro não pode se fazer substituir por outro colega de ofício, sem a anuência do patrão. A relação de trabalho se inicia mediante o ajuste de vontades, o contrato em que o empregador investe na virtualidade individual (a expressão é de Rodrigues Pinto) desse seu novo empregado. Logo, para o empregado a obrigação é infungível, personalíssima (intuitu personae). O empregado, na síntese feliz de Martins Catharino(290), obriga-se a trabalhar pessoalmente. Nessa medida, o empregado haverá de ser pessoa física, por lógica dedutiva. Ante um caso concreto, vale dizer, evidenciando-se numa relação laboral qualquer a existência de cláusula contratual que exige a prestação pessoal de trabalho, parece fácil concluir que houve ou há relação de emprego – desde que não sobrem dúvidas sobre a presença dos outros elementos essenciais da prestação laboral. É preciso atentar, contudo, para dois aspectos da pessoalidade ora examinada: primeiro, impende ver que o caráter pessoal é inerente à prestação de trabalho e diz (287) ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. O Moderno Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1994. p. 50. (288) Aqueles a quem a lei discrimina, nos artigos 62, 469, §1o, e 499 da CLT, como exercentes de cargo de confiança. (289) PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2000. p. 105. (290) CATHARINO, José Martins. Compêndio universitário de direito do trabalho. São Paulo: Jurídica e Universitária, 1972. p. 190. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 113 respeito, exclusivamente, ao empregado; segundo, insta lembrar que a aquiescência do empregador pode permitir a substituição do empregado, sem desfiguração ou necessário desfazimento do liame de emprego. Quanto à primeira dessas nuances da pessoalidade, basta lembrar o ensinamento de Martins Catharino(291), litteris: “Via de regra, o empregado celebra contrato com o empregador pessoalmente, mas nada impede possa fazê-lo por representante ou mensageiro, e, até, por telegrama ou carta”. Quisesse o douto tratadista atualizar sua obra e, certamente, referir-se-ia às facilidades da comunica- ção por via eletrônica, especialmente via internet. O empregado pode se fazer representar na contra- tação, mas não na execução do contrato, por conseguinte. Ademais, a pessoalidade ou infungibilidade da prestação de trabalho não importa dizer que também o empregador está impedido de se fazer substituir por outro empresário, no curso do contrato de emprego. Veremos, quando estudarmos o outro sujeito da relação empregatícia, que a sucessão de empregadores é possível, sem rompimento do vínculo. O segundo aspecto da pessoalidade concerne à substituição do empregado por anuência, expressa ou tácita, do empregador. A lição é, uma vez mais, de José Martins Catharino(292): Não há, imposta por lei, sucessão de empregados [...], mas nada impede, pela ou com a vontade do empregador, que o empregado, respectivamente, seja substituído por outro ou se faça substituir. Quanto à primeira hipótese, de substituição da iniciativa do empregador, não há dúvida alguma: o substituto, como o substituído, é empregado, apenas o contrato de emprego com o primeiro, por força mesmo da substituição, pode conter termo ou condição resolutiva (art. 475, §1o e 450 da CLT). Quanto à segunda hipótese cogitada por Catharino, a de substituição por iniciativa do empregado, a situação se presta a dúvidas. A substituição pode resultar de acordo expresso ou tácito e o substituto também se torna empregado enquanto o contrato com o substituído estiver suspenso ou interrompido. Mas serão contratos distintos: um com o substituído, porventura suspenso pela ausência injustificada de trabalho, e outro contrato com o substituto (que poderá ser, ou não, de emprego, a depender de estarem presentes os quatro requisitos do art. 3º da CLT). Se, porém, o empregador impede o trabalho do substituto indicado pelo empregado, ou logo após tenha sido iniciado opõe-se a que continue a trabalhar, deve-se considerar ter o substituído infringido o contrato. No primeiro caso, a substituição não chegou a se fazer. No segundo, surge a questão: o substituto é empregado? Enfrentando-a, responde Catharino: A resposta deve ser negativa. Além de o contrato de emprego ser simplesmente consensual [...], no caso não pode se ter como existente uma relação dele independente, não imposta por lei, nascida de uma violação contratual por parte do substituído. Essa aparente relativização da pessoalidade, aqui compreendida como um dos elementos essen- ciais da prestação de trabalho, mereceu interessante observação de Tarso Fernando Genro(293), quando esse estudioso do direito do trabalho tratou das peculiaridades do contrato de trabalho dos profissio- nais liberais. Assim se manifestou o autor gaúcho: A impessoalidade, ocorrida esporadicamente e com permissão do empregador, não desna- tura nenhum contrato de trabalho. Esta afirmação, com base em unânime jurisprudência, basta, por si só, para que não se absolutize, no exame da relação de trabalho, este requisito como essencial para a verificação da existência ou não do contrato laboral. A pessoalidade, ainda que uma característica fundamental, expressa-se apenas por ser absolutamente domi- nante na relação. É comum, em ações de menores riscos, e com concordância do empre- gador, o advogado (o autor faz referência ao advogado-empregado) fazer-se substituir pelo estagiário ou seu assistente. Mantida a subordinação relativa, a continuidade do vínculo, o que pode sobreviver, ao invés de desnaturar o contrato de trabalho, é o contrato de equipe (291) Catharino, op. cit., p. 191. (292) Catharino, op. cit., p. 191. (293) GENRO, Tarso. Direito Individual do Trabalho. São Paulo: LTr, 1994. p. 113. 114 – Augusto César Leite de Carvalho que, no dizer de Alonso Olea (citado por Feldman) és aquel en que un patrono dá trabajo en común a una pluralidad de trabajadores. Como regra e em consonância com os extratos de textos doutrinários acima postos, podemos entender que a pessoalidade, enquanto signifique a impossibilidade de o empregado se fazer substituir por outro trabalhador sem a anuência, expressa ou tácita, do empregador, é elemento que domina na relação de emprego, ausentando-se somente em casos excepcionais – a absoluta liberdade de não trabalhar, fazendo-se substituir por outra pessoa sem consulta ao empresário, desnaturaria a relação de emprego. É esta, pois, a graduação do caráter essencial a que tanto nos referimos. 7.2.2 A não eventualidade A doutrina tem enfatizado a distinção, que precisa ser recordada, entre não eventualidade e conti- nuidade. O trabalho contínuo seria aquele desenvolvido a todo dia e hora, ressalvados os intervalos previstos em lei. A noção fundamental é o curso do tempo, ao exame da continuidade. Quando o propósito é o de verificar se a prestação de trabalho é ou não eventual, indaga-se, em vez disso, sobre sua causa. Tarso Genro(294) observa que a prestação de trabalho eventual, como tudo o que é eventual, “carrega consigo duas características essenciais: depende de acontecimento incerto, de um lado, e, de outro, por isso mesmo, não pode ser previsto”. A incerteza do acontecimento que dá causa à prestação de trabalho (o rompimento inesperado da tubulação de água ou fios elétricos, a quebra inopinada de uma máquina etc.) e sua consequente imprevisibilidade (sob o prisma subjetivo) são lembradas em outras obras, destacando-se Martins Catharino(295) ao frisar, litteris: Eventual significa casual, fortuito, que depende de acontecimento incerto. Mas, eventual em função de que e de quem? Do trabalho prestado por determinado trabalhador, ou da atividade do empregador? Eventualidade não é o mesmo que temporariedade ou transitorie- dade. O empregado admitido a prazo (ver CLT, arts. 443 e 475, §2o) ou para trabalhar tempo reduzido não é, necessariamente, eventual. Assim ocorre, p. ex., com os empregados em experiência e os safristas [...], bem como com os contratados para trabalhar poucas horas por dia ou poucos dias por semana. Anota Catharino, em seguida, que não convergem, em direito comparado, as técnicas utilizadas para a verificação da não eventualidade. Critérios diferentes são adotados na Itália – onde “predomina o critério da descontinuidade ou da falta de profissionalidade do trabalho prestado por determinado trabalhador” – e no México e Brasil, países em que se segue o critério da natureza do trabalho em função da atividade da empresa. No Brasil, não eventual seria a prestação de trabalho reclamada para atender a necessidade normal ou permanente da empresa (o pintor na construção civil e o operador de caixa na casa bancária, mas também o enfermeiro permanentemente necessário aos serviços do ambulatório instalado na construção da fábrica e o motorista que serve ao gerente do banco, sem que o trabalhador não eventual, como já se sustentou, exerça ofício necessariamente voltado à atividade- -fim da empresa). A orientação a que volvemos os olhos é sempre a mesma, sendo a seguinte a noção indispensá- vel à compreensão da não eventualidade: a prestação de trabalho eventual é aquela que depende de fato incerto e imprevisto. Fora daí, estará presente um dos elementos essenciais do trabalho prestado na relação de emprego. Logo, a eventualidade não é definida pelo tempo, mas sim pela causa do trabalho: pode haver emprego, por exemplo, se o trabalho é prestado uma vez por semana, desde que não o seja por motivo incerto ou imprevisto. Por fim, resta acentuar a diferença entre trabalhador eventual e três categorias a ele muito próxi- mas: o trabalhador intermitente, o trabalhador temporário e o trabalhador avulso, inclusive porque a este último o art. 7o, XXXIV, da Constituição assegurou igualdade de direitos em relação ao trabalhador com vínculo empregatício(296). (294) GENRO, op. cit., p. 128. (295) CATHARINO, op. cit. p. 185. (296) O preceito constitucional não converteu o trabalhador avulso em um empregado, garantindo apenas a igualdade de direitos. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 115 7.2.2.1 Distinção entre o trabalho não eventual e o trabalho intermitente Trabalhador intermitente ou adventício é aquele que presta serviço não eventual, mas descontí- nuo(297). São o safrista e o suplente, especialmente. Os trabalhadores safristas ou estacionários são, na lição de Orlando Gomes e Elson Gottschalk(298), aqueles “requisitados segundo as necessidades técnicas do estabelecimento; pela temporada (hotéis de turismo, cassinos, certos tipos de indústria, como a do sal); ou pelas estações do ano (colheita dos frutos, preparo e limpeza da terra)”. Os trabalhadores suplentes, à expressão dos mesmos mestres, são aqueles “que podem ser chamados para substituir o pessoal do quadro efetivo”, ou seja, os que ajustam contratos de substituição, provendo provisoriamente a vaga de empregados que se afastaram em razão de férias ou gozo de licença-gestante, por exemplo. 7.2.2.2 Distinção entre o trabalho não eventual e o trabalho temporário O trabalhador temporário, por seu turno, é aquele regido, no Brasil, pela Lei n. 6.019, de 1974, que o define como sendo “aquele prestado por pessoa física a uma empresa, para atender à necessidade tran- sitória de substituição de seu pessoal regular e permanente ou a acréscimo extraordinário de serviços”. Cuida-se de hipótese em que a legislação brasileira, em caráter excepcional, admite a intermediação do trabalho em atividade-fim da empresa tomadora dos serviços, permitindo, assim, que o empregador substitua o seu empregado efetivo por trabalhador recrutado por meio de empresa de trabalho temporá- rio devidamente registrada no Departamento Nacional de Mão de Obra do Ministério do Trabalho. Curiosamente, a lei brasileira se distingue da espanhola(299), por exemplo, ao não permitir, nas duas hipóteses que enumera (necessidade transitória de substituição de empregado ou acréscimo extraordinário de serviços), que o trabalho temporário se desenvolva sem a participação da empresa interposta. É como dizer: nessas duas hipóteses, a terceirização de serviços é imposta pela ordem legal, gerando um custo para a empresa tomadora que inexistiria se ela pudesse contratar diretamente o trabalhador temporário, sem remunerar a empresa intermediária. A intermediação da empresa de trabalho temporário deve onerar apenas a empresa tomadora dos serviços, nunca o trabalhador temporário. Para esse efeito, a Lei n. 6.019/74 prescreve que a remu- neração deverá ser equivalente à do empregado substituído (art. 12, I), proíbe a cláusula de reserva, por meio da qual ficaria impedida a empresa tomadora de absorver o trabalhador temporário como seu empregado após o contrato transitório (art. 11, parágrafo único), e veda seja descontada do salário do trabalhador temporário qualquer taxa de mediação (art. 18). Embora deletério, o único fator de precari- zação que remanesce é a própria transitoriedade do contrato que inspira, assim, incertezas na vida do trabalhador e sua família, desmotiva-o para a capacitação funcional e o impede, muita vez, de integrar categoria profissional específica. A relação de trabalho temporário, no Brasil, é, portanto, triangular. Mas, na triangulação que se esboça entre o trabalhador temporário e a empresa de trabalho temporário e, no outro lado, entre esta e a empresa cliente ou tomadora do serviço, o polígono somente se forma quando, no caso de falência da empresa de trabalho temporário, advém a responsabilidade solidária da empresa cliente em relação aos créditos do trabalhador temporário. A não ser assim, cabe exclusivamente à empresa de trabalho temporário a responsabilidade pelo pagamento dos créditos do trabalhador, não havendo vínculo obri- gacional entre o trabalhador temporário e a empresa cliente (art. 16 da Lei n. 6.019/74). O contrato entre a empresa cliente e a empresa de trabalho temporário tem vigência máxima de três meses em relação a cada empregado (salvo autorização do Ministério do Trabalho), será obriga- toriamente escrito e de seu instrumento constará expressamente “o motivo justificador da demanda de trabalho temporário, assim como as modalidades de remuneração da prestação de serviço” (art. 9o da Lei n. 6.019/74). (297) Os autores que preferem confundir a não eventualidade com a continuidade evidentemente preferem referir o trabalho intermitente como periódico, em vez de descontínuo. (298) GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Élson. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 86. (299) No direito comparado, é possível citar a legislação espanhola que, diferentemente da nossa, autoriza a contratação direta do trabalha- dor temporário, sem a necessidade de intermediação por empresa interposta (vide art. 15, b e c do Estatuto dos Trabalhadores da Espanha). 116 – Augusto César Leite de Carvalho A Lei n. 6.019/74 exige ainda que a condição de temporário seja registrada na CTPS do trabalha- dor assim contratado. Isso, porém, não o transforma em empregado(300). A nosso pensamento e não obstante o dissenso doutrinário e jurisprudencial, o trabalhador que presta serviço no estabelecimento de sociedade empresarial que não o contratara nem o remunera não se confunde com o empregado, salvo quando a empresa de trabalho temporário assim o contrata e o mantém em seus quadros perma- nentemente, para acudir a necessidade transitória de empresas clientes que se sucedem. A proteção a esse trabalhador, não sendo um empregado, é então dispensada pela citada Lei n. 6.019 (o seu art. 12 elenca os direitos do trabalhador temporário) e, não há dúvida, pelo art. 7o da Constituição (não há mais controvérsia, portanto e verbi gratia, quanto a ser devido o 13o salário ao trabalhador temporário). 7.2.2.3 Distinção entre o trabalho não eventual e o trabalho avulso Falta distinguir o trabalhador eventual do trabalhador avulso. O artigo 7o, XXXIV, da Constituição, ao assegurar “igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso”, não converteu o trabalhador avulso em empregado, cuidando apenas de igualar direitos. Na prática, o trabalho avulso sempre foi compreendido como aquele que se realizava nos portos visando à carga e descarga das embarcações neles fundeadas. Antes de ser editada a Constituição, o artigo 3o da Lei n. 605, de 1949, já obrigava o tomador dos serviços avulsos a acrescer a remuneração dos dias de repouso à paga pelo trabalho realizado, ao tempo em que o artigo 2o da Lei n. 5.085, de 1966, estatuía, como ainda estatui, que as férias serão pagas pelo empregador (rectius: tomador dos serviços), que deve adicionar ao salário normal do trabalhador avulso uma importância destinada a tal fim. O artigo 3o atribui ao sindicato, que organiza o trabalho avulso, receber e repassar a quantia relativa a férias, fiscalizando a aquisição do direito. Neste ponto, insta registrar que o significado da expressão trabalho avulso foi inicialmente tratado com alguma imprecisão pela doutrina constitucional e trabalhista. Ousamos discordar, por exemplo, da primeira interpretação dada por José Afonso da Silva a essa locução constitucional quando a asso- ciou ao trabalho eventual(301), ou discordar ainda de Rodrigues Pinto quando, ao inverso, disse ser distinto o trabalho avulso pelo fato de a sua ativação em atividade-fim impedir que ele se caracterize como eventual(302). Também não há mais sentido em vincular a caracterização como avulso apenas ao trabalho realizado em portos(303), quer porque existe trabalho avulso fora da atividade portuária (como veremos adiante), quer em razão de o operador portuário poder utilizar-se de empregado, em vez de trabalhador avulso(304). Podemos pressupor, em adendo, que o constituinte não quis se referir ao trabalhador eventual ao assegurar, consoante sobrevisto, igualdade de direitos entre avulsos e empregados. Quisesse proteger os trabalhadores eventuais e o teria dito, sem rodeios. Em rigor, sequer nos parece exato (300) Contra: José Augusto Rodrigues Pinto (op. cit. p. 119) diz que “os temporários são empregados em trabalho apenas periodicamente necessário”. Ao citar os safristas como trabalhadores temporários, o autor deixa ver que se desapegou do conceito legal de temporário, a este se reportando segundo o sentido vernacular. Por outra via, Sergio Pinto Martins defende que o trabalhador temporário “não deixa de ser [...] empregado, porém um empregado especial, com direitos limitados à legislação especial” (MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. São Paulo: Atlas, 2001. p. 143). (301) SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 262. Secundando Octávio Bueno Magano, o constitucionalista sustentou ser avulso “o trabalhador que, eventualmente, presta serviço a alguém. É trabalhador eventual aquele que não pertence ao quadro de trabalhadores de uma empresa nem ao conjunto dos empregados domésticos permanentes.” (302) Rodrigues Pinto, op. cit., p. 104. Ousamos contrariá-lo porque, embora o avulso atue mesmo na atividade-fim, pode também o traba- lhador eventual ser chamado a solucionar problema que, embora incerto e imprevisto, guarda relação com a atividade-fim do tomador. Imagine-se, v. g., o bombeiro hidráulico de uma construtora que toca obra em terreno vizinho à sede de outra empresa de construção civil e é convidado por essa outra empresa a resolver uma emergência de pequena monta em seu escritório. (303) Amauri Mascaro Nascimento sustentou, em um primeiro momento, que avulso seria aquele que “[...] exerce sua atividade no porto, uma vez que também aliena o poder de direção sobre o próprio trabalho em troca de remuneração. Mas não tem vínculo empregatício. Sua atividade é exercida com a intermediação do seu sindicato, às vezes até mesmo com uma certa dose de direção do seu próprio órgão repre- sentativo, mas não é o sindicato que remunera o trabalho ou que se beneficia com os resultados, sendo-o as empresas para as quais o serviço portuário é realizado. O sindicato é só intermediário, e mais nada, do recrutamento do trabalho e da remuneração provinda de terceiros” (NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 316). (304) Art. 40 da Lei n. 12.815/2013: “O trabalho portuário de capatazia, estiva, conferência de carga, conserto de carga, bloco e vigilância de embarcações, nos portos organizados, será realizado por trabalhadores portuários com vínculo empregatício por prazo indeterminado e por trabalhadores portuários avulsos”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 117 aceitar que seria avulso apenas o trabalhador que presta serviço eventual, mas voltado à atividade-fim do tomador de serviço, pois a prestação de trabalho do estivador, por exemplo, não depende de um fato incerto ou casual, a ele faltando, por isso, a sugerida eventualidade. Enfim, quem seria o trabalhador avulso? Para responder a essa indagação, uma primeira premissa: qualquer que seja a largueza do conceito que ora se examina, estamos de acordo quanto a ser avulso, quando menos, o trabalhador portuário cujo labor é intermediado, não mais por sindi- cato(305), mas sim pelo Órgão Gestor de Mão de Obra – ou seja, por OGMO constituído, nos portos organizados(306), pelos operadores portuários(307), assim em consonância com as diretrizes e regras traçadas pela Lei n.12.815, de 5 de junho de 2013. Mas não seria avulso apenas esse trabalhador. A correta conceituação do trabalhador avulso precisa ter como base o seu tipo incontroverso – o portuário cuja relação laboral é mediada pelo OGMO – mas apenas para que dele se extraiam as suas mais visíveis peculiaridades, ou seja, as características que impedem a sua classificação em outra categoria de trabalhadores subordinados (empregado ou eventual). O que caracteriza o portuário são a alternância do tomador dos serviços (vale dizer, da embarcação em que serve) e a intermediação, ou seja, o fato de o OGMO agenciar a sua prestação de trabalho e lhe repassar a remuneração, sem que se estabeleça qualquer ajuste direto, quanto às condições de trabalho e à remuneração, entre trabalhador e tomador dos serviços. Logo, o trabalho avulso não se configura por meio dos elementos objetivos preconizados por parte da doutrina, mas sim e certamente pelo fato de existir alternância do tomador dos serviços(308) e isso importar a intermediação por entidade que agencie o trabalho e o gerencie, inclusive quanto ao repasse da remune- ração. Interessa verificar, portanto, se há o agenciamento do serviço por terceiro e como se estabelece o vínculo entre os três sujeitos dessa relação triangular: terceiro, trabalhador e tomador de serviço. Trabalhador avulso é o que presta trabalho não eventual para aquele que não o contrata nem o remunera diretamente, havendo a alternância do tomador de seus serviços. É o portuário, como também o boia-fria vinculado a um contratante intermediário (diz-se empreiteiro no meio rural), o carre- gador chapa contratado por agente interposto etc. E o que diferencia o trabalho avulso do temporário? Em boa parte dos casos, a observância da Lei n. 6.019/74 no trabalho temporário, que exige autoriza- ção do Ministério do Trabalho, forma e prazo certo. Por seu turno, o hábito de vincular a expressão trabalho avulso ao labor portuário foi finalmente superado pela Lei n. 12.023, de 27 de agosto de 2009, que inaugurou entre nós a proteção do trabalha- dor avulso que não presta serviço no âmbito dos portos, embora realize no campo ou na cidade, sem (305) A preferência do sindicato, como ente responsável pela intermediação do trabalho nos portos, estava consagrada nos artigos 254 a 292 da CLT, derrogados pela Lei n. 8.630/93. Por sua vez, essa lei foi revogada pela Lei n. 12.815/2013, mantendo-se, porém, a interme- diação pelo OGMO. Assim, e a pretexto de modernizar os portos brasileiros e o trabalho que neles se realizava, a Lei n. 8.630/93 rompeu a tradição de facultar aos sindicatos, ou facultar-lhes prioritariamente, a intermediação do trabalho nos portos, passando a exigir que dela cuidasse, exclusivamente, o órgão de gestão de mão de obra (OGMO). Parece que, a esse propósito, Martins Catharino (op. cit., p. 186) nos convida a evoluir através de suas velhas lições, notadamente quando leciona que “no sentido vulgar avulso significa separado, desligado, insulado. Trabalhador avulso: aquele separado, não inserido em uma organização empresária ou assemelhada, mas, de qualquer maneira, trabalhando para e por ela remunerado”. Após dizer da dificuldade de se distinguirem, na prática, o avulso do eventual ou do empregado, o autor antecipa a polêmica atual (sobre haver a necessidade de intermediação do sindicato para a configuração do avulso) e a previne terapeuticamente: “A figura do trabalhador avulso comporta classificação: avulso individual e avulso sindical. O primeiro presta serviços direta e isoladamente; o segundo, associado de sindicato para prestação de serviços, trabalha em conjunto: trata-se da chamada mão de obra sindical, requisitada por empresas a sindicato, a quem cabe escolher e dirigir associados seus para atendimento da requisição. A distinção é importante porque o avulso individual pode ser realmente eventual, ou até verdadeiro empregado, enquanto que o sindical, trabalhando em grupo, jamais pode ser empregado de empresa tomadora de serviços. Ao trabalhador avulso verdadeiro e próprio, não empregado, já foram estendidos vários direitos trabalhistas [...]”. (306) Porto organizado é o “bem público construído e aparelhado para atender a necessidades de navegação, de movimentação de passa- geiros ou de movimentação e armazenagem de mercadorias, e cujo tráfego e operações portuárias estejam sob jurisdição de autoridade portuária” (art. 2º, I, da Lei n. 12.815/2013). (307) Operador portuário é “pessoa jurídica pré-qualificada para exercer as atividades de movimentação de passageiros ou movimentação e armazenagem de mercadorias, destinadas ou provenientes de transporte aquaviário, dentro da área do porto organizado” (art. 2º, XIII, da Lei n. 12.815/2013). (308) Quanto ao modo de caracterizar o trabalho avulso, sentimos ser convergente a orientação de Ribeiro de Vilhena e Márcio Túlio Viana, quando dizem configurá-lo a alternância dos tomadores de serviço, e não a intermediação sindical. Remata o último destes autores: “Ao contrário do que sucede com o eventual, seu trabalho é essencial à empresa, embora de forma intermitente. Assim, aqueles boias-frias não são eventuais, mas avulsos” (VIANA, Márcio Túlio. Curso de Direito do Trabalho: Estudos em Memória de Célio Goyatá / Coordenação de Alice Monteiro de Barros. Vol. 1. São Paulo: LTr, 1993. p. 296) 118 – Augusto César Leite de Carvalho vínculo empregatício, alguma atividade de movimentação de mercadorias(309). Já não era sem tempo. A nova lei exige, porém, a intermediação desse trabalho pelos sindicatos das categorias profissionais correspondentes, esclarecendo que a relação deve ser regida por meio de norma coletiva de trabalho e que são direitos inerentes ao trabalho avulso o repouso remunerado, o FGTS, férias, 13º salário, adicionais noturno e por labor extraordinário. Logo, o trabalhador avulso portuário tem o seu serviço gerido e remunerado pelo OGMO, enquanto o trabalhador avulso urbano ou rural o tem pelo sindicato de sua categoria profissional. O art. 32, pará- grafo único, da Lei n. 12.815/2013 prevê, contudo, que pode o tomador dos serviços portuários cele- brar diretamente o contrato, ou subscrever convenção ou acordo coletivo com o sindicato da categoria profissional correspondente, hipótese em que se prescindirá da intervenção do OGMO(310). Uma observação derradeira sobre o trabalhador avulso: embora não seja contratado e remune- rado diretamente pelo tomador dos serviços, é dele a responsabilidade pela retribuição do trabalho prestado. O ônus, seja em pecúnia ou in natura, deve ser suportado pela pessoa física ou jurídica a quem aproveita a utilidade da prestação laboral, o tomador dos serviços – sem prejuízo da solidarie- dade atribuída ao OGMO nos casos de trabalho portuário (art. 33, §2º da Lei n. 12.815/2013). 7.2.3 A subordinação A opinião de juízes e doutrinadores converge quando se invoca a necessidade de ser potenciali- zada a importância da subordinação na configuração do vínculo de emprego. Embora não baste para identificar a relação empregatícia, inexiste liame de tal natureza quando o trabalho não se apresenta organizado e dirigido pelo credor da prestação laboral. Mas exatamente porque estamos a cuidar da subordinação que ocorre no âmbito do direito do trabalho, tratemos logo de arrostar a ideia de submissão pessoal do trabalhador, como ocorria ao escravo ou, atenuadamente, ao servo de gleba. A subordinação ou dependência contemplada no art. 3o da CLT concerne à prestação laboral, não à pessoa mesma do trabalhador. Se o trabalhador, mais que subordinado, mostra-se subserviente, a causa dessa distorção reclama explicação sociológica ou cultural, talvez psicológica (o receio de perder a fonte de subsistência), não correspondendo a uma exigência legal ou quiçá jurídica. Conceitualmente, podemos compreender a subordinação como a sujeição ao poder de comando do empregador e então temos os dois extremos da linha que une os sujeitos da relação empregatícia: a subordinação e o poder de comando. O sentido entre aquela e este é o da complementaridade (são dois lados de uma só moeda), porquanto se unam na formação do elemento a que designamos, em síntese e já agora agregando ao termo o fundamento contratual, de subordinação jurídica. 7.2.3.1 Fundamento e grau da subordinação Ressaltamos o fundamento contratual (quando qualificamos a subordinação como jurídica) e é preciso que o examinemos, para que as palavras não sejam lançadas a esmo. Antes de a doutrina trabalhista assimilar a natureza contratual da subordinação, propôs-se que haveria subordinação econômica, já que o empregado dependia do salário para a sua sobrevivência. Essa orientação não preponderou porque, como observa Rodrigues Pinto(311): [...] se tal qualificação poderia ser considerada correta nos primórdios da Revolução Indus- trial, dissolveu-se cada vez mais rapidamente, durante seu desdobramento, a ponto de tornar- -se hoje imprestável para a explicação que deseja dar. Efetivamente, a especialização das (309) Segundo o art. 2º da Lei n. 12.023/2009, são atividades da movimentação de mercadorias em geral: I – cargas e descargas de merca- dorias a granel e ensacados, costura, pesagem, embalagem, enlonamento, ensaque, arrasto, posicionamento, acomodação, reordenamento, reparação da carga, amostragem, arrumação, remoção, classificação, empilhamento, transporte com empilhadeiras, paletização, ova e desova de vagões, carga e descarga em feiras livres e abastecimento de lenha em secadores e caldeiras; II – operações de equipamentos de carga e descarga; III – pré-limpeza e limpeza em locais necessários à viabilidade das operações ou à sua continuidade.  (310) Art. 32, parágrafo único, da Lei n. 12.815/2013 – “Caso celebrado contrato, acordo ou convenção coletiva de trabalho entre trabalha- dores e tomadores de serviços, o disposto no instrumento precederá o órgão gestor e dispensará sua intervenção nas relações entre capital e trabalho no porto”. (311) PINTO, op. cit., p. 107. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 119 tarefas e a qualificação crescentemente sofisticada do empregado para executá-las tornam- -no cada vez menos dependente da retribuição por um empregador para subsistir na socie- dade. São até comuns casos de empregados com mais de um emprego [...] Imaginou-se então que a subordinação seria técnica, partindo-se do pressuposto, que também não se confirmou com o evolver da industrialização, de que o empregador monopolizava o conheci- mento técnico sobre as formas de produção. Atualmente é o empregado, muita vez, quem domina o método ou, antes, a tecnologia aplicada ao processo industrial, fazendo dele depender o empregador. Cogitou-se enfim da subordinação social (fusão da subordinação econômica com a jurídica, pade- cendo da ineficiência, no plano conceitual, de uma e outra) e da subordinação moral, a provocar o rasgo verbal de Catharino, em transcrição bem aproveitada por Rodrigues Pinto(312): “O vínculo moral, gerador de deveres, pressupõe relações humanas interpessoais, geralmente inexistentes entre empre- gador e empregado. E quando elas existem no ambiente de trabalho, como na família, causam retra- ção da legislação trabalhista [...]”. Evoluiu a doutrina para inaugurar a orientação hoje predominante, no sentido de ser jurídica, ou seja, fundada no contrato a subordinação do empregado ao empregador. Como observa Alice Monteiro de Barros(313), os partidários dessa teoria consideram que da relação contratual surge para o empre- gado o estado de subordinação e, para o empregador, o poder hierárquico. Empregado e empregador contratam nesses termos porque de outro modo não dariam curso à relação de emprego, que estão a instituir mediante o contrato assim celebrado. A relevância de identificar o fundamento jurídico da subordinação está, sobretudo, na consequência de excluir a subordinação econômica e a subordinação técnica de tal perspectiva. É que não se exigirá, então, que o trabalhador dependa do trabalho para a sua subsistência ou que se submeta à expertise do titular da empresa para que se configure o vínculo de emprego. Mesmo quando o trabalhador pode sobreviver economicamente sem o salário ou domina a tecnologia a ser usada em seu trabalho, há rela- ção de emprego se o referido trabalhador concordou, ao início do vínculo, em sujeitar-se ao poder de comando que reconhecia na pessoa do empregador. É bom notar, porém, que sem embargo de a teoria contratualista prevalecer, é possível perceber, na doutrina e também na jurisprudência, algumas manifestações que parecem claramente prestigiar, ou restaurar, algum fundamento patrimonialista para o poder de comando (poder que é, em última análise, a subordinação enxergada sob a ótica do empregador). É o que sucede, por exemplo, com as decisões favoráveis à revista de pertences dos trabalhadores como modo de proteger a propriedade do empregador. Deveremos, por isso, retomar o tema quanto tratarmos, em seguida, dos fundamentos do poder de comando (também denominado poder diretivo lato sensu ou poder empregatício). Como se caracteriza, afinal, o estado de subordinação que denuncia a existência de relação de emprego? O professor Rodrigues Pinto(314) adverte que não apenas pela natureza contratual, mas igualmente pelo grau (ou intensidade) da subordinação se pode concluir pela ocorrência, ou não, de vínculo empregatício. Para tanto, distinguem-se a subordinação em grau absoluto, que se afigura presente no contrato de emprego, e a subordinação em grau relativo, peculiar a outros tipos contratu- ais. A lição do magistrado e professor baiano é assim exposta: O grau de subordinação do empregado ao empregador constitui um estado, sendo, portanto, absoluto e fazendo notar-se pela sujeição da energia em si mesma, seja ela utilizada ou não. Já nas demais situações o grau de subordinação é relativo, posto que não se dirige para a energia, mas somente para o fim em que será aplicada, conservando o prestador total auto- nomia, quanto aos meios da execução contratual. Num exemplo que se pretende elucidativo, dir-se-ia que um marceneiro poderia ser contratado para a fabricação de uma mesa, que porventura guarneceria uma sala de jantar, ou, em vez disso, poderia ser contratado para operar, simplesmente como carpina, um equipamento qualquer em uma indústria de móveis. Na primeira hipótese, ser-lhe-ia cobrado o resultado (ajustado) de seu trabalho e, (312) Op. cit. p. 109. (313) BARROS, Alice Monteiro de. Poder hierárquico do empregador – poder diretivo. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memó- ria de Célio Goyatá / Coordenação de Alice Monteiro de Barros. Vol. 1. São Paulo: LTr, 1993. p. 548. (314) RODRIGUES PINTO, op. cit., p. 110. 120 – Augusto César Leite de Carvalho sendo assim, não haveria subordinação em grau absoluto, inexistindo relação de emprego. Na hipó- tese derradeira, o profissional da carpintaria estaria pondo a sua energia de trabalho à disposição do titular da indústria, sujeitando-se ao método ou técnica de trabalho por este imposta. Mesmo que por algum tempo se fizesse desnecessária ou impossível a prestação laboral, por retração de demanda ou defeito mecânico no maquinário, a sua força de trabalho continuaria disponível, para ser utilizada em consonância com a orientação ou ordem direta emanada do empresário. A subordinação ocorreria, já agora, em grau absoluto, a revelar a existência de emprego. 7.2.3.2 O poder de comando – contraface da subordinação Mas, por vezes, não basta a análise de uma relação de trabalho sob tal enfoque, quando o propó- sito é qualificá-la ou não como relação de trabalho subordinado. Não é fácil verificar grau ou intensi- dade da subordinação quando se trata, por exemplo, de trabalho em domicílio, serviços externos de vendedores ou representantes comerciais, cobradores de títulos de crédito e mesmo quando está em questão o serviço autômato de um carregador, um motorista etc. Assim também o alto-empregado, que é aquele normalmente distinguido pelo fato de ocupar cargo preeminente na hierarquia empresarial, a ponto de o empregador lhe outorgar parcela considerável de seu poder diretivo (a capacidade de organizar o estabelecimento em consonância com as diretrizes traçadas para a organização de toda a empresa, de ordenar serviços e punir empregados) e o poder de representar esse mesmo empregador perante terceiros (aptidão para o gerente geral de uma agência bancária, por exemplo, firmar contratos de empréstimo ou financiamento). Essas duas características dos altos-empregados (a investidura de parte do poder diretivo e o poder de representação) dificultam, sobremodo, a operação de medir a intensidade com que a sua prestação de trabalho está sujeita ao poder de comando ainda reservado, como sobra, ao empregador. Ao tema, Luísa Riva Sanseverino(315) dera enfoque que faz irresistível extratar trecho de sua obra. De início, a autora lembra que “não é possível, relativamente ao trabalho subordinado, conceber a prestação de trabalho senão destinada, mais ou menos explícita e de forma imediata, à obtenção de um resultado”, como, por outro lado, “não é possível, relativamente ao trabalho autônomo, ter presente determinado resultado, prescindindo-se de qualquer consideração a respeito da prestação de trabalho necessária para consegui-lo”. Ante o aparente impasse, remata a eminente jurista italiana: Diversa é, porém, nos dois casos, a recíproca importância formal do trabalho prestado e do resultado conseguido: a) no trabalho subordinado, a tônica cai no desenvolvimento de certa atividade, e se trata de trabalho genérico, para ser mais preciso, de obrigação duradoura de meios ou de comportamento, vinculada às diretrizes técnicas e organizativas do credor; b) no trabalho autônomo, a nota recai na obtenção de um resultado, tratando-se de trabalho específico e, por melhor dizer, de obrigação instantânea de resultado em senso estrito. A bem dizer, a insuficiência do critério reside na sua unilateralidade, ou seja, na circunstância de o mesmo centrar atenção no estado de subordinação do empregado, não considerando a necessidade de se perquirir, também, como os fatos ocorrem à vista do empregador, em que medida está o mesmo a exercer poder de comando. A) Morfologia do poder de comando Mais que investigar se e com que intensidade está o trabalhador sujeito a ordens de serviço (critério subjetivista), submetendo-se à fiscalização e direção daquele a quem ele imputa a condição de empregador, interessa desvendar o exercício do poder diretivo por este suposto empregador, nota- damente no que concerne à mais óbvia de suas manifestações, que é o poder de organização (perce- ba-se a importância deste na hipótese do alto-empregado). Como ressalta Alice Monteiro de Barros(316), “a subordinação, hoje, gira em torno, também, da integração da atividade do trabalhador no processo produtivo empresarial”. E como se manifesta esse poder de direção ou comando, titularizado pelo empregador? Manifes- ta-se por meios do poder de organização (1), do poder diretivo stricto sensu (2) e do poder disciplinar (315) SANSEVERINO, Luisa Riva. Curso de Direito Individual do Trabalho. Tradução de Élson Gottschalk. São Paulo: LTr, 1976. p. 45. (316) Op. cit. p. 548. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 121 (3). Vamos relevar, logo, qualquer outra digressão doutrinária a propósito da divisão do poder diretivo patronal e adotar logo essa setorização tripartite, proposta por Márcio Túlio Viana(317), na esteira do que leciona Magano, este a assim se expressar: Poder de organização é a capacidade do empresário de determinar a estrutura técnica e econômica da empresa bem como a estratégia tendente à realização dos objetivos desta. Poder diretivo stricto sensu é a capacidade atribuída ao empregador de dar conteúdo concreto à atividade do trabalhador, visando à realização das finalidades da empresa. Poder disciplinar é o complemento do poder diretivo, mediante o qual se atualiza a coercibi- lidade das normas e ordens derivadas do exercício do último. De conseguinte, para que saibamos se há ou não relação de emprego em um vínculo entre pessoas é necessário, primeiro, que observemos se o trabalhador se submete a ordens relativas ao modo como deve executar a prestação laboral e, mais que isso, se a sua energia de trabalho está à disposição do tomador de serviço. Sendo insuficiente ou impreciso tal critério, no caso concreto, procuraremos ver se o tomador de serviço está a exercer poder de comando, inicialmente perqui- rindo em que medida se encontra a prestação de trabalho inserida em uma organização. Como anota Sanseverino(318), “a prestação de trabalho insere-se, sempre, em uma mínima forma de organização, embora não venha, sempre, a coincidir com a empresa”. Mais adiante, a mesma autora enfatiza, com pertinência indiscutível, que a subordinação do trabalhador... [...] corresponde à exigência imprescindível de organização do trabalho, quando, como sucede quase sempre, seja simultaneamente prestado por várias pessoas na mesma empresa, organização do trabalho que é coordenação de vários fatores com vista a um resultado final. [...] E, em geral, a posição subordinada do trabalhador resulta coerente com a ideia de que havendo um grupo social organizado (Estado, família, empresa) não se pode prescindir da sujeição a uma vontade organizadora, justo para que os fins institucionais possam ser alcançados; daí decorre o caráter de aspecto instrumental da subordinação a que está obrigado o trabalhador. Por outro lado, estará investido o tomador de serviço de poder diretivo stricto sensu se lhe cabe, porventura, indicar como, onde e quando será utilizada a força de trabalho do outro sujeito dessa relação laboral (o trabalhador), dando conteúdo concreto à atividade deste. Nota-se bem que essa segunda expressão do poder de comando (o poder diretivo strictu senso) é o exato contraposto da subordinação, a visão desta pelo método da transparência. Lembra Alice Monteiro de Barros(319) que o poder de direção “tem ainda a função de controle, que consiste na faculdade de o empregador fiscali- zar as atividades profissionais de seus empregados”. Num último ato de investigação, haveremos de indagar se, na relação concreta que nos é posta sob exame, o tomador do serviço se apresenta habilitado ao exercício do poder disciplinar ou está a exercitá-lo, propriamente. Como observa Alice Monteiro de Barros(320), “não é imprescindível que o empregador exerça sua autoridade sobre o empregado em todo o curso da prestação de trabalho, basta a possibilidade de fazê-lo”. Interessa saber se o tomador de serviço evoca o poder de punir como instrumento de persuasão ou mesmo se, em realidade, acontecem punições (advertências, suspensões ou despedidas por justa causa), de modo claro ou dissimulado; válido ressaltar que a orientação jurisprudencial prevalente proscreve as penas de multa (vedação no art. 462 da CLT), transferência (art. 469 da CLT), rebaixa- mento (art. 468 da CLT) e redução salarial (art. 7o, VI, da Constituição) e remete à Justiça do Trabalho o controle externo das sanções disciplinares, podendo ser estas anuladas, mas não dosadas, pelo órgão judiciário. B) Fundamento e natureza jurídica do poder de comando Quando tratávamos do fundamento jurídico da subordinação e dizíamos ser ele o contrato (daí por que subordinação jurídica), adiantávamos que algumas considerações precisavam ser retomadas (317) VIANA, Márcio Túlio. Direito de Resistência. São Paulo: LTr, 1996. p. 122. (318) SANSEVERINO, op. cit., p. 47. (319) Op. cit. p. 556. (320) Op. cit. p. 548. 122 – Augusto César Leite de Carvalho quando examinássemos, como o faremos em seguida, o fundamento contratual do poder de comando, contraface da citada subordinação. Apesar de parecer óbvio que o fundamento (ou ratio) da subordinação seria o mesmo do poder de comando, pois estaríamos a cuidar do mesmo fenômeno jurídico visto por seus lados opostos – a subordinação corresponde à perspectiva do empregado e o poder de comando, à do empregador –, é certo que o estudo do fundamento da subordinação destina-se à percepção do que basta para que ela se configure, enquanto estudamos o fundamento do poder de comando para verificar os seus limites, ou seja, até que ponto pode agir o empregador sem incorrer em exercício abusivo do poder no qual está investido. Embora a defesa da propriedade, como fundamento do poder de comando, geralmente seja criti- cada por importar um resquício do sistema feudal – em que os servos incorporavam-se à gleba ou porção de terra sob jugo do suserano –, é possível ponderar que parte da doutrina patrimonialista invoca argumento com algum apelo na razão. María Dolores Santos Fernandez, por exemplo, explica assim essa orientação doutrinária: A aparente igualdade contratual cede ante a superioridade que concede a propriedade [...]. A propriedade não tem somente um conteúdo jurídico, pois comporta também um poder social. Após a queda dos velhos vínculos feudais a propriedade continua juridicamente implicando uma supremacia sobre as pessoas nos casos em que estas tenham necessidade de objetos que se encontrem sob a propriedade dos demais. Tais objetos são os meios de produção, dos quais o homem necessita para trabalhar e viver(321). Em postura dialética, nota-se a tendência de renomados laboralistas que vislumbraram ser a propriedade privada o fundamento do poder de organização, sendo o contrato o fundamento do poder diretivo stricto sensu. Alice Monteiro de Barros(322) relembra a divergência entre Evaristo de Moraes Filho e Nélio Reis, aquele a proclamar que “[...] no regime capitalista, sob o qual vivemos, é o patrão o proprietário de seu negócio, julgando, por isso, o senhor dos céus e da terra. Tudo o mais que se quiser dizer ou escrever é simples balela: é no direito de propriedade que reside todo o poder hierárquico e disciplinar”. E Nélio Reis, a contrariar essa tese com argumento aparentemente indefectível: Os defensores desta doutrina se impressionaram mais com os aspectos econômicos do que com os aspectos jurídicos que devem presidir à análise do problema. Não há dúvida de que economicamente e até que se opere uma transformação no regime capitalista em que vivemos, o patrão é o dono da empresa, compreendida esta no seu todo perfeito. Mas a integração nesta dos trabalhadores não se opera pelo direito de propriedade, e, sim, pela via contratual, à semelhança das ligações entre empresas e outros organismos da vida social. O empregador possui a empresa e, em nome desta, em relação ao elemento humano de sua execução, contrata os prestadores de serviço, os empregados. Por essa última análise, gravitaria em torno do contrato o fundamento dos poderes de organiza- ção e de direção stricto sensu em que investido o empregador. Em outras palavras, o contrato seria o fundamento último ou definitivo do poder diretivo stricto sensu e o fundamento próximo do poder de organização (o fundamento último deste seria, aparentemente, o direito de propriedade). Entre as duas correntes teóricas – que fundamentam o poder de comando, respectivamente, no direito de propriedade e no contrato – há pelo menos três outras linhas de argumentação que merecem relevo: a teoria institucionalista, a teoria alusiva à autonomia dos centros de poder e a vertente teórica que associa o poder de comando a uma delegação do poder público. (321) SANTOS FERNÁNDEZ, Maria Dolores. El Contrato de Trabajo como Límite al Poder del Empresario. Albacete: Editorial Bomarzo, 2005. p. 72-73. A autora menciona uma tendência atual de repatrimonialização da relação laboral, que se daria para que houvesse a “inver- são” do contrato de vassalagem “no qual as prestações de trabalho e de remuneração eram manifestações acessórias da relação pessoal e considerando essas prestações o objeto fundamental do contrato [...]” (p. 73). A autora se refere à obra de M. Grandi de 1998, em que se enfatiza a tendência à repatrimonialização. Citando Grandi, diz a autora que não se negou a existência de direitos e interesses do traba- lhador enquanto subordinado. Assim, e segundo Santos Fernández: “A subordinação passou a integrar a estrutura do contrato de trabalho, isto é, a implicação da pessoa no cumprimento da obrigação assume o valor de requisito constitutivo do vínculo de subordinação ao poder do empresário”. Crítica de Santos Fernández à patrimonialização: “Não se pode objetivar de forma radical o trabalho sem comprometer o sujeito da relação laboral”. (322) Op. cit. p. 549. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 123 Embora outros institucionalistas(323) possam ser mencionados, a doutrina normalmente remete a Maurice Harriou (1856-1929), para quem a instituição “é uma organização social criada por um poder que dura porque contém uma ideia fundamental aceita pela maioria dos membros do grupo”. A decom- posição desse conceito de instituição conduziria a três elementos que o integrariam: ideia, cooperação e hierarquia. Seriam compostas por tais elementos algumas instituições tradicionais e outras surgidas na contemporaneidade, a exemplo da família, da igreja, da escola de formação acadêmica ou filosófica e, na fração de nosso interesse, a empresa ilustraria bem o significado de “instituição”(324). A corrente institucionalista pressupõe, como se vê, uma relação de caráter pessoal, não patrimo- nial, em que os atores sociais se uniriam para a consecução de uma ideia ou projeto comum, não raro instituindo um estatuto para reger as relações internas. O enquadramento da empresa contemporânea nesse esquadro mereceu, porém, acesa crítica daqueles que, conforme lembra Santos Fernández, observaram que “por meio do contrato de trabalho o empregado somente se obriga a disponibilizar certa quantidade de energia; o resto (em particular, o destino ulterior de tal energia e, portanto, a desti- nação que a ela dê o empregador) não integra a causa do contrato, nem se insere na lógica contra- prestacional”(325). Há também, como vimos, a teoria que alude à empresa como um centro de poder, com autonomia para incorporar os valores do princípio democrático e organizar-se, assim, sob a influência do binô- mio liberdade e participação. Mauricio Godinho Delgado(326) observa que, ao defendê-la, Magano teria sustentado: [...] parece-nos imprescindível desfazer, liminarmente, qualquer equívoco entre a teoria por nós abraçada, que é a do pluralismo democrático, e a do falso pluralismo corporativista, consoante o qual os corpos intermediários seriam portadores de uma autonomia delegada: conservariam a autonomia natural, mas impregnar-se-iam, por assim dizer, da consciência do Estado, de modo que todas as suas ações e determinações harmonizar-se-iam com as normas mais gerais emanadas do poder central. Podemos afirmar que o fundamento do poder disciplinar é o pluralismo democrático, de cujo ponto de vista há de se conceber a sociedade como composta de vários centros de poder, colocados em níveis inferiores ao do Estado, mas dotados de autonomia. O grau de participação dos indivíduos [...] varia conforme a sua influência na realização dos valores por estes colimado. A verdade, porém, é que do mesmo modo como o institucionalismo recebeu crítica dos que o associavam a regimes autoritários nos quais se exacerba o sentido da autoridade, a teoria que vislum- bra a empresa como um centro democrático de poder merece crítica, igualmente, menos em razão de seu conteúdo filosófico – que conspira em favor de uma maior civilidade no ambiente de trabalho – mas, sim, por padecer de base empírica. A experiência revela que é ingênua a percepção do empre- gado como partícipe, na ordem dos fatos, de deliberações da empresa que emprestam conteúdo e fim ao poder de comando. (323) O professor argentino Ricardo J. Conaglia enumera três institucionalistas sempre citados: Hariou (Précis de Droit Administratif et Droit Public), Renard (La Théorie de I’institution) e Recasséns Siches (Vida Humana, Sociedad y Derecho). Conaglia observa: “Esa exor- bitancia del derecho de empresa permite desproteger a un sector de los trabajadores de hogar y los cuidadores de enfermo (flexibilizado y sobre explotado procurando resucitar a las locaciones de servicio), a mérito de acudir a la institución como justificante de la norma laboral y no al trabajador como sujeto de protección de la misma” (CONAGLIA, Ricardo J. El difuso concepto de empleador como sujeto titular de la apropiación del trabajo dependiente. In Revista de Derecho Social Latinoamérica, n. 4-5. Buenos Aires: Editorial Bomarzo, 2008, p. 20). Sinzheimer, Molitor e Nikisch foram laboralistas wiemerianos (institucionalistas), segundo Maria Dolores Santos Fernández. (324) Em sua dissertação de mestrado, Ana Bárbara Teixeira defende que as empresas são “instituições-organização” que, como insti- tuições, decorrem do engenho humano, são reconhecidas no seio social e são voltadas a determinado fim, para o qual utilizam os meios objetivos disponíveis, e, como organizações, observam relações de hierarquia e cooperação previamente estruturadas com as pessoas com quem interagem, sejam elas partes do agrupamento de pessoas que eventualmente lhe constituem (ex. sócios, colaboradores), sejam elas pessoas com as quais interage na consecução de sua finalidade social (ex. consumidores, concorrentes, agentes públicos etc.) (TEIXEIRA, Ana Bárbara Costa. A Empresa-instituição. Dissertação de Mestrado USP 2010. Disponível em: http://www.google.com.br/ url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=3&ved=0CEQQFjAC&url=http%3A%2F%2Fwww.teses.usp.br%2Fteses%2Fdispo- niveis%2F2%2F2132%2Ftde-07122010-133735%2Fpublico%2FDISSERTACAO_COMPLETA_PDF_ANA_BARBARA.pdf&ei=S8bsUt- DhNoivkAfYmoDIAQ&usg=AFQjCNGE4zF83O8VxK7tbsjQPAyBFlUpqA). (325) No original (op. cit., tradução livre, p. 59): “Con el contrato el trabajador sólo se obliga a poner a disposición de la otra parte una determinada cantidad de energía, el resto (en particular, el destino ulterior de tales energías y por tanto la dirección que efectúe de ellas el acreedor) no constituye un elemento de la causa del contrato, no se justifica en la lógica elemental del cambio”. (326) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2013. p. 678. 124 – Augusto César Leite de Carvalho Outra vertente teórica a considerar, conforme suprareferido, é decerto a que entende justificado o poder de comando porque haveria, como pressuposto, a necessária delegação do poder público para o empregador organizar a célula empresarial, dar ordens no ambiente de empresa e punir – como só o Estado normalmente pune – aquele que age de forma destoante da ordem preestabelecida (no caso, preestabelecida pelo titular da empresa). A empresa seria, a bem dizer, um microcosmo do Estado. Os laboralistas espanhóis Martin Valverde, Rodriguez Sañudo e García Murcia(327) enxergam na legisla- ção de seu país os indícios de que o empregador agiria, ao exercer o poder de comando, como uma projeção do Estado: [...] próximo a este poder disciplinar pode identificar-se um poder de polícia na empresa, do qual existem manifestações concretas na normativa laboral: tal é o caso da realização de “registros sobre a pessoa do trabalhador, em seus escaninhos particulares, quando sejam necessários para a proteção do patrimônio empresarial e do (patrimônio) dos demais traba- lhadores da empresa” (art. 18 ET); e também da faculdade de fechar-se o estabelecimento nos casos de notório perigo de violência ou de danos, ocupação ilegal do estabelecimento e outros comportamentos coletivos irregulares dos trabalhadores (art. 12 DLRT)” A teoria que remete à delegação pelo poder público não esconde, todavia, seu viés autoritário. E tangencia até mesmo a fórmula jurídica difundida pelo modelo corporativista, com origem no fascismo, ao investir o empresário de poderes que só a soberania da entidade estatal haveria de suportar. Além disso, abstrai do pluralismo jurídico que, como visto no capítulo dedicado às fontes do direito do trabalho, é deste ramo do Direito uma importante característica – a saber, não somente as normas que emanam do Estado ou do empregador regulam a relação laboral, dado que com elas concorrem normas internacionais tripartites e normas coletivas de trabalho. O fundamento mais consistente para o poder de comando é aquele, portanto, que o remete ao contrato: a sujeição do empregado provém de sua concordância, ao início da relação laboral, quanto a submeter-se à organização, à direção e às virtuais sanções preestabelecidas pelo empregador. A assimetria econômica entre os sujeitos da relação de emprego é compensada pela imperatividade de normas jurídicas que estabelecem o conteúdo mínimo desse contrato, promovendo-se assim o equilí- brio, ou a expectativa de equilíbrio, sem o que não haveria afinidade entre o vínculo empregatício e os princípios reitores da matriz constitucional, sobretudo o que inaugura a ordem econômica: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170 da Constituição). Também quanto ao poder disciplinar, afigura-se persuasiva a vertente doutrinária que o compre- ende como mero corolário do poder diretivo stricto sensu, uma faculdade atribuída ao empregador para assegurar efetividade às suas ordens de serviço – e se o contrato é o fundamento do poder diretivo stricto sensu, não seria outro o fundamento do poder disciplinar. Quando se está a cuidar desse poder de um homem punir o seu semelhante, sem estar acometido de poder estatal, irresistível é reproduzir o pensamento de Luisa Riva Sanseverino(328) sobre o tema: Os remédios apresentados pelo direito comum não eram suficientes nem adequados à natu- reza particular das obrigações que derivam, em relação ao trabalhador, do contrato de traba- lho; seja porque em muitos casos em que uma sanção fosse inoportuna, o direito comum não oferecia, pela ausência dos pressupostos necessários, a possibilidade de aplicá-la; seja porque tais remédios requerem procedimento longo e complexo, o qual atenuaria, notavel- mente, sua eficácia; seja, em suma, porque as sanções civis visam, tão só, à restauração patrimonial, enquanto as sanções disciplinares intentam salvaguardar determinada organi- zação do trabalho na empresa. Nesse diapasão, a citada laboralista italiana conclui que as sanções disciplinares previstas pelo direito do trabalho constituem formas de penalidade do tipo privado e que, na ausência de explícitas disposições legais, a existência legítima de tais sanções poderia ser deduzida da estrutura do contrato de trabalho e da relação de subordinação, que lhe é específica. (327) MARTÍN VALVERDE, Antonio; RODRÍGUEZ-SAÑUDO GUTIÉRREZ, Fermín; GARCÍA MURCIA, Joaquín. Derecho del Trabajo. Madrid: Editorial Tecnos, 2004, p. 238. (328) SANSEVERINO, op. cit., p. 211. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 125 Como adiantamos, o estudo dos fundamentos do poder de comando serve a uma função prag- mática muito relevante: ao tentar explicar as razões pelas quais o empregador pode investir-se da faculdade de estruturar a empresa e de predefinir a sua rotina interna, punindo aquele que se faz indiferente às suas regras, estabelecemos também os limites desse agir empresário. Se recusamos o fundamento puramente patrimonialista ou as teorias com forte tendência autoritária, devemos, por coerência, negar validade à conduta empresarial fundada apenas no direito de propriedade – sobre- tudo se a propriedade é assegurada apenas nos limites de sua função social – ou na potestade supostamente titularizada pelo empregador. Assim inspirados, é de se questionar: pode o empregador exigir a intangibilidade de suas máqui- nas e ambientes de trabalho durante o exercício pacífico, pelos empregados, do direito fundamental de greve? Pode o empregador vasculhar o conteúdo de gavetas e armários que, sendo de sua proprie- dade, disponibiliza para viabilizar a prestação laboral dos empregados? Pode o empregador examinar o teor de mensagens eletrônicas remetidas por seus empregados a outras pessoas, com autorização do empregador, nos casos em que o provedor dessas mensagens é oferecido pelo empregador para otimizar a comunicação interna na empresa? Pode o empregador exigir condições de trabalho que exponham o empregado ao desnudamento ou qualquer outra situação vexatória a pretexto de ser excessivamente onerosa outra forma de desenvolver a sua atividade econômica? Pode o empregador revistar os pertences do empregado com o único objetivo de verificar se ele estaria a subtrair algo de sua propriedade? Tais e outras muitas perguntas devem ter suas respostas balizadas pelo fundamento válido do poder de comando e, por derivação, pela resposta a pergunta correlata: qual a natureza jurídica desse poder? Que espécie de poder é esse a permitir que se constate, como bem notado por Santos Fernández(329), que no contrato de emprego, e “à diferença do que se dá com outros contratos civis, a especificação do objeto devido cabe ao credor da atividade, o empresário”? Os teóricos do direito do trabalho sinalizam três possibilidades. Para eles, o poder de comando seria um direito potestativo, um direito subjetivo ou quiçá um direito-função. A conferir. De direito potestativo certamente não se cuida, porquanto a faculdade de organizar a empresa e ordenar os serviços sofre restrição da Constituição, das leis, das normas coletivas etc. O empregado, frente ao poder de comando, não se encontra em estado de absoluta sujeição, podendo inclusive exercer o seu direito de resistência individual, ou envolver-se em greve ou mecanismo de resistência coletiva, quando a ordem patronal viola os limites do contrato, da boa-fé ou dos valores albergados pelo Direito. Seria o poder de comando, então, a manifestação de um direito subjetivo? Sem aprofundar ou dissecar as várias acepções que hoje se atribuem à locução “direito subjetivo”, parece que o aspecto de o poder de comando justificar-se como um direito – ou mais precisamente uma faculdade – de origem contratual faria defensável a tese de estar o empregador na contingência de exigir o cumpri- mento de um dever do trabalhador imposto por fonte formal do direito do trabalho, o que o aproximaria da compreensão mais tradicional de direito subjetivo. Esse modo de classificar o poder de comando se revela menos despótico que o anterior, em que se divisa no empregador uma potestade incontrastá- vel, mas ignora, por outro lado, a tendência atualmente muito forte no direito privado de atribuir maior importância à ponderação de interesses existenciais, sublimados por valores jurídicos positivados, que à subsunção de interesses puramente econômicos na letra ascética da lei ou do contrato. Há orientação doutrinária, por fim, que concebe o poder diretivo lato sensu – e, a partir deste, também o poder disciplinar – como um direito-função, sendo nesse sentido a observação de Octavio Bueno Magano(330): Enquanto o empresário concentrava em suas mãos todos os cordéis de que depende a ativi- dade da empresa, o poder diretivo se exercia para a satisfação de seu interesse individual. Entretanto, à medida que a empresa se foi transformando em um centro de convergência de interesses, a saber, interesses do empresário, dos administradores, da coletividade, repre- sentada pelo Estado, e dos trabalhadores, representadas pelos seus sindicatos, o poder (329) Op. cit. p. 56. (330) Apud VIANA, Direito de Resistência, p. 135. 126 – Augusto César Leite de Carvalho diretivo tem-se tornado direito-função, passando a ser exercido no interesse da própria empresa. Suppiej chega a afirmar que, divorciando-se dessa finalidade, ele excede os seus limites e configura verdadeiro abuso de poder. Não obstante o prestígio conquistado pela vertente teórica que diz ser o contrato o fundamento do poder de comando, revestindo-se este das características de um direito-função, não custa observar que remanesce algum dissenso doutrinário, tanto no que toca ao fundamento quanto no diz que sobre a natureza jurídica desse poder, conforme se pode inferir de fragmento valioso da obra de Márcio Túlio Viana(331): Na verdade, a discussão passa, mais uma vez, pela concepção que se possa ter da empresa: se a considerarmos apenas o patrimônio do empresário, será difícil adotarmos a tese do poder diretivo como direito-função; se, ao contrário, a visualizarmos como instituição, a natu- reza do poder diretivo só poderá ser aquela. Como dizíamos linhas atrás, o poder diretivo stricto sensu encontra melhor fundamentação na teoria do contrato; o poder organizacional, na teoria da propriedade; o poder disciplinar, na da instituição. O mais relevante, consoante visto, é que o esforço de legitimar o poder de comando resulte em um fim prático: a limitação do poder patronal de modo a proporcionar um ambiente de trabalho mais próximo do patamar civilizatório exigido pela ordem jurídica e pelos valores sociais. Vale recordar o que muito se defendeu ao tempo em que se construíram os primeiros conceitos e significados do direito laboral: antes de surgir a ordem jurídico-trabalhista, o direito das obrigações não conhecia a dever de obediência do devedor (no caso, do devedor da prestação de trabalho), nem a prerrogativa de o credor puni-lo diretamente. C) Do poder regulamentar – extensão do poder de organização Mas há um último e interessante modo por que se manifesta o poder de direção ou comando. Referimo-nos ao poder regulamentar, ou poder de regulamentar, que consiste na discricionariedade permitida ao empregador de estabelecer regras genéricas sobre a organização produtiva ou sobre as condições de trabalho que permearão todos os contratos individuais. São os planos de cargo e salário, os regulamentos de fábrica, os quadros de carreira, espécies do gênero regulamento de empresa que emanam do poder de organização (quem organiza, regulamenta a rotina de sua organização) e fize- ram Alice Monteiro de Barros(332) assim se posicionar: Embora sejamos partidários da corrente contratualista, como fundamento do poder dire- tivo, atribuímos ao regulamento natureza mista, entendendo que o mesmo contém, de um lado, regras de natureza estatutária relacionadas com a determinação de ordens técnicas e com a disciplina que deve existir na organização empresarial; e de outro, regras de feição contratual, como são as cláusulas sobre salário, jornada e outras matérias com a mesma conotação, as quais constituirão o conteúdo dos contratos de trabalho, matéria, aliás, já sedimentada, a teor do enunciado da Súmula n. 51 do E. TST. Entendemos, também, que o poder regulamentar tem mesmo ambiência dual, pois seu conteúdo pode versar sobre matéria inerente à organização ou a cláusulas contratuais. Mas o assimilamos como poder instrumental, por isso mesmo. Cuida-se de uma forma de exteriorização do poder de organizar a empresa ou dirigi-la por meio de regras gerais. Em suma, a subordinação se revela como a sujeição ao poder de comando e este, com os funda- mentos expostos, manifesta-se por meio dos poderes de organização, diretivo stricto sensu e discipli- nar. Quando o propósito é o de dirimir dúvida sobre a existência de vínculo empregatício, frente a um caso concreto, ou ainda quando se questiona a legitimidade da norma regulamentar (expressão do poder de organização), ordem de serviço ou pena dirigida ao empregado, importa verificar se o poder de comando foi exercido em consonância com os fundamentos jurídicos que balizam os seus limites, ou se os extrapolou de modo a resvalar para o abuso, pressuposto de nulidade do ato patronal. (331) Op. cit. p. 136. (332) Op. cit., p. 553. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 127 7.2.4 A onerosidade O contrato de trabalho é oneroso, ou seja, não se o executa por benemerência ou altruísmo. A prestação de trabalho que encerra uma liberalidade, um simples favor ou um ato – mesmo continuado ou persistente – de boa vontade, não acontece no âmbito de uma relação de emprego. Percebe-se que não se está a cogitar do fato objetivo de o trabalhador receber salário, mas do interesse, que a este anima, de trabalhar para recebê-lo. Aliás, o salário será necessariamente devido quando evidenciada essa onerosidade da prestação laboral e o seu valor, quando não ajustado previamente, será arbitrado pela Justiça do Trabalho, em conformidade com o art. 460 da CLT. 7.3 Os elementos acidentais da prestação laboral Ao lado dos elementos essenciais da prestação de trabalho inerente à relação de emprego, exigi- dos pelo artigo 3o da CLT, Rodrigues Pinto(333) lembra os elementos acidentais ou facultativos, que, podendo aparecer na prestação de trabalho, “desempenham papel auxiliar na identificação do empre- gado”. A saber, são os seguintes os elementos acidentais, consoante lição do ilustrado mestre: • O alheamento ao risco da empresa, uma vez que, regra regral, cabe ao empregador o risco pelo empreendimento. Voltaremos ao tema quando estudarmos a figura do empregador, mas desde logo acentuamos a relatividade desse elemento distintivo, porquanto também ocorra, nas hipóteses de o salário ou parte deste ser fixado à razão da quantidade de serviço (comis- são do vendedor) ou obra (peceiro etc.), de o trabalhador ter a sua remuneração vinculada ao êxito ou insucesso da empresa. • A alteridade, que viria a ser o aspecto de a utilidade do trabalho beneficiar sempre o empre- gador, jamais aproveitando diretamente ao empregado. Em verdade, a “alienação” é inerente ao sistema capitalista de produção, dado que o empregado nele sobrevive se, em troca de salário, concorda em contribuir para a produção de bem ou serviço que será posto à disposição do mercado, em proveito somente do empregador. E como o trabalhador faz parte de uma engre- nagem, de um ciclo produtivo, também não se sente o responsável pelo produto final. Em rigor, o empregado até pode perceber, no produto de seu trabalho (quando o vê), uma projeção de seu esforço pessoal, mas não se beneficia desse resultado, nem sente nele uma sua extensão. De tudo se extrai que há uma relação de imanência entre a alteridade e o trabalho subordinado, pressupondo-se aquela onde há este. Logo, não há emprego sem alteridade. Mas, por esse mesmo motivo, a verificação da alteridade não é necessária porque basta que se constate a subordinação em grau absoluto, da qual é um antecedente lógico. Por essa razão, tem-se a alteridade como elemento acidental (sendo dispensável apenas a investigação de sua presença em cada caso concreto, e não a sua presença na ordem dos fatos). • A continuidade, aqui compreendida como o fato de o empregado estar todo o tempo à disposi- ção do empregador (já distinguimos, neste mesmo capítulo, a continuidade e a não eventuali- dade). Está dito que o elemento essencial é a não eventualidade, item relacionado ao fato de a prestação de trabalho não decorrer de evento incerto ou imprevisto. A presença da continui- dade permite, porém, conjecturar, em um caso concreto qualquer, que o trabalho contínuo não deve ter decorrido de fato incerto ou imprevisto, mas ainda assim será a não eventualidade, e não a continuidade, a nota característica da relação de emprego. • A exclusividade, que “retrata a prestação para um só tomador”. Em vez disso, como observa o laboralista Rodrigues Pinto, “a possibilidade da múltipla prestação guarda uma razão direta com o trabalho intelectual e inversa com o manual ou braçal, em virtude das peculiaridades da prestação nesses dois terrenos, quanto ao tempo demandado para atendê-la. Mesmo assim, nada impede o trabalhador braçal de manter mais de uma relação de emprego, nem o inte- lectual de manter uma só, até em razão de cláusula contratual. Isso serve para demonstrar a acidentalidade de manifestação da exclusividade [...]”. Muitas vezes, professores, médicos (333) Op. cit., p. 103-104. 128 – Augusto César Leite de Carvalho e advogados atuam como empregados, mas não prestam trabalho exclusivamente para seu empregador, ou para um empregador somente, nem por isso deixando de ser empregados. 7.4 Empregados excluídos da proteção pela CLT O art. 7o da CLT exclui da proteção do texto consolidado os empregados domésticos, os rurais e os servidores públicos. A regra excludente deve ser, porém, examinada em vista das normas que surgi- ram, historicamente, para regular o trabalho de cada uma dessas categorias inicialmente excluídas. A norma de regência dos servidores públicos é normalmente um estatuto próprio, que corres- ponde, no caso dos servidores da União, à Lei n. 8.112, de 1990. O art. 39 da Constituição exige um só regime jurídico no âmbito de cada uma das entidades da federação, tendo sido recusado o regime da CLT pela imensa maioria dos entes públicos. Há, inclusive, forte tendência doutrinária e jurisprudencial no sentido de compreender que estados e municípios não podem estabelecer a CLT como regime jurídico de seus servidores, pois assim esta- riam legislando sobre direito do trabalho e invadindo, nessa medida, a competência legislativa exclu- siva da União. Há, nesse entendimento e a nosso sentir, uma evidente confusão entre a competência para legislar sobre direito do trabalho – que os estados e municípios realmente não têm – e a autono- mia de que eles se investem para adotar, por remissão, o regime da CLT como o regime próprio. Inva- são de competência haveria se o que estabelecessem para seus servidores também fosse aplicado para os empregados de empresas privadas. Quem bebe a água de um rio não lhe seca a nascente. O labor dos domésticos continua excluído da proteção da CLT e, quanto aos rurícolas, veremos que a regência pela CLT foi-lhes restituída pela lei que disciplina o trabalho rural, num efeito bume- rangue que o legislador da década de 40 não podia prever. Por dever de síntese, preferimos tratar mais detalhadamente dos servidores públicos, domésticos e rurícolas nos subitens que versarão, logo adiante, sobre os tipos especiais de empregados e de trabalhadores congêneres. 7.5 Tipos especiais de empregados e de trabalhadores congêneres Várias categorias de empregados mereceram tratamento diferenciado pelo sistema jurídico-traba- lhista, seja mediante destaque em capítulos próprios da CLT, seja por meio da edição de leis dispersas. Entre aqueles, podemos referir os professores, os bancários e os telefônicos, como todos os demais trabalhadores contemplados, principalmente no que concerne à jornada de trabalho, no Título III, Capí- tulo II, da Consolidação das Leis do Trabalho. Por sua vez, médicos (Lei n. 3.999/61) e engenheiros, químicos, arquitetos, agrônomos e veteri- nários (Lei n. 4.950-A/66) são protegidos, especialmente no que toca ao salário, por leis específicas. Também há os empregados cujos contratos são regidos por regras especiais no que concerne à sua vigência ou forma, a exemplo dos atletas profissionais (Leis ns. 6.354/76 e 8.672/93). Não precipitaremos, entretanto, o estudo de normas relativas a contratos a termo, salário e dura- ção do trabalho, pois o objetivo agora é apenas o de perceber a existência de relação de emprego em recantos da vida nos quais os já estudados elementos essenciais da prestação laboral têm apresentação fluida. Ou ainda o contrato de emprego que não se insere na realidade da empresa, embora não se desfi- gure, ainda assim. Trataremos do trabalho subordinado no campo, nas residências, bem como do estagi- ário e do menor aprendiz, do trabalho intelectual e cooperativado, mas sem minudenciar, como faremos em capítulos próximos, as regras que excedem aquelas necessárias à mera qualificação do vínculo. 7.5.1 Altos-empregados. Os empregados-diretores e os diretores-empregadores Ao discorrermos sobre a caracterização do trabalhador como empregado, frisamos que a decisão do legislador foi a de optar por um conceito legal. Empregado é, segundo o artigo 3º da CLT, o traba- lhador que presta serviço pessoal, oneroso, subordinado e não eventual. Esse dispositivo não inclui alguns trabalhadores subordinados, economicamente débeis, que realizariam trabalho sem os requi- sitos especificados no citado dispositivo legal (avulsos, eventuais etc.) e, numa aparente incoerência, contempla, na definição de empregado, os trabalhadores que já obtiveram um maior grau de aptidão Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 129 administrativa ou capacidade gerencial e, por isso, ajustam as suas condições de trabalho em situação de quase igualdade com o empregador, para quem disponibilizam sua energia laboral. Atento à conveniência de devolver harmonia ao sistema trabalhista, o legislador reduziu os direitos dos altos-empregados, negando-lhes toda a proteção concernente à duração do trabalho (artigo 62, II, da CLT), à manutenção de sua localidade de trabalho (artigo 469, §1o, da CLT) e à estabilidade decenal (artigo 499 da CLT), como veremos ao estudarmos cada um dos temas. Interessa, agora, identificar o alto-empregado, a quem o legislador prefere denominar gerente, noutras passagens referindo-se a ele como o empregado que exerce cargo de confiança. Regra geral, os altos-empregados se diferenciam por dois claros aspectos de sua atuação profis- sional, a saber: • A altos-empregados é delegado, parcialmente, o poder de comando em que está investido o empregador. Isso lhes permite estabelecer novas regras na divisão de trabalho, em estabe- lecimento que dirijam, cabendo-lhes ainda dar ordens em níveis elevados da hierarquia que se observa em tal estabelecimento e, nos limites deste, impor penas disciplinares. O exercí- cio desse poder diretivo o faz um estranho entre os empregados, malgrado esteja ele, como estes, a disponibilizar sua energia de trabalho e se caracterizar, assim, como um empregado. • A altos-empregados é outorgado, por procuração tácita ou expressa, o poder de representar o empregador perante terceiros, a exemplo dos gerentes gerais de agência bancária, que firmam com a clientela contratos de empréstimo ou financiamento. Quanto à exclusão dos direitos assegurados no Capítulo II do Título II da Consolidação das Leis do Trabalho, que são aqueles pertinentes à duração do trabalho (jornada de oito horas, adicional noturno, repouso semanal remunerado etc.), o artigo 62, parágrafo único, da CLT(334), acrescenta, na caracterização do alto-empregado, a exigência de ele receber salário que, somado à gratificação de função (se houver tal gratificação), seja igual ou superior ao valor do salário efetivo, acrescido de 40%. Uma questão correlata é aquela relativa ao exercício, pelo até então empregado, de cargo de direção. Distinguem-se, exempli gratia, os diretores das sociedades anônimas. A sociedade anônima tem como órgãos a Assembleia Geral, a Diretoria, o Conselho Fiscal e, sendo o caso, o Conselho de Administração. A Diretoria é o órgão de representação da companhia e o órgão de execução das deli- berações da Assembleia Geral ou do Conselho de Administração. Os componentes da Diretoria são eleitos pela Assembleia Geral ou, quando há o Conselho de Administração, por este. Enquanto órgão da sociedade, o diretor não pode ser, ao mesmo tempo, um seu empregado. E se havia, anteriormente, contrato de emprego? Prepondera, então, a orientação contida no verbete n. 269 da súmula de jurisprudência do TST: O empregado eleito para ocupar cargo de diretor tem o respectivo contrato de trabalho suspenso, não se compu- tando o tempo de serviço deste período, salvo se permanecer a subordinação jurídica inerente à relação de emprego. A Súmula 269 do TST não exclui a possibilidade de o exercício de cargo de direção, em outros tipos de sociedade empresária – distinta da sociedade anônima –, também importar a suspensão do contrato de emprego. O fundamental é que não se mantenha, na hipótese, a sujeição do poder de comando, exercido pelo empregador. Comentando o referido enunciado da súmula do TST, Francisco Antonio de Oliveira(335), juiz integrante do TRT da 2a Região, distingue o empregado-diretor do diretor- -empregador, sendo pertinente a sua orientação: Empregado diretor é aquele designado pelo empregador para o exercício de cargo da sua confiança imediata. Esse empregado de confiança, embora tenha poderes de mando e gestão em certa intensidade, não chega a substituir o empregador na sua inteireza. Não deixa de ser empregado sujeito à subordinação jurídica. Há casos, entenda-se bem, em que as empresas são geridas por diretores, que podem ou não estar unidos à sociedade empresarial mediante contrato de emprego. Rodrigues Pinto(336) explica: Nas empresas de envergadura menor, que correspondem a sociedade de estrutura jurídica menos complexa, o diretor tanto poderá caracterizar-se como sócio, nos termos do contrato (334) No capítulo atinente à duração do trabalho, diremos sobre a constitucionalidade desse dispositivo da CLT. (335) OLIVEIRA, Francisco Antonio de. Comentários aos enunciados do TST. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. (336) Op. cit., p. 113. 130 – Augusto César Leite de Carvalho social, quanto poderá revelar-se um alto-empregado, se for contratado sob subordinação aos sócios da empresa para geri-la em nome destes. No primeiro caso, o exercício da dire- ção é corolário natural da participação societária do diretor, não interessando ao Direito do Trabalho. No segundo, a relação com a sociedade é de emprego, com diminuição da tutela do trabalhador, já assinalada em referência aos altos-empregados. A doutrina e a jurisprudência têm ressaltado a diferença entre a direção administrativa e a direção técnica, lembrando que nesta última pode estar investido um médico, um engenheiro, um advogado ou qualquer outro profissional especializado, mas que atua como um empregado comum, subordinado e assalariado. O diretor técnico tenderia a ser empregado, portanto. O diretor administrativo somente será empregado se estiver ele subordinado em grau absoluto – se foi eleito para dirigir a empresa, sem que outro lhe dirija os serviços, inexistirá emprego. Acontece, ainda e por vezes, de o empregador promover a conversão do empregado em acionista minoritário, com o objetivo de dar ao vínculo outra natureza jurídica antes de investir esse seu empre- gado na condição de diretor. É interessante notar que o disfarce de acionista é, grosso modo, uma homenagem à aparência em detrimento da realidade, pois nem o diretor precisa ser acionista(337), nem a eleição do diretor basta à desfiguração do emprego, como se dessume da Súmula 269 do TST e há muito já acentuava Pontes de Miranda, ao prefaciar obra de Antero de Carvalho(338): Outro ponto que se há de pôr em relevo é o referente à dicotomia ´direção administrativa´ e ´direção técnica´. Administradores podem ser órgãos sociais, ou empregados. [...] A tecnici- dade das funções – e do cargo – não basta para que se fazer empregado efetivo. O diretor- -técnico pode ser de confiança, ainda quando não se trate de órgão social, ´empregado de confiança’, no sentido da legislação do trabalho [...]. Também a eleição não é critério estreme. Certamente, quem foi eleito para certo período, ou sob condição, não pode pretender esta- bilizar a sua inestabilidade; mas nada obsta a que os Estatutos adotem que o provimento dos empregos estáveis, ou de alguns empregos estáveis, seja por eleição das assembleias- -gerais, ou da diretoria. Não obstante o jurista alagoano tivesse à vista a legislação vigente em 1949, quando assim se manifestou, é certo que o artigo 146 da Lei n. 6.404, de 1976, autoriza, ainda hoje, a exigência, em norma estatutária, de eleição para o provimento de cargos de administração da sociedade anônima que não integrem o seu conselho de administração ou a sua diretoria. Portanto, a eleição do diretor não o impede de ser empregado e, por outro lado, há cargos de administração da sociedade anônima que, por disposição estatutária, somente podem ser providos por empregados e mediante eleição. 7.5.2 Os empregados públicos O art. 39 da Constituição, em sua redação original, estabelecia que os entes públicos deveriam instituir, no âmbito de suas competências, o regime trabalhista único. Comentando o preceito, a juris- prudência e a doutrina não tardaram a defender que o regime de trabalho mais ajustado aos princípios regentes da administração pública seria, como de fato ainda é, o regime estatutário. Celso Antônio Bandeira de Mello o diz: A Constituição, nos artigos 39 a 41, ao tratar dos ‘servidores públicos’, empenhou-se em traçar, nos numerosos parágrafos e incisos que os compõem, os caracteres básicos de um regime específico, distinto do trabalhista e tratado com amplitude. Certamente não o fez para permitir, ao depois, que tal regime fosse desprezado e adotado o regime laboral comum (ainda que sujeito a certas refrações). Seria um contra senso a abertura de toda uma ‘seção’, com minuciosa disciplina atinente aos ocupantes de cargo público, se não fora para ser este o regime de pessoal eleito com prioridade sobre qualquer outro. Além disto, o §3º do art. 39 determinou que aos servidores ocupantes de cargo público apli- car-se-iam determinados dispositivos do art. 7º, ou seja: concernentes à proteção dos traba- lhadores em geral, urbanos e rurais, do País. Daí também se depreende a prevalência do (337) Vide artigo 146 da Lei n. 6.404/76. (338) CARVALHO, J. Antero de. Cargos de direção no direito do trabalho. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas S/A, 1981. p. 22. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 131 regime de cargo, tico como o normal, o corrente. Com efeito, se o regime prevalente devesse ser o trabalhista, seria despicienda a aludida remissão e não estaria cifrada a alguns incisos do art. 7º, porque todos eles se aplicariam normalmente. Finalmente, o regime normal dos servidores públicos teria mesmo de ser o estatutário, pois este (ao contrário do regime trabalhista) é o concebido para atender a peculiaridades de um vínculo no qual não estão em causa tão só interesses empregatícios, mas onde avultam interesses públicos básicos, visto que os servidores públicos são os próprios instrumentos de atuação do Estado.(339) A tendência de se instituir o regime estatutário para todos os servidores da administração direta, bem assim das autarquias e fundações públicas, consolidou-se, no nível federal, por meio da Lei n. 8.112, de 1990, assemelhando-se ao seu teor o regime jurídico, igualmente único, insti- tuído pelos Estados, Municípios e Distrito Federal. A Emenda Constitucional n. 19, de 4 de junho de 1998, surgiu sob inspiração do princípio da eficiência, que por obra sua somou-se aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no elenco de princípios da Administração Pública, todos elevados ao nível de princípios constitucionais (artigo 37 da Constituição). Tratando do princípio da eficiência, a publicista Maria Sylvia Zanella di Pietro(340) lembra o Plano Diretor da Reforma do Estado, elaborado em 1995, porque nele se afirma que “reformar o Estado significa melhorar não apenas a organização e o pessoal do Estado, mas também suas finanças e todo o seu sistema institucional-legal, de forma a permitir que o mesmo tenha uma relação harmoniosa e positiva com a sociedade civil”. A citada emenda constitucional deu curso e vez àquela que foi denomi- nada a Reforma Administrativa, sendo uma alteração relevante, em seu bojo, o fim do regime jurídico único previsto, até então, no art. 39 da Constituição. Di Pietro explica: Com a exclusão da norma constitucional do regime jurídico único, ficará cada esfera de governo com liberdade para adotar regimes jurídicos diversificados, seja o estatutário, seja o contratual, ressalvadas aquelas carreiras institucionalizadas em que a própria Constituição impõe, implicitamente, o regime estatutário, uma vez que exige que seus integrantes ocupem cargos organizados em carreira (Magistratura, Ministério Público, Tribunal de Contas, Advo- cacia Pública, Defensoria Pública e Polícia), além de outros cargos efetivos, cujos ocupantes exerçam atribuições que o legislador venha a definir como atividades exclusivas do Estado, conforme previsto no artigo 247 da Constituição, acrescido pelo art. 32 da Emenda Consti- tucional n. 19/98(341). Como era de esperar, a Lei n. 9.962, de 22 de fevereiro de 2000, surgiu com a pretensão de esta- belecer que o regime jurídico dos novos servidores públicos, admitidos que fossem pela Administração direta, autárquica e fundacional, seria o da CLT e legislação correlata. Porém, sobreveio, em março de 2008, medida cautelar deferida pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de restabelecer o regime jurídico único, em virtude de defeito formal que identificou na votação da Emenda Constitucional n. 19. A decisão foi proferida nos autos da ADI 2135 MC/DF e, em razão de seu efeito ex nunc, mantiveram- -se regidos pela CLT apenas os servidores da administração direta, autarquias ou fundações investi- dos em emprego público desde a edição da EC 19 até a mencionada decisão do STF. Além deles, os empregados de sociedades de economia mista e empresas públicas são servido- res públicos lato sensu que continuam regidos pela CLT, dado que trabalham para pessoas jurídicas de direito privado integrantes da administração pública indireta. 7.5.3 Os empregados domésticos Sabemos que o empregado doméstico, desenganadamente um empregado, fora excluído da proteção celetista (artigo 7º, da CLT), sendo titular, tão somente, dos direitos trabalhistas previstos na Lei n. Complementar n.150, de 1º de junho de 2015 (jornada de trabalho máxima de oito horas e (339) MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 260. (340) DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 1999. p. 73. (341) DI PIETRO, op. cit., p. 361. 132 – Augusto César Leite de Carvalho quarenta e quatro horas semanais, intervalos intrajornadas e repouso em domingos e feriados, férias, proteção quando acompanha empregador em viagens, adicional noturno, intangibilidade do salário, aviso-prévio, FGTS e seguro-desemprego(342)) e dos direitos sociais assegurados no artigo 7o da Cons- tituição, se não subtraídos a contrario sensu em seu parágrafo único. A leitura do art. 7º da Constituição e de seu parágrafo único permite constatar que estão, desse modo, assegurados constitucionalmente aos domésticos os seguintes direitos: salário mínimo, irre- dutibilidade do salário, décimo terceiro salário, proteção do salário inclusive contra retenção dolosa, duração do trabalho com limite de oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, repouso semanal remunerado, remuneração de horas extras com adicional mínimo de 50%, férias, licença à gestante, licença-paternidade, aviso-prévio proporcional ao tempo de serviço, redução dos riscos inerentes ao trabalho, aposentadoria, convenções e acordos coletivos, proteção contra ato patronal discriminatório e proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre para menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo como aprendiz. Também o empregado doméstico é titular, a nosso pensamento, de direitos previstos em leis trabalhistas esparsas que, destinando-se à proteção geral dos empregados, não o discriminem. Para efeito exemplificativo, podemos lembrar o vale-transporte, porquanto a Lei n. 7.418, de 1985, não exclui o empregado doméstico da proteção que assegura, cabendo, pois, lembrar a máxima odiosa restringenda, favorabilia amplianda, tão simpática aos hermeneutas. Quem seria, afinal, o doméstico? O antigo conceito inserido no sétimo artigo da CLT recebera melhor versão no artigo 1o da Lei Complementar n. 150/2015, que considera empregado doméstico, ipsis verbis: [...] aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana [...]” Logo, o empregado descrito pelo legislador é, em primeiro lugar, o que se caracteriza pela conti- nuidade do trabalho em âmbito residencial. A lei, como visto, adotou o critério – antes apenas juris- prudencial – de fixar o limite de dois dias por semana para a caracterização do diarista, ou seja, do trabalhador doméstico que não presta serviço de natureza contínua e, por isso, não usufrui da proteção assegurada aos empregados domésticos, sobrando-lhe somente a regência pelo Código Civil. Perce- ba-se que, enquanto o artigo 3o da CLT menciona a não eventualidade na configuração do empregado comum, a lei específica exige a continuidade na modelagem do empregado doméstico. A segunda característica do empregado doméstico é a finalidade não lucrativa do seu serviço, em relação à atividade do empregador. Octacílio Silva(343) observa que tal elemento: [...] não passa de expediente hábil para discriminar os domésticos, visto que os legisladores, consciente ou inconscientemente, são interessados na questão, visto que, em regra, são empregadores domésticos. A prova é que, se por um lado, no Brasil, a legislação obreira, nas últimas décadas, tem andado à frente dos nossos costumes e exigências sociais, no que se refere aos domésticos, as imposições de mercado é que têm tomado a dianteira, como é o caso, por exemplo, do salário mínimo, do repouso semanal remunerado, das férias integrais, da jornada da trabalho, sobretudo nos grandes centros. Alguma dificuldade por vezes existe, na identificação do empregado como doméstico, quando a sua energia de trabalho é utilizada pelo empregador não apenas para os serviços caseiros de faxina ou cozinha, por exemplo, mas também para a limpeza de um escritório ou consultório, salão de beleza ou pequeno ambiente (extensão da casa residencial) em que o empregador explore algum comér- cio. Desde que o trabalho dedicado a essa atividade lucrativa não se revele eventual (no sentido de depender de acontecimento incerto ou imprevisto), temos como induvidoso que o empregado perderá a condição de doméstico(344). (342) A LC 150/2015 revogou a Lei n. 5.859/72 que consagrava férias anuais remuneradas, benefícios e serviços da legislação previdenciária, anotação do contrato na CTPS e, por opção do empregador, FGTS e seguro-desemprego. Em rigor, o seguro-desemprego era um direito do empregado doméstico que este obtinha em consequência da opção que o seu empregador tenha feito pelo recolhimento do FGTS, conforme artigos 3º-A e 6º-A da Lei n. 5.859/72, após as alterações promovidas pela Lei n. 10.208/2001. (343) SILVA, Otacílio P. Empregados domésticos. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá / Coordenação de Alice Monteiro de Barros. Vol. 1. São Paulo: LTr, 1993. p. 364. (344) Nesse sentido: Amauri Mascaro Nascimento, op. cit., p. 700. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 133 A terceira e última característica do emprego doméstico é o fato de o trabalhador desenvolver os seus misteres no âmbito residencial de pessoa ou família. Anota Rodrigues Pinto(345), em consonância com orientação doutrinária preponderante, que: [...] deve ser considerado que o trabalho se caracteriza como doméstico mesmo prestado fora do âmbito residencial, desde que voltado para o serviço da família do tomador. É o que acontece, reconhecidamente, com o chamado motorista particular, cuja prestação é bem diversa, em termos de âmbito, da entregue pelo jardineiro ou pela governanta da residência, embora todos eles sejam empregados domésticos, para os efeitos laborais. A alusão à residência não é de rigor técnico (a residência é definida, pelos civilistas, como o lugar em que a pessoa mora ou tem o centro de suas ocupações), compreendendo-se, por isso e para os fins da LC n. 150/2015, que há trabalho no âmbito residencial quando tal sucede na casa de veraneio ou no trailer onde se usufruem as férias. É bom ver, ainda, que o empregado doméstico pode prestar serviço na cidade ou no campo, assim se apresentando o caseiro de chácara de recreio ou, mesmo em propriedade rural desenvolvida com vistas ao lucro, o empregado cuja força de trabalho seja destinada exclusivamente a prendas do lar. Ainda no tocante ao âmbito residencial, a lei o refere como o da residência da pessoa ou da famí- lia. Com razão, alguns autores(346) têm enfatizado que, a salvo os casos em que o dono da casa mora sozinho, como sucede a celibatários e a misantropos, a qualidade de empregador doméstico deve ser atribuída à família, inclusive quanto à representação em juízo. Por fim, impende ressaltar que a Lei n. 2.757, de 1956, garantiu aos empregados porteiros, zela- dores, faxineiros e serventes de prédios de apartamentos residenciais a regência de seus respectivos contratos pela Consolidação das Leis do Trabalho, embora não haja dúvida quanto ao caráter contínuo e não lucrativo dos serviços prestados, por esses trabalhadores, no âmbito residencial dos condômi- nos. É indubitável que não somente aos empregados em prédios de apartamentos residenciais, mas também àqueles que se empreguem em qualquer outro condomínio (casas residenciais ou de campo) estender-se-ão as vantagens da Lei n. 2.757/56, sob pena de se emprestar ao seu preceito uma inte- ligência que, sendo restritiva demais, agrediria o fim social que lhe é inerente. 7.5.4 O empregado em domicílio e o teletrabalho Se o trabalho não é prestado na residência do empregador – como no emprego doméstico –, mas, sim, no domicílio do trabalhador? Ainda assim poderá haver vínculo de emprego? A resposta está no art. 6o da CLT, verbis: Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador e o executado no domicílio do empregado, desde que esteja caracterizada a relação de emprego. Basta, portanto, que estejam presentes os elementos essenciais da prestação laboral, previstos no art. 3o da CLT (pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade). A circunstância de o trabalhador prestar serviço em seu próprio domicílio (casa, escritório, oficina de arte ou ofício etc.) não impedirá a configuração do liame empregatício. A dificuldade está, porém, na tarefa de se perscrutar a ocorrência desses elementos, notadamente da subordinação, da pessoalidade e da não eventuali- dade, quando o trabalho é realizado longe dos olhos do suposto empregador e, assim, há um inevitável abrandamento do poder de controle. Quanto à subordinação, melhor é perquiri-la sob a perspectiva do tomador do serviço, ou seja, cabe investigar, frente a um caso concreto, se o trabalhador está sujeito ao poder de comando, em especial se ele se submete ao poder de organização, ou seja, se a prestação de trabalho está inserida na estrutura econômica ou técnica de que se vale o tomador do serviço para tocar o seu negócio. Já é possível perceber que o empresário constitui sua empresa quando organiza os fatores de produção com vistas à produção de bens ou serviços. O trabalho em domicílio pode, ou não, estar entre os fatores de produção organizados pelo empresário, existindo emprego, por óbvio, somente no (345) Op. cit., p. 118. (346) GONÇALVES, Emílio; GONÇALVES, Emílio Carlos Garcia. Direitos sociais dos empregados domésticos. São Paulo: LTr, 1991. p. 79. O autor faz remissão, em apoio de sua tese, a Valentin Carrion. 134 – Augusto César Leite de Carvalho caso afirmativo. O exercício do poder de comando (em sua modalidade poder de organização) pode, inclusive, ser inferido do seguinte trecho, extratado da obra de Martins Catharino(347): O trabalhador a domicílio distingue-se do artesão pelo fato principal de não ter contato com a clientela consumidora. Ou seja, não produz para o mercado, e sim para outrem determinado, de quem recebe matéria-prima, e até ferramentas, com as quais, especificando a primeira, manufatura, com ou sem o auxílio de máquinas simples, determinados produtos, em local por si escolhido [...], do qual tem a posse ou a propriedade. Os demais componentes da subordinação (sujeição também aos poderes diretivo stricto sensu e disciplinar) deverão ser investigados com critério, não obstante tenhamos ressaltado a sua atenuação no trabalho a domicílio. Imaginemos, por exemplo, uma cozinheira ou uma lavadeira que atenda, em sua casa, a serviços permanentemente necessários ao desenvolvimento de uma empresa, ou ainda, um alfaiate que preste serviço em seu domicílio, mas com a regularidade daquele que o faz no esta- belecimento empresarial. Cumpre, então, ao intérprete ou aplicador do direito laboral, seriamente interessado em identificar a natureza de uma relação de trabalho qualquer, indagar se o tomador do serviço está a controlar, mediante a definição de técnica de produção ou prévia estipulação de quantidade de peças ou tarefas produzidas em período certo, a prestação de labor. É que só assim haverá disponibilização da força de trabalho e, por isso, subordinação em grau absoluto. E se acaso também se confirmar que o empresá- rio direcionou o trabalhador para tarefas específicas, no exercício do poder diretivo stricto sensu, será fácil concluir que o descumprimento da ordem, abstrata ou concreta, exporá o trabalhador a virtual punição, configurando-se o exercício do poder disciplinar. Para depurar os três exemplos ilustrativos do emprego em domicílio, poderíamos considerar, ainda mais, que os citados trabalhadores em domicílio estariam atendendo a empresários que se dedicam ao fornecimento de marmita ou alimentos enlatados, no caso do cozinheiro; à atividade de lavanderia, no exemplo referente à lavadeira de roupas; à indústria de confecções, na hipótese do alfaiate. Em todasessas situações, avulta a relevância do nexo entre as atividades do prestador e do tomador, tida por Rodrigues Pinto(348) como fundamental para desvendar a necessária subordinação e, acrescemos nós, igualmente relevante para sinalizar a provável presença da não eventualidade. Mas também pode ocorrer de o serviço em domicílio consistir na lavagem de fardamento dos empregados, utilizado na prestação de trabalho fabril ou, por outra, como uniforme de equipe amadora de futebol. Nada a ver com a atividade-fim da suposta empregadora, portanto. Ainda assim, somente o fato de o serviço em domicílio ter decorrido de fato incerto, como a participação da empresa, por seus empregados, em torneio esportivo episódico, poderá descartar o elemento ora examinado (a não even- tualidade), desnaturando a relação de emprego. Por sua vez, os que lavassem o fardamento usado rotineiramente pelos industriários seriam, a princípio, empregados. Sobre mais, é evidente que a pessoalidade e a não eventualidade serão elementos distintivos cuja presença terá, sempre, relevo inescondível, no emprego em domicílio. Naqueles exemplos acima propostos, e partindo do pressuposto de tais exemplos não retratarem trabalho por desprendimento ou liberalidade (daí por que não questionamos a onerosidade), podemos entender que os serviços de cozinha, lavanderia ou costura serão provavelmente prestados por empregados se a qualificação destes foi decisiva na contratação (revelando a pessoalidade(349)) e se servirem à provisão de neces- sidades permanentes de empresas – voltadas ou não à atividade correlata (o que denotará a não eventualidade). Uma derradeira, mas muito atual consideração, sobre o trabalho em domicílio: a inserção do preceito insculpido no art. 6o da CLT derivou da necessidade de o legislador proscrever a prática empresarial intitulada sweating system, que Martins Catharino(350) classifica como “uma das páginas mais negras da História do Trabalho. Uma das formas mais agudas da exploração da pessoa humana (347) Catharino, op. cit., p. 386. (348) Op. cit. p. 113. (349) E sem que essa pessoalidade se desnature na hipótese de o tomador tolerar que outra pessoa eventualmente auxilie o trabalhador contratado, porquanto a pessoalidade se desfigura somente se o trabalhador se faz substituir por outro trabalhador sem o consentimento do tomador dos serviços. (350) CATHARINO, op. cit., p. 386. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 135 durante o arranco do capitalismo. Várias indústrias nascentes criaram um sistema de produção alta- mente explorador, por meio da fábrica disseminada (Gide) ou dispersa (J. Pinto Antunes)”. Marx teria percebido essa forma de organizar o trabalho na indústria têxtil do século XIX e, a seu modo, após observar que “o Capital põe em movimento, por meio de fios invisíveis, um grande exército de trabalhadores em domicílio, espalhados nas grandes cidades e pelo interior do país”, advertiu para a diminuição da capacidade de resistência dos trabalhadores por conta do isolamento a que estariam submetidos(351). Curiosamente, essa forma de produção econômica, que o autor baiano disse estar superada em 1972 (ano de edição da obra consultada), parece ressurgir qual Fênix, a ave mitológica, nas cinzas do teletrabalho (ou home office). Pesquisas revelam que no Brasil há mais de dez milhões de trabalhado- res envolvidos em teletrabalho(352), ou seja, pessoas que prestam serviço em suas residências, escritó- rios, veículos ou ambientes externos ao estabelecimento empresarial, inclusive telecentros(353), usando meios telemáticos ou informáticos que viabilizam a comunicação com a empresa a que servem(354). Os avanços da tecnologia da informação viabilizam esse novo modo de exercer atividade econô- mica, com vantagens e desvantagens para empregado e empregador: se por um lado há a transferên- cia de custos da atividade empresarial (instalações de trabalho e de higiene, transporte, alimentação etc.) para o trabalhador, por outro lado a dispersão dos trabalhadores dificulta a capacitação e o compromisso ético com a atividade empresarial(355); se é certo que o labor em domicílio pode concorrer para uma maior liberdade de o trabalhador definir o seu horário de trabalho, também o é que a rotina empresarial se transfere para o ambiente doméstico, podendo virtualmente contaminar as relações de família e promover alguma porosidade entre o tempo de trabalho e o tempo de lazer(356); se de fato a privacidade do trabalhador se deixa invadir pelas eventuais câmeras de vídeo instaladas em seu computador doméstico, decerto que o trabalhador se liberta da rotina tantas vezes constrangedora, não raro abusiva, da revista, no estabelecimento da empresa, de sua pessoa e de seus pertences. Talvez o prejuízo maior para o trabalhador, quando atua a distância de quem o contrata, seja o fato de afastar-se de outros trabalhadores que vivenciam a mesma realidade, a mesma angústia ou quiçá a mesma satisfação com as condições de trabalho. Embora alguns estabelecimentos empresariais de nossos dias comportem células de trabalho que não interagem sob o ponto de vista funcional ou exis- tencial (as cabines de call centers, por exemplo, ou mesmo as mesas de trabalho conectadas apenas eletronicamente com as congêneres, sem correlação com a situação topográfica na empresa), o labor no antigo chão da fábrica é ilustrativo de como a aproximação física de empregados os fez mais fortes, historicamente, na organização de movimentos reivindicatórios e na prática do associativismo, assim em benefício de um habitat laboral mais justo e solidário. (351) Citam Marx: ALEMÃO, Ivan; BARROSO, Márcia Regina C. O teletrabalho e o repensar das categorias tempo e espaço. Enfoques – revista dos alunos do PPGSA-UFRJ, v.11(1), março 2012. Online. p. 73-88. Disponível em: http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br. Acesso em: 26/ jan/2015. (352) Cf. ALEMÃO e BARROSO, op. cit., p. 77. (353) Telecentro é a denominação para escritório alugado por empresa ou trabalhador que optam por ambiente não coincidente com o estabelecimento daquela ou com a residência deste. (354) Ao definir “trabalho a distância”, prevê o art. 13.1 do Estatuto dos Trabalhadores da Espanha: “Tendrá la consideración de trabajo a distancia aquél en que la prestación de la actividad laboral se realice de manera preponderante en el domicilio del trabajador o en el lugar libremente elegido por éste, de modo alternativo a su desarrollo presencial en el centro de trabajo de la empresa”. (355) Art. 13.3 do Estatuto dos Trabalhadores da Espanha: “El empresario deberá establecer los medios necesarios para asegurar el acceso efectivo de estos trabajadores a la formación profesional para el empleo, a fin de favorecer su promoción profesional. Asimismo, a fin de posibilitar la movilidad y promoción, deberá informar a los trabajadores a distancia de la existencia de puestos de trabajo vacantes para su desarrollo presencial en sus centros de trabajo.” (356) Sobre tal porosidade, observa Maria do Perpétuo Wanderley de Castro: “Agora, a fábrica se horizontaliza, o trabalhador é multifuncio- nal e se opera a compressão tempo e espaço. A isso se acrescenta a explicação dada por De Masi quanto à redução da fratura entre tempo de trabalho e tempo de vida, pois no trabalho intelectual, o pensamento prossegue fora do escritório e o trabalho é levado dentro da cabeça. Ou, como aduz Supiot, instala-se um tempo heterogêneo, que supera a oposição binária entre tempo de trabalho e tempo livre que se baseava em uma noção homogênea de tempo de trabalho. Há uma porosidade da fronteira entre tempo livre e tempo de trabalho, que se verifica no contrato ou na execução do contrato. Na execução, com as novas formas do trabalho em rede e informática, há uma mistura inextricável de tempo de trabalho e tempo livre, além de ocorrer o terceiro tipo de prática denominada, segundo o autor, de astreintes, em que o trabalha- dor não trabalha, mas está predisposto a fazê-lo ao atender à requisição de seu empregador. É um tempo que não é livre, nem é tempo de trabalho” (CASTRO, Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de. O Conceito de Tempo de Sobreaviso e as Tecnologias da Comunicação. Disponível em: http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/29636/009_castro.pdf?sequence=4. Acesso em: 26/jan/2015). 136 – Augusto César Leite de Carvalho O teletrabalho somente se caracteriza como emprego em domicílio se há a presença dos quatro elementos definidores da relação empregatícia: subordinação, pessoalidade, onerosidade e não even- tualidade. De toda sorte, desde 2011 a CLT ganhou novo dispositivo, o parágrafo único do artigo 6º, a esclarecer sobre a subordinação que denuncia a existência de emprego: “Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”. Emilia Sako(357) explica as razões pelas quais se fazia importante o acréscimo no texto da CLT: As novas tecnologias possibilitam que o empresário possa acompanhar o trabalho a partir de qualquer lugar, enviar instruções sobre sua execução, fazer cobranças sobre a qualidade e quantidade de trabalho, como se o trabalhador estivesse no interior da empresa. Programas de software podem registrar todos os pormenores das tarefas e dos trabalhadores na rede, como o momento exato em que o trabalhador ligou ou desligou o computador, que programa está utilizando, quanto tempo gastou em cada tarefa, o tempo dedicado exclusivamente ao trabalho, períodos de pausas, número de operações realizadas, número de toques no teclado, erros cometidos, etc. Por meio da supervisão e direção remotas, as rotinas de traba- lho podem ser seguidas passo a passo e as instruções vão aparecendo na medida em que a tarefa vai sendo executada. O controle físico é substituído pelo tecnológico, mais eficaz que o tradicional porque permite a vigilância direta, embora, diferida. O empresário, supervisor ou chefe não mais circula pela unidade e sim pela rede, que forma parte da empresa. O traba- lhador submete-se a uma liberdade vigiada, tão ou mais temida que a vigilância física, feita pelos olhos do patrão. A própria ferramenta de trabalho – o computador – se encarrega de cobrar procedimentos, comportamentos e produção. Mesmo no trabalho intelectual o empre- sário pode enviar instruções e limitar as iniciativas pessoais e o poder criativo. A atividade jurisdicional deverá estar atenta à possibilidade de o teletrabalho não envolver, contudo, a prestação subordinada de trabalho. Emilia Sako nos remete, a propósito, à experiência da jurisprudência espanhola segundo a qual “o teletrabalho está submetido às normas do direito do trabalho quando estão presentes na prestação indícios de laboralidade, como a aplicação de pena- lidades pelo atraso ou conclusão do trabalho, fixação de zonas geográficas específicas de trabalho, exclusividade na prestação e continuidade dos serviços, conexão on line com a empresa, participação em cursos organizados pelo empresário, cumprimento de instruções periódicas, pagamento de uma contraprestação e de outros gastos derivados do trabalho”(358). 7.5.5 O trabalho intrafamiliar – entre filhos e pais ou entre cônjuges Pai e filho podem ser sujeitos de um contrato de emprego, como empregador e empregado, ou vice-versa? É claro que poderá haver contrato de emprego assim constituído, especialmente se ausente o ânimo da gratuidade. A experiência permite visualizar onerosidade, todavia, em poucos dos processos nos quais uma controvérsia de tal ordem é posta à apreciação. Noutros, o amor filial se deixa invadir pelo interesse de retaliar alguma atitude malquista do pai até então amantíssimo, mas sem efeito retroativo. O que fora o intuito de colaboração numa empresa familiar não se converte, em etapa posterior e sob a influência de conflito episódico, em interesse puramente econômico. Délio Maranhão(359) anota: “alguns autores, como Clóvis e M. I. Carvalho de Mendonça, comen- tando o art. 1132 do (antigo) Código Civil, sustentam que a proibição legal” – refere-se à impossibili- dade de o pai vender ao filho ou com este permutar sem a anuência dos demais – “se estende a todo e qualquer contrato que tenha por fim fraudar a legítima. Mas, aí, é o intuito da fraude que invalida o contrato”. (357) SAKO, Emília Simeão Albino. Teletrabalho Telessubordinado, Dependente e por Conta Alheia: reengenharia dos requisitos da relação empregatícia. Revista do Tribunal Superior do Trabalho: vol. 78, n. 3 (jul/set 2012). Também disponível na Biblioteca Digital do TST em: http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/34300/001_sako.pdf?sequence=3. Acesso em: 26/jan/2015. (358) Op. cit. p. 20. A autora cita a decisão da Sala Social do Tribunal Supremo da Espanha: SSTS 22 abril 1996 y 29 diciembre 1999. Dispo- nível em: . (359) MARANHÃO, Délio. Instituições de Direito do Trabalho / Arnaldo Sussekind, Délio Maranhão, Segadas Viana. Vol. 1. São Paulo: LTr, 1993. p. 296. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 137 Situação diversa é a dos cônjuges, quando um deles se apresenta como trabalhador a serviço do outro. Malgrado a festejada divergência de Evaristo de Moraes Filho e Martins Catharino(360), que admi- tem a configuração do vínculo de emprego qualquer que seja o regime de bens, estamos novamente a concordar com Délio Maranhão(361), litteris: Se o regime dos bens é o da comunhão universal, quando assim for validamente conven- cionado (art. 258 do Código Civil(362)), não vemos como se possa estabelecer um contrato de trabalho entre os esposos. Até a dissolução da sociedade conjugal, os bens de ambos os cônjuges permanecem em um estado de indivisão. Ora, o patrimônio do empregador responde pelas obrigações resultantes do contrato de trabalho. Como admitir, portanto, que um cônjuge se torne credor do outro? O regime da comunhão universal de bens impede mesmo a formação do vínculo ou subsistência da relação de emprego anterior ao casamento. Não há, com efeito, como supor que o cônjuge empre- gado possa executar o seu crédito em face do outro, uma vez que sobre o patrimônio comum recairia a constrição judicial. E a confusão (artigo 381 do Código Civil) extingue a obrigação, afinal. Acontece, enfim, de o vínculo de emprego não se estabelecer entre pessoas da mesma família, mas, em vez disso, de algum membro da família, sendo empregado, receber o auxílio de um ou mais familiares em sua prestação laboral. É comum, exempli gratia, o trabalhador rural se valer de mulher e filhos, muitas vezes menores, para tarefas que são rotineiras no campo, como o pastoreio de peque- nas reses ou a guarda de galináceos. Essa solidariedade no seio familiar acontece também no trabalho em domicílio, longe dos olhos de quem toma os serviços. Se o empregador do esposo ou do pai vale-se, conscientemente, dessa força adicional de traba- lho, exigindo-a das pessoas que integram a família de seu empregado e que realmente a despendem, o reconhecimento de vínculo empregatício com todos os familiares, que para ele trabalham, parece- -nos inevitável. O mesmo não sucede, porém, quando o titular da empresa, urbana ou rural, cobra a prestação de trabalho somente de um dos membros da família e este, à revelia do seu empregador, transfere circunstancialmente, para cônjuge ou filhos, a responsabilidade de cumprir os seus afazeres. Sendo pessoais os atos de emprego (o que implica a consideração, pelo empregador, dos atributos morais e profissionais de quem contrata), não assimilamos como razoável a configuração de liame empregatício entre o titular da empresa e aqueles que, sem o seu consentimento, para ele eventual- mente laboram, movidos por interesse afeto à solidariedade que caracteriza as relações familiares. 7.5.6 O empregado aprendiz O art. 428, da CLT, define o “contrato de aprendizagem como o contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar ao maior de quatorze e menor de vinte e quatro anos, inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência, as tarefas necessárias a essa formação”(363). A idade máxima do aprendiz não se aplica aos deficientes (art. 428, § 5º, da CLT). Como se nota, ao menor será então assegurada, além da contraprestação salarial (ou como parte desta, segundo alguns doutrinadores), a aprendizagem de ofício ou ocupação, mediante curso ministrado pelos Serviços Nacionais de Aprendizagem ou, quando não ofertarem estes o curso específico ou dispuserem de vaga, pelas Escolas Técnicas de Educação ou por entidades sem fins lucrativos que tenham por objetivo a assistência ao adolescente e à educação profissio- nal, registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente(364). Somente (360) Apud CATHARINO, op. cit. p. 398. (361) MARANHÃO, op. cit. p. 294. (362) Artigo 258 do Código Civil de 1916, que corresponde ao artigo 1640 do Código Civil de 2002. (363) Redação de acordo com a Lei n. 11.180, de 2005, que elevou para 24 anos a idade máxima do aprendiz. (364) Art. 430 da CLT. Antes de a Lei n. 10.097/2000 dar a esse dispositivo tal redação, a Portaria n. 127, de 18-12-56, atribuía ao SENAI e ao SENAC o ministério da aprendizagem ou, à falta de curso ou vaga oferecida por esses entes sociais autônomos, autorizava o empregador a promover a formação profissional de seu empregado sob a orientação das citadas entidades (SENAI ou SENAC), que seriam, assim, os “órgãos educacionais de aprendizagem próprios da Indústria e do Comércio e que já estão situados, pela legislação em vigor, como auxiliares do Poder Público”. 138 – Augusto César Leite de Carvalho nessa derradeira hipótese (aprendizagem promovida por entidade sem fim lucrativo) o aprendiz não será um empregado, sendo-o nas demais. Até a edição da Lei n. 10.097, de 2000, sempre coube ao SENAI e ao SENAC relacionar os ofícios e ocupações que podiam ser objeto de aprendizagem metódica, especificando o tempo necessário a essa aprendizagem em cada caso. Tudo se dava com expressa aprovação pelo Ministério do Trabalho, por meio da Portaria n. 43, de 1953. A depender do ofício ou ocupação, a aprendizagem podia durar até três anos, não sendo possível que perdurasse além do tempo previsto pelo SENAI ou pelo SENAC, na relação sobredita. A citada lei (Lei n. 10.097/00) reduziu a dois anos o prazo máximo para a apren- dizagem, não mais prestigiando o tempo necessário à capacitação de cada ofício ou profissão, antes recomendado por mencionadas instituições. O prazo de dois anos para o encerramento do estágio somente não se aplica nos casos de aprendizes que sejam portadores de deficiência física, como se extrai da nova redação do art. 428, §3o, da CLT. E como repercute o tempo de aprendizagem no contrato de emprego? O término da aprendiza- gem implica, necessariamente, o desate contratual? É conveniente distinguir a aprendizagem compul- sória, exigida pelo art. 429 da CLT(365), da aprendizagem facultativa. Sendo facultativa, a vigência do contrato de emprego poderá ser fixada em consonância com o tempo de aprendizagem ou poderá ainda o contrato ser por tempo indeterminado e, neste caso, a vigência do contrato não se deixará contaminar pelo término da formação profissional (não haverá, então, contrato de aprendizagem, mas sim cláusula de aprendizagem em contrato por tempo indeterminado). Cuidando-se de aprendizagem compulsória, são duas as situações nas quais o fim da aprendi- zagem estaria a exigir uma solução jurídica: aquela em que o aprendiz completa vinte e quatro anos de idade ou quando se esgota o tempo máximo de aprendizagem antes desse limite etário. Neste último caso, considera-se que o contrato é a prazo e, salvo na hipótese de se converter em contrato por tempo indeterminado pelo simples fato de o trabalho continuar sendo prestado, teremos a extinção do contrato de emprego, sem que o empregador deva qualquer indenização. Neste sentido, a lição de Délio Maranhão(366). Na hipótese de se completar a idade máxima de aprendizagem, sendo esta compulsória (compul- sória, vale dizer, para o empregador, que deve ter em seus quadros um determinado número de aprendizes), parece que se entrechoca o fim social dessa exigência (de contar a empresa com apren- dizes) com a inconveniência de impor ao empregador a manutenção de empregado que, em verdade, somente teria sido contratado para atender à dita compulsoriedade. Antes de a regência da aprendiza- gem ser alterada pela Lei n. 10.097/2000, essa situação não era regulada por norma estatal e Délio Maranhão propunha a solução que lhe parecia a mais justa: “Nessa hipótese, o contrato considera-se prorrogado, com o mesmo caráter de aprendizagem, até que termine aquela formação. Parece-nos que esta solução é a que melhor se harmoniza com a finalidade do instituto”. Atualmente, o artigo 433 da CLT está a enumerar as causas de cessação do contrato de aprendi- zagem, incluindo em seu caput os casos de extinção normal desse contrato, quais sejam, o advento do termo final (tempo previsto de aprendizagem) e também o fato de o aprendiz completar vinte e quatro anos de idade. Ante a expressa previsão legal em sentido oposto, não nos parece mais sustentável o ensinamento de Délio Maranhão, fundado apenas na equidade. Por outro lado, não se pode mais divergir, como outrora(367), a propósito de o contrato de aprendiza- gem ser um contrato formal, dado que o §1o do artigo 428 da CLT contém norma expressa: “A validade do contrato de aprendizagem pressupõe anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social, matrícula e frequência do aprendiz na escola, caso não haja concluído o ensino médio, e inscrição em programa de aprendizagem desenvolvido sob orientação de entidade qualificada em formação técnico-profissional (365) O mencionado dispositivo prescreve que os estabelecimentos de qualquer natureza são obrigados a empregar aprendizes em número equivalente a 5%, no mínimo, e 15%, no máximo, do total de seus empregados. O art. 11 da Lei n. 9.841/99 dispensa as micro empresas e empresas de pequeno porte da obrigação de cumprir essa obrigação. (366) MARANHÃO, op. cit. p. 257. (367) A doutrina divergia quanto ao contrato de aprendizagem ser ou não formal, uma vez que o art. 5o do Decreto n. 31.546/52 impunha a sua anotação na CTPS, mas era eloquente a observação de Délio Maranhão, ao se redimir este renomado laboralista de posição antes defen- dida e sustentar, litteris:A exigência da anotação do contrato na carteira para sua validade não está na lei. O contrato de aprendizagem é um contrato de trabalho e este, nos termos da lei, sendo consensual, prova-se por todos os meios em direito permitidos. Não podia, assim, um simples decreto fazer da anotação na carteira condição essencial para a validade do contrato” (Maranhão, op. cit., p. 256). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 139 metódica”. A frequência à escola de nível médio somente é dispensada nas localidades onde não haja escola disponível e desde que o aprendiz já tenha concluído o ensino fundamental (§7o do art. 428 da CLT). Assim, não há contrato válido de aprendizagem sem a sua prévia anotação na CTPS do empre- gado ou se não ocorre a real submissão deste, por promoção do empregador, ao ensino metódico de profissão ou ofício. Na hipótese de serem desatendidas essas exigências de caráter formal, o contrato poderá ser de emprego, mas não se classificará como contrato de aprendizagem, para o efeito, exem- pli gratia, de exonerar o empregador da cota de aprendizes a que está obrigado. 7.5.6.1 Distinção de aprendizagem e estágio curricular Não podemos confundir o contrato de aprendizagem com o contrato de estágio que é, a seu turno, regulado atualmente pela Lei n. 11.788 de 25 de setembro de 2008. Enquanto a aprendizagem se apresenta normalmente como uma etapa inicial da própria relação de emprego, o estágio é, por defi- nição legal, um ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam frequentando o ensino regular. Ali há emprego, ou emprego preferencialmente, enquanto cá, no estágio, o que existe é uma extensão da atividade pedagógica. Conforme preceitua o art. 15 da citada lei de regência, o desvirtuamento do contrato de estágio o converte em contrato de emprego e o órgão público ou estabelecimento empresarial que promoveu a simulação fica impedido de receber estagiários por dois anos. A orientação jurisprudencial n. 366 da SDI 1 do TST ressalva apenas a hipótese de a parte infratora ser a administração pública, quando então o reconhecimento de vínculo de emprego estaria vedado pela inocorrência de prévio concurso, sabidamente exigido pelo art. 37, II, da Constituição. O estagiário haverá sempre de estar frequentando o ensino regular em instituição de educa- ção superior, de educação profissional, de ensino médio, de educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos (art. 1º da Lei n. 11.788/2008), sendo que o estágio pode ser obrigatório ou não. Será obrigatório quando definido como tal no projeto do curso e sua carga horária for requisito para a obtenção do diploma. O estágio não obrigatório é aquele desenvolvido como atividade opcional, acrescido à carga horária regular e obrigatória (art. 2º). O contrato de estágio tem sempre uma composição tripartite, pois dele participam a instituição de ensino, a parte concedente (empresa ou órgão público que recebe o estudante) e o próprio estagiário. Inicia-se mediante a subscrição pelos três partícipes de termo de compromisso, no qual são indicadas as condições de adequação do estágio à proposta pedagógica do curso, à etapa e modalidade da formação escolar do estudante e ao horário e calendário escolar, como está a exigir, textualmente, o art. 7º, I, da Lei n. 11.788/2008. Entre outras incumbências atribuídas à instituição de ensino, reza esse dispositivo que lhe cabe a indicação de professor orientador, especializado na área a ser desenvolvida no estágio, o qual figurará como responsável pelo acompanhamento e avaliação das atividades do estagiário, cabendo-lhe ainda exigir do educando a apresentação periódica, em prazo não superior a seis meses, de relatório de atividades. A frequência com que a Justiça do Trabalho é provocada por trabalhadores que são formalmente contratados como estagiários, mas em verdade protagonizam uma maldisfarçada relação de emprego, pois nada do que fazem se associa ao programa de estudos a que se submetem na instituição de ensino, impôs ao legislador uma preocupação à parte, qual seja, a de exigir que a instituição de ensino indique um orientador, consoante já explicado, e que a parte concedente designe uma pessoa de seu quadro de pessoal, com formação ou experiência profissional na área de conhecimento desenvolvida no curso do estagiário, para orientar e supervisionar cada grupo de até dez estudantes (art. 9º, III, da Lei n. 11.788/2008). A parte concedente deverá enviar à instituição de ensino um relatório de ativida- des, pelo menos a cada seis meses, entregando ao estagiário, ao fim do contrato, um termo de reali- zação do estágio com indicação resumida das atividades desenvolvidas, dos períodos e da avaliação de desempenho (art. 9º, V e VII). Ademais, o mesmo legislador estabeleceu, preventivamente, um cota máxima de estagiários quando não se tratar de estudantes de nível superior ou de nível médio profissional, a ser observada 140 – Augusto César Leite de Carvalho na proporção dos empregados que prestam trabalho em cada estabelecimento da parte concedente (art. 17); e assim agiu, certamente, para evitar que se disseminem os falsos estágios oferecidos para o ensino fundamental ou médio, exatamente onde a correlação necessária entre o programa pedagó- gico e o trabalho porventura cobrado do estagiário é de mais difícil percepção. A essa cota máxima se associa uma cota mínima de 10% das vagas de estágio oferecidas, em favor dos deficientes físicos, combinando-se assim a prevenção contra a fraude à proteção trabalhista com a discriminação positiva das pessoas com necessidades especiais. A novidade mais auspiciosa é, porém e certamente, o elenco de direitos trabalhistas que o Capí- tulo IV da Lei n. 11.788/2008 enumera em favor dos estagiários e que agora se somam à possibilidade de remuneração a título de bolsa e à imposição de seguro contra acidentes pessoais. A lei assegura ao estagiário jornada máxima de quatro horas ou vinte horas semanais no caso de estudantes de educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional de educação de jovens e adultos; de seis horas diárias ou trinta horas semanais no caso de estudantes do ensino superior, da educação profissional de nível médio e do ensino médio regular; de quarenta horas sema- nais nos estágios relativos a cursos que alternem teoria e prática, nos períodos sem aulas presenciais, desde que isso esteja previsto no projeto pedagógico do curso e da instituição de ensino. Essa carga horária se reduz pelo menos à metade nos períodos de prova ou avaliação aplicada pela instituição de ensino. À semelhança das férias asseguradas aos empregados, restou garantido ao estagiário o direito a recesso de trinta dias, sempre que o estágio tenha duração igual ou superior a um ano, a ser gozado preferencialmente durante as férias escolares. Sendo remunerado o estágio, remunerar-se-á igualmente o recesso. E quando o estágio durar menos de um ano, o recesso será concedido de maneira proporcional. Enfim, é dizer que embora estejam a aprendizagem e o estágio a bendizer o art. 205 da Cons- tituição, que concebe a educação com vistas ao desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, possível é ressaltar notas distintivas. Como se pode perceber, a aprendizagem importa o ensino metódico de ofício ou ocupação propiciado por um contrato de emprego, com a colaboração de entes sociais autônomos; o estágio consiste, por sua vez, na preparação do estudante para o exercício de profissão, em etapa prévia à admissão no mercado de trabalho, com a colaboração de instituição de ensino público ou particular. Como visto, o único caso de aprendizagem que não configura emprego é aquele em que, dada a impossibilidade de o ser pelos Serviços Nacionais de Aprendizagem, a formação metódica é minis- trada por entidades sem fins lucrativos, que tenham por objetivo a assistência ao adolescente e à educação profissional, registradas no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, como se pode extrair dos artigos 430, II e 431, in fine, da CLT. 7.5.7 Os trabalhadores intelectuais Houve tempo em que ao trabalho não era atribuído valor social, notadamente ao trabalho mate- rial. Adianta Sanseverino(368) que “nas civilizações antigas até, digamos, o advento do Cristianismo, encontramos generalizado desprezo pelo trabalho; todas as sociedades primitivas aparecem de fato organizadas com base numa divisão de atribuições, que reservava o trabalho às classes mais baixas e, em particular, aos escravos”. Remata a mesma autora que “esta organização social, que se repete em Roma, teve direta influ- ência sobre a disciplina do trabalho no direito romano. Com efeito, a hipótese de um trabalho retribuído era quase sempre relacionada ao trabalho material, as operae illiberales, as quais deviam ser prestadas apenas por indivíduos considerados no mesmo plano dos escravos.” Mais adiante, veremos os trabalha- dores intelectuais (geômetras, advogados etc.) percebendo retribuição, pelos serviços que prestavam, a título de honorários (etimologia: honor ou “honra”), e, num movimento ascendente de tutela jurídica, a dignidade do trabalho material implicando a sua proteção e a contrapartida salarial. No núcleo desse átomo, para o qual convergiam essas tendências, florescia, emergente, o direito do trabalho. (368) SANSEVERINO, op. cit., p. 58. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 141 Proscrevendo, definitivamente, qualquer distinção entre um e outro trabalhador, surgiram normas que, a exemplo do artigo 7o, XXXII, da Constituição, prescrevem a “proibição de distinção entre traba- lho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos”. A dificuldade está, porém, em dizer da existência de contrato de emprego quando o trabalho é intelectual, ou seja, quando o traba- lhador é um profissionista, que é “aquele empregado”, sendo empregado, “cujo trabalho supõe uma especial cultura científica ou artística”, à expressão de Orlando Gomes e Elson Gottschalk(369). Nesse caso, a característica da relação de emprego de mais difícil verificação costuma ser a subordinação do trabalhador intelectual à pessoa ou empresa que o contrata. O trabalhador intelectual é empregado se põe a sua energia de trabalho à disposição de quem lhe toma os serviços. Isso pode revelar-se de várias maneiras: tempo reservado ao atendimento do suposto empregador (mormente se há um local destinado por este para o atendimento), obrigação de apresentar relatórios periódicos sobre a atividade profissional, exigência de exclusividade na prestação de serviço, restrição da locali- dade de atuação, indicação da clientela a ser atendida pelo profissional em virtude da relação laboral ou remuneração relacionada ao tempo de disponibilidade (em vez de relacionar-se com a produção). Todas essas circunstâncias são indiciárias, ou seja, não esgotam o significado de “subordinação” (fato jurídico decisivo), mas fazem pressupor a sua presença. Há autores que superestimam algum desses indícios, entendendo-o mais relevante na constata- ção de emprego que envolva o trabalhador intelectual. Gomes e Gottschalk, por exemplo, propõem que se examine, primeiramente, em que medida o profissionista (o médico, dentista, advogado, enge- nheiro, químico, arquiteto, agrônomo, veterinário etc.) está prestando serviço exclusivamente ao suposto empregador, a tempo parcial ou total. A seu tempo, Sanseverino(370) lembrava que o conceito de colaboração, encontrado na doutrina alienígena como a referir um dos elementos distintivos da relação de emprego privado, ajudaria a divisar a figura do empregado-trabalhador intelectual, pois enquanto os demais empregados “colaboram, em geral, na atividade da empresa”, os trabalhadores intelectuais “colaboram, em particular, na organização (e na gestão) da própria empresa”. Em rigor, há dois aspectos a que deve estar alerta o intérprete ou agente do direito do trabalho ao definir a natureza jurídica do vínculo que une um trabalhador intelectual ao tomador dos seus serviços. O primeiro aspecto é a inserção do trabalhador em estrutura empresarial preestabelecida pelo suposto empregador, a denotar sujeição ao poder de organização, sabidamente uma expressão do poder mais abrangente, o poder de comando. O segundo aspecto está relacionado, em verdade, à necessidade de não se prestigiar em demasia a dependência técnica, porquanto seja incontroverso que a subordi- nação definidora do emprego não se confunde com o fato de o empregador conhecer a técnica ou a tecnologia necessárias à produção de bens ou serviços. Em outras palavras: o advogado(371), o economista, o médico, o odontólogo, o assistente social, o professor, o engenheiro, o contabilista ou qualquer outro trabalhador intelectual pode realizar suas tarefas com autonomia técnica, sobretudo ética, sem que o desconhecimento, ou mesma a indiferença, do tomador do serviço acerca do modo de desenvolver a atividade seja suficiente para desfigurar a natureza empregatícia. O que realmente importa, para que se caracterize a subordinação jurídica e consequentemente o vínculo de emprego, é que o trabalhador intelectual não esteja a executar serviço específico, mediante paga correspondente, mas esteja, sim, a inserir-se em uma dinâmica empresarial preordenada pelo outro contratante (submissão ao poder de organização) e a disponibilizar sua força de trabalho sem que tenha havido prévia definição do exato conteúdo da prestação laboral (submissão ao poder diretivo stricto sensu). O ofício, pois, de distinguir as hipóteses em que se configura o trabalho intelectual subordinado daquelas outras em que milita o profissional liberal autônomo é quase sempre dificultoso e não pode prescindir da aplicação, sempre que possível, das noções apreendidas quando do estudo do princípio da razoabilidade. (369) Op. cit. p. 97. (370) SANSEVERINO, op. cit., p. 62. (371) Cabe lembrar interessante questionamento proposto por Tarso Fernando Genro, quanto ao advogado, particularmente o que dá assistência trabalhista, ter o dever ético de prevenir o cliente para a existência de contrato de trabalho, em face das condições concretas em que a prestação se opera. A resposta do laboralista gaúcho: “A essência das relações existentes no contrato de trabalho não é, pois, como já sustentamos, a vontade aprioristicamente examinada, mas o aperfeiçoamento da relação de trabalho em direção a um determinado tipo, o qual, nas suas manifestações materiais, nem sempre previne as partes, de forma mecânica, da existência da relação de emprego. Detonado o rompimento contratual da comunhão de interesses que unia o advogado a outra parte, nada mais moral que ele busque na Justiça a decla- ração judicial das verdadeiras relações existentes” (op. cit., p. 110). 142 – Augusto César Leite de Carvalho 7.5.8 Os empregados-sócios O tema talvez estivesse mais bem situado no capítulo em que estudamos o princípio da prima- zia da realidade, porque ganha foro de relevância exatamente em razão da profusão de casos em que contratos de sociedade são simulados com o firme propósito de assim se dissimular um contrato de emprego. São trabalhadores que aparecem nos estatutos sociais como sócios minoritários e, em verdade, não mantêm com os reais integrantes da sociedade a affectio societatis, que é, segundo Fábio Ulhoa Coelho(372): [...] a disposição, que toda pessoa manifesta ao ingressar em uma sociedade comercial, de lucrar ou suportar prejuízo em decorrência de um negócio comum. Esta disposição, este ânimo, é pressuposto de fato da existência da sociedade, posto que, sem ela, não haverá a conjugação de esforços indispensável à criação e desenvolvimento do ente coletivo. Há tipos societários mais permeáveis a iniciativas fraudulentas. O novo Código Civil não mais inclui a sociedade de capital e indústria entre as espécies de sociedade(373); porém, sob a regência do Código Comercial de 1850, ocorreu de se prestarem à fraude essas sociedades, em que o sócio de indústria contribuía para a formação da sociedade apenas com o seu trabalho (sendo-lhe vedado inte- grar o capital social com bens, crédito ou dinheiro) e não tinha responsabilidade, sequer subsidiária, pelas obrigações sociais. Um campo aberto, portanto, a que trabalhador fosse contratado por empre- sário menos escrupuloso a pretexto de constituírem, com o conteúdo de um liame empregatício, um contrato que tivesse a forma de uma sociedade de capital e indústria. Não é difícil percebermos, também, contratos de sociedade por cotas de responsabilidade limi- tada em que a distribuição das cotas sociais, visivelmente desproporcional, e a aparente impossibili- dade de se apurar o modo de integralização das cotas minoritárias mascaram, a mais não poder, a real existência de um contrato de trabalho subordinado. Até aqui cogitamos de fraude e, nem por isso, perfilhamos entre os que sustentam a impossibilidade jurídica de se ser, ao mesmo tempo, sócio e empregado. Nessa corrente oposta, parecem estar Gomes e Gottschalk(374), para quem, “em uma empresa, o indivíduo não pode ser simultaneamente sócio e empre- gado. Se é sócio, sua condição é de empregador. Ora, ninguém pode ser empregado de si próprio. Não há, portanto, possibilidade de confusão”. Os citados autores rematam: “Nas dobras de um contrato de sociedade oculta-se, não raro, uma relação de emprego. O indivíduo é nominalmente sócio, mas, real- mente, empregado. Participa do contrato social, mas trabalha como os outros empregados [...]” Essa orientação não pode prevalecer, porém, nos casos em que as condições de sócio e empre- gado coexistem, harmoniosamente. Por exemplo, o sócio (diz-se acionista) de uma sociedade anônima, titular de algumas poucas ações, pode ser um de seus empregados, nada obsta. 7.5.9 O trabalhador cooperativado A cooperativa é um sistema de ajuda mútua, em que as pessoas se unem para estabelecer formas de produzir bens ou serviços (cooperativas de produção), de consumir bens que atendam às suas necessidades (cooperativas de consumo) ou de obter linhas de financiamento ou crédito (cooperativas de crédito), eliminando a figura do intermediário (agente do capital). Conforme observa Waldírio Bulgarelli(375), a cooperativa age assim “tentando conseguir o justo preço e atua como forma organizada para a produção de bens e serviços, portanto, uma empresa”. Os dois principais elementos do cooperativismo são o propósito de ajuda mútua e a substituição do intermediário(376). A bem dizer, o artigo 1093 do Código Civil ressalva a sobrevigência da legislação especial (Lei n. 5.764/71), mas adianta características da sociedade cooperativa que vêm ao encontro (372) COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 122. (373) Vide Livro II, Título II, do novo Código Civil. (374) Op. cit., p. 92. (375) Apud Jorge Luiz Souto Maior, Revista LTr 60-08/1060. (376) Rodrigues Pinto define o cooperativismo como “a união de pobres para produzirem riqueza sem a interferência dos ricos”. O autor ressalta ainda que a Lei n. 5.764, de 1971, especificou o fim da atividade das cooperativas como sendo prestar serviços aos associados (PINTO, José Augusto Rodrigues. O Direito do Trabalho e as Questões de Nosso Tempo. São Paulo: LTr, 1998. p. 118). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 143 do sentimento de cooperação e solidariedade a que nos referimos. Reza o artigo 1094 do novo Código Civil que são inerentes à sociedade cooperativa: I – variabilidade, ou dispensa do capital social; II – concurso de sócio em número mínimo necessário a compor a administração da sociedade, sem limitação de número máximo; III – limitação do valor da soma de quotas do capital social que cada sócio poderá tomar; IV – intransferibilidade das quotas do capital a terceiros estranhos à entidade, ainda que por herança; V – quorum, para a assembleia geral funcionar e deliberar, fundado no número de sócios presen- tes à reunião, e não no capital social representado; VI – direito de cada sócio a um só voto nas deliberações, tenha ou não capital a sociedade, e qualquer que seja o valor de sua participação; VII – distribuição dos resultados, proporcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo sócio com a sociedade, podendo ser atribuído juro fixo ao capital realizado; VIII – indivisibilidade do fundo de reserva entre os sócios, ainda que em caso de dissolução da sociedade. A sociedade que desatender a essas características ou ao postulado da cooperação mútua, que é a elas subjacente, decerto estará a disfarçar outro tipo societário, não será uma cooperativa propria- mente. Se atende, porém, à expectativa de gerar um ambiente solidário e producente, poderá reclamar a tutela constitucional ao cooperativismo, a que se vislumbra no artigo 174, §2º da Constituição: “A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo”. Ademais, a cooperativa pode ter empregados. Não os deve ter, no entanto, entre os seus asso- ciados, unidos pelo objetivo único da solidariedade, estranho ao sentimento dos sujeitos do contrato de emprego. No modelo tradicional, os sócios da cooperativa de produção se unem para desenvolver alguma atividade econômica e nada obsta que a cooperativa, assim constituída, contrate empregados para as tarefas que se façam rotineiramente necessárias. Sucedeu, todavia, de o parágrafo único do artigo 442 da CLT acrescer ao texto consolidado(377) uma regra que logrou legitimar um quarto tipo de cooperativa (além das cooperativas de produção, de consumo e de crédito), ao dispor: Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviço daquela (grifo nosso). A primeira parte do dispositivo diz o óbvio: inexiste possibilidade de o cooperativado ser empre- gado da cooperativa. Mas, ao cogitar de cooperativas que prestem serviço a terceiros e, portanto, não estejam destinadas a satisfazer apenas as necessidades dos cooperativados, o legislador deu base legal às chamadas cooperativas de trabalho ou cooperativas de mão de obra(378). Na cooperativa de produção que existia até então entre nós, a atividade dos cooperativados era oferecida ao mercado sem intermediários, ou seja, sem a interposição de pessoa ou empresa que se beneficiasse do produto alcançado pela ação da cooperativa e o comercializasse. A existência de um tomador dos serviços da cooperativa implica uma relação triangular, uma terceirização a que, em prin- cípio, não deveria servir o cooperativismo(379). (377) O acréscimo do parágrafo único se deu por meio da Lei n. 8.949, de 1994. (378) Em implacável crítica ao art. 442, parágrafo único, da CLT, Rodrigues Pinto pondera: “[...] muito mais frutuoso seria (ou será) que, excepcionalmente, se autorize a cooperativa a celebrar diretamente com o apropriador o contrato de prestação de serviços entre pessoas jurídicas, de cuja execução ficará excluída a pessoalidade, assumindo o ônus de indicar o associado ou associados que, sem vínculo de subordinação, vão desenvolver a atividade, e repassando ou repartindo a prestação que receber”. Em seguida: “A flexibilização do Direito do Trabalho, tentada artificialmente pela Lei n. 8949/94, é necessária para colocá-lo à altura da realidade econômica e social de nosso tempo, mas deve ser alcançada por meios mais imaginativos e menos agressivos ao próprio Direito” (PINTO, José Augusto Rodrigues de. O direito do trabalho e as questões de nosso tempo. p. 133-134). (379) Jorge Luiz Souto Maior sustenta a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 442 da CLT, acima transcrito, lembrando que o artigo 1o, IV, da Constituição adota como princípio fundamental o valor social do trabalho e “[... ] as cooperativas, portanto, apesar de terem evidentes objetivos empresariais, pois visam à melhoria das condições de vida de seus associados, não podem ser constituídas com o único propósito de colocar mão de obra a serviço de outrem. O trabalho humano, no nosso atual ordenamento jurídico, é protegido pelas regras trabalhistas e não há métodos intermediários juridicamente possíveis para regular o trabalho não eventual, remunerado e subordinado de 144 – Augusto César Leite de Carvalho Porém, aparecem atualmente, e sob a proteção do malsinado parágrafo único do artigo 442 da CLT, cooperativas de vigilantes e de motoristas, por exemplo, que têm o claro e auspicioso propósito de substituir as sociedades empresárias que intermediavam esse tipo de trabalho junto a entes para- estatais (é consabido que em relação a estes não pode ser reconhecido o vínculo de emprego, ante a proibição contida no artigo 37, II, da Constituição) ou a empresas privadas. Alvíssaras sejam rendidas à possibilidade de o acréscimo de remuneração do trabalho ser convertido em um plus para o coope- rativado, e não em lucro para o titular solitário da empresa prestadora de serviço assim substituída. Por outro lado, admitir a eficácia do artigo 442, parágrafo único, da CLT, não implica entender possível a intermediação de mão de obra (merchandage) por meio de cooperativas de trabalho na atividade-fim do tomador dos serviços, pois do contrário haveria a contrariedade à orientação jurispru- dencial consagrada na Súmula 331 do TST. Mesmo em atividade-meio, é possível deduzir a existência de emprego com o tomador dos serviços se há, em relação a ele, a subordinação do prestador de trabalho, pretenso cooperativado. A muitos parece cerebrina a hipótese de a cooperativa de trabalho intermediar a mão de obra sem que isso importe a subordinação do trabalhador, ou seja, sem a sujeição deste ao poder diretivo exercido pelo tomador de serviço. Não obstante a crítica severa que a doutrina trabalhista tem diri- gido, por isso, à novidade trazida com o art. 442, parágrafo único, da CLT, é certo que o legislador tentou, por meio da Lei n. 12.690, de 19 de julho de 2012, disciplinar a atuação das cooperativas de trabalho, com os olhos voltados para a sua atuação sem a precarização, hoje tão comum, das relações laborais. A ideia era a de inclusive revogar o art. 442, parágrafo único, da CLT, mas um veto presidencial frustrou essa expectativa, com a justificativa de que “o dispositivo da CLT que se pretende revogar disciplina a matéria de forma ampla e suficiente, sendo desnecessária regra espe- cífica para as cooperativas de trabalho”(380). A mencionada lei trata a cooperativa de trabalho como gênero de que são espécies a cooperativa de produção, constituída por sócios que produzem em comum usando meios de produção perten- centes à própria cooperativa, e a cooperativa de serviço, quando os sócios cooperativados prestam serviço especializado a terceiro (art. 4º). A cooperativa de serviço é, portanto, a que se oferece à inter- mediação de trabalho, mas a lei esclarece que não podem estar presentes, nela, os pressupostos da relação de emprego (art. 4º, II), reiterando que a cooperativa não pode ser utilizada para intermediação de mão de obra subordinada (art. 5º). Buscando, nessa mesma toada, cessar a prática de fundar-se cooperativa de trabalho com o obje- tivo de tornar as condições de trabalho precárias e imunes à fiscalização das autoridades responsáveis pela eficácia do direito laboral, o art. 3º da Lei n. 12.690/2012 impõe às cooperativas de trabalho os seguintes princípios e valores: I – adesão voluntária e livre; II – gestão democrática; III – participação econômica dos membros; IV – autonomia e independência; V – educação, formação e informação; VI – intercooperação; VII – interesse pela comunidade; VIII – preservação dos direitos sociais, do valor social do trabalho e da livre iniciativa; uma pessoa por outra” (MAIOR, Jorge Luiz Souto. Cooperativas de trabalho. Revista LTr 60-08/1060. São Paulo, v. 60, n. 08, agosto de 1996). Contra esse entendimento há, todavia, o fato social que dera origem à norma. Em verdade, o preceito consolidado, que se imagina em contraste com o princípio constitucional, fora positivado por influência dos partidos políticos que ostentam grande afinidade com as causas sociais, pois grassava, então, a notícia de que entidades comprometidas com projetos alternativos de reforma agrária estariam inte- ressadas em afastar, das relações de trabalho estabelecidas nas cooperativas de trabalho que os seus agentes formavam, o espectro do direito laboral. Não nos parece razoável, portanto, que sustentemos a inconstitucionalidade de um dispositivo legal com base em um princípio que visa, num contrassenso, à proteção daqueles a quem interessa a norma inserta nesse dispositivo. (380) Conforme se vê em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Msg/VEP-331.htm Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 145 IX – não precarização do trabalho; X – respeito às decisões de asssembleia, observado o disposto nesta Lei; XI – participação na gestão em todos os níveis de decisão de acordo com o previsto em lei e no Estatuto Social. De todo modo, a cooperativa de trabalho, especialmente a do tipo cooperativa de serviços, serve à intermediação de trabalho e, por isso, a Lei n. 12.690/2012 estabelece as condições mínimas de trabalho dos sócios cooperativados, aquém das quais há precarização do labor, a ser inibida pela auditoria fiscal do trabalho (art. 17). Para tanto, o art. 7º prevê que a cooperativa pode exigir, em favor dos sócios, os seguintes direitos: retiradas em valor não inferior ao piso da categoria profissional (ou, não havendo tal piso, em valor não inferior ao salário mínimo), repouso semanal remunerado, repouso anual remunerado, retirada em valor superior para trabalho noturno, insalubre ou perigoso, além de seguro de acidente de trabalho. Como quer que seja e com respaldo no princípio da razoabilidade, o ônus de provar a inexistên- cia da subordinação jurídica ou da pessoalidade é do tomador do serviço, porque, nos casos em que se constata a prestação de trabalho, a relação de emprego se presume. Está claro, por outro lado, que o legislador quis acreditar na possibilidade de as cooperativas intermediarem serviços sem que o tomador desses serviços dirija a prestação laboral dos sócios cooperativados – que estariam atentos, assim, apenas à hierarquia própria das cooperativas. O tempo dirá se a experiência atenderá aos novos ditames da lógica jurídica. 7.5.10 O trabalhador rural A atividade rural surgiu antes da indústria ou do comércio, inclusive porque a agricultura e a pecuária proveem a esses outros setores da economia de matéria-prima com produtos aptos às transações mercan- tis. No campo, as condições de habitação e alimentação, lazer e transporte do trabalhador se diferenciam ou são supridas por outros meios, que ao homem citadino não satisfazem. E ocorre mesmo, nesse diapa- são, de o trabalho no campo ser regido por legislação específica. O artigo 7o da CLT excluiu o trabalhador rural da proteção do texto consolidado. Em 1963, surgiu, porém, o Estatuto do Trabalhador Rural (Lei n. 4.214/63), com minuciosa regulação do trabalho no campo. Finalmente, sobreveio a Lei n. 5.889, de 8.6.73, que revogou o ETR e previu, em seu artigo 1o, a aplicação subsidiária da CLT. O parágrafo único do citado artigo 1o da Lei n. 5889/73 mandou que se aplicassem outras tantas leis (que disciplinam o repouso remunerado, 13o salário etc.) em favor do rurícola, observadas as peculiaridades do trabalho rural. Em suma, a Lei n. 5.889/73 passou a ser a lei de regência do trabalho rural e, por obra de seu primeiro artigo, a exclusão prevista no artigo 7º da CLT restou inoculada de antídoto eficiente, ante a possibilidade de se adotar, supletivamente e no que com ela não colidir, a Consolidação das Leis do Trabalho. Assim ainda ocorre, mas já agora o artigo 7º da Constituição veio em acréscimo, ao enumerar direitos sociais que cabem, igualmente, a trabalhadores urbanos ou rurais. O poder constituinte havia inclusive mantido, no que tange aos rurícolas e em benefício indireto para estes, a prescrição bienal que corria somente a partir da extinção do contrato. A Emenda Constitucional n. 28, de 2000, alterou a redação do art. 7º, XXIX, da Constituição para ordenar que, dali por diante, fosse aplicável aos rurí- colas a prescrição de parcelas que suprime, no prazo de cada cinco anos, os direitos adquiridos pelos trabalhadores urbanos. Resta esclarecer quem seriam, enfim, os trabalhadores rurais. A lei em vigor não os identifica do mesmo modo como operava o art. 7º, b, da CLT, que os definia a partir da natureza da função exercida pelo próprio empregado (função diretamente ligada à agricultura ou à pecuária) e não permitia que assim se classificasse o trabalhador cujas atribuições guardassem pertinência com a atividade industrial ou comercial. Em vez disso, a Lei n. 5.889, de 1973, propôs para o empregado rural um conceito quase reflexo, que se mostra parcialmente derivado do conceito de empregador rural, ao dispor, em seu art. 2o: Empregado rural é toda pessoa física que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não eventual a empregador rural, sob a dependência deste e mediante salário. 146 – Augusto César Leite de Carvalho Como se pode facilmente perceber, o conceito de empregado rural repete, ipsis verbis, o de empregado, previsto no art. 3o da CLT, salvo quando se reporta ao local do trabalho (em propriedade rural ou prédio rústico) e exige o pressuposto do trabalho para empregador rural. Quando invoca o trabalho em propriedade rural ou prédio rústico (as duas expressões seriam sinônimas ou teriam significado semelhante), o legislador enaltece o fim destinado ao imóvel (rural = tocante ao campo ou à vida agrícola) e, neste mesmo passo, exclui da regência da Lei n. 5.889/73 os trabalhadores contratados por empregadores rurais para prestar serviço, exclusivamente, em imóveis urbanos, a exemplo de secretários e contínuos do escritório que servem à empresa rural nos gran- des centros. Não há, porém, consenso jurisprudencial(381) e a doutrina prefere, por vezes, enfatizar a destinação rural devotada ao estabelecimento, não enfrentando, ao que nos parece, a situação híbrida em que uma rotina de escrituração ou mercancia, tipicamente urbana, desenvolve-se em escritório de empresa rural, situado na cidade. E porque vinculado um conceito ao outro (o de empregado rural ao de empregador rural), precisou o legislador dizer: “Considera-se empregador rural, para os efeitos desta Lei, a pessoa física ou jurí- dica, proprietária ou não, que explore atividade agroeconômica, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou através de prepostos e com auxílio de empregados” (art. 3o da Lei n. 5.889/73). Com mais técnica que a utilizada na elaboração da Consolidação das Leis do Trabalho, o empre- gador rural é identificado, inicialmente, como “a pessoa física ou jurídica que explore atividade agro- econômica, em caráter permanente ou temporário”. Voltaremos a esta oração, que é fundamental na compreensão do conceito sobrevisto. Antes, porém, cabe notar que o legislador observou a desnecessidade de o empregador ser o proprietário do imóvel rural, enaltecendo o fato de ser titular da empresa e, portanto, empregador, aquele que organiza os fatores de produção (matéria-prima, capital e trabalho), seja ele o dono, o parceiro ou o arrendatário, verbi gratia, dos meios de produção. Num parêntese, cabe observar que essa desnecessidade de o empregador ser o proprietário dos meios de produção, bastando que ele os organize, é regra em qualquer empresa (rural ou urbana). O dispositivo legal faz referência, ainda, à possibilidade de o empregador explorar atividade agro- econômica diretamente ou por meio de prepostos. A propósito, esclarece Márcio Túlio Viana(382): [...] pouco importa, também, se o empregador se faz substituir pelo tão conhecido gato, turmeiro ou zangão, que recruta os lavradores e, muitas vezes, bate enxada, lado a lado com eles. Na verdade, ele próprio é um empregado, exceto quando eventual; e como não há empregado de empregado, a relação de emprego se forma, diretamente, entre cada um dos membros da turma e o produtor. A lei prevê que o empregador rural deverá ter o auxílio de empregados. Óbvio: como qualquer outro empregador, somente o é quem emprega, tornando-se sujeito de relação empregatícia. Voltemos, pois, à essência do conceito de empregador, ou melhor, à alusão que há, neste, ao exercício de atividade agroeconômica, em caráter permanente ou temporário. Na obra já extratada, Márcio Túlio Viana observa, com pertinência, que “agroeconômica é a atividade agrícola ou pastoril, voltada para a economia de mercado”. Logo, não será regido pela Lei n. 5.889/73 o trabalho em pedreiras, em que a atividade extrativa é apenas acessória da atividade mercantil e, sobremais, não tem pertinência com a agricultura ou a pecuária. O intuito do lucro é aventado, por boa parte dos doutrinadores, como igualmente necessário à caracterização da atividade agroeconômica (não o sendo a atividade campestre desenvolvida por entidades beneficentes, sem a exploração comercial, por exemplo). O §1o do artigo 3o da Lei n. 5889/73 incluiu como atividade agroeconômica a exploração industrial em estabelecimento agrário não compreendido na Consolidação das Leis do Trabalho. A que indústria estaria fazendo alusão a lei? A doutrina adotou, em expressiva maioria, o critério proposto no artigo 2o, (381) No sentido de que não há emprego urbano: TST, SBDI I, Proc. ERR 162355/95, Rel. Min. Carlos Alberto Reis de Paula, decisão em 23/03/98, DJ 30/04/98, p. 253. Há um acórdão, em ação rescisória, que retrata todo o dissenso jurisprudencial a respeito da matéria: TST, SBDI II, Proc. AR 670575/00, Rel. Min. Ives Gandra da Silva Martins Filho, decisão em 19/03/02, DJ 19/04/02). (382) VIANA, Márcio Túlio. O trabalhador rural. In: Curso de Direito do Trabalho: estudos em Memória de Célio Goyatá / Coordenação de Alice Monteiro de Barros. Vol. 1. São Paulo: LTr, 1993. p. 289. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 147 §4o, do decreto que regulamenta a Lei n. 5.889/73 (Decreto n. 73.626/74), considerando exploração industrial em estabelecimento agrário, para os fins previstos na Lei n. do Trabalhador Rural, “as ativi- dades que compreendem o primeiro tratamento dos produtos agrários in natura sem transformá-los em sua natureza”. A prevalecer tal entendimento, seria agroeconômica a atividade empresarial que consiste na colheita da cana-de-açúcar e do algodão, salvo se desenvolvida por usina de álcool e açúcar ou indústria têxtil, que promovem a transformação da matéria-prima em produto que não preserva o seu estado natural. A jurisprudência também se posicionou assim, inicialmente, tanto que a Súmula 196 do STF e o antigo Enunciado 57 do TST orientavam os tribunais no sentido de imputar aos trabalhadores agrícolas das usinas de açúcar a condição de industriários. O entendimento permitia a tais trabalhadores as vanta- gens asseguradas em convenções coletivas regentes do trabalho na indústria, inclusive reajustes sala- riais. Contudo, era combatida por esses mesmos trabalhadores enquanto os expunha à prescrição de parcelas – a prescrição só corria a partir da extinção do contrato, quando o trabalhador era um rurícola. A Resolução TST n. 03/93(383) mudou essa perspectiva, ao cancelar definitivamente o Enunciado 57 do TST. Venceu enfim a orientação no sentido de se prestigiar, novamente, a natureza da função exercida pelo empregado, recusando-se a classificação como empregados rurais àqueles a quem são atribuídas tarefas que não têm a ver com a atividade agrícola ou pecuária. A bem ver, o tema continua vexatório, pois para uma parte dos intérpretes e agentes do direito do trabalho o conceito reflexo, previsto no art. 2º da Lei n. 5.889/73, implica a exigência de que se consi- dere empregado rural o trabalhador que preste qualquer serviço a empregador rural, sendo trabalhador urbano todos que laborem, na cidade ou no campo, para empregador urbano. Para outro segmento jurisprudencial, essa interpretação literal da Lei n. 5.889/73 se aplica com uma ressalva: seriam empregados rurais os trabalhadores que prestam serviço tipicamente agrícola ou pastoril para a agroindústria, exerça ou não ela “atividade agroeconômica” (vale dizer, transforme ou não a matéria-prima), pois desse modo se atenderia ao projeto constitucional, anterior à Emenda Constitucional n. 28/2000 (que unificou os prazos de prescrição), de contemplar o trabalhador do campo com uma regra mais favorável de prescrição trabalhista. É essa a orientação que se percebe em alguns precedentes mais antigos do TST(384). A verdade é que todo esse aceso debate perde fôlego desde o advento da Emenda Constitucional n. 28/2000, que ao unificar os prazos de prescrição trabalhista, fixando-os igualmente para emprega- dos rurais e urbanos, desestimulou os camponeses quanto à busca da caracterização como empre- gados rurais. Se a pretensão de direitos prescreve agora no mesmo prazo, pouco se perde em ser classificado como trabalhador urbano. A nosso pensamento, o critério legal (o rurícola deveria ser empregado de empregador rural qualquer que fosse a natureza de seu serviço) e a resistência jurisprudencial (a natureza do serviço deveser considerada) podem conciliar-se facilmente nos casos em que está presente o empregador rural, pois a controvérsia sobre a natureza do serviço se resolveria na obediência ao outro critério, igualmente legal (art. 2º da Lei n. 5.584/70), de que o rurícola preste serviço “em propriedade rural ou prédio rústico”. É difícil imaginar o trabalhador que, unindo as duas características (trabalho para empregador rural e em imóvel rural), não realize labor tipicamente agrícola ou pastoril. O debate se manteria apenas em relação aos trabalhadores que laboram no campo para prover a matéria-prima de indústria que não desenvolve, segundo o critério estabelecido pelo Decreto n. 73.626/74 e há pouco referido, atividade agroeconômica. É o caso, por exemplo, do lavrador que corta a cana para a indústria açucareira. Nessa hipótese específica – e somente nela – justifica-se, a nosso pensamento, a evolução jurisprudencial que, desgarrando-se do conceito reflexo previsto no art. 2º da Lei n. 5.889/73, preconiza a caracterização como empregado rural desse trabalhador. Não se há olvidar, contudo, que se trata de interpretação de lege ferenda. A seu turno, engenheiros agrônomos e veterinários são regidos por lei especial (Lei n. 4.950A/66), ao menos no que tange ao salário. Ainda assim, nada impede que se cogite de enquadrar tais trabalhadores (383) DJ 06.05.93. (384) Ac. 2787 de 9.6.97, ERR 160247/95, SDI, Min. Francisco Fausto, DJ 27.6.97, p. 30594; Ac. 2605 de 20.9.88, RR 5562/87, 3a Turma, Min. Heráclito Pena Júnior, DJ 21.10.88, p. 27386; Ac. 5117 de 29.11.95, ERR 83471/93, SDI, Min. Afonso Celso, DJ 2.2.96, p. 01029; Ac. 916 de 18.4.95, ERR 48351/92, SDI, Min. Armando de Brito, DJ 15.9.95, p. 29.7.91 etc. 148 – Augusto César Leite de Carvalho como rurícolas, mormente em virtude de a jurisprudência(385) não vir reconhecendo, muita vez, o fato de eles integrarem categoria profissional diferenciada. Tal orientação jurisprudencial mantém agrônomos e veterinários sob a égide da Lei n. 5.889/73, sempre que o seu preceito não colide com a norma especial. Há, ainda não estudados, aspectos interessantes da Lei n. 5.889: em seu artigo 4o, está equipa- rada ao empregador rural “a pessoa física ou jurídica que, habitualmente, em caráter profissional, e por conta de terceiros, execute serviços de natureza agrária mediante utilização do trabalho de outrem”. Como se pode notar, o titular da empresa rural poderá ser empregador mesmo que exerça a atividade agroeconômica temporariamente (art. 3o da Lei n. 5889). O empregador rural por equiparação, aquele que utiliza a força de trabalho por conta de terceiro, somente o é, todavia, se o fizer habitualmente. Exemplo elucidativo é o de Márcio Túlio Viana: uma empresa de terraplanagem, que, vez por outra, destoca pastos. Outros assuntos relativos aos trabalhadores rurais serão estudados em tópicos futuros de nosso curso. É imperioso que enfatizemos, desde logo, o que preceitua o art. 17 da Lei n. 5.889/73 sobre “as normas previstas nesta lei serem aplicáveis, no que couber, aos trabalhadores rurais não compre- endidos na definição de empregado rural, que prestem serviços a empregador rural”. O artigo 14 do Regulamento da Lei n. do Trabalho Rural (Lei n. 5.889/73) indica que as normas compatíveis são, entre outras, aquelas referentes à jornada de trabalho, trabalho noturno e trabalho do menor. Resta a pergunta: que trabalhadores serão estes, protegidos pela Lei n. do Trabalho Rural, embora não sejam empregados? Certamente são destinatários dessa tutela os trabalhadores rurais subsumíveis na condição de eventuais ou avulsos, porquanto exibam os mesmos, pouco orgulhosos, a característica de subordina- dos. Há autores que incluem também os parceiros(386) e até arrendatários(387). (385) Quanto a engenheiros agrônomos, v. TST, SDI I, ERR 2940/87, Rel. Min. José Ajuricaba da Costa e Silva, j. 20/3/90, DJ 10/08/90, p. 7173. (386) BARRETTO PRADO e Márcio Túlio Viana, entre outros. (387) BARRETTO PRADO, cf. Viana. CAPÍTULO VIII EMPREGADOR 8.1 Empresa O segundo artigo da CLT enuncia que empregador é a empresa, individual ou coletiva. Como esclareceu Arnaldo Sussekind(388), o desejo da comissão de procuradores da Justiça do Trabalho(389), que elaborou o texto consolidado, foi certamente o de associar o empregado, na caracterização do liame empregatício, mais à empresa que à pessoa física ou jurídica de seu titular. No mundo capitalista, a tentativa de hipostasiar esse conceito inusitado de empregador não pode ser desprezada, pois é fato que o trabalhador desconhece, muita vez, o outro sujeito da relação de trabalho, sendo contratado e comandado por pessoa que se insere na organização empresarial como ele, no status de trabalhador subordinado, embora em cargo mais elevado. As inovações tecnológicas surgidas ao final do século XVIII e o fim do corporativismo permitiram, a burgueses daquele tempo, o uso de suas riquezas na aquisição de maquinário útil à transforma- ção de bens da natureza. Já não estavam jungidos ao monopólio da atividade produtiva, podendo exercer a atividade econômica que lhes aprouvesse. A empresa industrial nascia, assim, como uma atividade fabril que consistia na reunião de matéria-prima, capital e trabalho, visando à produção de bens culturais, vale dizer, de bens criados pelo homem para prover necessidades, que em boa parte o homem também criou. O modo de produção capitalista é, por assim dizer, essencialmente cultural, dele podendo prescindir o ser humano em sua relação com a natureza. Mas é de empresa que estamos a cuidar, objetivamente. E se não basta ao detentor do capital reunir os fatores de produção (matéria-prima, capital e trabalho), porque para exercer atividade econô- mica é preciso organizá-los, empresa é a organização dos fatores de produção, com vistas ao exercí- cio de atividade econômica. Embora o vocábulo empresa seja comum a outros ramos do Direito, o seu conceito relevante, para nosso estudo, é aquele que associa o seu significado a um empreendimento que visa à produção de bens ou serviços e utiliza o trabalho humano subordinado com essa finalidade. A empresa que não tem o contrato de emprego como um de seus elementos desinteressa ao direito do trabalho. É certo, ainda, que a participação na economia do seu setor secundário, no qual se situa a indústria, é menos acentuada que antes, sobrevindo empresas comerciais e prestadoras de serviço que, intermediando a venda do produto industrial à sociedade ou atuando de modo a prover esta de informação ou maior conforto, têm gerado circulação mais intensa de capital. Ademais, a empresa contemporânea nem sempre se situa em um espaço topográfico bem definido, não raro se valendo de recursos oferecidos pela informática para sediar-se em lugar onde a sua atividade econômica é reduzida e também para ocupar lares e outros ambientes em que sua presença é ativa e marcante, não obstante virtual. (388) Quando das comemorações do cinquentenário da CLT, o Ministro Arnaldo Lopes Sussekind, único dos procuradores do trabalho integrantes da comissão incumbida de elaborar o texto consolidado que estava vivo naquela ocasião, proferiu conferência, no TST, ao início da qual asseverou: “Nós tivemos a coragem de dizer que o elemento básico do contrato de trabalho era a empresa. A redação do art. 2o não ficou boa. Houve tanta controvérsia entre os institucionalistas e os contratualistas da Comissão, que saiu algo que não definiu perfeitamente a matéria. Mas a ideia fundamental foi dizer que o empregador não é o dono da empresa. Realmente, o contrato de trabalho se faz com a empresa. O elemento básico é a empresa, o que significa despersonalização do empregador, isto é, que ele pode vender a empresa ou um de seus estabelecimentos que os empregados continuam com os mesmos direitos frente aos mesmos. Isto, na ocasião, foi uma novidade criticada e, Orlando Gomes, esse grande e saudoso jurista baiano, ao comemorar o vigésimo quinto aniversário da CLT, disse o seguinte: ‘Há um quarto de século, compreenderam os autores da CLT que uma noção econômica, ainda imprecisa na sua projeção, estava destinada, segundo as impressões de Lavasseur, a se instalar no coração mesmo do Direito do Trabalho, para dominá-lo e orientar a sua organização’. A nova técnica assimilada pela Consolidação, nos idos de 1943, implicava, inevitavelmente, abandono de conceito de princípios civilistas, corajosamente levado a efeito”. (389) Também compuseram a comissão, além de Sussekind, Luís Augusto do Rego Monteiro, José de Segadas Viana e Dorval de Lacerda, A comissão foi constituída em fevereiro de 1942 e encerrou sua tarefa em novembro de 1942. Em 5 de janeiro de 1943, o Decreto-lei n. 5.452, que aprovou a CLT, foi publicado. 150 – Augusto César Leite de Carvalho Essa nova realidade provoca discussão de fôlego sobre a centralidade do trabalho na empresa de nosso tempo(390), mas decerto que o sistema normativo regulador das relações de trabalho ainda se alimenta, em boa parte, das velhas categorias jurídicas, forjadas para o modelo de emprego indus- trial, este modelo que é, agora, obsoleto em centros econômicos que comandam a economia global e está seriamente ameaçado nas sociedades periféricas da economia capitalista, dada a constante possibilidade de a proteção trabalhista, estatal ou convencional, ocasionar a transferência de plantas industriais para o território de países onde a mão de obra é menos onerosa. E custa menos porque é regulada precariamente. De toda sorte, a empresa ou organização produtiva, em que se insere o empregado, permitindo que sua força de trabalho a ela se incorpore como um de seus elementos(391), não pode ser confundida com o titular dessa empresa, ou seja, distingue-se a empresa da pessoa que detinha o capital e a insti- tuiu, visando à produção de bens ou serviços. O Código Civil possui um livro que regula, com exclusividade, os direitos de empresa (artigos 966 a 1195). Em seu primeiro capítulo, define empresário como aquele que “exerce profissionalmente ativi- dade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou serviços”. Adiante, ressalva: “Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda que com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”. O Código Civil está a distinguir empresário e empresa, ao diferenciar o empresário da atividade econômica que ele exerce. Voltando ao âmbito do direito do trabalho, podemos afirmar que empre- gador é o empresário que se utiliza de empregados. Mas também é a pessoa que, mesmo sem ter constituído empresa (e, por isso, deixando de se caracterizar como empresário), contrata o trabalho pessoal, subordinado, não eventual e oneroso de outras pessoas, os seus empregados. Para efeitos obrigacionais, o empregador é sempre um ente apto a contrair direitos e obrigações na ordem civil, usualmente se apresentando, assim, como pessoa física ou jurídica investida de capacidade de gozo ou de direito. 8.2 O conceito legal de empregador O art. 2º da Consolidação das Leis do Trabalho define empregador como “a empresa individual ou coletiva que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a presta- ção pessoal de serviço”. O parágrafo primeiro desse mesmo dispositivo acrescenta: “Equipara-se a empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admiti- rem trabalhadores como empregados”. Os teóricos do direito do trabalho desferem crítica implacável, porém, a essas definições de empregador e de empregador por equiparação. (390) Ricardo Antunes (ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999, p. 121) critica Habermas (HABERMAS, Jurgen. Técnica e Ciência como Ideologia. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1975. p. 320), quando este sustenta ter-se transformado a ciência na principal força produtiva, em substituição ao valor-trabalho. O professor de sociologia do trabalho da UNICAMP remete-nos, com tal propósito, ao seguinte trecho da obra de Habermas: “Desde os fins do século XIX, uma outra tendência de desenvolvimento que caracteriza o capitalismo em fase tardia vem se impondo cada vez mais: a cientificização da técnica [...]. Com a pesquisa industrial em grande escala, ciência, técnica e valorização foram inseridas no mesmo sistema. Ao mesmo tempo, a industrialização liga-se a uma pesquisa encomendada pelo Estado que favorece, em primeira linha, o progresso científico e técnico no setor militar. Assim, a técnica e a ciência tornam-se a principal força produtiva, com o que caem por terra as condições de aplicação da teoria do valor do trabalho de Marx. Não é mais sensato querer calcular as verbas de capital para investimentos em pesquisa e desenvolvi- mento, à base do valor da força de trabalho não qualificado (simples), se o progresso tecno-científico tornou-se uma fonte independente de mais-valia, face à qual a única fonte de mais-valia considerada por Marx, a força de trabalho dos produtores imediatos, perde cada vez mais seu peso”. Mais à frente, Antunes (op. cit., p. 122-123) objeta que “não se trata de dizer que a teoria do valor-trabalho não reconhece o papel crescente da ciência, mas que a ciência encontra-se tolhida em seu desenvolvimento pela base material das relações entre capital e trabalho, a qual ela não pode superar [...]. Ontologicamente prisioneira do solo material estruturado pelo capital, a ciência não poderia tornar-se a sua principal força produtiva. Ela interage com o trabalho, na necessidade preponderante de participar do processo de valorização do capital. Não se sobrepõe ao valor, mas é parte intrínseca de seu mecanismo. Essa interpenetração entre atividades humanas e ciência associa e arti- cula a potência constituinte do trabalho vivo à potência constitutiva do conhecimento tecno-científico na produção de valores (materiais e imateriais). O saber científico e o saber laborativo mesclam-se mais diretamente no mundo produtivo contemporâneo sem que o primeiro faça cair por terra o segundo”. (391) Vide MORAES FILHO, Evaristo de. Do contrato de trabalho como elemento da empresa. São Paulo: LTr, 1993. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 151 Na verdade, o legislador pretendeu realçar a estreiteza do vínculo entre o empregado e a organi- zação produtiva (mais forte que o vínculo com o titular da empresa), quando propôs a sinonímia entre empregador e empresa. Cedeu à tentação de cunhar uma metáfora, bem se pode perceber. Além disso, repetiu a exigência de subordinação em grau absoluto, onerosidade e pessoalidade, imposta na definição de empregado (artigo 3o da CLT), ao assentar que o empregador assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. Com razão, o professor José Augusto Rodrigues Pinto observa que, sendo empregador e empregado figuras simetricamente opostas de uma relação jurídica(392), poderiam os autores da Consolidação das Leis do Trabalho ter optado por um conceito reflexo, em que o empregador seria definido, simplesmente, como “a pessoa física ou jurídica que utiliza, em caráter permanente, a energia pessoal de empregados, mediante retribuição e subordinação, visando a um fim determinado, econômico ou não”. Em suma, empregador é a pessoa que contrata empregado. Não precisava ter definido emprega- dor e empregado, se o que importava e importa são as condições de trabalho deste último, na carac- terização do liame empregatício. Ocorreu, enfim, de o legislador ter acrescido ao conceito de empregador um elemento que esca- pava à sua essência, qual seja, a assunção dos riscos da atividade econômica. Ao analisarmos o empregado, em capítulo precedente, ressaltamos que é esse um elemento meramente acidental, tanto porque o empregador pode não exercer atividade econômica alguma, a exemplo do que sucede ao empregador doméstico, como em razão de ao empregado ser transferida, muita vez, uma parcela do risco empresarial, assim acontecendo com os vendedores que recebem apenas comissão pelas vendas que realizam. Uma vez que o legislador ousou reduzir o empregador àquele que constitui empresa e, assim, exerce atividade econômica(393) com seus inerentes riscos, o mesmo legislador teve que somar a esse seu primeiro equívoco um outro, forjando então a figura do empregador por equiparação e a definindo, como acima se viu. Se houvesse investido no conceito reflexo, proposto pelos teóricos do direito trabalhista, certamente teria permitido que o conceito afinado com o mundo dos fatos fosse o mesmo conceito legal, sendo empregador o ente que contrata empregados, apenas isso. Pode-se afirmar, contudo, que o modo como o legislador enfatizou o termo empresa, no momento em que identificou um dos sujeitos da relação de emprego, deve ser associado ao fenômeno da desper- sonalização do empregador, ou seja, ao aspecto, que é comum a grandes conglomerados econômicos ou a sociedades anônimas, de o empregado desconhecer o outro contratante em pessoa, uma vez que não tem acesso ao ser humano ou à gente que organizou os fatores de produção e inseriu contratos de trabalho nessa organização. Como o empregador apresentava-se impessoalmente, propôs o legis- lador, com respaldo na teoria institucionalista(394) então em voga, que o outro sujeito da obrigação fosse a empresa, parecendo atribuir a esta personalidade jurídica(395). Ainda que essa intuição do legislador não tenha obtido a repercussão almejada entre os teóricos do direito do trabalho, decerto que ela ainda tem relativa influência na prática trabalhista e pode ser (392) PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. São Paulo : LTr, 2000. p. 122. (393) Em verdade, assiste razão a Délio Maranhão (SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANA, Segadas. Instituições de Direito do Trabalho. Atualização de Arnaldo Sussekind e João de Lima Teixeira Filho. São Paulo : LTr, 1992. p. 278), quando, ao criticar a figura do empregador por equiparação, diz: “O legislador pensou que a atividade econômica supusesse, necessariamente, a idéia de lucro. Mas não é assim. A atividade econômica traduz-se na produção de bens e serviços para satisfazer às necessidades humanas. Em um regime capita- lista, as noções de atividade econômica e de lucro vêm, geralmente, associadas, porque este é o incentivo para o exercício daquela. Isto não importa, no entanto, que se confunda uma coisa com outra. Desde que haja uma atividade econômica (produção de bens ou serviços), na qual se utiliza a força do trabalho alheia como fator de produção, existe a figura do empregador”. (394) Sobre a corrente institucionalista, ver Amauri Mascaro Nascimento (NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 353). (395) Cesarino Júnior defende que “a empresa, em si mesma, é sempre uma pessoa jurídica, para os efeitos do Direito do Trabalho, distinta da pessoa física ou jurídica, a quem o direito comum atribui a sua propriedade” (CESARINO JÚNIOR, Antônio Ferreira; CARDONE, Marly Antonieta. Direito Social. Vol. I. São Paulo: LTr, 1993. p. 129). Mais adiante, o autor observa que o conceito jurídico-social de empresa faz dela, até certo ponto, uma pessoa jurídica, distinta da pessoa física ou jurídica de sua proprietária, explicando: “Dizemos até certo ponto porque apenas doutrinariamente este conceito é aceitável já que, considerado o direito positivo, apenas em dois aspectos aquela natureza sobressai: quando há mudanças na estrutura jurídica da empresa (...); igualmente, o consórcio de empresas é considerado um único empre- gador [...]” (op. cit., p 131). Ao remate, o autor pondera: “Há, todavia, um certo consenso quanto a que a empresa é pessoa jurídica in fieri. A tendência é transformá-la em pessoa jurídica” (op. cit., p . 132). 152 – Augusto César Leite de Carvalho associada, por exemplo, à prática de os juízes do trabalho tolerarem, muitas vezes, a indicação do nome de fantasia, usado para identificar uma empresa, como se por ele se indicasse o nome do recla- mado (réu da ação trabalhista). A bem ver, o reclamado deveria ser sempre indigitado pelo seu nome, se pessoa física, ou pelo nome comercial da sociedade empresária, com assento no registro do comércio. Mas, como o empre- gado trabalha, às vezes por anos consecutivos, sem conhecer o nome correto de seu empregador, pois não ocorreu a este de assim se identificar, impedir a tal empregado usar o nome de fantasia – o único nome que ele associa à empresa em que trabalhou –, na hora de referir o reclamado, em sua ação trabalhista, importaria recusar-lhe o direito de acesso à Justiça, que é garantia constitucional. O processo do trabalho também deve se adequar ao contorno social. 8.3 Empresa e estabelecimento Sendo a empresa uma organização que visa à produção de bens ou serviços, fácil é notar a sua imaterialidade, a impossibilidade de a empresa, apresentando-se como atividade econômica, ser redu- zida a matéria. A sua representação material se associa, pois, ao estabelecimento, porque é nele que os fatores de produção, imbricados pelo empresário, apresentam-se para o mundo fenomenológico, onde coisas e pessoas têm nome, forma e utilidade(396). Há autores de nomeada que preferem associar estabelecimento à ideia de um elemento do conjunto empresa, para eles se revelando nesta, e não naquele, o grau maior de autonomia contá- bil e financeira, a superioridade hierárquica e a assunção dos riscos da atividade econômica(397). Em verdade, esses critérios distintivos nos remetem mais à pessoa do empresário (ou empregador, se possui empregados) e nos fazem lembrar que se ele constituiu vários estabelecimentos, tencio- nando organizar em cada um deles os mesmos fatores de produção, para em todos realizar igual fim econômico, a sua responsabilidade não se divide na mesma proporção em que se partiu a sua ação econômica, respondendo o empresário e todo o seu patrimônio por obrigações tributárias, civis ou essencialmente trabalhistas que contrair em qualquer de seus estabelecimentos. Preferimos, por isso, o apego à ideia, sobremodo singela, de o estabelecimento ser a represen- tação material da empresa(398), pura e simplesmente. Se a empresa se materializa em vários estabe- lecimentos, é provável que em um deles se aloje o seu titular e este o eleja, assim, como a sede da empresa, não importando se ali se desenvolve atividade produtiva ou apenas de comando. Noutras vezes, um só estabelecimento é constituído, confundindo-se ele com a sede da organização empresa- rial. Essas realidades distintas não exercem influência no conceito de empresa e de estabelecimento, como se pode notar. Uma questão derradeira, que por vezes é suscitada a propósito de ser o estabelecimento a repre- sentação material da empresa, tem a ver com a possibilidade de contratos de emprego serem utilizados na constituição das chamadas empresas virtuais, que implicam o desenvolvimento de atividade produ- tiva por meio do trabalho de empregados em suas residências (referimo-nos ao chamado teletrabalho) e sem o uso de um espaço topográfico previamente definido; ou ainda com o fato de o emprego existir em empresas voltadas à prestação de serviços, nos casos em que os seus titulares têm domicílio ou escritório central, mas realizam a sua atividade produtiva mediante o fornecimento de empregados que laboram em estabelecimentos de outras empresas. A bem dizer, tais exemplos ilustram apenas como o conceito de estabelecimento não deve ser engessado nem pode ter a mesma importância para qualquer empresa, na sociedade contemporâ- nea. Se é certo que os tradicionais estabelecimentos fabris sempre tiveram uma referência territorial, também o é que há, hoje, empresas que não se estabelecem no mesmo local em que o seu titular utiliza força de trabalho alheia para exercer atividade econômica. (396) Neste mesmo sentido, o artigo 1142 do novo Código Civil: “Considera-se estabelecimento todo complexo de bens, organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária”. (397) Neste sentido, Orlando Gomes e Elson Gottschalk (GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Atua- lização por José Augusto Rodrigues Pinto. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 59). (398) Cf. PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. São Paulo : LTr, 2000. p. 143. O autor diz secundar, neste ponto, a distinção sintética de Élson Gottschalk: “A empresa é o objeto das atividades do empresário; o estabelecimento é a manifes- tação material da empresa”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 153 Como essa discussão, travada a partir da existência (ou inexistência) de estabelecimentos em algumas empresas contemporâneas, vai repercutir em estudo que se avizinha, sobre a sucessão de empregadores, cabe ao intérprete do direito duas alternativas. Ou se apega ele à origem etimoló- gica(399) da palavra estabelecimento, ou dela abstrai para fundar um novo conceito. É que o estabelecimento das citadas empresas virtuais e prestadoras de serviço não tem a referência territorial exigida pelos autores que proclamaram, por exemplo, a impossibilidade de um estabelecimento ser transferido, dando-se nessa hipótese a extinção de um estabelecimento e a abertura de um novo. Se não há trabalho subordinado no local que se apresenta, sob o ponto de vista estritamente formal, como o estabelecimento da empresa, compete ao intérprete do direito deduzir a inexistência de estabelecimento ou, como preferimos, o alargamento do conceito para que ao seu objeto se integre toda atividade produtiva vinculada a uma certa unidade técnica do empregador, ainda que se exerça essa atividade, total ou parcialmente, em local onde outras empresas também têm estabelecimento. Tais noções serão revisitadas no subitem que segue, em que trataremos de sucessão de empregadores. 8.4 Sucessão de empregadores Ao estudarmos o princípio da continuidade, pudemos notar que o instituto da sucessão tem trata- mento diferenciado, no direito do trabalho. E assim acontece porque prepondera, entre nós, a clara intenção de preservar o contrato de emprego enquanto sobreviver a empresa no mercado, dada a rela- ção entre conjunto e elemento que há entre a empresa e o citado contrato. Mas essa peculiaridade tem assento apenas do lado do empregador – que pode suceder outro empregador, sem que isso importe a celebração de um novo contrato –, já que é inviável ao empregado se fazer substituir ou suceder por outro, sem a anuência do empregador(400). 8.4.1 A sucessão em outras searas do direito Em outros ramos do direito privado, dá-se uma restrição maior à possibilidade de as pessoas se sucederem como sujeitos de uma relação jurídica qualquer. Não se concebe, por exemplo, que o loca- tário de um imóvel residencial se faça suceder por outra pessoa sem a prévia anuência do senhorio. Por seu turno, na relação jurídica de propriedade, agora no âmbito do direito real, a lei estabelece o modo formal como os bens imóveis podem ter o seu domínio transferido entre pessoas vivas, sendo minudente quando cuida da sucessão por legado ou herança. Constata-se, ainda, que a sucessão trabalhista ainda se distingue em outro ponto: como nota Délio Maranhão(401), “a sucessão (o autor se reporta à regra geral do direito civil) pode ser a título particular ou a título universal, e somente neste último caso responde o sucessor pelos encargos do sucedido. Ora, enquanto a primeira pode ocorrer por ato ‘inter vivos’, a segunda é, sempre, ‘mortis causa’. Como explicar, então, os efeitos da sucessão no direito do trabalho? O novo empregador responde pelos contratos de trabalho concluídos pelo antigo, a quem sucede, porque lhe adquiriu o estabelecimento, cujo conceito, como verificamos, é unitário. É uma consequência da transferência do estabelecimento como organização produtiva”. Nem sempre e em todos os países a norma é a mesma, sendo as regras da sucessão, no direito privado, assunto de política legislativa. Vamos, pois, à hipótese que nos interessa, que é a cessão ou transferência de estabelecimento. Quando um empresário aliena um seu estabelecimento – ou toda a empresa com o seu conjunto de estabelecimentos – a outro empresário, essa sucessão pode trazer alguma inquietude no tocante a algumas obrigações contraídas pelo alienante, sendo interessante notar o que ocorre a quatro espécies de obrigação, quais sejam: a relação normalmente paritária que o unia a seus fornecedores, a relação com os seus clientes ou consumidores, a obrigação tributária e, por fim, a relação de trabalho com os seus empregados. (399) O verbo estabelecer provém do latim stabiliscere,de stabilire, significando “tornar estável ou firme”, conforme Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, da Enciclopédia Mirador Internacional. (400) Vide o caráter da pessoalidade, exigida pelo artigo 3o da CLT, no tocante à prestação de trabalho. (401) Op. cit. p. 287. O autor observa, também, que a transmissão da dívida do estabelecimento não ocorre porque a obrigação seria do tipo propter rem, que se transferem juntamente com os bens a que estão unidas: “A obrigação propter rem, por isso que ligada a uma coisa, se extingue com o desaparecimento desta. Ora, a extinção do estabelecimento não faz desaparecer os direitos do empregado”. 154 – Augusto César Leite de Carvalho 8.4.1.1 Os efeitos da transferência do estabelecimento no direito civil Quanto à relação do empresário alienante com os seus credores civis ou fornecedores, o artigo 1145 do novo Código Civil nega eficácia à alienação de estabelecimento que se realize sem o paga- mento ou o consentimento de todos os credores sempre que faltarem ao alienante bem suficientes para solver o seu passivo. O citado preceito exige que, nesse caso, os credores sejam notificados para responderem, em trinta dias, se concordam com a alienação do estabelecimento. O dispositivo seguinte, o artigo 1146 do Código Civil, prescreve: “O adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabili- zados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de 1 (um) ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento”. Bem entendido, a “publicação” aí referida é a do artigo 1144 do mesmo digesto, que valida, perante tercei- ros, o contrato que tenha como objeto a alienação, o usufruto ou arrendamento de estabelecimento, somente depois de sua averbação à margem da inscrição do empresário ou da sociedade empresária no Registro Público de Empresas Mercantis e de sua publicação na imprensa oficial. Assim, se o comerciante não está em condição de insolvência, pode ele alienar ou arrendar o seu estabelecimento sem a prévia anuência de seus credores, que podem cobrar do sucessor as dívidas regularmente contabilizadas – pois este, o adquirente, tinha delas conhecimento ao assenhorear-se do estabelecimento –, sendo-lhes facultado cobrar esses débitos também do empresário sucedido, como devedor solidário e pelo prazo de um ano, contado da publicação do ato de transferência do estabele- cimento na imprensa oficial ou, se vincenda a dívida, a partir de sua exigibilidade. Todavia, se há insolvência do comerciante que alienou o estabelecimento, a alienação não surte efeitos jurídicos em relação aos seus credores e podem estes requerer a falência de tal empresário, salvo se concordaram, expressa ou tacitamente, com a referida alienação(402). 8.4.1.2 Os efeitos da transferência do estabelecimento na relação de consumo Na relação jurídica de consumo, a alienação do estabelecimento implicará a cessão de créditos ao empresário ou sociedade empresária adquirente a partir da data em que publicado, na imprensa oficial, o ato de transferência do estabelecimento, mas o consumidor (devedor) se exonera quando paga, de boa-fé, ao empresário sucedido (artigo 1149 do novo Código Civil). De todo modo, essa sucessão de credores não poderá permitir que a prestação do consumidor se torne mais gravosa, sem o seu prévio conhecimento e anuência (artigo 46 da Lei n. 8.078/90). Isso não obstante, é bom notar que, tanto na relação entre o comerciante e seus credores, como na relação de consumo, o direito civil tem-se inclinado ao reconhecimento da responsabilidade do adquirente do estabelecimento, com ressalvas que atendem a peculiaridades da relação paritária ou ao princípio da boa-fé, que é informante, sem dúvida, da nova ordem civil. Ainda assim, a responsabi- lidade incondicional da pessoa que adquire ou arrenda o estabelecimento pressupõe algum ato formal – a regularidade da escrita contábil ou a publicação do contrato na imprensa oficial –, o que não ocorre, como veremos, no direito do trabalho. 8.4.1.3 Os efeitos da transferência de estabelecimento na relação tributária Transitando um pouco pelo direito público, podemos notar que uma solução mitigada foi posta no art. 133 do Código Tributário Nacional, que prevê a responsabilidade tributária integral de quem adquire um estabelecimento na hipótese de o alienante cessar a exploração do comércio, indústria ou atividade, sendo subsidiariamente responsável o adquirente quando o alienante mantiver-se no exer- cício da mesma atividade econômica ou a outra atividade se dedicar, dentro de seis meses contados da alienação de seu estabelecimento. (402) COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 49. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 155 8.4.2 A sucessão trabalhista no Brasil No direito do trabalho, o legislador poderia ter optado pela responsabilidade solidária dos dois empresários, ou seja, daquele que aliena e do que adquire o estabelecimento(403). O artigo 44 do Estatuto dos Trabalhadores da Espanha, por exemplo, prevê a sub-rogação do empresário sucessor nas dívidas trabalhistas contraídas pelo sucedido, mas fixa um prazo de três anos de solidariedade entre tais empre- sários, ou sociedades empresárias, se o ato de transferência da empresa se der inter vivos(404). No Brasil, extrai-se dos artigos 10 e 448 da CLT que a responsabilidade recai exclusivamente sobre o novo empregador, vale dizer, sobre aquele que adquire o estabelecimento ou toda a empresa(405). O ato formal de alteração da relação societária ou de translação da empresa para outra sociedade empre- sária revela a sucessão que assim acontece. Quanto ao mais, a sucessão trabalhista tem sobretudo a realidade, e não os atos constitutivos da sociedade empregadora, como prova. Assim, o ato formal de transferência do estabelecimento pode servir à prova de que houve a sucessão entre empregadores, mas não é imprescindível para que se caracterize a sucessão empresarial. O princípio a atuar é, claramente, o da primazia da realidade. A sucessão trabalhista se opera quando há o fato da alienação ou arrendamento de estabelecimento, ainda que documentos não a revelem. Vejamos, a seguir, com se revela, na ordem dos fatos, a sucessão trabalhista. Um empresário sucede o outro, assumindo as obrigações trabalhistas por este contraídas, pelo simples fato de lhe adquirir ou arrendar um negócio, seja um estabelecimento ou toda a organização produtiva. Neste ponto, é interessante frisar que o empregador não é, necessariamente, o proprietário dos meios de produção ou mesmo do imóvel onde ele exerce a sua atividade econômica. O emprega- dor pode não ser dono de coisa alguma, pois mantém a posse dos meios de produção utilizados em sua empresa a título de locatário, arrendatário, mutuário ou comodatário, por exemplo. Quando reúne meios materiais (imóvel e maquinário, por exemplo) e os insere em uma organi- zação formada também por pessoas (empregados etc.) e finalidade econômica (produção de bens ou serviços), o empresário pode não ter, portanto, o domínio dos bens que reuniu (suponha-se que os tenha arrendado), mas, ainda assim, será o titular da empresa e, virtualmente, empregador (se recorre à energia de trabalho de empregados). É bastante que tenha organizado referidos meios materiais, pessoais e imateriais visando ao desenvolvimento de alguma atividade produtiva. Recorramos a um exemplo elucidativo: imagine-se o titular de uma empresa qualquer que vem a ser, também e embora não fosse isso necessário, o proprietário do imóvel onde está situado o seu único estabelecimento. Suponha-se, pois, uma farmácia, em tais condições. Se a pessoa que era, até então, o dono da farmácia mantém consigo a propriedade do imóvel, mas o aluga a outro empresá- rio, a este arrendando também o estabelecimento – ou seja, a organização produtiva e os meios de (403) Gilberto Gomes anota que, no México, dá-se a responsabilidade solidária do empregador sucedido nos seis meses seguintes à aliena- ção, na Bolívia há responsabilidade subsidiária por igual tempo e, na Colômbia, os empregados podem acordar com o empregador suce- dido a indenização pelo tempo de serviço, sem embargo de ter continuidade a relação de emprego com o empregador sucessor. (GOMES, Gilberto. Solidariedade e continuidade empresarial no Brasil. In: Noções Atuais de Direito do Trabalho: estudos em homenagem ao professor Elson Gottschalk. Coordenador José Augusto Rodrigues Pinto. São Paulo: LTr, 1995. p. 156). (404) Art. 44.1 – El cambio de titularidad de una empresa, de un centro de trabajo o de una unidad productiva autónoma no extinguirá por sí mismo la relación laboral, quedando el nuevo empresario subrogado en los derechos y obligaciones laborales y de Seguridad Social del anterior, incluyendo los compromisos de pensiones, en los términos previstos en su normativa específica, y, en general, cuantas obliga- ciones en materia de protección social complementaria hubiere adquirido el cedente. Art. 44.2 – A los efectos de lo previsto en el presente artículo, se considerará que existe sucesión de empresa cuando la transmisión afecte a una entidad económica que mantenga su identidad, entendida como un conjunto de medios organizados a fin de llevar a cabo una actividad económica, esencial o accesoria. Art. 44.3 – Sin perjuicio de lo establecido en la legislación de Seguridad Social, el cedente y el cesionario, en las transmisiones que tengan lugar por actos intervivos, responderán solidariamente durante tres años de las obligaciones laborales nacidas con anterioridad a la transmisión y que no hubieran sido satisfechas. El cedente y el cesionario también responderán solidariamente de las obligaciones nacidas con posterioridad a la transmisión, cuando la cesión fuese declarada delito. Art. 44.4 – Salvo pacto en contrario, establecido una vez consumada la sucesión mediante acuerdo de empresa entre el cesionario y los representantes de los trabajadores, las relaciones laborales de los trabajadores afec- tados por la sucesión seguirán rigiéndose por el convenio colectivo que en el momento de la transmisión fuere de aplicación en la empresa, centro de trabajo o unidad productiva autónoma transferida. (405) Valentin Carrion defende, porém e em sentido diferente: “O legislador, ao redigir os arts. 10 e 448, não pretendeu eximir de responsa- bilidade o empregador anterior, liberando-o de suas obrigações, de forma imoral. A lei simplesmente concedeu ao empregado a garantia de voltar-se contra quem possuir a empresa para facilitar-lhe e garantir-lhe o recebimento de seus créditos; não há obstáculo na lei que impeça ao empregado propor ação contra quem foi seu empregador. Entretanto, essa conclusão não tem apoio jurisprudencial” (CARRION, Valen- tin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 279). 156 – Augusto César Leite de Carvalho produção a ela afetos –, há sucessão de empregadores, responsabilizando-se o arrendatário pelas obrigações trabalhistas contraídas pelo antigo titular da empresa e proprietário, antes como agora, dos bens materiais utilizados no comércio de medicamentos(406). Logo, não há sucessão de empresas, como se diz às vezes, equivocadamente. Ao revés, os empregadores é que se sucedem quando a empresa (ou um seu estabelecimento) é objeto, entre eles, de translação. Se a empresa não for mais a mesma, porque o empresário que adquiriu o imóvel, onde funcionava um estabelecimento qualquer, passou a exercer ali outra atividade econômica, não cabe falar de sucessão trabalhista. A regra atinente à sucessão de empregadores tem como fundamento o princípio da continuidade da empresa, por isso esclarecendo Délio Maranhão(407) que são dois os requisitos indispensáveis à sucessão de empregadores: “a) que um estabelecimento, como unidade econômico-jurídica, passe de um para outro titular; b) que a prestação de serviço (preferiríamos dizer atividade econômica) pelos empregadores não sofra solução de continuidade”. 8.4.3 A sucessão trabalhista em situações normais e anormais Há cinco situações que merecem, porém, uma mais detida reflexão, quando o tema é sucessão trabalhista: a mudança na estrutura jurídica da sociedade, a sucessão das prestadoras de serviço, a sucessão da sociedade de fato, a sucessão simulada e, por último, a aquisição de estabelecimento com vistas à eliminação da concorrência. Antes de examinarmos cada uma dessas hipóteses, parece-nos conveniente advertir o leitor de que a morte do empregador, quando é este pessoa física, somente acarreta sucessão quando o esta- belecimento empresarial é mantido sob a gestão dos herdeiros e o empregado não opta pela resolu- ção contratual (artigo 483, §2o, da CLT). Voltaremos a tratar desse assunto no capítulo pertinente à cessação do contrato. Por ora, retomemos a análise das cinco hipóteses diferenciadas de sucessão trabalhista. 8.4.3.1 A mudança na estrutura jurídica da sociedade empresária Sobre a mudança na estrutura jurídica da sociedade, reza o artigo 10 da Consolidação das Leis do Trabalho que “qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos adqui- ridos por seus empregados”. Mais à frente, o artigo 448 do mesmo texto consolidado estatui que “a mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados”. Quanto à mudança na propriedade da empresa, vimos que o legislador está a referir-se à mudança na titularidade da empresa, sendo sucessor aquele que a adquire, por certo. Se há, em vez disso, alteração na estrutura jurídica da sociedade (e não da empresa, como confundiu o legislador), os contratos de emprego permanecem imunizados ao fato, por exemplo, de uma sociedade limitada passar à condição de sociedade anônima, ou de sociedades anônimas se fundirem, ou mesmo de uma destas incorporar qualquer outra sociedade. A sociedade que se mantiver na titularidade da empresa, ou porventura a assumir, será a empregadora, sem que a alteração em sua estrutura jurídica implique a realização de novos contratos de emprego. Não custa recordar que estamos regidos pelo princípio da continuidade, devendo ser preservados os contratos de trabalho enquanto a empresa for a mesma(408). 8.4.3.2 A sucessão no âmbito de empresas prestadoras de serviço A segunda situação, a merecer enfoque especial em se tratando de sucessão trabalhista, é aquela atinente à sucessão de sociedades empresariais cuja atividade é a prestação de serviços, notada- mente aquelas que se apresentam como empresas de trabalho temporário ou simples fornecedoras de (406) Cf. Délio Maranhão, op. cit. p. 290. (407) Op. cit. p. 289. (408) Assim, mesmo que tenha havido a sucessão de empregadores após a cessação do contrato de trabalho, o sucessor responde pela dívida trabalhista do empregado que prestou serviço apenas ao sucedido, como observa Wagner Giglio (GIGLIO, Wagner. Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 470). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 157 mão de obra(409). São comuns os contratos de prestação de serviço firmados por essas sociedades e órgãos da administração pública direta ou indireta, deixando perplexos os agentes do direito do traba- lho quando, não raro, têm que discernir se importa sucessão trabalhista a ruptura, pela Administração, de um contrato, seguida da contratação de outro empresário ou sociedade empresária, para realizar o mesmo serviço, no mesmo local. A nosso pensamento, a sucessão não se opera somente por isso. O estado de perplexidade, em que mergulha o intérprete do direito, é consequente da confusão que se faz a propósito do conceito de estabelecimento, pois é em sede de estabelecimento que se dá a sucessão trabalhista. Conforme antecipamos, os empregados da sociedade, cujo contrato administrativo for rompido, continuam vinculados ao estabelecimento dessa sociedade, salvo se dissolverem o seu contrato com ela e forem admitidos pela sociedade que, dali por diante, prestar o serviço à Administração. 8.4.3.3 A sucessão entre sociedades irregularmente constituídas A terceira situação extraordinária é aquela que concerne à sucessão que se dá entre sociedades não constituídas regularmente. Com razão, Gilberto Gomes(410) lembra que a solução, para a hipó- tese sob comento, precisa transitar pelas regras que se inspiram no princípio da desconsideração da pessoa jurídica, vale dizer, no “exercício pleno de faculdades jurídicas do empregado contra abuso, qualquer abuso, inclusive o do exercício de uma atividade à margem da Lei”. Diz Gomes, ainda e agora secundando Hugo Gueiros Bernardes, que “se o sucessor já está no comando, mas a sucessão não foi legalizada, terá havido espontânea vinculação do adquirente à relação de emprego, sem a virtude de excluir ainda o alienante, [...] porque um e outro se fazem temporariamente solidários”. É a situação de fato que estará, na medida em que é conotativa de ilegalidade e abuso por parte do credor da presta- ção de trabalho, a impor essa solidariedade, em caráter excepcional. 8.4.3.4 A invalidade da sucessão simulada A quarta situação se relaciona com contratos defeituosos entre empresários, um deles simulando a aquisição da empresa com o objetivo de exonerar o seu antigo titular de prestações salariais ou tributárias. Nada impede que os empregados façam uso do artigo 167 do novo Código Civil(411) para postular a nulidade do contrato entre os empresários(412). Contudo, é evidente que, aqui como no tópico seguinte, basta o exame da teleologia da norma para que se verifique a ineficácia da sucessão simulada no tocante à relação de emprego. O fim social visado, quando da inserção dos artigos 10 e 448 no texto da CLT, não foi, por certo, autorizar a transferência de dívidas salariais mediante ardil ou simulacro. Além disso, interessa notar quem está à frente do estabelecimento e, com base no princípio da primazia da realidade, imputar-lhe a responsabilidade trabalhista. Questionar-se-ia: se a transferência do estabelecimento não ocorreu, mas houve a cessão a outra pessoa, sem lastro econômico nem correção no cumprimento de prestações trabalhistas, de partes dos bens que o integravam? A resposta é de Délio Maranhão(413): “Não é possível, portanto, falar-se em sucessão quando tenha havido a alienação de, apenas, parte de um negócio, que não possa ser consi- derada uma unidade econômico-produtiva, ou de máquinas e coisas vendidas como bens singulares. Nessa hipótese, não havendo transferência de estabelecimento, não há sucessão, no sentido de ficarem os empregados obrigados a aceitar o novo empregador”. É eloquente a advertência do mesmo autor: Além dessas considerações jurídicas, impõe ressaltar que o respeito à dignidade da pessoa humana do trabalhador, que informa o próprio direito do trabalho, insurge-se contra a ideia de ser ele cedido, como engrenagem de máquina, juntamente com a cessão de coisas singu- lares. Não se admite que, sob novo color, se reedite a figura medieval do servo da gleba. (409) Estas últimas agem ao abrigo da parte da Súmula 331 que consagra a licitude da intermediação de mão de obra na atividade-meio. (410) Op. cit. p. 160. (411) Interessaria, até o fim do ano 2002, o artigo 105 do Código Civil de 1916. (412) À leitura dos artigos 325, 469, III e 470 do CPC, nota-se que o empregado pode pedir que o juiz do trabalho declare incidentemente essa simulação, operando-se a coisa julgada somente para os efeitos inerentes ao contrato de emprego, cujos sujeitos são partes do processo trabalhista. (413) Op. cit., p. 290. 158 – Augusto César Leite de Carvalho As alterações simuladas de contrato social padecem, portanto, de ineficácia jurídica, sobremodo no âmbito trabalhista. A sociedade empresária que tenciona preservar o patrimônio de seus sócios deve ter o seu capital social integralizado, sob pena de se presumir a sua dissolução irregular e, com efeito, adotar-se a desconsideração da pessoa jurídica. Cogitando-se ou não de sucessão trabalhista, parece-nos compatível com a relação jurídica de emprego a regra inserta no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor(414), verbis: O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. As mesmas razões, que justificam a aplicação dessa regra na relação de consumo, impõem-na em benefício do empregado, pois é este, em síntese, também a parte hipossuficiente de uma relação constituída por contrato de adesão. 8.4.3.5 Os efeitos da sucessão predatória A quinta situação é alusiva, conforme antevisto, à aquisição de estabelecimento fabril ou comer- cial com o objetivo de excluí-lo do mercado, sendo comum acontecer, em nossa aldeia global, de gran- des corporações econômicas, eventualmente transnacionais, adquirirem uma fábrica ou loja de âmbito mais modesto, para tomar-lhe, com maior facilidade, a clientela. Ocorre, no exemplo dado, de a adquirente paralisar a atividade produtiva, impedindo, por essa via, que se dê, como é normal, a sucessão trabalhista na ambiência do estabelecimento alienado. É certo, todavia, que a sociedade adquirente não estaria objetivando a propriedade do imóvel, onde tinha sede o estabelecimento, quando o adquirira, mas estaria voltando seus ambiciosos olhos para a atividade econômica que ali se desenvolvia, ainda que fosse seu o intuito de cessá-la, para aumentar assim a quantidade dos que estariam aptos, virtualmente, a consumir o seu produto. A interpretação finalística do texto consolidado faz intuir a sucessão trabalhista nesses casos e, afinal, ela se opera mesmo(415). 8.4.3.6 A sucessão em hipóteses de falência e de recuperação judicial O art. 141, II da Lei n. 11.101/2005, a atual Lei n. de Falências, prevê que na hipótese de se adqui- rir alguma unidade da massa falida, “o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho.” Em síntese, o empresário ou a sociedade empresária que adquire uma das empresas que compõem a massa falida não se obriga em relação às dívidas trabalhistas da empresa adquirida, obri- gando-se apenas a pagar o valor pelo qual arrematou essa empresa, no juízo universal da falência. Quanto à sociedade empresária que se encontre em recuperação judicial, o art. 60, parágrafo único, da mesma Lei n. 11.101/2005 preceitua: “O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, observado o disposto no § 1o do art. 141 desta Lei”. Apesar de o art. 60, parágrafo único, não se referir, como na regulação da falência acima mencio- nada, aos débitos oriundos da relação de trabalho, o Supremo Tribunal Federal decidiu que o empresá- rio adquirente de uma empresa em recuperação judicial não se obriga em relação ao passivo trabalhista dessa empresa, se a adquire perante o juízo cível em que se processa a recuperação judicial(416). (414) Lei n. 8078, de 1990. (415) Neste sentido, Ferrara Jr., apud Délio Maranhão, op. cit., p. 285. (416) Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 60, PARÁGRAFO ÚNICO, 83, I E IV, c, E 141, II, DA LEI 11.101/2005. FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO JUDICIAL. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AOS ARTIGOS 1º, III E IV, 6º, 7º, I, E 170, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL de 1988. ADI JULGADA IMPROCEDENTE. I – Inexiste reserva constitucional de lei complementar para a execução dos créditos trabalhistas decorrente de falência ou recuperação judicial. II – Não há, também, inconstitucionalidade quanto à ausência de sucessão de créditos trabalhistas. III – Igualmente não existe ofensa à Constitui- ção no tocante ao limite de conversão de créditos trabalhistas em quirografários. IV – Diploma legal que objetiva prestigiar a função social da empresa e assegurar, tanto quanto possível, a preservação dos postos de trabalho. V – Ação direta julgada improcedente Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 159 O modelo hermenêutico assim desenvolvido parte de uma premissa instigante, a de que se deve sacrificar o crédito trabalhista dos antigos empregados da massa falida ou da empresa em recupera- ção judicial em proveito da obtenção de uma quantia maior, que seria então ofertado pela empresa (falida ou em recuperação judicial), quantia essa que, por via transversa, reverteria em favor desses mesmos credores trabalhistas impedidos de demandar em juízo contra a sociedade adquirente. 8.5 A solidariedade entre entes empresariais que integram grupo econômico É preciso lembrar que há solidariedade, como esclarece o artigo 264 do Código Civil, quando “na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda”. À citada pluralidade de credores denomina-se solidariedade ativa, enquanto a pluralidade de devedores dá ensejo à solidariedade passiva. Se é necessário que se esgote a expro- priação de uma primeira pessoa, para que se possa investir sobre o patrimônio de outra, dizemos que dessa outra pessoa acionada há responsabilidade subsidiária(417). O artigo 2o, § 2o, da CLT prevê a solidariedade entre empresas que compõem um grupo econô- mico e, à sua leitura, logo se percebe que o legislador continua insistindo no erro de chamar empresa o sujeito da relação de emprego. O uso indevido do vocábulo faz notar, entretanto, que somente há solidariedade dos entes que exercem atividade econômica, vale dizer, entre pessoas físicas ou jurídi- cas que são titulares de empresa e apenas enquanto assim se apresentarem(418). Cabe indagar, neste ponto, o que se deve entender por grupo econômico e o tipo de solidariedade – se apenas passiva ou também ativa – regulada por tal preceito de lei. 8.5.1 Conceito de grupo econômico Desde quando Adam Smith sustentou que a divisão do trabalho permitiria, por exemplo, que, numa fábrica de alfinetes, dez pessoas conseguissem produzir mais de 48 mil alfinetes por dia, enquanto um operário que se incumbisse de todas as etapas de fabricação dessa pequena haste de metal dificil- mente concluiria a produção de um único alfinete em todo um dia(419), decerto que os empresários têm dispensado maior atenção às técnicas de produção e de organização do trabalho que assegurem mais acentuada eficiência ou produtividade. Quando a divisão interna de trabalho não bastou a esse desiderato, os empresários desencadea- ram processos de integração econômica verticais ou horizontais(420), constituindo empresas que, com aparente autonomia, dedicavam-se, respectivamente, a cada etapa da cadeia produtiva ou a cada modo diferente de oferecer ao consumo a mercadoria produzida. Essas formas de organização da produção e do trabalho mal escondiam, por vezes, a intenção de não comprometer o patrimônio da velha empresa com o ônus financeiro decorrente das novas e desa- fiadoras iniciativas empresariais, isso bastando para justificar a preocupação, que teve o legislador, de tornar todas as unidades do grupo econômico solidariamente responsáveis pelas dívidas trabalhistas contraídas por qualquer delas. O trabalho humano não é um insumo reles na produção de bens ou serviços, pois é dos insumos aquele único que deve ter preservada a sua dignidade. A sua utilização e (STF, Tribunal Pleno, ADI 3934, Relator  Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 27/05/2009, DJe-208 Divulg 05-11-2009 Public 06-11- 2009). (417) De responsabilidade subsidiária trataremos adiante, quando estudarmos a subcontratação de empregados. (418) DELGADO, Mauricio Godinho. Sujeitos do contrato de trabalho: o empregador. In: Curso de direito do trabalho: estudos em homena- gem a Célio Goyatá. Coordenação de Alice Monteiro de Barros. Volume I. São Paulo: LTr, 1993. p. 383. É bisonha, por isso, a tentativa, que já vimos ocorrer, de um empregado sustentar a solidariedade de seu empregador doméstico com as sociedades empresariais por ele geridas, valendo-se do citado dispositivo legal. (419) Em tal divisão de trabalho, “um operário desenrola o arame, um outro o endireita, um terceiro o corta, um quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação da cabeça do alfinete [...]. Assim, a importante atividade de fabricar um alfinete está dividida em aproximadamente dezoito operações distintas [...]”. (420) Cf. Délio Maranhão, em Instituições de Direito do Trabalho, vol. 1, p. 282, a integração vertical “tem lugar quando um determinado produto percorre, no mesmo estabelecimento, diversas etapas em uma progressão, que o transforma de matéria-prima em mercadoria acabada” – ex: a transformação do algodão em tecido e deste em confecção; a integração econômica horizontal ocorre “quando um produto, já concluído, é utilizado pelo mesmo empresário, para satisfazer necessidades diferentes” – ex: a utilização do álcool como combustível, bebida, insumo para produtos de higiene etc. 160 – Augusto César Leite de Carvalho o seu custo, em qualquer empreendimento, integram o risco do negócio e oneram, somente, a pessoa ou sociedade empresarial que reparte a sua atividade econômica, sem poder acarretar sobressaltos para o empregado. É fato, ainda, que os agentes econômicos não seguem uma linha de conduta predefinida, sendo, frequentemente, influenciados pela própria intuição mercadológica. Por isso, nem sempre os grupos econômicos se formaram a partir dos processos de integração vertical ou horizontal acima referidos. Quando se mostrou lucrativo ou de algum modo interessante, o empresário diversificou a sua ação produtiva, desvinculando suas ações, uma da outra. Muita vez, o agricultor, o industrial e o comerciante já não se distinguem, sendo todos uma mesma pessoa. De outra feita, essa prática de concentrar ou monopolizar ações econômicas vem dando lugar, nos dias que correm e num contraponto, à necessidade que alguns empresários sentem de se especializar em atividades que exercem de modo mais competitivo, pondo a descarte aquelas que servem de meio à atividade principal, notadamente quando nelas não auferem o lucro que as tornaria cativantes. Disso trata- remos, porém, no item seguinte, quando cuidarmos da subcontratação e da interposição de mão de obra. Interessa, antes, perceber que a maneira espontânea de os atores econômicos se manifestarem dificulta a caracterização, na prática, do grupo econômico, tendo o Supremo Tribunal Federal decidido que sua existência não se presume, devendo ser provada por quem a alega(421). O artigo 2o, §2o, da CLT é enfático ao definir o grupo econômico como aquele que se apresenta “sempre que uma ou mais empresas(422), tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra ativi- dade econômica [...]”. Assim, a lei está a exigir que haja uma empresa-mãe, ou empresa-matriz, a que estejam subordinadas todas as outras, sob pena de desconfigurar-se o grupo econômico. O direito é dinâmico, todavia, e essa norma estaria atualizada, para boa parte dos laboralistas, pela regra inserta no artigo 3o, parágrafo 2o, da Lei n. 5.889/73 (Lei n. do Trabalho Rural), que repete o texto da CLT, mas acrescenta que mesmo quando inexiste uma empresa-mãe e as empresas guar- dam, cada uma, a sua autonomia, há grupo econômico ou financeiro rural. Então, renasce o problema: não se exigindo o pressuposto da estrutura hierarquizada, como identificar o grupo econômico? O grupo de empresas sempre se caracterizará pelo comando unificado, sendo restrita a discussão à polêmica sobre o comando único dever ser exercido por uma empresa-mãe ou se basta, como intu- ímos e sugere a lei dos rurícolas, que uma pessoa ou um grupo de pessoas detenha, nas empresas, uma participação majoritária em cotas ou ações, de modo a lhes outorgar o controle de todas elas. Por ora, a jurisprudência é incipiente quanto à possibilidade, a princípio rejeitada, de o sistema de franchi- sing configurar grupo econômico(423). 8.5.2 Solidariedade passiva e solidariedade ativa (empregador único) Os teóricos e agentes do direito divergem ainda mais, porém, quando instados a responder se a solidariedade prevista no artigo de lei, sob comento, seria apenas a solidariedade passiva ou se (421) STF, 1a Turma, RE 18837, Rel. Min. Barros Barreto, in Calheiros Bonfim, Dicionário, p. 25. (422) (rectius: sociedades empresárias). Empresa não tem, como visto, personalidade jurídica. (423) Situação curiosa é a das franquias, ou franchising, que crescem expressivamente no setor terciário, consistindo em um padrão de bens ou serviços associado a uma marca. Embora o dono da marca não tenha, regra geral, participação alguma na composição das sociedades franqueadas, ou não seja destas o sócio majoritário, a sua ingerência em assuntos internos da sociedade franqueada é, muita vez, eviden- ciada pelo interesse de manter o produto a preço módico, mediante uma estratégia de ação comum em toda a rede. As sociedades franque- adas aceitam essa intromissão como contrapartida do direito de usar a marca, já consagrada comercialmente. Em edição de 11 de abril de 2001, a revista Veja informou que o McDonald’s, sendo o símbolo desse sistema de franquias na economia globalizada, tinha então 28.000 lanchonetes espalhadas em 120 países, a cada seis horas sendo aberta uma nova unidade em alguma parte do mundo. A reportagem assinala enfim que a política agressiva de expansão da rede está baseada em processo de produção de hamburgeres em série que inclui “cardápio enxuto, hambúrger barato, produção em série, ambiente limpo, rapidez no atendimento e mão de obra de baixo custo”. Sobre o assunto, a Segunda Turma do TST decidiu: “FRANCHISING. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. GRUPO ECONÔMICO. O contrato mercantil de franchising, de que trata a Lei n. 8955/94, em especial o art. 2o, caracterizado entre as empresas demandadas, autônomas, com personali- dades jurídicas próprias e diversidade de sócios, impede a caracterização do grupo econômico, e, por consequência, o reconhecimento da responsabilidade solidária prevista no art. 2o, §2o, da CLT” (TST, 2a Turma, Proc. n. RR 565433/99, Rel. Juiz Convocado Aluysio Corrêa da Veiga, DJU 22.6.2001. Revista TST, Brasília, vol. 67, n. 3, jul/set 2001. p. 344). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 161 ali estaria igualmente consagrada a solidariedade ativa dos entes empresariais que integram grupos econômicos. Seriam eles, os titulares das empresas consorciadas, apenas devedores solidários, obri- gando-se todos pela dívida trabalhista de cada qual (solidariedade passiva)? Ou cada ente empresa- rial seria também credor da prestação de trabalho contratada no âmbito de qualquer das empresas componentes do grupo econômico (solidariedade ativa)? Na esteira de João Antônio Pereira Leite(424), autores de nomeada dizem-se atentos ao fato de o multicitado artigo 2o, §2o da CLT prever que as empresas integrantes do grupo econômico são “solida- riamente responsáveis” e que “quem responde ou é responsável na relação obrigacional é o devedor, nunca o credor”. Antes de o dispositivo da Consolidação das Leis do Trabalho assim estatuir, a revogada Lei n. 435/37 continha, como observa Amauri Mascaro Nascimento(425), um artigo de igual teor, sucedido, entretanto, por um parágrafo único que assegurava a solidariedade ativa, ao rematar: “essa solidarie- dade não se dará entre empresas subordinadas, nem diretamente, nem por intermédio da empresa principal, a não ser para o fim único de se considerarem todas elas como um mesmo empregador”. Dada a derrogação desse parágrafo único, estaria prevista apenas a solidariedade passiva na opinião de consagrados teóricos do direito do trabalho(426). Apesar disso, a lei que não se enquadra à realidade perde, ou vê diluída, a sua aptidão normativa. A norma desprovida de eficácia social é, em última análise, um pedaço de papel, talvez um objeto de estudo para positivistas da escola exegética do Direito, apegados à eficácia formal da norma jurídica. Sendo real e comum, porém, a existência de empregados que, contratados por uma sociedade empre- sarial, prestam serviço a esta e nas outras empresas que integram o grupo econômico (operando o caixa que serve a várias destas, exempli gratia), à jurisprudência coube a desafiadora missão de solucionar os conflitos a isso atinentes, dizendo, afinal, se haveria tantos contratos quantas fossem as empresas ou se o contrato e o empregador eram unitários. Aderindo à tese do empregador unitário (ou empregador único, como usualmente se diz), assentou o TST, no verbete 129 da súmula de sua jurisprudência: A prestação de serviços a mais de uma empresa do mesmo grupo econômico, durante a mesma jornada de trabalho, não caracteriza a coexistência de mais de um contrato de trabalho, salvo ajuste em contrário. Na esteira desse entendimento, recomenda ainda a Súmula 93 do TST: Integra a remuneração do bancário a vantagem pecuniária por ele auferida na colocação ou na venda de papéis ou valores mobiliários de empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico, quando exercida essa atividade no horário e local de trabalho e com o consentimento, tácito ou expresso, do banco empregador. Noutras palavras, o empregado pode, por força de contrato formalizado no âmbito de empresa que integre grupo econômico, prestar trabalho em outra(s) das empresas consorciadas, sendo um único o contrato, o empregador e o salário (ainda que parte deste salário provenha de outras empresas do grupo). Parecia, então, uniformizada a questão no nível jurisprudencial, não sendo poucas as decisões regionais que endossaram a tese do empregador único(427). Mais que a possibilidade de o empregado trabalhar para várias empresas do grupo econômico, o acolhimento da solidariedade ativa estaria a implicar, por exemplo, que o empregado teria direito a somar o tempo de serviço prestado, sucessiva- mente, em diferentes empresas do grupo econômico (accessio temporis), para efeito de férias, indeni- zação de antiguidade e acréscimo de 40% sobre o FGTS, ou ainda a exigir adicional de transferência sempre que fosse formalizada a cessação de seu contrato em uma localidade e se forjasse a sua admissão, em outra empresa do grupo, em localidade diversa. (424) Apud Gilberto Gomes, op. cit., p. 149. (425) Op. cit. p. 430. (426) Mauricio Godinho Delgado, em obra citada, p 385, observa que se filiam à tese da exclusividade da solidariedade passiva os autores Orlando Gomes, Cesarino Junior, Antônio Lamarca, Cássio Mesquita Barros Junior, Aluysio Sampaio e Amauri Mascaro Nascimento, sendo adeptos também da solidariedade ativa os laboralistas Arnaldo Sussekind, Mozart Victor Russomano, Martins Catharino e Délio Maranhão. (427) Vide Revista LTr 62-11/1571 e 64-04/537. 162 – Augusto César Leite de Carvalho Engana-se, porém, quem imagina pacificada a matéria. Há decisões recentes do TST que reve- lam o dissenso jurisprudencial acerca dessa concepção sobre empregador único(428). O intérprete do direito tem, aqui e portanto, um solo rico e dócil à sua exploração. 8.5.3 A sucessão no âmbito de uma das empresas do grupo econômico Questão tormentosa é a que diz sobre os efeitos da sucessão trabalhista quando ela se opera no âmbito restrito de uma das empresas que integram o grupo econômico. A dúvida que assoma tem a ver com o aspecto de o trabalhador que tinha o direito de investir contra qualquer das sociedades empresárias que integravam o grupo (a que pertencia o seu empregador) pretender, com algum apelo à boa lógica, alcançar a sociedade adquirente de empresa diversa de seu empregador, mas integrante do mesmo grupo econômico. A prevalecer tal responsabilidade, transfere-se à sociedade sucessora de alguma das unidades do conjunto a responsabilidade pela sucessão de todo o grupo econômico, ou seja, de todo o conjunto. Mesclam-se as regras atinentes à sucessão e à solidariedade passiva? Ao enfrentar a matéria, o Tribunal Superior do Trabalho assim se posicionou: “O sucessor não responde solidariamente por débitos trabalhistas de empresa não adquirida, integrante do mesmo grupo econômico da empresa sucedida, quando, à época, a empresa devedora direta era solvente ou idônea economicamente, ressalvada a hipótese de má-fé ou fraude na sucessão”. É esse o texto da orientação jurisprudencial n. 411 da SBDI-1. Em suma, a aquisição de uma empresa não torna o empresário adquirente sucessor de todas as sociedades empresárias que compunham o grupo econômico da empresa adquirida. Assim se conso- lida a jurisprudência. 8.6 A subcontratação e a intermediação de mão de obra Frisamos, há pouco, que a concentração econômica inspiradora do art. 2o, §2o, da CLT vinha se contrapondo, em tempo mais recente, à especialização da atividade empresarial. German Barreiro Gonzalez(429), catedrático da Universidade de León, notou esse “duplo movimento de sentido aparen- temente antagônico, mas em muitos casos complementar”. O autor distingue, assim, os processos de concentração ou distensão da atividade econômica: De um lado estão aquelas organizações produtivas que buscam aumentar sua dimensão, ser maiores para competir melhor, através de alternativas de crescimento estratégico juri- dicamente materializado em fusões e absorções; de outro, aquelas que preconizam como torna a empresa mais competitiva o fato de ela adelgaçar sua estrutura produtiva, em uma tentativa de reduzir sua dimensão até o limite do que se pode considerar estritamente neces- sário para o desenvolvimento de sua competência básica. O mesmo autor observa que o primeiro fenômeno (insourcing) corresponderia à formação de grupos de empresa de composição vertical, enquanto o adelgaçamento (ou enxugamento, como preferem dizer (428) “AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. EQUIPARAÇÃO SALARIAL. EMPRESAS DISTINTAS. MESMO GRUPO ECONÔMICO. Consta da decisão regional que o reclamante não logrou êxito em demonstrar o preenchimento dos requisitos do art. 461 da CLT, nem comprovou a prestação de serviço a mais de uma empresa do mesmo grupo econômico, conforme suas alegações. Diante de tais premissas fáticas, insuscetíveis de reexame pelo óbice contido na Súmula n. 126 do TST, não há falar em violação dos arts. 461 e 818 da CLT nem em contrariedade às Súmulas n.s 6 e 129 do TST. Ademais, na linha da majoritária jurisprudência desta Corte Superior, é inviável a equiparação salarial entre empregados que laboram em empresas diferentes, ainda que pertencentes ao mesmo grupo econômico, porquanto não se trata de prestação de serviços ao mesmo empregador. Precedentes. Agravo de instrumento conhecido e não provido” (TST, 8ª Turma, AIRR 32300-47.2009.5.02.0251, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, Data de Julgamento: 07/08/2012, Data de Publi- cação: 17/08/2012). No mesmo tema (equiparação salarial), em outro sentido: “RECURSO DE REVISTA. EQUIPARAÇÃO SALARIAL. EMPRESAS DISTINTAS. GRUPO ECONÔMICO. Presentes os pressupostos do art. 461 da CLT, o fato de os empregados trabalharem em estabelecimentos distintos, pertencentes à mesma empresa, não inviabiliza a equiparação salarial, uma vez que as empresas integrantes do grupo econômico serão consideradas a mesma empresa para fins de equiparação (CLT, art. 2º, § 2º). Recurso de revista de que não se conhece” (TST, 1ª Turma, RR 60400-73.2007.5.03.0018, Relator Ministro Walmir Oliveira da Costa, Data de Julgamento: 04/12/2012, Data de Publicação: 07/12/2012). (429) GONZALEZ, German Barreiro. Reflexiones sobre el outsourcing en la empresa. In: Temas Relevantes de Direito Material e Processual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2000. Tradução livre. p. 606. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 163 os agentes do mercado) da estrutura produtiva se manifestaria por meio da subcontratação ou do outsourcing, “se bem que este último seja precisamente, em muitos casos, a fórmula mais fácil para converter, aproveitando as lacunas do ordenamento jurídico, uma empresa em um grupo de empresas horizontal, descentralizando só o risco, porém conservando, em última análise, o controle de toda a atividade produtiva [...]”(430). Bem se vê que essa digressão do autor nos remete à possibilidade de se fundirem, disfarçadamente, a subcontratação e a formação (dissimulada) de grupo econômico. Interes- sa-nos, porém e agora, tratar, estritamente, das subcontratações. Poder-se-ia dizer que há duas formas de subcontratar ou, como se diz sem rigor etimológico, de terceirizar a atividade empresarial: a uma primeira denominaremos subcontratação integral, rivali- zando esta com o segundo tipo, a subcontratação parcial. A subcontratação integral ocorre quando a empresa(431) subcontratada não fornece apenas mão de obra. Em vez disso, a empresa subcontratada assegura a execução do serviço ajustado e exerce, por meio de seus próprios prepostos, o poder diretivo sobre a prestação de trabalho de seus próprios empregados, mesmo quando estes laboram no estabelecimento da empresa tomadora dos serviços. Na subcontratação parcial, o tomador dos serviços exerce poder de comando sobre a prestação de trabalho desenvolvida pelos empregados da empresa subcontratada. A ordem jurídica legitima alguns tipos de uma e outra subcontratações, como se pode perceber à leitura da Súmula 331 do TST: I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo dire- tamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei n. 6019, de 3-1-74). II – A contratação irregular do trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional (art. 37, II, da Cons- tituição da República). III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20-6-83), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a respon- sabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obri- gações da Lei n. 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral. O item I está a proclamar que a jurisprudência trabalhista proscreve a subcontratação e os dois itens seguintes referem as exceções a essa regra proibitiva. O item IV concerne, como se verá, à responsabilidade do tomador de serviço nas hipóteses em que a subcontratação, por se adequar a algumas das citadas exceções, é lícita. O item V foi incluído para distinguir, no âmbito da responsa- bilidade subsidiária do tomador dos serviços, a hipótese em que esse tomador dos serviços é órgão ou empresa da administração pública. O item VI se volta à extensão da responsabilidade subsidiária, como se analisará em seguida. Examinemos, então, cada uma dessas regras. Voltando à nossa classificação, vimos que a subcontratação integral ocorre quando a empresa subcontratada fornece mão de obra e o seu titular dirige a prestação de trabalho dos trabalhadores terceirizados. A subcontratação integral é lícita, salvo quando ocorre na atividade-fim da empresa tomadora dos serviços (item III da Súmula 331). Exemplo: é lícita a subcontratação dos serviços de (430) Op. cit., p. 606. (431) A partir daqui e apenas para facilitar a assimilação do conteúdo, incorreremos no mesmo erro do legislador e usaremos o termo empresa quando estivermos nos referindo ao empresário ou à sociedade empresarial. É que a linguagem mais técnica confunde, às vezes, o interlocutor, ao fazê-lo abstrair da essência do que se diz. 164 – Augusto César Leite de Carvalho limpeza ou pintura de fábrica de tecidos (atividade-meio), não o sendo, nesta, a subcontratação do serviço afeto ao operador de máquina da tecelagem (atividade-fim). Se é a administração pública que terceiriza a sua atividade-fim, não cabe à Justiça do Trabalho atribuir-lhe a condição de empregador, pois a ausência de concurso público o impede. Contudo, a jurisprudência é forte no sentido de responsabilizar solidariamente o ente público pelas obrigações trabalhistas não honradas pela empresa indevidamente subcontratada(432) e de assegurar ao traba- lhador os mesmos direitos trabalhistas previstos em favor do servidor público por ele indevidamente substituído(433). A subcontratação parcial é, também já o vimos, aquela em que o tomador dos serviços dirige a prestação laboral dos trabalhadores disponibilizados pela empresa subcontratada. Ela é ilícita e, quando acontece, podem os trabalhadores exigir, na Justiça do Trabalho, o reconhecimento de vínculo diretamente com a empresa tomadora dos serviços, salvo na hipótese de trabalho temporário (item I da Súmula 331) e também quando há a subcontratação de vigilância profissional. Uma observação é, aqui, necessária. Interessa notar que a interlocução direta entre o vigilante e o titular da empresa vigiada, ou seu preposto, não implica, a princípio, subordinação direta daquele a algum destes. O vigilante não é empregado do tomador dos serviços apenas porque, em dado momento, dirige-lhe a palavra. A vigilância exige pessoal capacitado e cadastrado na Superintendência Regional do Trabalho, recrutado de quadro próprio de empregados ou por intermediação de empresa especializada em segurança (Lei n. 7.102/83). A constante interação entre o exercente do serviço de guarda e o titular da empresa vigiada não os converte, somente por isso, em sujeitos de vínculo de emprego. Parece-nos ser esta a melhor exegese do item III da Súmula 331, acima transcrito. Em seguida, vamos enfrentar seis temas relacionados com a adoção da Súmula 331 do TST que inquietam a jurisprudência trabalhista: a subempreitada tradicionalmente regulada pelo artigo 455 da CLT; as nuances da responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, incluída a administração pública; a extensão dessa responsabilidade subsidiária no que toca às obrigações por ela alcançadas; as peculiaridades dos contratos de facção; a igualdade de direitos entre os empregados da tomadora dos serviços e os empregados da empresa prestadora que realizam igual função; enfim, a vexatória questão relativa à terceirização da atividade-fim nos serviços de energia elétrica e de telefonia. 8.6.1 A subempreitada em vista da Súmula 331 do TST Prescreve o artigo 455 da CLT, verbis: “Nos contratos de subempreitada responderá o subemprei- teiro pelas obrigações derivadas do contrato de trabalho que celebrar, cabendo, todavia, aos emprega- dos, o direito de reclamação contra o empreiteiro principal pelo inadimplemento daquelas obrigações por parte do primeiro”. O dispositivo não está tornando lícitas todas as subcontratações (inclusive as que ocorrem na atividade-fim do tomador de serviços), mas apenas está a prever a solidariedade do empreiteiro principal e, assim estatuindo, assegura o direito de empregados dos subempreiteiros, em casos de subcontratações lícitas, ajuizarem ação trabalhista em face do empreiteiro principal. A jurisprudência sempre foi pouco receptiva à ideia de responsabilizar, também e subsidiaria- mente, o dono da obra, embora alguma doutrina sustentasse a sua responsabilidade (não somente do empreiteiro principal), sempre que agisse ele, o dono da obra, com culpa na escolha (in eligendo) do empreiteiro principal, ou ainda quando negligenciasse a fiscalização (culpa in vigilando) do cumpri- mento, por este, das obrigações trabalhistas. O advento do item IV da Súmula 331 do TST poderia significar, contudo, um sinal de mudança da orientação jurisprudencial, que estaria aderindo à mencio- nada construção doutrinária, no tocante à responsabilização do dono da obra por culpa. (432) TST, 6ª Turma, RR 170000-64.2009.5.03.0016, Relatora Ministra Kátia Magalhães Arruda, DEJT 05/12/2014; TST, 2ª Turma, AIRR 289-73.2010.5.09.0658, Relator Ministro José Roberto Freire Pimenta, Data de Publicação: 15/02/2013; TST, 5ª Turma, RR 175400- 95.2008.5.15.0069, Relator Ministro: João Batista Brito Pereira, Data de Publicação: 19/10/2012. (433) OJ 383 da SBDI-1: “A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com ente da Administração Pública, não afastando, contudo, pelo princípio da isonomia, o direito dos empregados terceirizados às mesmas verbas trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles contratados pelo tomador dos serviços, desde que presente a igualdade de funções. Aplicação analógica do art. 12, “a”, da Lei n. 6.019, de 03.01.1974”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 165 Ocorre, porém, que o mesmo TST continua se posicionando no sentido de não haver responsabi- lidade solidária ou subsidiária do dono da obra, “salvo sendo o dono da obra uma empresa construtora ou incorporadora”(434). O que podemos notar é que a contratação de uma obra a empresa especializada não acarretará, segundo essa orientação jurisprudencial, a responsabilidade do seu tomador, ou seja, a responsabilidade do dono da obra. A “obra” é aqui assimilada, como se pode concluir, como o resul- tado de um serviço transitório (mais adiante, poderemos perceber que o TST está compreendendo obra como um serviço transitório de construção civil). Optou-se, bem se vê, por um conceito restrito de “obra”, deixando-se à regência da Súmula 331, IV, do TST a intermediação dos serviços permanentes. Ressai uma indagação: por que há responsabilidade do dono da obra quando é ele uma cons- trutora ou uma incorporadora? Pela razão simples de a obra de construção civil não ser, para a construtora ou para a incorporadora, um serviço transitório. Nem seria razoável, mesmo, que se permitisse à construtora intermediar mão de obra para a execução de serviço que é permanente- mente necessário ao exercício de sua atividade econômica. É fato, portanto, que se uma pessoa física ou jurídica contrata uma obra a uma empresa de construção civil, a orientação jurisprudencial 191 da SBDI-1 fará responsável apenas essa empresa pelas obrigações trabalhistas que ela contrair, não se estendendo tal responsabilidade a quem a contratou, ou seja, ao dono da obra. Uma crítica se faz, nesse passo, inevitável: a imunização do dono da obra (sempre que não é ele uma construtora ou incorporadora) relativiza a regra geral da responsabilidade civil no âmbito das relações de emprego, apenas nesse âmbito. Em uma mesma obra, o dano causado pela negligência da construtora escolhida sem o devido critério, ou que realiza os seus serviços de engenharia civil sem a fiscalização adequada do tomador dos serviços, onerará esse tomador dos serviços, por imposição dos artigos 186 e 927 do Código Civil, salvo se o dano se revestir de natureza trabalhista – por exem- plo, uma pedra que resvale do alto de uma construção e atinja um transeunte ou um desafortunado vizinho gerará o direito à reparação, porque entre a vítima e o causador mediato do dano não há um vínculo de emprego. Poder-se-ia argumentar, com base em doutrina já bem consolidada de direito ambiental, que a responsabilidade do dono da obra em relação ao dano que causa à circunvizinhança seria inclusive objetiva, pois o art. 225, §3º da Constituição e o art. 14, §1º da Lei n. 6.938/81 a imporiam sem a neces- sidade de verificar-se a sua culpa. Seguindo essa senda, embora embasada com maior ênfase na responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do Código Civil – alusivo às atividades que expõem a risco –, a jurisprudência que ora se constrói, inclusive no âmbito do TST, está a mitigar a abrangência da mencionada orientação jurisprudencial 191 da SBDI-1 e, assim, não tem estendido a sua eficácia às questões judiciais que envolvem acidentes de trabalho, inclusive porque é odiosa a consideração de que o direito laboral existiria para restringir direitos garantidos pela ordem civil. Se a Justiça do Trabalho trilhasse outro caminho ao apreciar causas relacionadas com acidentes de trabalho e, aplicando a mesma regra da imunização do dono da obra, decidisse que a pedra caída sobre um empregado da construtora contratada para a execução da obra não implicaria a responsa- bilidade do dono da obra mesmo se ele houvesse incorrido em culpa na escolha da construtora ou na fiscalização dos seus serviços, teríamos, no limite, uma constatação absurda: caísse a pedra sobre um estranho e a responsabilidade seria direta e objetiva, mas o empregado, por sê-lo, teria direito de cobrar apenas da construtora contratada, fosse idônea ou não. Melhor não pensar na hipótese de cair, no lugar da pedra, um empregado sobre um transeunte. 8.6.2 A Súmula 331, IV e VI – a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, inclusive da administração pública A essa altura, impende tratar da responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, recomen- dada pelo item IV da Súmula 331 do TST. Essa responsabilização do tomador dos serviços teria como fundamento jurídico a regra insculpida nos artigos 186 e 927 do Código Civil, que pressupõe – embora o enunciado da súmula a isso não faça referência – a culpa de quem contrata uma empresa interposta, sem ser criterioso ao escolhê-la ou na fiscalização de seus serviços. (434) Vide orientação jurisprudencial n. 191 da SBDI-1 do TST. 166 – Augusto César Leite de Carvalho Para outros, a responsabilidade do tomador dos serviços estaria fundada, de lege ferenda, na teoria do risco profissional, pois do ônus pela utilização de trabalho alheio não se poderia eximir o ente, pessoa ou empresa, a quem aproveitaria, em última análise, a utilidade dessa prestação laboral. Como o mencionado item IV da Súmula 331 não faz menção à culpa, está franqueada a discussão em que se digladiarão os defensores da culpa presumida (cabendo ao tomador dos serviços tentar elidir essa presunção) e os arautos do risco profissional. A mais intensa polêmica se criou, todavia, no tocante à possibilidade de se responsabilizar o ente público ou paraestatal quando ele figurasse como tomador dos serviços, uma vez que a Lei n. 8.666/93 (a lei regente das licitações públicas) os teria exonerado, ao regular: Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato. §1o A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restrin- gir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o registro de imóveis. Sem embargo de ser essa a dicção legal, é imperioso lembrar que o artigo 173 da Constituição restringiu os casos em que o Estado brasileiro pode explorar atividade econômica e enfatizou, em seu parágrafo primeiro, inciso segundo, a sujeição de empresas públicas e sociedades de economia mista “ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários”. Logo, seria inconstitucional o artigo 71 da Lei n. 8.666/93 se pretendesse assegurar às empresas públicas e sociedades de economia mista um privilégio – isenção trabalhista – que não estende às empresas privadas, com as quais concorrem os citados entes para- estatais. Isso faria questionável, porém, a adoção da responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços nos casos em que é ele ente público sem atuação no mercado de bens ou serviços, já que haveria então a incidência do artigo 71 da Lei n. 8.666/93 sem que se pudesse cogitar de contraste entre o seu preceito e a ordem econômica consagrada pelo texto constitucional. O Tribunal Superior do Trabalho assumiu, contudo, posição de vanguarda, ao enfatizar que o artigo 71 da Lei n. 8.666/93 vedava a solidariedade, mas não a responsabilidade subsidiária da Administra- ção. E foi além, para explicitar que o fundamento jurídico para a responsabilização do órgão público ou da empresa estatal que exerce serviço público(435), quando utilizam a força de trabalho humana por meio de empresa interposta, bem poderia ser o artigo 37, §6o, da Constituição, que assim dispõe: As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa(436). (435) Há entes paraestatais que exercem serviço público, quanto a estes se aplicando o art. 37, §6o, da CF. Existem, também, empresas públicas e sociedades de economia mista que exercem, porém, atividade econômica e se submetem, como já visto, ao regime próprio das empresas privadas, como lhes é imposto pelo art. 173, §1o, II da CF (v. Di Pietro, op. cit. p. 304). (436) Sobre a aplicação desse dispositivo constitucional às empresas públicas e sociedades de economia mista, v. Hely Lopes Meirelles, op. cit., pp. 600-601. Também: Maria Sylvia di Pietro, op. cit., p. 341. Há decisões do TST que revelam essa pluralidade de fundamentos para a responsabilidade subsidiária da administração púiblica (responsabilidade subjetiva ou mesmo a objetiva), a exemplo da seguinte: “RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA – ENTIDADE PÚBLICA – CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. O sistema da tercei- rização de mão de obra, em sua pureza, é importante para a competitividade das empresas e para o próprio desenvolvimento do País. Exatamente para a subsistência deste sistema de terceirização é que é fundamental estabelecer a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, quando a prestadora de serviços é inidônea economicamente. Naturalmente, estabelecendo-se a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, este se acautelará, evitando a contratação de empresas que não têm condições de bem cumprir suas obrigações. Isto evitará a proliferação de empresas fantasmas ou que já se constituem, mesmo visando a lucro fácil e imediato às custas de direitos dos traba- lhadores. Os arts. 27 a 56 da Lei n. 8666/93 asseguram à Administração Pública uma série de cautelas para evitar a contratação de empresas inidôneas e para se garantir quanto a descumprimento de obrigações por parte da empresa prestadora de serviços, inclusive a caução. Se, no entanto, assim não age, emerge clara a culpa “in eligendo” e “in vigilando” da Administração Pública. E, considerando o disposto no § 6º do art. 37 e no art. 193 da Constituição Federal, bem poder-se-ia ter como inconstitucional o § 2º do art. 71 da Lei n. 8666/93 se se considerasse que afastaria a responsabilidade subsidiária das entidades públicas, mesmo que houvesse culpa “in eligendo” e “in vigilando” na contratação de empresa inidônea para a prestação de serviços. Por isto a conclusão no sentido de que o § 1º do art. 71 da Lei n. 8666/93 refere-se à responsabilidade direta da Administração Pública, ou mesmo a solidária, mas não à responsabilidade subsidiária, quando se vale dos serviços de trabalhadores através da contratação de uma empresa inidônea em termos econômicos-financeiros, e ainda se omite em bem fiscalizar. Neste sentido se consagrou a jurisprudência desta Corte, tendo o item IV do Enunciado n. 331 explicitado que ´ o inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obri- gações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (artigo 71 da Lei n. 8666/93)´. Recurso de embargos não conhecido” (TST, SDI 1, ERR 314246/96, Rel. Min. Vantuil Abdala, DJ 16/03/01, p. 698). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 167 Tal fundamento foi, porém, afastado pelo Supremo Tribunal Federal, que ao julgar a ADC 16 ressaltou a impossibilidade de se aplicar o artigo 37, § 6o, da Constituição para atribuir-se responsa- bilidade à administração pública quando esta promove a subcontratação de seus serviços. Aquela elevada corte afirmou que somente a existência de culpa in vigilando dos órgãos administrativos justi- ficaria a imputação de mencionado ônus ao erário. Em seguida, o TST revisitou o tema e o fez para decompor o item IV da Súmula 331 em dois enunciados, o primeiro a cuidar apenas da responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços privado, nos moldes de sua jurisprudência já antes consagrada, e um novo item para tratar somente da hipótese em que o tomador dos serviços é órgão da administração direta ou indireta. Como acima se viu, acresceu-se o item V à Súmula 331 do TST para restar esclarecido que “os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n. 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora”. Em respeito à recomendação do STF, esclareceu-se, no mesmo item V, que “a aludida responsa- bilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada”. Vale dizer: a responsabilidade subsidiária da administração pública, pelo fato de ela figurar como tomadora dos serviços, pressupõe a contratação irregular da empresa presta- dora dos serviços ou a negligência da administração na fiscalização dos serviços terceirizados. Fora daí não se cogita de responsabilizar-se o ente público quando a empresa por ele contratada para a prestação de serviços descumpre obrigações trabalhistas. O TST poderia ter construído a sua jurisprudência de maneira a impor a responsabilidade direta da administração pública quando age ela com culpa na vigilância dos trabalhos terceirizados. Preferiu entender, contudo, que o artigo 71 da Lei n. 8.666/93 estaria vedando a responsabilidade direta ou a solidariedade do órgão ou empresa pública contratante, mas não a responsabilidade subsidiária destes. Se a vedasse, seria inconstitucional quanto aos entes da administração pública que realizam atividade econômica e de todo modo não incidiria (o art. 71 da Lei n. 8666) nos casos em que a respon- sabilidade derivasse da culpa do tomador dos serviços, ente da administração pública que atrairia contra si os preceitos que regem a responsabilidade civil (artigos 186 e 927 do Código Civil) por não ter fiscalizado o cumprimento das obrigações trabalhistas pela empresa contratada. Ao adotar essa linha de pensamento, a Justiça do Trabalho reage, com esteio na ordem jurídica, ao modo indisciplinado como os entes públicos vinham contratando empresas inidôneas para a viabi- lização dos serviços públicos, numa busca desenfreada por imunidade trabalhista, ao tempo em que assume o seu encargo político de fazer preponderar a dignidade do trabalho humano e o compromisso com a prevalência de direitos sociais que, por obra da Constituição em vigor, conferem identidade ao nosso Estado Democrático de Direito. Conforme ponderou o ministro Carlos Ayres Britto no julgamento da ADC 16, é preciso considerar que, ao transigirmos quanto à licitude da terceirização dos serviços públicos, estamos tolerando um modo de realização dos serviços públicos que escapa das balizas preconcebidas pela ordem consti- tucional, dado que a Carta de 1988 previu a desoneração da atividade estatal mediante o trabalho de servidores diretamente vinculados ao Estado brasileiro (art. 37 da Constituição). Não há sentido em abrir o sistema jurídico-constitucional, sobretudo na delicada área da proteção ao servidor público lato sensu, para ao final consentir a precarização do trabalho humano. Como quer que seja, os itens IV e V da Súmula 331 do TST não convertem o tomador dos serviços em empregador, apenas fazendo recair sobre ele responsabilidade trabalhista subsidiária na hipótese de subcontratação lícita. Diferente é o que sucede por influência do item I do mesmo verbete sumu- lado, que trata da subcontratação ilícita e importa a atribuição ao tomador dos serviços da qualidade de empregador. 8.6.3 A extensão da responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços Fixada a premissa de que não se pode terceirizar serviços, ainda que se o faça licitamente (no âmbito de atividade-meio, por exemplo), sem que o tomador desses serviços assuma responsabilidade 168 – Augusto César Leite de Carvalho por obrigações trabalhistas contraídas pela empresa contratada, grassava alguma dúvida na jurispru- dência a propósito de essa responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços abranger algumas cominações de natureza processual ou puramente sancionatórias, como aquelas previstas nos artigos 467 (acréscimo de 50% sobre verbas da cessação do contrato não quitadas até a primeira audiência) e 477, § 8º (multa de valor equivalente a um salário pela mora na quitação de verbas da cessação do contrato) da CLT. A fim de dirimir qualquer dúvida, o TST decidiu acrescentar ao verbete 331 da súmula de sua jurisprudência o item VI: “A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral”. Portanto, todas as parcelas de natureza pecuniária devidas pelo empregador são subsidiariamente devidas pelo tomador dos serviços, nos casos de terceirização lícita (conforme já se viu, na terceirização ilícita a responsabi- lidade é somente do tomador dos serviços, que passa a figurar na condição de empregador). 8.6.4 A subcontratação de serviços (terceirização) nas hipóteses de contrato de facção Nada mais instigante, para o estudioso do direito do trabalho, que os novos contratos de facção. Para que se compreenda a modalidade contratual que agora submetemos a análise, cabe reproduzir a pertinente digressão conceitual do magistrado catarinense Oscar Krost: Com o passar dos anos, pela dinâmica da vida e pela incessante busca pelo incremento da produção, acompanhada da redução de custos, criou-se uma figura híbrida na indústria, com elementos de “terceirização” e de empreitada, conhecida por “facção”. Por tal ajuste, ocorre a fragmentação do processo fabril e o desmembramento do ciclo produtivo de manufatura, antes setorizado, dentro de uma mesma empresa. Há o repasse a um “terceiro” da realização de parte (facção) das atividades necessárias à obtenção de um produto final, fenômeno comum no ramo têxtil. Ocorre, por óbvio, a transferência de significativa parcela dos riscos do empreendimento, em grande parte das vezes a pequenos artífices, ex-empregados da contratante da “facção”, os quais se veem obrigados a admitir outros trabalhadores, cujos direitos não encontram garan- tia no real beneficiário dos serviços.(437) Ilustrando o tema, vale notar que tal decomposição do processo produtivo tem sido relativamente comum no ramo de confecções, quando a indústria transfere para outras empresas as partes da ativi- dade fabril que respeitam, por exemplo, ao desenho inicial, ao acabamento ou à etiquetagem. Embora se subcontrate a atividade-fim nesses casos, existem duas situações diferentes em que essa tercei- rização de serviços pode desenvolver-se: a empresa de facção pode atuar exclusivamente para uma determinada indústria de confecções ou oferecer seus serviços especializados para várias indústrias. É evidente que a atribuição da qualidade de empregador ao tomador dos serviços resulta dificultada quando são várias as indústrias que assim se apresentam e o trabalhador ambientado na empresa de facção realiza serviços indistintamente para todas elas. O Tribunal Superior do Trabalho tem preferido, nesses casos, não reconhecer a ilicitude da prática de facção e, inclusive pelas razões práticas ora referidas, também não tem atribuído responsabilidade solidária ou subsidiária a uma determinada indústria, além daquela que seria imposta ao titular da empresa de facção(438). A matéria não é, em verdade, de fácil deslinde, como se pode extrair de outro trecho do mesmo artigo jurídico de Oscar Krost: Se o próprio Direito Civil admite a atribuição de responsabilidade, de forma ampla e geral, a todos os responsáveis pela produção de um dano, em sentido lato, não há justificativa, pelo (437) KROST, Oscar. Contrato de facção. Fundamentos da responsabilidade da contratante por créditos trabalhistas dos empregados da contratada. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1587, 5 nov. 2007. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2011. (438) TST, RR 350100-88.2008.5.12.0051, 6ª Turma, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, DEJT de 06/05/2011; TST, RR 198500- 63.2007.5.12.0048, 6ª Turma, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, DEJT de 24/06/2011; TST, RR-106200-77.2008.4.12.0006, 3ª Turma, Rel. Min. Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, DEJT de 11.6.2010; TST, RR-51346/2006-872-09-40 – 6ª Turma – Pub. DJU de 13/06/2008. Min. Relator Aloysio Correa da Veiga; TST, RR-761.170/01.8, Rel. Min. João Oreste Dalazen, DJU de 18/06/2004. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 169 que dispõe o art. 8º da CLT, para deixar de adotar este entendimento na esfera trabalhista, principalmente se considerada a natureza alimentar dos créditos nela originados. A ausência de pessoalidade e de subordinação pelo empregado da empresa contratada não podem servir de óbice à responsabilização da contratante, já que tais requisitos não são exigidos pela jurisprudência quando ajustada a “terceirização” (TST, Súmula 331). De outro lado, a exclusividade na prestação de serviços sequer se apresenta como elemento essencial do liame de emprego, podendo um empregado manter contratos com empregado- res diversos, de modo concomitante, sem que um interfira no outro, caso típico de professo- res e de médicos, tampouco sendo exigida na “terceirização”. O cunho civil do pacto firmado entre contratante e contratada também não serve de impedi- tivo à co-responsabilização daquela, já que desta natureza também se revestem os contra- tos de “terceirização”, de empreitada e de subempreitada. O fato do trabalhador atuar fora do parque fabril da beneficiária final do trabalho não apre- senta incompatibildade com a corresponsabilização desta por créditos trabalhistas gerados em face da contratada, já que a própria CLT, ao reger a relação de emprego “típica”, regula hipótese de trabalho em domicílio, em seus arts. 6º e 83. Se dá, tão somente, a mitigação da pessoalidade, fato igualmente ocorrido na “terceirização” e nas hipóteses de “teletrabalho”. No campo normativo, amparam a atribuição de responsabilidade solidária entre contratante e contratada no negócio de “facção” pelos préstimos dos empregados desta o disposto nos arts. 927, 932, inciso III, 933 e 942, todos do Código Civil. A opção pelo repasse de parte do processo produtivo a terceiros traz em si, ainda de modo implícito, a assunção dos respectivos riscos, devendo aquele que assim proceder se cercar de todo o zelo, agindo com probidade e boa-fé, pelo que dispõe o art. 422 do Código Civil. Afinal, como manifestado por SOUTO MAIOR [...] “ainda que a terceirização representasse – o que não se acredita sinceramente – uma evolução em termos de técnica produtiva, sua implantação não pode resultar na impossibilidade de os trabalhadores receberem os direitos pelos serviços que já prestaram. (...) A responsabilidade, em uma terceirização considerada válida, deve ser sempre solidária, pois de uma forma ou de outra as empresas contratantes utilizam o trabalho prestado pelo empregado.” O próprio Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) atribui a todos os integran- tes da cadeia produtiva, do fabricante ao importador, a responsabilidade objetiva por danos causados por produtos ou serviços que apresentem algum tipo de defeito (art. 12), não sendo razoável que os trabalhadores que atuaram em proveito desta mesma linha, tão vulneráveis quanto o destinatário final, estejam desguarnecidos de similar tutela. Por fim, possível reexaminar o prescrito nos arts. 10 e 448, ambos da CLT, sob o prisma da atual estruturação do sistema fabril, fundamentando a corresponsabilização da contratante no entendimento de que, em sentido amplo, o negócio de “facção” representa uma modali- dade de mudança “estrutural da empresa”, atingindo os “direitos adquiridos” pelos trabalha- dores, legal e constitucionalmente. Sob qualquer prisma que se examine a questão, considerando se tratar a busca pelo aprimo- ramento das instituições de um objetivo incessante, necessário o reconhecimento, pelas vias legislativa e/ou jurisprudencial, da co-responsabilização da empresa contratante pelos have- res trabalhistas decorrentes da relação havida entre a contratada e seus empregados, como forma, inclusive, de assegurar o equilíbrio entre o valor social do trabalho e a livre iniciativa.(439) Enquanto a jurisprudência evolui a propósito do modo como deve ser assegurada a dignidade do trabalho humano nos contratos de facção que se realizam no interior da atividade fabril, eis que surge um novo tipo de conflito trabalhista: o contrato de facção engendrado por empresas voltadas ao comér- cio de confecções, grandes magazines ou lojas de departamento que resolveram produzir artigos de vestuário com a marca da loja para expor em suas prateleiras. (439) Obra citada. O texto do professor Souto Maior, citado pelo articulista, é o seguinte: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O Direito do Traba- lho como Instrumento de Justiça Social. São Paulo: LTr, 2000. 170 – Augusto César Leite de Carvalho Nesse novo contexto, as sociedades mercantis alegam, não raro, que a atividade fabril é ativi- dade-meio para quem sempre se dedicou a vender roupas prontas e agora também as produz para vendê-las. Invocam a jurisprudência que se forma a propósito do contrato de facção para que possam assim orientar todo o processo produtivo, dado que não comercializariam um produto cuja qualidade não estivesse sob seu domínio. Em suma, fracionam a produção das confecções que vendem e instau- ram, enfim, não somente um modo inovador de produção e comércio, mas também uma questão jurí- dica vexatória. Nota-se, em verdade, que se cuida de um processo de integração econômica que se diferencia daqueles a que outrora estavam acostumados os intérpretes e agentes do direito do trabalho. Não se cuida, em princípio, de sociedades empresárias que integram um grupo econômico vertical ou horizon- tal(440), de modo a atrair a incidência do art. 2º, §2º da CLT. Na hipótese distinta de grupo econômico, o empresário constitui novas empresas com objetivos que podem variar “desde a diversificação do capital em atividades econômicas distintas para compen- sar riscos até a integração vertical de atividades em uma mesma estrutura produtiva, passando pelo incremento da rentabilidade de seus investimentos e pela maior cobertura do mercado de determina- dos produtos ou serviços”(441). Em tempo mais recente, a descentralização da atividade produtiva se desenvolveu internamente, já agora sem expansão da atividade produtiva. Surgiu então a terceirização quando os serviços não essenciais – muita vez os serviços de limpeza, vigilância etc. – passaram a ser subcontratados a empresas especializadas, abandonando-se a prática, que serviu à diversificação da atividade principal, de formar novas empresas com destinação específica. A terceirização amolda-se, portanto, a outra logística: em vez de se formar um grupo econômico de empresas sob uma direção econômica unitária, opta-se pela contratação de empresas autônomas especializadas. Observa Reginaldo Melhado que esse modelo tem aspectos que variam de caso a caso, esclarecendo o autor: [...] a reengenharia apoia-se nos princípios da deslocalização, desconcentração e descen- tralização, como o downsizing (redução programada de níveis hierárquicos e de porte da empresa, terceirizando atividades que não são a função principal da organização), o outsour- cing (fornecimento externo), e o outplacement (recolocação). Criando estruturas gerenciais horizontalizadas, flexíveis e rápidas, as organizações buscam fazer com que seus quadros dirigentes se dediquem exclusivamente às atividades essenciais da empresa. [...]. Com isso, terceirizam-se atividades burocráticas, de manutenção, apoio e outras. Descentraliza-se a organização para ‘reconcentrar’ as atenções da direção de modo intenso e prioritário naquilo que é a alma do negócio(442). A solução jurídica para proteger o trabalhador foi diferente em cada um desses processos de integração: para os grupos econômicos prescreveu-se a solidariedade, por força de lei no Brasil (art. 2º, §2º da CLT) e, em outros países, como na Espanha, por construção jurisprudencial; para as tercei- rizações, previu-se a sua validação apenas nos casos de subcontratação de atividade-meio e se esta- beleceu a responsabilidade subsidiária, na terceirização válida, do tomador dos serviços. Embora os processos de reengenharia empresarial não se esgotem nesses dois modelos – o da formação de grupos econômicos para diversificação da atividade econômica e o de terceirização que visa à subcontratação de serviços especializados –, a alusão a ambos é necessária para que se compreenda a celebração do contrato de facção por sociedades mercantis que passam a produzir as mercadorias por elas vendidas. Quando uma empresa voltada à venda de confecções subcontrata a fabricação das peças de vestuário que venderá sob a sua própria marca e sob sua orientação, (440) Cf. Délio Maranhão, em Instituições de Direito do Trabalho, vol. 1, p. 282, a integração vertical “tem lugar quando um determinado produto percorre, no mesmo estabelecimento, diversas etapas em uma progressão, que o transforma de matéria-prima em mercadoria acabada” – ex: a transformação do algodão em tecido e deste em confecção; a integração econômica horizontal ocorre “quando um produto, já concluído, é utilizado pelo mesmo empresário, para satisfazer necessidades diferentes” – ex: a utilização do álcool como combustível, bebida, insumo para produtos de higiene etc. (441) MARTÍN VALVERDE, A., RODRIGUEZ-SAÑUDO GUTIÉRREZ, F., GARCÍA MURCIA, J. Derecho del Trabajo. Madrid: Editorial Tecnos, 2004. p. 223. Tradução livre. (442) MELHADO, Reginaldo. Metamorfoses do Capital e do Trabalho: Relações de Poder, Reforma do Judiciário e Competência da Justiça Laboral. São Paulo; LTr, 2006. p. 70. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 171 misturam-se os dois citados modelos de integração econômica: diversifica-se a atividade empresarial mediante a subcontratação da nova atividade. Revela-se, a bem ver, o fenômeno que alguns teóricos denominam empresa-rede(443). Sob a ótica do capital, desenha-se uma condição auspiciosa: a um só tempo, da regra da tercei- rização aproveita-se a imunidade parcial do tomador dos serviços (pois a ele somente se atribuiria a responsabilidade subsidiária), mas se desenvolve a reestruturação empresarial própria à formação do grupo econômico, dado que é de diversificação de atividade que se está a cuidar (à atividade terciária do comércio se agrega a atividade fabril que normalmente a precederia, com igual importância mas sem vínculo com o mesmo agente empreendedor). Compondo-se assim o mosaico dos fatos que estariam a exigir alguma conformação jurídica, parece-nos que a solução adequada, ao menos nos casos em que pode ser dimensionada a parte da atividade produtiva que aproveita a uma sociedade mercantil específica, que a esta se atribua a condição de empregadora. Sequer haveria, em princípio, cabimento para a adequação jurídica mais mitigada e transigente que usualmente se adota para as terceirizações da atividade-meio. Seriam duas as razões para esse entendimento. A primeira delas é que toda norma remete a um conflito anterior e a uma decisão do legislador que consagra, entre as resoluções possíveis e virtualmente justas, aquela que lhe pareça mais equânime – sob tal premissa, é possível concluir, quanto à reflexividade que se pode emprestar ao art. 2º, §2º da CLT, que ela nos remete a uma opção do legislador de prescrever a responsabilidade direta do agente econômico que diversifica a sua atividade, sendo esse o modo como o direito do trabalho tradicional- mente harmonizou os princípios da liberdade de empreendimento e gestão com o princípio igualmente constitucional da proteção ao trabalhador (art. 1º, IV e art. 170 da Constituição). O segundo motivo para atribuir-se à sociedade mercantil a qualidade de empregador se situa no plano supralegal. É que o art. 1º, III, da Constituição impõe que a norma jurídica a ser aplicada não relegue a um nível secundário, na estratificação de interesses que coexistem e demandam regulação jurídica, a intervenção humana no processo produtivo (princípio da dignidade humana). É a concepção do homem como um fim, jamais como um meio, insumo ou instrumento na produção de riqueza. Porquanto se trata de princípio constitucional, fundamento da República, a sua aplicação deve nortear-se pela busca da máxima efetividade e da proibição de retrocesso, não cabendo dispensar ao trabalhador terceirizado em vista da diversificação da atividade econômica uma proteção menor que aquela antes conquistada pelos trabalhadores envolvidos na formação, com igual objetivo, de grupos econômicos. 8.6.5 A igualdade de direitos entre os empregados da tomadora dos serviços e os empre- gados da empresa prestadora Está visto que o direito do trabalho tem resistido à ideia de que se possa promover a terceiriza- ção de serviços com o objetivo subliminar de precarizar a prestação laboral. Em verdade, aceita-se a subcontratação do trabalhador em virtude de ela ser virtualmente necessária à realização de serviços especializados, o que se intensifica na mesma proporção em que se tornam complexas algumas ativi- dades produtivas, em todos os ramos da economia. Parece evidente, inclusive, que os avanços da biogenética exigem a intromissão de empresas especializadas no desenvolvimento da agricultura e da pecuária, a exemplo do que sucede com a nanotecnologia e a automação nas atividades fabris e de serviços, para não dizer da pluralidade de novos contextos relacionais e operacionais que se descortinam nas atividades voltadas às áreas de comunicação e de distribuição de energia, às vezes imbricadas aquelas e estas. (443) José Luis Monereo Pérez (MONEREO PÉREZ, José Luis. La Noción de Empresa en el Derecho del Trabajo y su Cambio de Titu- laridad. Madrid: Nueva Imprenta, 1999, p. 7) conceitua a “empresa-red” como “un tipo de empresa económica de carácter flexible que permite articular la gran empresa con una red más o menos amplia y diversificada de pequeñas empresas subsidiarias o auxiliares mediante las cuales se realiza el ciclo de producción. Estas pequeñas empresas están unidas por un sistema de reglas de cooperación, sirviendo a una estrategia unitaria de organización de la producción y de utilización de la mano de obra”. 172 – Augusto César Leite de Carvalho A aparente conveniência ou quiçá a pontual necessidade de as empresas tradicionais contratarem serviços especializados a outras empresas não deve, porém, levar a reboque a dignidade da condição de trabalho conquistada pelos empregados que antes formavam na categoria dos trabalhadores contra- tados diretamente pela empresa tomadora, ou seja, pela destinatária final dos serviços. Nos processos trabalhistas que hoje tramitam na Justiça do Trabalho, percebe-se claramente que há, não raro, a tenta- tiva de reduzir direitos a pretexto de que a terceirização serviria para o realinhamento dos salários e a promoção de novo enquadramento sindical, invariavelmente em prejuízo dos trabalhadores. Cabe recordar que a primeira manifestação de tolerância à subcontratação de serviços deu-se com a edição da Lei n. 6.019/74, a lei do trabalho temporário. Não obstante essa lei preveja a possibi- lidade de subcontratação de trabalhadores temporários para a realização de serviços na atividade-fim (especialmente para a substituição transitória de pessoal regular ou permanente ou ainda em razão de acréscimo extraordinário de serviços), o seu art. 12 assegura igualdade salarial entre os trabalhadores temporários e os empregados da empresa-cliente, por eles transitoriamente substituídos. A terceiriza- ção não pode, por ser eventualmente relevante na gestão empresarial, ser o mote para implementar-se uma condição inferior de trabalho. Quando houve de enfrentar essa matéria no tocante à terceirização dos serviços no âmbito da adminis- tração pública, o TST, como já visto, foi firme ao afirmar: “A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com ente da Administração Pública, não afastando, contudo, pelo princípio da isonomia, o direito dos empregados terceirizados às mesmas verbas trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles contratados pelo tomador dos serviços, desde que presente a igualdade de funções. Aplicação analógica do art. 12, “a”, da Lei n. 6.019, de 03.01.1974”. Assim se mani- festou o TST por meio da orientação jurisprudencial 383 da sua subseção SBDI-1. É bom ver que a corte trabalhista assentou uma premissa que extrapola o universo mais restrito da terceirização de serviços na administração pública, embora a ele textualmente se refira. A decisão se fez mais urgente na subcontratação de serviços públicos porque mesmo quando ela ocorre para a realização da atividade-fim, ou seja, para a execução da atividade estatal ou da atividade normalmente cometida à administração pública descentralizada, não é possível à Justiça do Trabalho atribuir a quali- dade de empregador ao órgão público ou à empresa estatal, dado que lhe impediria a necessidade de prévio concurso de provas e títulos (art. 37, II da Constituição). Mas a premissa estabelecida pela Justiça do Trabalho é transcendente: por analogia ao art. 12 da Lei n. 6.019/74, a terceirização implica a igualdade de salários entre os empregados da empresa terceirizada e aqueles contratados direta- mente pelo tomador dos serviços, desde que presente a igualdade de funções. 8.6.6 A terceirização da atividade-fim nos serviços de telefonia e de energia elétrica A propósito dos serviços de telefonia, que permeiam a realidade do homem contemporâneo, dispõe o art. 94 da Lei n. 9.472, de 1997: Art. 94. No cumprimento de seus deveres, a concessionária poderá, observadas as condições e limites estabelecidos pela Agência: I – empregar, na execução dos serviços, equipamentos e infraestrutura que não lhe pertençam; II – contratar com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou comple- mentares ao serviço, bem como a implementação de projetos associados. § 1º Em qualquer caso, a concessionária continuará sempre responsável perante a Agência e os usuários. § 2º Serão regidas pelo direito comum as relações da concessionária com os terceiros, que não terão direitos frente à Agência, observado o disposto no art. 117 desta Lei. O mesmo sucedeu quando se organizou o setor de energia elétrica e a Lei n. 8.987, de 1995, previu a possibilidade de a empresa concessionária contratar com terceiros as atividades inerentes, acessórias ou complementares (art. 25, §1º). Em uma interpretação gramatical desses dispositivos, dir-se-ia que a concessionária pode operar a telefonia ou a energia elétrica mediante a utilização de coisas e pessoas que, respectivamente, não lhe pertencem nem por ela foram diretamente contratadas. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 173 E o que interessa em particular: também se inferiria que, havendo conflito de ordem puramente consumerista ou econômica, os usuários (ou consumidores) e a Agência estariam protegidos, pois poderiam atribuir responsabilidade à concessionária, sem demandar necessariamente contra a pres- tadora dos serviços; havendo, porém, conflito de ordem laboral, a lei seria omissa quanto à obrigação de a concessionária honrar igualmente os haveres trabalhistas e assim se poderia intuir que os traba- lhadores poderiam cobrar seus créditos, de natureza alimentar, somente das empresas interpostas. As citadas leis são, em rigor, omissas inteiramente quanto à matéria trabalhista, pois importou ao legislador regulamentar os serviços de telefonia e de energia elétrica e a relação entre as empre- sas que os executariam e dois de seus interlocutores: a agência reguladora e os consumidores. Em decisão emblemática (E-RR-586.341/1999.4), a SBDI-1 repeliu a adoção por reflexo da citada lei para que se imunizasse a empresa concessionária das obrigações trabalhistas que derivariam, segundo a jurisprudência antes consolidada, de seu vínculo direto com os empregados envolvidos em sua ativi- dade-fim. Cabe transcrever fragmento do voto prevalecente, proferido pelo eminente Ministro Vieira de Melo Filho: Não se poderia, assim, dizer que a norma administrativista, preocupada com princípios e valo- res do Direito Administrativo, viesse derrogar o eixo fundamental da legislação trabalhista, que é o conceito de empregado e empregador, jungido que está ao conceito de contrato de trabalho, previsto na CLT. Seria a interdisciplinaridade às avessas, pois a norma geral administrativa estaria a rejeitar a norma especial trabalhista e seu instituto fundamental. O instituto que lhe dá feição característica e autonomia científica, pois, no conceito de empre- gado e empregador, vinculadas as atividades daquele às atividades essenciais e primordiais deste, teríamos uma interposta pessoa, sempre. Não teríamos mais uma relação bilateral, haja vista que para a consecução das atividades primaciais do empregador haveria sempre uma dízima periódica de empregadores, habilitando uma relação trilateral ou plurilateral, em detrimento da legislação social e seus preceitos cogentes. De outro giro, a terceirização na esfera finalística das empresas, além de atritar com o eixo fundamental da legislação trabalhista, como afirmado, traria consequências imensuráveis no campo da organização sindical e da negociação coletiva. O caso dos autos é emblemático, na medida em que a empresa reclamada, atuante no setor de energia elétrica, estaria auto- rizada a terceirizar todas as suas atividades, quer na área fim, quer na área meio. Nessa hipótese, pergunta-se: a CELG, apesar de beneficiária final dos serviços prestados, ficaria totalmente protegida e isenta do cumprimento das normas coletivas pactuadas, por não mais responder pelas obrigações trabalhistas dos empregados vinculados aos intermediários? Não resta dúvida de que a consequência desse processo seria, naturalmente, o enfraque- cimento da categoria profissional dos eletricitários, diante da pulverização das atividades ligadas ao setor elétrico e da consequente multiplicação do número de empregadores. Todas essas questões estão em jogo e merecem especial reflexão. Ainda que se compreendam aplicáveis as Leis ns. 8.987/95 e 9.472/97, a sua exegese não pode conspirar no sentido da precarização do trabalho terceirizado pelas operadoras de telefonia e energia elétrica. Se citadas leis preveem a responsabilidade direta de tais operadoras em relação às agências reguladoras e aos consumidores, a boa hermenêutica recomenda que se adote igual critério quanto ao empregado. Qualquer outra exegese pareceria desconstrutiva, pois faria caso dos modelos hermenêuticos gerados após longo debate jurisprudencial no âmbito do Judiciário trabalhista. Embora não se pretenda que o direito do trabalho engesse ou paralise a atividade econômica, cabe-lhe por certo estabelecer os parâmetros que viabilizam a progressão da economia – inclusive na perspectiva da geração de emprego e renda – sem aviltamento da dignidade humana. Os sistemas econômico e jurídico-traba- lhista não se excluem, antes devendo interagir. A saber, não se ignora a amplitude das práticas de outsourcing e, nesse panorama, a existência de atividades-fim que seriam atual e ilicitamente terceirizadas, de modo aparentemente impune, em alguns setores da economia. Mas a verdade é que assim se dá enquanto a prática da terceirização, envolta nos cânones da mutabilidade e da eficiência das novas formas de organização empresarial, não gera precarização e conflito trabalhista. Se e quando a presença da empresa interposta não se justifica pela especialização dos serviços, mas sim para a redução do custo trabalhista – o que se 174 – Augusto César Leite de Carvalho evidencia por gerar salários e outras condições de trabalho desiguais em relação às condições garan- tidas para os empregados da empresa tomadora dos serviços –, a intervenção estatal faz-se indis- pensável para que se resgate a eficácia dos mais caros princípios do direito do trabalho, e do direito constitucional do trabalho por igual. Pesquisas engendradas pela Confederação Nacional da Indústria(444) revelaram, em abril de 2009, que 91% das empresas que terceirizam consideram a redução de custos a principal razão para fazê-lo, sendo expressivamente menor a quantidade de empresas que terceirizam para obter melhor qualidade de serviços ou otimizar a gestão. Embora 54% das empresas brasileiras tenham terceirizado nos três anos que precederam a conclusão da mencionada pesquisa (2006-2009), 58% delas admitiram a “quali- dade menor que a esperada” como o maior problema da terceirização de serviços e 31% reconheceram que a terceirização promove “aumento do risco no processo produtivo”. A terceirização tem como causa, na maior parte das vezes e como se vê, o lucro obtido com o maior sacrifício dos trabalhadores. A precarização das condições de trabalho, promovida pela terceirização que já ocorre no Brasil (não obstante os limites estabelecidos pela Súmula 331 do TST), pode ser percebida por esses e outros dados. Cabe observar, por exemplo, que embora expressiva maioria das empresas pesquisa- das pela CNI tenha afirmado preocupação com a segurança dos trabalhadores terceirizados, Relatório de Estatísticas de Acidentes do Setor Elétrico Brasileiro(445) revela que a morte por acidente de traba- lho, no setor de energia elétrica, atinge 3,4 vezes mais os trabalhadores terceirizados que os empre- gados efetivos. Também as entidades representativas de trabalhadores colhem informações que desabonam a terceirização. Os dados apresentados em dossiê elaborado pela Central Única dos Trabalhadores e pelo DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos noticiam que os empregados efetivos (contratados diretamente, sem terceirização) permanecem 5,8 anos nas empre- sas, enquanto os terceirizados duram 2,7 anos e recebem salário 24,7% menor, o que se coaduna com o reconhecimento, na pesquisa da CNI, de que apenas 56% das grandes empresas (48% das empresas médias e 52% das pequenas empresas) “proporciona(m) aos trabalhadores terceirizados o mesmo tratamento dado aos trabalhadores de sua empresa”. À Justiça do Trabalho se comete a relevante tarefa de decidir, em concreto, sobre as condições de trabalho aquém das quais estaria comprometido o mínimo existencial, ou seja, o limite de indisponibilidade a partir do qual se pode exercer a liberdade de empreendimento. Embora esses lindes impostos à ação econômica tenham suporte constitucional, decerto que o princípio da irrenunciabilidade, no âmbito do direito do trabalho, concerne à própria razão de existir desse ramo do direito privado e remonta ao tempo em que concebido esse ramo da ciência jurídica a partir da ordem infraconstitucional. A indisponibilidade do direito trabalhista não nasceu, truísmo é dizer, com a Carta Política de 1988, embora com ela se houvesse qualificado. O seu fundamento não é, ou não é apenas, a presunção de que estaria invariavelmente coagido o trabalhador que aceita condições adversas ou mesmo injustas de trabalho. A premissa fundante da indisponibilidade do direito laboral é a necessidade de se esta- belecer um patamar mínimo de exploração do trabalho humano, sem que se ultrapasse a fronteira do trabalho digno. Há algum tempo, os tribunais do trabalho perceberam, na prática da terceirização, o possível inte- resse da mercantilização do labor humano e, com vistas a divisar um limite para a realização de atividade econômica sem vínculo direto com o trabalhador, mas sem inviabilizá-la inteiramente, evoluiu no sentido de permitir a interposição de mão de obra nas condições que se extraem da Súmula 331 do TST. Após longo tempo de reflexão, entremeado pela edição de verbete mais restritivo (Súmula 256), a jurisprudência estabeleceu um novo princípio, um mandado de otimização a partir do qual se regraria a tolerância à intermediação de mão de obra e que está fundado na razoabilidade de se a permitir quando o seu justo motivo é o modo especializado com que se pretende desenvolver serviços periféricos da empresa, não enquadrados na cadeia técnica de produção de bens e serviços. (444) Os resultados e a análise da pesquisa intitulada “Sondagem Especial: Terceirização” está disponível em: http://www.cni.org.br/portal/ data/files/00/8A9015D02137198B01213A64F0C536BA/Sondagem%20Especial_terceiriza%C3%A7%C3%A3o_WEB.pdf. Acesso em: 27/ jan/2014. (445) Relatório produzido pela Fundação Comitê de Gestão Empresarial (COGE), disponível em: http://www.funcoge.org.br/csst/relat2010/ index_pt.html. Notícia sobre o tema disponível em: http://www.cut.org.br/imprimir/news/f850a125491b2a6618edcc6eee2a7949/. Acessos em 27/jan/2014. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 175 A máxima de que se deve tolerar a terceirização apenas na atividade-meio fora inicialmente extra- ída das normas legais, infraconstitucionais(446), as mesmas que atribuem a condição de empregador à pessoa física ou jurídica que necessita de trabalhadores para exercer atividade econômica e efetiva- mente os contrata, pois lhe cabe assumir os riscos dessa atividade (art. 2º da CLT). Embora se qualifique por sua evidente afinidade com os postulados da dignidade humana e do valor social da livre iniciativa, ambos com matriz constitucional (arts. 1º, III e IV, e 170 da CF), o prin- cípio da responsabilização do tomador dos serviços remonta à época em que editada a Súmula 256 (1986), vale dizer, a uma época em que os princípios constitucionais não se revestiam da força norma- tiva inaugurada com a Constituição de 1988. Na ordem constitucional anterior, a livre iniciativa era um princípio autárquico, não atrelado ao valor social, e a dignidade humana surgia apenas no capítulo da ordem econômica e social, não como um fundamento da República, mas como um objetivo a ser alcançado mediante a valorização do trabalho. Tal não impediu que a Justiça do Trabalho estabelecesse um limite a partir do qual se toleraria a intermediação do labor humano, um padrão lógico que vem de balizar a licitude dessa prática sempre que ela se torna conflituosa e tal conflito se mostra decorrente da precarização das condições de trabalho, quando cotejadas com aquelas que existiriam se o fato objetivo da terceirização não estivesse presente. Nessa hipótese, proscreve-se a terceirização da atividade-fim, vale dizer, ao titular da empresa tomadora dos serviços deve ser imputada a qualidade de empregador, para efeitos trabalhistas. À semelhança do que ocorre na relação entre os trabalhadores eletricitários e as empresas do setor elétrico, visivelmente imbricados na atividade-fim destas, também não há dúvida de que as empresas concessionárias da atividade de telefonia relacionam-se com os usuários desses serviços por meio dos operadores de call center, inexistindo modo mais evidente de conformação ao conceito de ativida- de-fim que aquele no qual o trabalho se realiza na relação entre fornecedor e cliente. É da atividade-fim do fornecedor dos serviços que estamos a tratar. E se há um princípio regente do direito do trabalho, resultante da ponderação levada a efeito pelos agentes da jurisdição trabalhista, a exegese do art. 94, II da Lei n. 9.472/1997 e do art. 25, §1º da Lei n. 8.987/1995 a ele deve moldar-se, interpretando-se a autorização de “contratar com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes” sem apego em demasia ao léxico, que conduziria, em um primeiro momento, à imunização dos setores de energia elétrica e de telecomunicações quanto à norma de direito do trabalho a que estariam sujeitos todos os outros setores de produção. E se prevalecer a interpretação conducente à permissão para que se terceirizem livremente os serviços de energia ou telefonia, que se adote, em favor também dos trabalhadores terceirizados e conforme antevisto, a interpretação analógica assecuratória do direito à responsabilização direta das concessio- nárias desses serviços. Não obstante reconheçamos as possíveis dificuldades no enfrentamento do tema, são essas razões suficientes para que se mantenha a aplicação da Súmula 331, I, do TST nos casos em que as concessionárias dos serviços de telefonia ou energia elétrica terceirizam a sua atividade-fim e, por isso, a elas deve ser atribuída a condição de empregadora. (446) O STF percebeu essa característica da matéria, o seu fundamento infraconstitucional, quando o decidiu em instância colegiada nos precedentes STF – AI 828518/MG, 1.ª Turma, Relatora Min. Cármem Lúcia, Julgado em 18/03/11, DJE 12/04/2011 e STF – AI 824319 AgR / MG – MINAS GERAIS, 2.ª Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgado em 01/03/11, DJE 31-03-2011. CAPÍTULO IX RETRIBUIÇÃO PELO TRABALHO: REMUNERAÇÃO, SALÁRIO E OUTRAS PRESTAÇÕES PECUNIÁRIAS 9.1 Conceito Não há erro, em linguagem coloquial ou atécnica, quando se usam, indistintamente, os termos remuneração e salário. A origem etimológica dessas duas palavras(447) autorizaria, em verdade, a sinonímia. A semântica jurídica trilha, porém e no Brasil, outro caminho, com o claro anseio de impedir que o empregador se beneficie da energia de trabalho do empregado sem lhe pagar, diretamente, ao menos o salário mínimo. A fórmula legal, elaborada com tal intenção, é a que segue: Remuneração = salário + gorjeta O artigo 457 da CLT define salário como a parte da remuneração que é contraprestacional e é paga diretamente pelo empregador. No conjunto da remuneração, o que excede o seu elemento mais restrito, o salário, é a gorjeta paga por terceiros. Para além da fórmula legal, logo veremos que poderão somar-se à gorjeta, como verba remuneratória, mas não salarial, outras atribuições econômicas que não se configuram contraprestações ajustadas, nem por ajuste expresso, nem por ajuste tácito(448). É bom ressaltar, a essa altura, que a comutatividade do contrato de emprego não importa a exata equivalência de prestações, quer pelo aspecto de a mais-valia(449) ser inerente ao sistema capitalista, quer em razão de o empregador dever o salário mesmo quando há apenas a disponibilidade da força de trabalho ou até em períodos de interrupção contratual. Por isso, Amauri Mascaro Nascimento(450) destaca que a vertente teórica de maior aceitação, nos tempos de hoje, é a que se conhece como teoria da contraprestação do contrato de trabalho, mais abrangente que as teorias da contraprestação do trabalho e da contraprestação da disponibilidade do trabalhador. Há, enfim, duas questões introdutórias que merecem um especial cuidado do intérprete do direito do trabalho. Da primeira logo trataremos, pois é concernente à aceitação, especialmente pela doutrina, da relação de continência, prevista no já citado artigo 457 da CLT, entre remuneração e salário. A segunda questão propedêutica será analisada quando cuidarmos da gorjeta, sendo pertinente à obser- vância, pela jurisprudência, da regra que impede o empregador de computar a gorjeta na composição do salário mínimo. Para que não embaracemos os temas, há a intenção de inicialmente tratar, neste capítulo, de todos os aspectos concernentes ao salário, para somente depois explorarmos as inquietantes ques- tões relativas ao círculo maior da remuneração, aí incluídas as gorjetas e parcelas similares (direito de arena e outras oportunidades de ganho). (447) Segundo Catharino (CATHARINO, José Martins. Tratado Jurídico do Salário. São Paulo: LTr, 1994. p. 20), salário deriva do latim “salarium” e este de sal, porque era costume entre os romanos se pagar aos servidores domésticos em quantidade de sal, também se pagando, assim, aos soldados das legiões romanas. Remuneração vem também do latim “remuneratio”, do verbo “remuneror”, composto de “re”, que dá idéia de reciprocidade, e de “muneror”, que significa recompensar. Em outra obra (CATHARINO, José Martins. Compêndio Universitário do Direito do Trabalho. São Paulo : Editora Jurídica e Universitária, 1973. p. 437) acentua que “remuneração e retribuição, também de origem latina, são absolutamente sinônimas”. Apenas para efeitos didáticos e seguindo a sugestão de Rodrigues Pinto (PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. São Paulo : LTr, 2000. p. 258), usaremos o termo retribuição como gênero, em que se incluem as espécies salário, remuneração e, para os que defendem a tripartição, as indenizações. (448) Mais adiante, veremos que a gratificação não ajustada é um possível exemplo de atribuição econômica a que falta a característica de salário. (449) A propósito do significado de mais-valia, observava a doutrina marxista que o valor que se poderia atribuir à utilidade do trabalho superaria, no sistema capitalista, o do salário pago ao trabalhador. (450) NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Teoria Jurídica do Salário. São Paulo: LTr, 1994. p. 98. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 177 9.1.1 As teorias da tripartição e da bipartição Alguns autores sustentam a existência de uma terceira espécie de retribuição do trabalho (que se soma ao salário e ao seu gênero, a remuneração), sendo ela destinada a indenizar o empregado por despesas efetuadas em razão do labor ou pela condição de trabalho desconfortável ou arris- cada. Seriam as indenizações, referidas, entre nós, por Rodrigues Pinto(451) e Orlando Gomes e Elson Gottschalk(452). Ou seja: além das indenizações em sentido estrito, como aquela prevista no artigo 479 da CLT para os casos de ruptura antecipada de contrato a termo(453), teriam caráter indenizatório os adicionais. Outros juslaboralistas rejeitam a tese da tripartição, por entenderem que os adicionais também remuneram. No plano teórico, não nos parece que a teoria da tripartição mereça essa crítica, uma vez que, embora os adicionais correspondam a alguma prestação de trabalho (e por isso seriam, essen- cialmente, remuneratórios), decerto que a sua motivação é mesmo a adversidade ou o risco do labor cuja remuneração é acrescida de tal adicional. Assim, o desconforto relativo ao tempo de trabalho justifica os adicionais noturno e de hora extra; quando é o lugar de trabalho que é desfavorável, surge o adicional de transferência; os adicionais de periculosidade e de insalubridade compensariam o risco à incolumidade física e à saúde, respectivamente. A representação geométrica da retribuição do trabalho, assim compreendida, seria formada por círculos concêntricos que envolveriam, do menor para o maior, as parcelas salariais, as verbas remu- neratórias e, no círculo da extremidade, as indenizações. A imagem permite notar a força atrativa do núcleo salarial, assim definida por Rodrigues Pinto: Por seus caracteres de alimentariedade e irredutibilidade, o salário exerce sobre todas as demais parcelas retributivas uma força de atração para seu núcleo, de modo a consolidar com elas a expectativa de subsistência do empregado. A atração exercida por essa força do salário se faz gradualmente, através do fator habitualidade, ou seja, reiteração no tempo, que se apresente no pagamento de qualquer das demais parcelas(454). Contudo e como já ressaltado, há os que incluem os adicionais no círculo da remuneração, abstraindo da existência de uma terceira espécie – as indenizações – da retribuição do trabalho. É a teoria da bipartição. Tem ela, no Brasil, o respaldo de estar em consonância com o texto legal, sendo a preferida pelos órgãos jurisdicionais, conforme se pode inferir dos termos usados na redação da Súmula 63 do TST: A contribuição para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço incide sobre a remuneração mensal devida ao empregado, inclusive horas extras e adicionais eventuais. Como quer que o teórico ou o aplicador do direito do trabalho se posicione, tripartindo ou apenas bipartindo o conjunto remuneratório, é certo que o caráter alimentar do salário não se estende, ao menos com igual intensidade, às parcelas que se situam nos círculos extremos da retribuição do trabalho, que concernem à remuneração e, para os que a tripartem, às indenizações. Importa dizer, por outra via, que a atribuição econômica não poderá ser extraída do patrimônio do empregado, tão logo seja atraída pelo núcleo salarial e se converta, assim, em salário. A utilização, pelo legislador e por segmento expressivo do Poder Judiciário, do termo remunera- ção com o intuito de abranger também os adicionais – o que implica a inclusão destes na quantificação das verbas que têm a remuneração como base de cálculo – induz-nos à opção de tratar os adicionais, doravante, como parcelas remuneratórias que se podem converter em salariais. Há, aqui, uma clara concessão nossa ao conceito legal. Estudaremos, porém, as características do salário e, somente depois, as da remuneração. (451) Op. cit. p. 259. (452) GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Atualização de José Augusto Rodrigues Pinto. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 205. Estes autores fazem remissão à obra de Riva Sanseverino e Amauri Mascaro Nascimento (op. cit. p. 57) que nos remete a Giuliano Mazzoni, quando menciona os que defendem a tripartição. (453) Vide, no capítulo relativo à Classificação do Contrato de Trabalho, o subitem alusivo às Peculiaridades do Contrato a Termo (454) Op. cit. p. 264. 178 – Augusto César Leite de Carvalho 9.2 O salário Enfatizamos a natureza salarial e a força atrativa do núcleo salarial. O empregado que recebe, habitualmente e do empregador, uma parcela que, a princípio, revestia-se de natureza remuneratória, incorpora-a ao seu patrimônio daí por diante, ou seja, incorpora-a ao seu salário a partir de quando a parcela, antes remuneratória, revela-se habitual. Assim ocorrerá porque a parcela que tinha natureza remuneratória ter-se-á convertido, por ser habitual, em parcela com natureza salarial. A habitualidade da multicitada parcela fará presumir o ajuste tácito e se atenderá, desse modo, aos dois pressupostos do salário: o pagamento direto pelo empregador e a origem contratual ou contraprestacional(455). Acontecem outras situações, por certo, em que também se pode induzir o ajuste tácito, malgrado a inocorrência da habitualidade. Se em uma empresa houve, sem expressa previsão legal ou contra- tual, o pagamento de uma vantagem qualquer a todos os empregados, a abrupta supressão dessa vantagem não pode ocorrer, mormente se em prejuízo, apenas, dos empregados que teriam sido admi- tidos poucos meses antes, pois é fácil verificar que a mencionada vantagem era objeto de um acerto implícito entre os empregados e o empregador. De novo, a contratualidade e o pagamento direto pelo empregador estariam a caracterizar a vantagem como salário, obstando sua supressão. A habitualidade é, portanto, um indício da contratualidade, o seu indício mais frequente, mas nada impede que o agente do direito laboral consulte, ao solucionar um caso concreto, a existência de outros indícios. Fixadas essas premissas, interessa analisar a razão primeira da distinção entre salário e remune- ração, qual seja, a previsão de um salário mínimo. Em seguida, trataremos das modalidades de salário e, afinal, da sua subdivisão em salário-base e complementos salariais. Após examinarmos também as características da remuneração, voltaremos a cuidar de salário para, então, identificarmos os princí- pios que informam a teoria jurídica do salário. Sigamos, portanto, esse roteiro. 9.2.1 O salário mínimo O artigo 7o, IV, da Constituição assegura, como direito social do trabalhador urbano ou rural: “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”. Ao exigir uma providência normativa por parte do legislador ordinário, visando à complementação de seu conteúdo, revelar-se-ia o citado preceito uma norma constitucional de eficácia limitada, conforme classificação outrora preconizada por José Afonso da Silva(456). Isso não impediu que o Supremo Tribunal Federal, em quadra histórica na qual era mais evidente a discrepância entre a vontade constitucional e o valor irrisório fixado para o salário mínimo, afirmasse, no julgamento da ADIn 167-DF e em lavra do Ministro Celso de Mello: A questão do salário mínimo não é uma simples questão de ordem técnica. É, sobretudo, um problema de natureza social, com graves implicações de caráter político, pois revela, na exata definição do seu valor, o real compromisso do programa governamental com a justa remuneração do trabalho e com a plena emancipação da classe trabalhadora de sua inacei- tável condição de opressão social e de arbitrária exploração econômica. O Estado não pode dispensar tratamento inconsequente às diretrizes constitucionais que defi- nem, a partir da identificação das necessidades sociais básicas do trabalhador e de sua famí- lia, os critérios que devem orientar o legislador na fixação do salário mínimo, sob pena de se admitir que a classe operária seja titular de direitos abstratos e destinatária de proclamações retóricas tão elegantes na forma quanto vazias de significação em sua própria essência. (455) A bem da verdade, a contraprestação é uma exigência do contrato comutativo e, por isso, diz-se que, neste, a parcela contraprestacio- nal é, também, contratual. (456) Cf. MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. Mandado de Injunção. São Paulo: Atlas, 1999. p. 31. O autor reproduz a classificação tricotômica das normas constitucionais, levada a efeito por José Afonso da Silva. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 179 Há, na realidade, em tema de salário mínimo, uma inderrogável obrigação estatal que vincula o Poder Público ao dever de fixar um piso remuneratório capaz de satisfazer as necessidades primárias de subsistência do trabalhador e dos membros de sua família. O valor que emerge da norma ora impugnada não realiza os propósitos visados pelo legisla- dor constituinte, eis que basta mera constatação objetiva – independentemente de qualquer discussão técnica sobre os índices aplicáveis – para concluir-se, sem qualquer dúvida, sobre a absoluta insuficiência do quantum fixado pelo Governo para o satisfatório atendimento das necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família.(457) O ministro relator reportou-se, na ocasião, às lições de Roberto Barroso, que antes de ser guin- dado a uma vaga na corte suprema já anunciava: Seria puramente ideológica, e não científica, a negação da possibilidade de o Judiciário intervir em tal matéria. Porque em diversas outras situações em que a Constituição ou a lei utilizam conceitos vagos e imprecisos, é exatamente ao juiz que cabe integrar, com sua valo- ração subjetiva, o comando normativo. Assim se passa, por exemplo, quando ele fixa o valor da ‘justa indenização’ na desapropriação (CF/88, art. 5º, XXIV); quando nega eficácia a ato, lei ou sentença estrangeira por ofensa à nossa ‘ordem pública’ (LICC, art. 17); ou quando fixa alimentos ‘na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada’ (C. Civil, art. 400). Ainda assim, não foi possível ao STF dirigir aos demais poderes da República a ordem de suprir a omissão legislativa. Nas palavras do Ministro Celso de Mello: Na realidade, o reconhecimento formal do estado de omissão inconstitucional imputável ao Poder Público somente pode gerar, nos precisos termos do que prescreve o artigo 103, § 2º, da Carta Política, mera comunicação, ao órgão estatal inadimplente, de que este se acha em mora constitucional. Isso tem permitido ao legislador infraconstitucional a atribuição de valores para o salário mínimo que nem sempre atenderam à expectativa constitucional de prover todas as necessidades básicas do trabalhador e sua família, sem que uma possível arguição de inconstitucionalidade – das leis que assim dispõem – possa surtir algum efeito prático. Além disso, a impossibilidade, prevista no dispositivo constitucional acima reproduzido, de vincu- lar o salário mínimo a outras prestações, tem produzido uma confusa jurisprudência sobre o alcance dessa restrição, dividindo-se os intérpretes e aplicadores do direito constitucional e do trabalho entre os que a generalizam(458) e aqueles que entendem não estar vedada a vinculação ao salário mínimo de prestações que têm natureza igualmente remuneratória(459), a exemplo do piso salarial e do adicional de insalubridade. O debate se acentuou quando o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante n. 4 com o seguinte teor: “Salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial”. Em seguida, o TST reviu o enunciado de sua Súmula 228 para ali constar: “A partir de 9 de maio de 2008, data da publicação da Súmula Vinculante n. 4 do Supremo Tribunal Fede- ral, o adicional de insalubridade será calculado sobre o salário básico, salvo critério mais vantajoso fixado em instrumento coletivo”. A Confederação Nacional da Indústria aforou reclamação constitucional perante o STF (RC 6266-0/ DF), ao argumento de que a base de cálculo do adicional de insalubridade não poderia ser alterada pelo TST sem autorização expressa em lei, e obteve decisão liminar por meio da qual foi suspensa a (457) Fragmento do voto do Min. Celso de Mello no julgamento da ADIn 267-DF. (458) O STF decidiu pela inconstitucionalidade de lei estadual que fixava o piso salarial de servidores públicos em três salários mínimos (STF, 1a Turma, RE 254871/PR, Min. Ilmar Galvão), decidindo pela inconstitucionalidade da vinculação do adicional de insalubridade ao salário mínimo (STF, 2a Turma, REAED 271752/SP, Min. Nelson Jobim, j. 20/2/2001, DJ 6/4/2001, p. 99). Também contra a vinculação do adicional de insalubridade ao mínimo: STF, 1a Turma, RE 236396/MG, Min. Sepúlveda Pertence, j. 2/10/98, DJ 20/11/98, p. 24). (459) O mesmo STF decidiu pela constitucionalidade do cálculo do adicional de insalubridade com base no salário mínimo, por exsurgir “com relevância maior a interpretação teleológica, buscando-se o real objetivo da Norma Maior”: STF, 2a Turma, AGRAG 177959/MG, j. 4/3/97, p. 23/5/97, p. 21731. Em igual sentido, acórdão de 14/12/98, do mesmo Ministro Relator, está publicado na Revista LTr 63-04/509. 180 – Augusto César Leite de Carvalho eficácia da Súmula 228 do TST. A contenda entre os órgãos do Poder Judiciário, não obstante a natu- ral prevalência do entendimento do STF, ou seja, daquele órgão ao qual se atribui a mais qualificada interpretação constitucional, revela a complexidade do tema e a sua difícil resolução. Semelhante ao que ocorria sob a ordem constitucional anterior, a Constituição atual está, ainda, a consagrar o salário mínimo familiar, pois o será aquele que atender a necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família. Isso não obstante, inclui, como já o fazia a Constituição de 1967/1969, o salário-família entre os direitos sociais, sendo este um benefício previdenciário que, paradoxalmente, nasceu da necessidade de se transferir para a Previdência o custo adicional do trabalhador que tinha prole, mas nem por isso haveria de ser discriminado. Fosse realmente familiar o salário mínimo e decerto não se conviveria, tão facilmente, com essa incoerência interna do texto constitucional. 9.2.1.1 Salário mínimo profissional. Piso salarial Entre os direitos sociais por cuja implementação firmou compromisso o Estado brasileiro, está aquele previsto no artigo 7o, V, da sua Constituição: “piso salarial proporcional à extensão e à comple- xidade do trabalho”. A lei ou a norma coletiva de trabalho podem fixar, portanto, a remuneração mínima devida aos trabalhadores que integram certa categoria profissional ou, sendo essa categoria composta por trabalhadores que exercem vários ofícios, a norma coletiva instituirá piso salarial que se amolde à complexidade e à duração do trabalho de cada qual. Lembra Sergio Pinto Martins(460) que a Lei n. 8.542, de 1992, autorizava a fixação, por contrato, convenção ou acordo coletivo de trabalho, laudo arbitral ou sentença normativa, do piso salarial refe- rido no capítulo constitucional dos direitos sociais. A bem da verdade, o dispositivo que assim previa foi derrogado quando o governo federal resolveu, por medida provisória (MP 1950), revogar os artigos de lei que tratavam de instituto natimorto, o contrato coletivo de trabalho. A revogação não ofuscou, porém, uma evidência: o piso salarial pode, mesmo, ser regulado por norma coletiva de trabalho. Um velho dissenso doutrinário e jurisprudencial, a propósito de o piso salarial somente poder ser fixado mediante lei, ou também o ser por norma abstrata da categoria, não tem mais razão de ser. Até antes da Constituição de 1988, a fixação de piso salarial por sentença normativa estava restrita às hipóteses em que lei o autorizasse(461). Por outro viés, restará ineficaz, ainda hoje e por vício de iniciativa, a decisão judicial que estabelecer piso salarial em favor de servidores públicos. Não vislum- bramos, contudo, qualquer utilidade em se investir na tese, meramente acadêmica, de que não seria possível fixar piso salarial, salvo mediante lei. Ao que notamos, o Supremo Tribunal Federal não consi- dera essa distinção conceitual(462). Quanto ao piso salarial fixado em lei, há exemplos significativos. A Lei n. 3.999/61 fixa o salário mínimo dos médicos em três vezes o salário mínimo geral, rezando o seu artigo quinto que os auxilia- res dos médicos, vale dizer, os auxiliares de laboratoristas(463), radiologistas(464) e internos têm direito a salário profissional equivalente a duas vezes o salário mínimo. A Lei n. 4.950-A/66, por sua vez, assegura piso salarial de valor equivalente a cinco ou seis salários mínimos para engenheiros, quími- cos, arquitetos, agrônomos e veterinários, a depender de o profissional ter-se graduado em menos de quatro anos ou em mais tempo, respectivamente. Há algum tempo, editou-se a Lei n. Complementar n. 103, de 14/7/2000, com os objetivos não disfarçados de a União transferir a outros entes da Federação a responsabilidade pela fixação do salário mínimo e de permitir, até por isso, que seja este fixado em valor diferente para cada Estado, em aparente desvirtuamento da norma constitucional, que exige seja o salário mínimo nacionalmente unificado. Como o artigo 7o, IV, da Constituição, não permitia que assim sucedesse e havia, por parte da presidência da República, o claro propósito de reagir, sem onerar a Previdência, à pressão social (460) MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2001. p. 277. (461) Artigo 142, §1o, da Constituição de 1967. (462) No julgamento do AGRAG 65238/RJ e do AGRAG 65239/RJ, o STF usa a expressão “salário mínimo profissional”. No julgamento do RE 128362/RJ, usa a expressão “piso salarial profissional”. (463) Vide Súmula 301 do TST: “O fato de o empregado não possuir diploma de profissionalização de auxiliar de laboratório não afasta a observância das normas da Lei n. 3999/61, uma vez comprovada a prestação de serviços na atividade”. (464) Vide Súmula 358 do TST: “O salário profissional dos técnicos em radiologia é igual a 2 (dois) salários mínimos e não a 4 (quatro)”. Os técnicos em radiologia são regidos, hoje, pela Lei n. 7394/85. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 181 pela majoração do mínimo legal, atribuiu-se aos Estados e ao Distrito Federal a competência para fixar piso salarial. O artigo primeiro da citada lei complementar tem a seguinte dicção: Art. 1o. Os Estados e o Distrito Federal ficam autorizados a instituir, mediante lei de iniciativa do Poder Executivo, o piso salarial de que trata o inciso V do art. 7o da Constituição Federal para os empregados que não tenham piso salarial definido em lei federal, convenção ou acordo coletivo de trabalho. Logo se dissipou, porém, a suspeita de que assim se deflagraria uma tentativa governamental de emprestar-se à expressão piso salarial o inédito significado de salário mínimo estadual. Não tardou para que todos entendessem a necessidade de o piso salarial ser fixado na proporção da comple- xidade e da extensão do trabalho, pois assim está assentado na Constituição e decidiu o Supremo Tribunal Federal: Consubstanciam institutos diversos o piso salarial e o salário mínimo – incisos IV e V do artigo 7º da Carta Fede- ral. Ao primeiro exame, conflita com os textos constitucionais lei estadual que, a pretexto de fixar piso salarial no respectivo âmbito geográfico, acaba instituindo, por não levar em conta as peculiaridades do trabalho – extensão e complexidade -, verdadeiro salário mínimo estadual – Lei n. 3.496/2000 do Estado do Rio de Janeiro (STF, Tribunal Pleno, ADI 2358 MC, Relator Ministro Marco Aurélio, julgado em 15/02/2001, DJ 27-02-2004 PP-00019). Em suma, o piso salarial deve sempre estar associado às especificidades da categoria agraciada. Os estados da Federação que tinham interesse em fixar piso salarial para os trabalhadores que neles se ativavam logo perceberam que deveriam ajustar-se à exigência constitucional de combinar valores com os critérios de complexidade e extensão, editando novas leis estaduais que atendiam, finalmente, a essa diretriz. O Supremo Tribunal Federal foi provocado uma vez mais, respondendo que eram constitucionais, porque fixavam pisos diferenciados segundo os parâmetros da complexidade e da extensão do trabalho, as leis fluminenses(465) e paranaenses(466) que fixavam pisos salariais. Sobre o piso salarial que pode ser fixado em norma coletiva, as categorias profissionais têm revelado a preocupação de não vinculá-lo ao salário mínimo, fixando-o em valor nominal. A já referida oscilação do Supremo Tribunal Federal, quando teve que pronunciar a constitucionalidade, ou não, das normas que vinculavam prestações salariais ao salário mínimo, justifica a preocupação. Duas questões, ainda relativas ao salário mínimo, que merecem breve reflexão. São elas relativas às jornadas reduzidas e ao salário variável. Ao enfrentá-las, vamos tratar logo de diferenciar os modos de fixação do salário. Como adiante se vê, o salário pode ser fixado por unidade de tempo, por unidade de obra ou por tarefa, sendo esse último uma tentativa de combinar os dois tipos anteriores. 9.2.1.2 O salário por unidade de tempo e o salário mínimo. Jornada reduzida O salário, seja o seu valor igual ou superior ao mínimo legal, pode ser ajustado à razão do tempo de trabalho, quando então o empregado receberá um valor contratado por cada hora, dia, semana ou mês de trabalho. A sua classificação como um empregado horista, diarista, semanalista, quinzenalista ou mensalista pode repercutir no cálculo de algumas vantagens trabalhistas(467), mas deve ficar escla- recido que o empregado é horista pelo fato de o seu salário ser calculado na proporção das horas de trabalho, e não por recebê-lo ao final de cada uma dessas horas. Se o referido empregado receber o seu salário, apurado por hora de trabalho, ao final de cada mês, ainda assim será um empregado horista, o mesmo se dando quanto aos diaristas, semanalistas etc. Quando o empregado é horista, diarista ou semanalista, o salário que corresponderá às horas ou dias da semana deverá ser sempre acrescido da remuneração do dia de repouso semanal e dos feria- dos de observância obrigatória(468), desde que o empregado tenha sido assíduo e pontual na semana anterior(469). Logo, o empregado recebe o equivalente a sete dias de salário, se é diarista e trabalhou, sem falta ou atraso, nos seis dias úteis da semana. Sendo de menos de seis dias o tempo ajustado de (465) STF, ADI 4391, Rel.  Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 02/03/2011, processo eletrônico DJe-117 Divulg 17-06-2011 Public 20-06-2011. (466) STF, ADI 4432, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. em 28/04/2011, processo eletrônico DJe-170 Div. 02-09-2011 Pub. 05-09-2011. (467) Vide arts. 487 da CLT e 7o, §2o, da Lei n. 605/49. (468) Vide Lei n. 9.093/95. (469) Art. 6o da Lei n. 605/49. 182 – Augusto César Leite de Carvalho trabalho, computar-se-á esse tempo reduzido, dividindo-se o salário semanal, se for este o caso, pelo número de dias de labor, para assim se calcular a remuneração do dia de repouso semanal(470). Quando o empregado é quinzenalista ou mensalista, no valor do seu salário já está incluída a remuneração do seu repouso semanal ou em feriados(471). Voltando ao salário mínimo, cabe lembrar que este é previsto para o mês de trabalho, mas as leis que estabelecem o seu valor também referem, não raro, o salário mínimo horário e o salário mínimo por dia de trabalho(472). Portanto, é lícito ao empregador ajustar uma jornada menor que a legal e pagar ao empregado o salário mínimo proporcional à carga horária contratada. Em outras palavras, o que autoriza o pagamento de salário menor que o mínimo mensal é o ajuste de jornada reduzida(473), não havendo necessidade de contrato escrito pertinente ao salário, como por vezes se sustenta. Essa regra – a de o salário mínimo ser proporcional à extensão da jornada em caso de jornada reduzida – está inclusive consagrada na orientação jurisprudencial n. 358 da SBDI-1 do TST, mas é fato que ao início de 2016 o Tribunal Superior do Trabalho foi instado a ressalvar os servidores públi- cos que, segundo o Supremo Tribunal Federal, têm direito ao salário mínimo mensal mesmo quando cumprem jornada reduzida. No julgamento do RE 582019, com repercussão geral, o Plenário do STF reafirmou a sua jurisprudência(474) para fixar a tese segundo a qual “a garantia do salário mínimo, a que se referem os artigos 7º, IV, e 39, §3º, da CF, corresponde ao total da remuneração percebida pelo servidor e não ao seu salário-base”. O STF se refere ao salário mínimo mensal. Anteriormente, sustentávamos que os empregados domésticos compunham a única categoria que, recebendo por unidade de tempo, não poderia ter salário mínimo menor que o mensal, pois a ordem jurídica dizia ser incompatível a fixação de jornada com a modalidade de trabalho desenvolvido nas resi- dências e, portanto, ao negar-lhes o direito a horas extras, também não poderia consentir fosse reduzido o seu salário na proporção de sua jornada. Essa regra mudou, porém, a partir de quando o parágrafo único do artigo 7º da Constituição ganhou conteúdo que estende aos empregados domésticos o direito de ter jornada não superior a oito horas e quarenta e quatro horas semanais. O tempo de trabalho dos domésticos, antes um dado juridicamente irrelevante, ganhou enfim a devida regulação(475). 9.2.1.3 O salário variável e o salário mínimo. Hipótese de jornada reduzida O salário pode ainda ser ajustado por unidade de obra ou serviço. A lei e a jurisprudência se refe- rem ao salário por unidade de obra como salário variável, porque oscila o seu valor no tempo(476). É o caso, exempli gratia, do empregado que recebe um valor previamente ajustado para cada peça que fabrique (peceiro) ou um percentual qualquer sobre o resultado das vendas que porventura realize (comissionista). Os exemplos seriam vários, existindo, inclusive, a possibilidade de a comissão ser fixada em valor nominal (uma certa quantia por cada peça vendida), e não na forma percentual. Regra geral, o salário por unidade de obra é individual, sendo apurado segundo o desempenho de seu credor, exclusivamente. Mas é possível que o salário por obra seja calculado com base na produ- ção de uma equipe de trabalhadores, a isso se denominando salário coletivo. Martins Catharino(477) afirma que “o salário coletivo por unidade de obra é mais ou menos frequente nos trabalhos de estiva, de capatazia nos portos, de construções e em certas atividades agrícolas, como roçagens, derruba- das, plantações”. O autor lembra, ainda, que “a forma da retribuição, dependendo do contrato, não tem força para transfigurá-lo”. Haverá, enfim e nessa hipótese de salário coletivo, um contrato de emprego em relação a cada membro da equipe, desde que presentes, por igual, a subordinação, a pessoalidade e a não eventualidade. (470) Art. 6o, §3o, da Lei n. 605/49. (471) Art. 7o, §2o, da Lei n. 605/49. (472) Vide, por exemplo, o art. 1o, §1o, da Lei n. 9.032/95. (473) Neste sentido, Valentin Carrion (CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 126), que faz remissão a acórdão da 4a Turma do TST (TST, RR 467236/98.9, Rel. Min. Galba Magalhães Velloso). (474) Nesse sentido, além de decisões monocráticas no RE 565621, ARE 891044 e no ARE 663068, cita-se o AI 815869 AgR, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 230 24/11/2014. (475) A duração do trabalho do doméstico, inclusive a delimitação de sua jornada e o direito ao adicional noturno, está minuciosamente regulamentada pela Lei n. Complementar n.150, de 2015, como adiante se verá. (476) Embora não se possa criticar o argumento de que mesmo assim haveria salário fixo, pois se fixa um valor ou um percentual para certa medida de obra ou serviço. (477) CATHARINO, Tratado Jurídico do Salário, p. 158. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 183 Quando o salário, individual ou coletivo, é fixado por unidade de obra, o empregador estimula a produção e pode relaxar a fiscalização dos serviços, pois os seus empregados estão imbuídos do desejo de produzir mais, para auferir maior ganho. No entanto, o salário por unidade de obra também promove o acirramento da competição no setor de trabalho e o excesso de fadiga, ante a necessidade de o traba- lhador alcançar padrão competitivo para ser aceito no mercado, tudo a suscetibilizar a harmonia do meio ambiente de trabalho. É o que sucede, por exemplo, na lavoura da cana-de-açúcar(478). Para relativizar tais efeitos, alguns empregadores adotam um salário misto, como o salário por tarefa, que, em uma de suas possíveis modalidades, significa a estipulação de um salário correspon- dente a certa produção diária, estando desonerado o trabalhador de continuar cumprindo jornada quando alcança essa meta, a cada dia. Se continuar laborando após cumprir tal meta e assim a supe- rar, premia-se, em regra, o empregado. A norma estatal previne, porém, dois possíveis conflitos, que têm a ver com: a) a proteção relativa ao salário mínimo em favor do empregado que recebe por produção; b) e, também, com a situação na qual o empregador institui salário por unidade de obra e pretende, ao mesmo tempo, correlacionar o salário mínimo com o tempo de trabalho. Vejamos quais as soluções oferecidas pela lei. O artigo 7o, inciso VII, da Constituição prevê a “garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável”. Duas décadas antes de ser editada a atual Carta Política já estavam o artigo 78 e seu parágrafo único, da CLT, a prescrever que o empregador deveria completar o valor do salário mínimo, sem direito a compensar referido complemento em mês posterior, sempre que pagasse salário variável ou misto e esse salário não alcançasse o valor do mínimo legal diário, em cada dia de trabalho. A regra, claramente protetiva, deixava à margem, porém, o empregado que, por motivos estra- nhos à sua vontade, não laborava em todos os dias úteis da semana, a exemplo do que sucedia nos dias em que a chuva ou o clima desfavorável inviabilizava a prestação de trabalho. Além de a norma transferir, em tais circunstâncias e embora sem o propósito, o risco da atividade econômica para o empregado, permitia ao empregador variar, à sua conveniência, os dias de trabalho, com a correspon- dente variação de salário, numa atmosfera virtualmente inóspita à subsistência do trabalhador. A nosso pensamento, o artigo 1o da Lei n. 8.716/93(479) resolveu o problema, ao garantir não mais o salário mínimo diário, mas agora o salário mínimo mensal, aos empregados que recebem comissão ou são remunerados por peça, tarefa ou outras modalidades de salário variável. Logo, o empregador que ajustar salário variável assume o ônus de pagar o mínimo mensal, não podendo, em prejuízo deste, variar o salário na proporção do tempo de trabalho. 9.2.2 Salário-utilidade A menção à origem etimológica da palavra salário – que é alusiva ao sal, como forma de remu- nerar o serviço de domésticos e legionários romanos – revela um modo primitivo de se remunerar o trabalho mediante o fornecimento de coisa diferente de dinheiro. Ainda hoje, o salário pode ser pago, ao menos em parte, por meio de prestações in natura. É o salário-utilidade. 9.2.2.1 Limites percentuais do salário-utilidade No que diz respeito ao empregado que recebe salário mínimo, a Consolidação das Leis do Traba- lho referia-se a cinco utilidades que podiam integrá-lo: alimentação, habitação, vestuário, higiene e (478) Francisco Alves (ALVES, Francisco. Políticas públicas compensatórias para a mecanização do corte da cana crua: indo direto ao ponto. Ruris, Campinas, v. 3, n. 1, p. 153-178, 2009), citado em monografia do acadêmico José Roberto Porto de Andrade Júnior (disponí- vel em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000112010000100029&script=sci_arttext), observa que um trabalhador, na lavoura da cana, ao cortar 12 toneladas em um dia, caminha, nesse dia de trabalho, 8.800 metros, despende 133.332 golpes de podão e carrega as 12 toneladas de cana em montes de 15 kg. Para isso, tal trabalhador realiza 800 trajetos e 800 flexões, levando 15 kg nos braços por uma distância de 1,5 a 3 metros. Faz, também, aproximadamente 36.630 flexões e entorses torácicos para golpear a cana e perde, em média, 8 litros de água por dia [...]. Em virtude dessa exigência física intensa, o trabalho canavieiro gera uma série de limitações e debilitações na saúde dos trabalhadores rurais. (479) O citado dispositivo reza o seguinte: “Aos trabalhadores que perceberem remuneração variável, fixada por comissão, peça, tarefa ou outras modalidades, será garantido um salário mensal nunca inferior ao salário mínimo”. 184 – Augusto César Leite de Carvalho transporte. Mas o artigo 76 da CLT, que assim previa e fazia alusão a essas necessidades básicas do trabalhador, foi parcialmente revogado pelo artigo 7o, IV, da Constituição, que prestigiou o salá- rio mínimo familiar e acrescentou às necessidades vitais, a serem providas pelo salário mínimo, a educação, a saúde, o lazer e a previdência social. Já dissemos da eficácia limitada desse dispositivo constitucional. Com base no artigo 81, §1o, da mesma CLT, o Ministério do Trabalho sempre regulamentou o limite percentual que cabia a cada uma das utilidades, na composição do salário mínimo. O artigo 82, parágrafo único, estabelece que “o salário mínimo pago em dinheiro não será inferior a 30% (trinta por cento) do salário mínimo fixado para a região”. O citado preceito da CLT continua em vigor, mas a referência, agora, deve ser ao salário mínimo nacionalmente unificado, dada a expressão do texto constitucional. Para o empregado que recebe apenas o salário mínimo, desagrada-lhe recebê-lo em utilidades. Ele se opõe à caracterização do salário in natura, postulando que todo o seu estipêndio seja pago em dinheiro. Por sua vez, o empregado que recebe mais que o salário mínimo tem interesse diverso, pois lhe agrada a ideia de somar ao salário em dinheiro o pagamento em utilidades, com efeito na quanti- ficação de verbas (férias, 13o salário, remuneração dos dias de repouso, aviso-prévio etc.) que têm o salário como base de cálculo. Importa notar, ainda quanto ao empregado que percebe salário maior que o mínimo legal, três aspectos do salário-utilidade por ele, virtualmente, recebido. O primeiro aspecto é pertinente à adoção, em favor de tal empregado, do percentual mínimo (30%) a ser pago em dinheiro. A doutrina e a juris- prudência(480) são, muita vez, favoráveis a que lhe seja estendido o limite fixado para os empregados que vencem apenas o mínimo, inclusive porque é clara a intenção do legislador brasileiro de vedar o truck system(481)ou a limitação, por qualquer meio, de o empregado dispor, livremente, de seu salário. Com esse propósito, o artigo 462, §§ 2o a 4o, da CLT, protege o empregado sem acesso a outro comércio que não os armazéns ou serviços mantidos pela empresa, impedindo sejam eles coagidos ou induzidos a destes se servir. Seria importante, ainda, observar que a Convenção n. 95 da OIT foi ratificada pelo Brasil e, como lembra Amauri Mascaro Nascimento(482), ela proíbe o pagamento integral do salário em utilidades. Logo, a aplicação sistêmica da ordem trabalhista implicaria, ao que intuímos, a extensão do limite mínimo, de 30% em dinheiro, também aos empregados que recebem salário maior que o mínimo legal, mas é certo que não há posição assente na jurisprudência quanto a esse limite percentual. Um segundo aspecto relevante do salário-utilidade, percebido pelo empregado com salário maior que o mínimo, é concernente à possibilidade de qualquer prestação in natura (não somente aquelas nove referidas no artigo 7o, IV, da Constituição, alusivas ao salário mínimo) poder configurar-se uma prestação salarial. O artigo 458 da CLT apenas exemplifica algumas utilidades (alimentação, habi- tação, vestuário), mas permite que a elas se somem, como hoje se usa fazer, a conta telefônica do empregado, a sua despesa com transporte ou com o combustível de seu veículo, equipamentos de telefonia e informática etc. O terceiro aspecto é relativo ao valor da utilidade, a ser computado na composição do salário. Está dito que o Ministério do Trabalho fixa limites percentuais para cada uma das utilidades que podem inte- grar o salário mínimo, cabendo perquirir se igual limitação existe para o salário maior que o mínimo legal. Tentando dirimir os conflitos dessa ordem, a Súmula 258 do TST recomenda: “Os percentuais fixados em lei relativos ao salário in natura apenas se referem às hipóteses em que o empregado percebe salário mínimo, apurando-se, nas demais, o real valor da utilidade”. Portanto, e apesar da dicção do artigo 458, §1o, da CLT(483), a orientação jurisprudencial é claramente no sentido de se consultar o “real valor da utili- dade” na apuração do complexo salarial. (480) Vide orientação jurisprudencial n. 18 da SDC do TST. (481) Evaristo de Moraes Filho, prefaciando o livro de seu pai (Apontamentos de direito operário. p. LXV), esclarece que o truck-system era o regime de colonato, em que homens livres e pobres pagavam o direito de usar um pequeno trato de terra com trabalho gratuito para o senhor de engenho ou com a entrega de parte de sua produção. (482) Op. cit. p. 195. (483) Art. 458, §1o, da CLT: “Os valores atribuídos às prestações in natura deverão ser justos e razoáveis, não podendo exceder, em cada caso, os dos percentuais das parcelas componentes do salário mínimo (arts. 81 e 82).” Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 185 É importante observar, porém, que a Súmula 258 do TST foi editada em 1986. Depois disso, a Lei n. 8.860, de 1994, acrescentou ao artigo 458 da CLT um terceiro parágrafo, que limita o valor da utilidade que toca à habitação ou à alimentação. Verbis: Art. 458, §3o, da CLT – A habitação e a alimentação fornecidas como salário-utilidade deverão atender aos fins a que se destinam e não poderão exceder, respectivamente, a 25% (vinte e cinco por cento) e 20% (vinte por cento) do salário contratual. Quanto ao trabalhador rural, restaura-se o salário mínimo como base de cálculo do salário-utili- dade e os percentuais se invertem, limitando o artigo 9o, a e b, da Lei n. 5.889, de 1973, a 20% do salá- rio mínimo a habitação e a 25%, a alimentação. Não há, afora isso, a possibilidade de o empregado rural receber outras prestações in natura, além destas. 9.2.2.2 Configuração do salário-utilidade. Regras especiais dos trabalhadores rurais e dos domésticos A caracterização como salário de uma coisa ou serviço fornecidos ao empregado, pelo emprega- dor, é tarefa, às vezes, difícil. Ainda mais porque os sujeitos da relação de emprego estão quase sempre em defesa de interesses opostos. Quando é para compor o salário mínimo, interessa ao empregador sustentar que a habitação, a alimentação ou qualquer das outras utilidades, autorizadas pela Consti- tuição, têm natureza de salário. Mas se o empregado recebe salário maior, interessa a ele, e não ao empregador, a configuração da utilidade como prestação salarial e sua consequente repercussão no cálculo de outras verbas. Para ser salário, é certo que a utilidade deve significar um ônus para o empregador, não o sendo, portanto, se é o próprio empregado quem a custeia. Essa onerosidade deve ser percebida em um sentido, porém, ainda mais largo. É que o contrato de emprego é oneroso, da classe dos comutativos, exatamente porque as prestações são recíprocas e, a princípio, se equivalem. Logo, à prestação de trabalho deve corresponder a contraprestação salarial. Nesse sentido, quando se defende que a prestação in natura somente tem natureza de salário se onerosa, o que se está a advogar, em última análise, é a finalidade da prestação in natura como o crité- rio válido para a verificação de sua índole salarial. É o mesmo que afirmar: para ser salário, a utilidade deve ser fornecida com o objetivo de remunerar o esforço pessoal do empregado, a disponibilidade de sua energia laboral. Se a coisa ou serviço apenas viabiliza a prestação de trabalho, não se reveste ela da característica de salário. Exemplo disso é o que sucede com o veículo fornecido ao empregado-ven- dedor para que ele possa realizar vendas, ou a habitação e a alimentação garantidas ao trabalhador que presta serviço em local de difícil acesso, onde pernoita. Não há salário em tais circunstâncias, pois é evidente o caráter instrumental desses bens, entregues ao empregado para que ele possa exercer a função pela qual é ele, de outro modo, remunerado. Salário haveria se os bens não fossem necessá- rios à realização do trabalho, sendo oferecidos em troca da prestação laboral, como uma forma de o empregador retribuir ao empregado pela força de trabalho que ele lhe disponibilizou(484). O fundamento legal para a consagração desse critério finalístico ou teleológico está assentado no artigo 458, §2o, I, da CLT, que nega a caracterização como salário de “vestuários, equipamentos e outros acessórios fornecidos aos empregados e utilizados no local de trabalho, para a prestação de serviço”. Ademais, o caput e os outros incisos do parágrafo segundo do artigo 458 da CLT autorizam a indicação de outros parâmetros, úteis à constatação de que uma utilidade tem, ou não, a natureza de salário. No caput está prescrito: Além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações in natura que a empresa, por força do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado. Em caso algum será permitido o pagamento com bebidas alcoólicas ou drogas nocivas. (484) Vide Súmula 367, I, do TST: “A habitação, a energia elétrica e veículo fornecidos pelo empregador ao empregado, quando indispen- sáveis para a realização do trabalho, não têm natureza salarial, ainda que, no caso de veículo, seja ele utilizado pelo empregado também em atividades particulares”. 186 – Augusto César Leite de Carvalho Seguindo a trilha oferecida pelo texto legal, diz-se que a habitualidade da prestação in natura é indispensável à configuração do salário-utilidade. Poder-se-ia sustentar que o empregador deveria estar consciente de o contrato ou o costume o obrigarem a prover o empregado de tal ou qual utilidade. Mas, ao revés, não há dúvida de que a habitualidade, em direito do trabalho, induz ajuste tácito. E como o costume também pressupõe uma prática habitual, o dispositivo sob análise pode ser interpretado com o significado de ser exigível apenas a habitualidade da prestação in natura, além da finalidade retributiva que é posta em relevo pelo artigo 458, §2o, I, da CLT. O mesmo caput do artigo 458 da CLT exclui a natureza salarial de drogas nocivas, ainda que lhes assista a finalidade retributiva. Em razão disso, a jurisprudência tem proscrito a inclusão do cigarro no salário(485). Por derradeiro, os incisos II a VI, acrescidos ao parágrafo segundo do artigo 458 da CLT, refletem a tendência de se recusar a natureza de salário às medidas implementadas pelo empregador como forma de compensar a insuficiência dos serviços públicos. O Estado social é uma conquista teórica, em países que não figuram, como o nosso, no centro da economia global. Quando exigentes de inter- venção estatal, os direitos sociais são oferecidos precariamente, abrindo espaço, inclusive, à atuação concorrente da empresa privada. Admitindo a própria inapetência, o Estado brasileiro acrescentou, ao mencionado preceito da CLT, a natureza não salarial de utilidades que, a bem ver, poderiam ter finalidade retributiva e ser habituais. Referimo-nos ao fornecimento, pelo empregador, de “educação, em estabelecimento próprio ou de terceiros, compreendendo os valores relativos a matrícula, mensalidade, anuidade, livros e material didático”; “transporte destinado ao deslocamento para o trabalho e retorno, em percurso servido ou não por transporte público”; “assistência médica, hospitalar e odontológica, prestada diretamente ou mediante seguro-saúde”; “seguros de vida e de acidentes pessoais”; “previdência privada”. Em confor- midade com os incisos II a VI do artigo 458, §2o, da CLT, essas utilidades estarão sempre desprovidas de natureza salarial. Numa suma do que foi, até aqui, articulado, poderíamos afirmar que o salário-utilidade tem quatro características: a) a finalidade retributiva; b) a habitualidade; c) a não nocividade à saúde do trabalha- dor; d) a não configuração como medida substitutiva de serviço próprio ou impróprio do Estado. Ressalva-se o empregado rural, uma vez que o artigo 9o, §1o, da Lei n. 5.889, de 1973, exige seja previamente autorizado o desconto salarial que servir para atender à alimentação ou à habitação, únicas utilidades que podem integrar o seu salário. A norma está a enfatizar a necessidade de a inclu- são dessas prestações in natura no salário ser contratada expressamente. A simples habitualidade não acarreta a conversão em salário, pois então não haveria o ajuste prévio, imposto pelo mencionado dispositivo legal. Também é específica a regra do salário-utilidade quanto ao empregado doméstico e, à primeira vista, ainda mais difícil é a configuração como salário de qualquer prestação que lhe seja assegurada em razão do trabalho. É que o art. 18 da Lei n. Complementar 150/2015 (à semelhança do que já previa o art. 2º-A da Lei n. 5.859, de 1972) veda ao empregador doméstico descontar do salário o que porventura corresponder a alimentação, vestuário ou higiene do empregado, bem assim as despesas com moradia localizada no perímetro correspondente à residência do empregador (§2º). Ao que inte- ressa mais de perto, o citado art. 18, em seu §3º, prevê que, mesmo quando oneram o empregador, as mencionadas despesas de alimentação, vestuário, higiene e moradia “não têm natureza salarial nem se incorporam à remuneração para quaisquer efeitos”. Não é tudo. A mesma lei autoriza seja descontada a participação do empregado domestico, não superior a 20% do salário, em planos de assistência médico-hospitalar e odontológica, de seguro e de previdência privada. Parece possível especular, ante a usual singeleza das necessidades reclamadas no âmbito do trabalho doméstico, que o desconto pela participação nesses planos, assim consentido, revelaria, na prática, a única prestação in natura que poderia revestir-se de natureza de salário, naquilo que sobejasse a quantia descontada pelo empregador. Mas a exegese assim intuída não seria uma interpretação sistêmica, pois não se afiguraria consentânea com a preocupação – que o legislador outrora demonstrou ter em relação à generalidade dos trabalhadores (art. 458, §2º, da CLT) – de não (485) Vide Súmula 367, II, do TST: “O cigarro não se considera salário utilidade em face de sua nocividade à saúde” Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 187 permitir que as utilidades substitutivas de serviços públicos fossem inseridas no conjunto das presta- ções salariais. A prevalecer essa ordem de ideias, conclui-se facilmente que as utilidades oferecidas ao empre- gado doméstico nunca se caracterizam como parte do salário. Mas é sempre prudente deixar a reali- dade moldar o substrato factual da norma jurídica, pois os fatos e o engenho humano por vezes se mostram imprevisíveis. 9.2.2.3 Conversão em dinheiro. Salário-utilidade na suspensão contratual O empregador não pode, unilateralmente, converter o salário-utilidade em dinheiro, salvo se essa alteração for benéfica ao empregado. É sempre subjetiva a constatação desse caráter benéfico, mas estaria ele presente, a princípio, numa hipótese em que o empregador promovesse tal conversão segundo o real valor da utilidade, sem se restringir à limitação percentual(486) acaso prevista em lei. O estudo do tema alteração contratual deverá resultar, enfim, na percepção de que mesmo a alteração bilateral é inválida, se for prejudicial ao empregado(487). É relevante, contudo, investigar como poderia ocorrer o pagamento do salário-utilidade em períodos de interrupção ou suspensão contratual, ou seja, nas hipóteses, previstas em lei, em que o contrato é preservado, mas o trabalhador está desobrigado de prestar serviço. Se o caso é de inter- rupção contratual, o empregador continua devendo o salário e, por isso, a eventual impossibilidade de o empregado permanecer fruindo a utilidade – que integra o salário – implicará a sua conversão em dinheiro. Quando há, propriamente, suspensão contratual (não apenas interrupção), empregado e empre- gador se desoneram de prestar trabalho e salário, respectivamente. É a situação em que se encontra, por exemplo, o contrato do empregado que padece de enfermidade, após o décimo quinto dia de afas- tamento. Sobre se manter, ou não, a obrigação de pagar o salário-utilidade, interessa não somente responder a essa questão, mas também indicar, se afirmativa a resposta, a quem cabe o pagamento. Após afirmar a inexistência de lei que regule a matéria e a escassez de uma solução doutrinária, Amauri Mascaro Nascimento(488) revela a sua perplexidade ante o tema: O problema não pode ser resolvido de modo genérico, mas, sim, diante do tipo de utilidade, uma vez que algumas podem ser retiradas do empregado quando o contrato de trabalho está suspenso, como automóvel, e outras não, como a moradia. Impõe-se, também, veri- ficar se a suspensão do contrato decorre de motivos atribuídos ao empregador, caso em que a este compete suportar todos os riscos, ou ao trabalhador, hipótese na qual não pode ser igual a solução. Ao que entendemos, o salário-utilidade é, para todos os efeitos, salário. Se o empregador cumpre as suas obrigações trabalhistas e as prestações fiscais que lhes são correlatas, integra ele à base de cálculo da contribuição previdenciária o salário-utilidade que paga ao seu empregado, pois assim exige o artigo 28, I, da Lei n. 8.212, de 1991. Em meio ao período de suspensão contratual que ocorrer com ônus para a Previdência, poderá o empregador suspender, portanto, o fornecimento da utilidade salarial, porque o benefício previdenciário (auxílio-doença) será calculado e pago com base no salá- rio-de-contribuição, estando neste incluída a prestação in natura. Se o empregador agir em detrimento da lei, cabe ao empregado pleitear perdas e danos, visto ser flagrante o prejuízo que a inadimplência patronal lhe terá infligido. Os casos que merecerão tratamento singular, com base em exame tópico, serão aqueles em que não há a obrigação de o empregador ou a Previdência pagar salário ou benefício, em meio à suspen- são contratual. Deles são exemplos a greve e a prestação de serviço militar ordinário, como se poderá estudar a seu tempo. (486) Vimos que a integração das prestações in natura ao salário mínimo e da habitação e alimentação a qualquer salário deve respeitar um limite percentual. (487) Vide art. 468 da CLT. (488) Op. cit. p. 207. 188 – Augusto César Leite de Carvalho 9.2.3 Modalidades de salário Distinguimos, nos dois últimos tópicos deste trabalho, o salário por unidade de tempo do salário por unidade de obra e do salário misto. Em rigor, estamos a tratar de formas de fixação ou cálculo do salário. Pudemos notar, ainda, que o salário pode ser pago em dinheiro ou em utilidade. Também já foi possível perceber que as verbas que são pagas pelo empregador, mas têm vocação remuneratória, inclusive os adicionais (que para os teóricos da tripartição, revestir-se-iam de natureza indenizatória), podem ser atraídas pelo núcleo salarial, quando a sua origem contratual ou contrapres- tacional se desenhar com nitidez, normalmente por meio da habitualidade. Quanto às modalidades de salário, importa observar, enfim, a ocorrência de parcelas salariais que o empregador não intitula salário, mas ainda assim o são, por acepção legal. Referimo-nos ao artigo 457, §1o, da CLT, que estatui: “Integram o salário não só a importância fixa estipulada, como também as comissões, percentagens, gratificações ajustadas, diárias para viagens e abonos pagos pelo empregador”. 9.2.3.1 Comissão e percentagem A comissão é uma forma de salário variável, como fora dito ao exame do salário mínimo. Com extremo poder de síntese, Catharino(489) afirmou que “comissão é tipo de participação, sem interferên- cia do lucro”. O importante é notar que não é da essência da comissão o seu cálculo com base no valor da transação (ou da mercadoria negociada pelo vendedor, por exemplo), pois a comissão não precisa ser fixada, necessariamente, na forma percentual. Uma quantia predeterminada, que o empregado receba por cada coisa transacionada (por exemplo, R$ 5,00 por peça vendida de qualquer valor), é comissão de igual forma. Defende Marly Cardone(490), por isso, que “a percentagem é modalidade de comissão”. Recebem-na os vendedores, normalmente. Mas, no jargão de alguns outros profissionais, a percentagem que perce- bem também é denominada comissão, o que em nada interfere, dada a coincidência do tratamento legal. Ademais, a comissão pode ser direta ou indireta. Será do primeiro tipo quando resultar da tran- sação realizada pelo empregado, pessoalmente. Conforme Catharino(491), a comissão indireta “tem origem em transação (ou transações) para a qual o empregado concorreu mediata ou remotamente, dependendo de estipulação expressa, pois não guarda correlação com o serviço prestado”. O autor cita, como exemplo dessa última espécie de comissão, aquela a que têm direito os chefes de venda por transações realizadas por meio de seus subordinados. Porém, se a quantia, ajustada em valor nominal ou percentual, não for exigível em razão de negó- cio levado a efeito, direta ou indiretamente, pelo empregado, mas, em vez disso, tornar-se devida com base em outro parâmetro de avaliação de seu desempenho (nível de atividade mercantil em sua área de atuação, obtenção de meta, assiduidade etc.), decerto que não se cuidará mais de comissão, mas sim de prêmio, como veremos a seu tempo. Voltaremos a cuidar de comissão ao tratar, logo adiante, do salário-base e complementos sala- riais. Quanto às demais parcelas (gratificações ajustadas, diárias para viagem e abonos), que também são salário por acepção legal, sobressai o desejo de o legislador pôr cobro à dissimulação, ao salário disfarçado, cabendo a análise de cada qual. 9.2.3.2 Gratificações ajustadas O termo gratificação denota uma liberalidade, um gesto espontâneo de agradecimento, às vezes de reconhecimento por uma obra benfazeja. Quem gratifica, não o faz porque se obrigou mediante contrato, e, se assim o fizer, não haverá gratificação. Bem se vê, a expressão gratificação ajustada revela uma antinomia em termos. (489) CATHARINO, Compêndio universitário de direito do trabalho, p. 486. (490) CARDONE, Marly A. Viajantes e pracistas no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1990. p. 57. (491) Op. cit. p. 487. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 189 Pretendeu o legislador referir-se à gratificação que o empregador reitera, pagando-a com perio- dicidade regular ou em situações que a fazem previsível. Presume-se que essa gratificação habitual perdera a sua natureza de gratificação, integrando-se ao salário. Seria uma falsa gratificação, um salário escamoteado. O Supremo Tribunal Federal sumulou que a característica da habitualidade converte a gratifica- ção em salário ou, para usar a expressão legal, em gratificação ajustada(492). Por seu turno, o Tribunal Superior do Trabalho enunciou que “o fato de constar do recibo de pagamento de gratificação o caráter da liberalidade não basta, por si só, para excluir a existência de um ajuste tácito”(493). Isso faz refletir sobre a possibilidade de uma gratificação se converter em salário por ser habitual, mesmo quando o empregador não pretendia, desde o início, dissimular, por essa via, o pagamento de verba salarial. Tal conversão é possível, menos em razão da tentativa de disfarçar o pagamento de salário (que poderia, nessa hipótese, inexistir) que em virtude da necessidade de se garantir a estabilidade econômica do empregado, como se pode extrair da lição de Amauri Mascaro Nascimento(494): Por influência dos usos e costumes, as gratificações tornaram-se uma tradição. Os emprega- dores repetiram o ato espontâneo que passou, assim, a entrar nos quadros normais da rela- ção de emprego. Essa reiteração criou, para o empregado, uma expectativa de contar com o valor correspondente nos seus ingressos econômicos. Desse modo, a gratificação, grada- tivamente, transformou-se. O empregado passou a exigi-la, sempre que habitual. Sensível ao aspecto econômico, a legislação trabalhista passou a considerar o que era antes uma liberalidade, uma verdadeira obrigação do empregador. Assim, as gratificações constituem uma modalidade de salário. Algumas gratificações habituais ganharam, com o tempo, nova fonte jurídica, transcendendo, assim, o seu fundamento anterior, que era estritamente contratual. Nessa esteira, a gratificação semes- tral foi incorporada às convenções coletivas dos bancários em vários Estados, a gratificação por tempo de serviço também se inseriu em normas coletivas ou em regulamentos de empresa, a gratificação de função passou a gerar efeitos jurídicos incompatíveis com uma prestação que se caracterizasse como uma real liberalidade (referimo-nos ao artigo 62, parágrafo único, e ao artigo 224, §2o, da CLT) e a gratificação natalina veio a ser exigida por lei e, mais recentemente, pela Constituição. A) O décimo terceiro salário: a antiga gratificação natalina Conforme previsto em lei(495), o valor do décimo terceiro salário corresponde à remuneração devida no mês de pagamento. No artigo 7o, VIII, da Carta Magna, o nome gratificação natalina fora corrigido para décimo terceiro salário, sendo lamentável que essa mesma nomenclatura não fosse mantida em outros dispositivos constitucionais(496). É que a verba não tem mais o caráter de gratificação, desde quando se a impôs por preceito legal. E também não é, propriamente, natalina, pois a Lei n. 4.749, de 12 de agosto de 1965, estatui que o empregado receberá uma primeira fração, que corresponderá à metade de seu salário, entre feve- reiro e novembro de cada ano, salvo se o empregado optar, no mês de janeiro (que é reservado para essa opção), por receber essa primeira metade do décimo terceiro salário ao ensejo de suas férias. A segunda metade será paga até o dia vinte do mês de dezembro. Além disso, o adjetivo natalina parece impróprio, de igual modo, porque a Lei n. 4.090, de 13 de julho de 1962, desde antes já assegurava o direito de o empregado receber, quando da cessação de seu contrato, o 13o salário proporcional, vale dizer, recebê-lo à razão de tantos duodécimos quantos sejam os meses ou período de trabalho superior a quatorze dias do ano correspondente. Neste ponto, importa acentuar o que é, para nós, uma clara incoerência da ordem jurídica. A mesma Lei n. 4.090, de 1962, teria negado o décimo terceiro salário proporcional aos empregados que cometem justa causa, ao prescrever que a parcela (o 13o salário proporcional) é devida na extinção dos contratos a termo, na cessação do contrato por aposentadoria e aos empregados dispensados (492) Súmula 207 do STF: “As gratificações habituais, inclusive a de Natal, consideram-se tacitamente convencionadas, integrando o salário”. (493) Súmula 152 do TST. (494) Op. cit. p. 246. (495) Lei n. 4.090/62. (496) Vide art. 201, §6o, da Constituição, que se refere à gratificação natalina dos pensionistas... 190 – Augusto César Leite de Carvalho sem justa causa. Com apoio nessa prescrição legal e na regra segundo a qual a culpa recíproca reduz à metade as indenizações trabalhistas, a jurisprudência consagrou entendimento que está hoje esbo- çado na Súmula 14 do TST, recomendando que se onere em 50% do 13o salário proporcional o empre- gador, quando ele e o empregado tiverem culpa pelo desfazimento do vínculo de emprego. Essa decisão do legislador e dos tribunais é criticável, porque se trata de salário diferido, ou seja, de retribuição a que o empregado tem direito sem correlação direta com a prestação de trabalho, normalmente para pagamento em data futura. São desse tipo (salário diferido), igualmente, as outras gratificações ajustadas, com periodicidade diferente da do salário, e, a partir da Constituição de 1988, podemos incluir o FGTS em tal categoria salarial(497). Se o empregado adquire o direito a receber um duodécimo do décimo terceiro salário a cada mês da prestação de trabalho, não há razão para se lhe subtrair o direito, que teria adquirido, de perceber os duodécimos correspondentes aos meses traba- lhados, pelo fato de ele incorrer em culpa quanto ao motivo que levou à dissolução do contrato. Não custa recordar que o décimo terceiro salário é, a bem dizer, direito a termo prefixo, porque se origina da prestação de trabalho em cada mês do ano, embora a sua exigibilidade deva observar os termos iniciais previstos nas leis referidas. Consoante rezam o artigo 6o, §2o, da Lei n. de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (antiga Lei n. de Introdução ao Código Civil) e o artigo 123 do Código Civil, o direito a termo prefixo é direito adquirido e “o termo inicial suspende o exercício, mas não a aquisição do direito”. Logo, a dispensa por justa causa não poderia autorizar a supressão do décimo terceiro salário proporcional aos meses de trabalho. Menos ainda a culpa recíproca. A impropriedade dessa norma legal, que recusa ao empregado dispensado por justa causa o direito ao décimo terceiro salário proporcional, resulta ainda mais evidenciada quando a citada justa causa é perpetrada após se tornar exigível e eventualmente se pagar a primeira metade do salário – devida entre fevereiro e novembro se o empregado não opta por recebê-la por ocasião de suas férias. Supondo que um empregado cometa a justa causa ao início de dezembro, perderá ele o direito, que antes havia adquirido e exercitado, de somar ao seu patrimônio a metade do seu salário, a título de décimo terceiro salário? É tempo de se corrigir essa erronia jurídica. B) A gratificação de função. Reversão ao cargo efetivo. Incorporação da gratificação ao salário Quando estudarmos, mais adiante, as regras pertinentes à alteração do contrato de trabalho, poderemos notar que a investidura em função de confiança, com ânimo definitivo ou mesmo transitó- rio(498), é sempre precária. O retorno ou reversão ao cargo efetivo é permitido, sendo vedado apenas o rebaixamento de um cargo efetivo a outro (cargo efetivo) de menor grau hierárquico. Mas a estabilidade funcional – que se nega nas hipóteses de função de confiança ou cargo comis- sionado – não se confunde com a estabilidade econômica. O empregado que exerceu função de confiança por mais de dez anos adquire o direito de ter a gratificação correspondente atraída pelo núcleo salarial, assim se posicionando o Tribunal Superior do Trabalho(499). O empregado não perde a gratificação de função, malgrado seja eventualmente desinvestido da função de confiança. C) A gratificação e o prêmio A gratificação está associada, normalmente, a fatos externos e a critérios objetivos, tais como a atuação da empresa no mercado ou o acréscimo em dinheiro para prevenir necessidades sazonais ou extraordinárias de todos os trabalhadores. Por seu canto, o prêmio é atribuição econômica estrei- tamente vinculada ao esforço individual do empregado, enumerando Amauri Mascaro Nascimento(500) modalidades de prêmio com as causas correspondentes: a) prêmio produção, quando a causa do seu pagamento é uma determinada produção a ser atingida; b) prêmio assiduidade, tendo como causa a frequência do empregado e como fim (497) A nosso entendimento, o art. 7o, III, da Constituição converteu o FGTS em salário diferido, pois o regulou como direito social do trabalhador urbano ou rural, sobrevindo a Lei n. 8036/90 para explicitar que mesmo quando o empregado comete justa causa não perde o direito ao saldo de sua conta-vinculada, malgrado não o possa sacar pelo só fato da cessação do vínculo. (498) Vide art. 468, parágrafo único, da CLT e Súmula 159 do TST. (499) Vide Súmula 372 do TST: I – Percebida a gratificação de função por dez ou mais anos pelo empregado, se o empregador, sem justo motivo, revertê-lo a seu cargo efetivo, não poderá retirar-lhe a gratificação tendo em vista o princípio da estabilidade financeira. II – Mantido o empregado no exercício da função comissionada, não pode o empregador reduzir o valor da gratificação”. (500) NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Teoria jurídica do salário. p. 257. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 191 o estímulo à sua presença constante; c) prêmio de economia, pela economia de gastos que o empregado consegue; d) prêmio de antiguidade, pelo tempo de serviço que o empregado atingir na empresa. É possível notar que o prêmio consiste, assim, em um complemento salarial ajustado sob alguma condição. A sua natureza de salário está, hoje, consagrada pelo Supremo Tribunal Federal, bastando ver o teor da Súmula n. 209 de sua jurisprudência: “O salário-produção, como outras modalidades de salário-prêmio, é devido, desde que verificada a condição a que estiver subordinado e não pode ser suprimido, unilateralmente, pelo empregador, quando pago com habitualidade”. 9.2.3.3 Diária para viagem. A distinção entre diária e ajuda de custo A diária para viagem corresponde à quantia que o empregado recebe, para fazer face a despe- sas de transporte, alimentação e hospedagem, por cada dia em que presta serviço em local diferente daquele em que reside. Ocorre, porém e com frequência, de o empregado receber a diária como uma forma de ser retri- buído pelo trabalho no outro local, sem que se configure, em rigor, a característica de indenização. O seu valor supera as suas despesas e lhe é pago a forfait, ou seja, sem a exata correspondência com as despesas havidas para a prestação laboral em local distante(501). Por isso e porque o empregador inescrupuloso estaria a pagar salário sob a rubrica de diária, o legislador decidiu estabelecer um crité- rio aritmético (CLT, art. 457, §2o): Não se incluem nas diárias as ajudas de custo, assim como as diárias para viagem que não excedam de 50% (cinquenta por cento) do salário percebido pelo empregado. Num parêntese, cabe observar que a ajuda de custo é episódica, normalmente devida para custear a despesa consequente de transferência do empregado (artigo 470 da CLT) e, por isso, distingue-se da diária para viagem. Ademais, somente quanto à diária foi fixado o critério aritmético. Uma releitura do artigo 457, §2o, da CLT poderá constatar que a ajuda de custo não terá natureza salarial, ainda que supere a metade do salário. Voltando às diárias, cabe notar que o critério aritmético (a diária tem natureza salarial se excede a metade do salário) há sido, inclusive, prestigiado pela jurisprudência trabalhista, pois a ele se ateve o Tribunal Superior do Trabalho nas ocasiões em que dirimiu conflitos pertinentes ao valor que deve ser integrado ao salário quando a diária excede o limite percentual (a divergência era relativa à conversão em salário de todo o valor ou somente do excedente à metade do salário) e ao parâmetro a ser consi- derado nessa verificação do valor da diária, com o objetivo de apurar se ela supera a metade do salário (discutia-se sobre se computar o salário diário ou o salário mensal). Solucionando a primeira controvérsia, o Tribunal Superior do Trabalho entendeu que “integram o salário, pelo seu valor total e para efeitos indenizatórios, as diárias de viagem que excedam a 50% (cinquenta por cento) do salário do empregado, enquanto perdurarem as viagens”(502). Quanto à última quizila jurídica, o mesmo Tribunal recomendou: “Tratando-se de empregado mensalista, a integração das diárias ao salário deve ser feita tomando-se por base o salário mensal por ele percebido, e não o salário-dia, somente sendo devida a referida integração quando o valor das diárias, no mês, for supe- rior à metade do salário mensal”(503). Logo, as diárias para viagem integram o salário, apenas para efeito indenizatório – não impedem a oscilação do salário, inocorrendo violação ao princípio da irredutibilidade no mês em que a diária não for devida –, sempre que a soma dos valores recebidos a esse título, em um dado mês, supera a metade do salário mensal. No caso, o total das diárias, e não somente as que excedem a metade do salário, incorpora-se ao núcleo salarial. É o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho. Por outro lado, o critério aritmético – previsto em lei para a definição da natureza jurídica da diária – é às vezes relevado, quando afronta a realidade. Quanto a ter natureza salarial a diária para (501) Em Tratado jurídico do salário, p. 567, Catharino sugere que se denomine essa outra manifestação da diária como diária por viagem, diferindo da diária para viagem, que teria caráter indenizatório. (502) Súmula 101 do TST. (503) Súmula 318 do TST. 192 – Augusto César Leite de Carvalho viagem que, embora excedendo o limite percentual (50% do salário), servir, de fato, ao ressarcimento de despesas, os teóricos do direito do trabalho nem sempre se posicionam em apoio ao critério legal, pois para alguns revela-se preferível a realidade ao significado legal, quando este e aquela contrastam. Sergio Pinto Martins(504) defende, por exemplo, que se o pagamento a título de diária “visa a ressarcir despesas, não será considerado salário, pouco importa se inferior ou superior a 50% do salário. Se o pagamento feito ao empregado não tem por objetivo o reembolso de despesa, poderá ser considerado como salário”. O autor remata, sempre a questionar o rigor do critério legal: O critério estabelecido em nossa lei pode ser relevado desde que se prove efetivamente que o pagamento feito ao empregado tem natureza de reembolso de despesas ou de indeniza- ção pela viagem. Também a jurisprudência prefere, não raro, emprestar eficácia aos dados da realidade quando é possível verificar que o critério aritmético a eles não corresponde. A Subseção 1 de Dissídios Individu- ais, órgão do TST responsável pela uniformização da jurisprudência das turmas daquela corte judicial, tem reiterado: RECURSO DE EMBARGOS INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI N.º 11.496/2007. DIÁRIAS DE VIAGEM. NATUREZA JURÍDICA. INTEGRAÇÃO. 1. As diárias de viagem revestem-se, na essência, de natureza indeni- zatória, porquanto destinadas a ressarcir o empregado das despesas realizadas, ou a se realizar, em razão do desempenho das atividades decorrentes do contrato de emprego. 2. O legislador, com o fim de prevenir o uso simulado dessa parcela pelo empregador, criou, por meio do artigo 457 da Consolidação das Leis do Trabalho, critério objetivo quantitativo de identificação da natureza jurídica da parcela em exame. 3. Tal critério, contudo, traduz mera presunção relativa, de forma a garantir a distribuição equânime do ônus da prova, admitindo a produ- ção de prova pelo empregador no sentido de que referidas diárias, ainda que excedentes do limite legal, não se revestem de intuito simulatório, nem visam a encobrir o caráter retributivo da importância paga, mas destinam-se a cobrir efetivas despesas necessárias às viagens a serviço. 4. Não há falar em contrariedade à Súmula n.º 101 desta Corte uniformizadora, porquanto restou comprovado que o valor das diárias destinava-se a ressarcir ou subsidiar reais despesas efetuadas pelo autor. Precedentes desta Corte superior. 5. Recurso de embargos não conhecido (TST, SBDI-1, E-RR-836900-65.2002.5.09.0013, Rel. Min. Lelio Bentes Corrêa, DEJT 07/03/2014) Também o inverso pode suceder: o empregador pagar diária em valor inferior à metade do salário para disfarçar incremento salarial, como se cogita em outro precedente da mesma SBDI-1: [...] A discussão sobre a natureza jurídica da parcela diária para viagem que, embora excedendo o limite percen- tual (50% do salário), sirva, de fato, ao ressarcimento de despesas com prestação de contas não foi resolvida pela Súmula 101 do TST, e essa matéria vem recebendo interpretação no âmbito desta Subseção no sentido de relativizar-se o critério matemático estabelecido pelo legislador seja em razão de dissimular-se o pagamento de salário mediante diárias que não correspondam a viagens, mas não excedam a metade do salário, seja quando o empregador comprova a finalidade de ressarcimento atribuível a diárias que suplantam esse valor. Se o pagamento feito ao empregado tem por objetivo o reembolso de despesa, não pode ser considerado como salário, mesmo que o valor seja superior a 50% do salário. Leva-se em conta a prova efetiva de ter o pagamento como propósito o reembolso de despesas ou de indenização pela viagem, situação verificada no caso concreto. Recurso de embargos não conhecido (TST, SBDI-1, E-RR-2100700-60.2002.5.09.0015, Rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho, DEJT 09/01/2012). Houve caso, enfim, no qual a SBDI-1 relativizou o critério legal, puramente aritmético, ao perceber que diárias para viagens internacionais, evidentemente mais onerosas, não poderiam ter o mesmo parâmetro adotado para viagens nacionais. Assim se deu no julgamento do AgR-E- -RR-60900-92.2007.5.02.0075, Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga (505). De todo modo, e por força de lei (art. 1º, parágrafo único, alínea b, da Lei n. 7.064/1982), as diárias para viagem não se revestem de natureza salarial, qualquer que seja o seu valor, quando são recebidas por empregado designado para prestar serviço de natureza transitória no exterior por período não superior a noventa dias. Ao menos em atenção ao princípio da primazia da realidade e ao artigo 9o da Consolidação das Leis do Trabalho, que nega eficácia ao ato que objetiva fraudar ou desvirtuar a proteção trabalhista, decerto que o critério legal haverá de ser mitigado sempre que a realidade estiver apta a mostrar que (504) Op. cit. p. 223. (505) AGRAVO REGIMENTAL. EMBARGOS NÃO ADMITIDOS. DIÁRIAS – INTEGRAÇÃO AO SALÁRIO – ART. 457, § 2º, DA CLT – PRESUNÇÃO RELATIVA DESPROVIMENTO. Não demonstrada contrariedade à Súmula 102 do c. TST, nem dissenso jurisprudencial pela não aplicabilidade da Súmula no caso concreto, em face da não integração das diárias ao salário, por serem pagas em razão de viagem internacional. A v. decisão afasta a presunção do art. 457, §2º, da CLT, diante do fato de que, em tais viagens, os gastos do trabalhador são maiores do que os havidos no exercício da função em território nacional, próximo a seu domicílio, o que não é confrontado pelos arestos cola- cionados que não cumprem a formalidade da Súmula 337 do c. TST. Agravo desprovido (TST, SBDI-1, AgR-E-RR-60900-92.2007.5.02.0075, Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, DEJT 11/04/2014). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 193 a diária recebida não servia ao reembolso de viagem, embora não superasse a metade do salário, ou ainda quando excedia esse limite, mas se destinava a ressarcir despesas. A nossa tradição legalista não pode atribuir à lei a capacidade de transformar os fatos, invadindo a sua esfera de causalidade. 9.2.3.4 Abono Abono significa sem ônus. É o pagamento que o empregador realiza por liberalidade, com o intuito de não assumir encargos dele consequentes. Atribuindo-lhe tal significado, aproximamos o abono da gratificação (em sentido próprio, pois aqui não nos referimos à gratificação ajustada), dada a marca da espontaneidade que é atribuída aos dois institutos. Atento a esses traços de semelhança, Catharino(506) observou: Convém, porém, seja salientado que, via de regra, a natureza salarial dos abonos é mais fácil de ser constatada que a das gratificações. Estas, geralmente, são concedidas periodica- mente, em épocas comerciais ou em virtude de datas festivas, em intervalos de tempo mais ou menos longos. Já quanto aos abonos, comumente a situação é bem distinta. São, geral- mente, concedidos em relação direta com o salário propriamente dito, e pagos ao lado dele em datas próximas. Certo, porém, é que tanto o ato de gratificar como o de abonar dão ideia de espontaneidade unilateral, mas ambos, na omissão contratual, têm que ser examinados à luz dos fatos, para verificação da sua real significação jurídica. Poder-se-ia, então, questionar: O que vem a ser a relação direta entre abono e salário, que falta à gratificação? Se o abono seria um pagamento sem ônus, inclusive sem os encargos decorrentes da sua configuração como verba salarial, por que o artigo 457, §1o, da CLT o estaria a tratar como salário? O que justifica a edição esporádica de leis, como a Lei n. 8.178, de 1991, que preveem o direito a abono sem caráter salarial, em situações extraordinárias? Que pagamento pode ser intitulado abono, afinal? As respostas a todas essas perguntas exigem um breve resgate da história do instituto, no Brasil. Em meio à Segunda Guerra Mundial, industriais paulistas propuseram medidas emergenciais que fariam face à elevação do custo de vida, numa época em que os salários estavam defasados e a política de salário mínimo não bastava à correção de rumos, sendo incipiente a sindicalização e, por isso, inviável a solução do problema pela da negociação coletiva. Foi editado, então, o Decreto-lei n. 3.813, de 1941, que concedia vantagens à empresa que, por livre iniciativa, elevasse o poder aquisitivo de seus trabalhadores, por meio de abonos. As empresas atenderam ao estímulo oficial por meio da concessão de abonos que, pagos com esteio na citada norma, não se revestiam de natureza salarial. Martins Catharino(507) narra esses fatos e condena a intervenção estatal que garante um aumento efetivo de salário em prejuízo da proteção jurídica e econômica que se deve assegurar às relações individuais, rematando desconhecer, na legislação de povos cultos, caso idêntico. O certo é que a medida teve caráter emergencial e, terminada a guerra, pululavam os litígios trabalhistas em que se discutia a necessidade de se manter, em favor do empregado, a estabilidade econômica relacionada com a manutenção dos valores pagos a título de abono, em outras lides se evidenciando a fraude, o uso abusivo da norma excepcional por empregadores de menor escrúpulo. A Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei n. 5.452, de 1943, alterou a legislação vigente, mas ressalvou “as disposições legais transitórias ou de emergência”. É evidente, no entanto, que, estando superadas a transitoriedade ou a situação emergencial que faziam vigorar essa legislação excetuada – pois não mais se vivenciam, hoje, o conflito armado e suas consequências imediatas na economia –, vige sobranceira a CLT e, por sua imposição, o caráter salarial do abono. Não há mais sentido em se discutir a ultra-atividade do Decreto-lei 3.813, de 1941, como fez Catha- rino(508), em tempo oportuno. É exato dizer, contudo, que a história do instituto ajuda a que compreendamos a sua prática nos dias de hoje e o distingamos, ao menos por lhe atribuirmos um conceito estritamente histórico, de outras verbas trabalhistas. Na última metade do século XX, o abono foi uma ferramenta utilizada para amenizar os efeitos de crises econômicas no poder aquisitivo do salário. Usaram-no os atores (506) Catharino, Tratado jurídico do salário, p. 506. (507) Op. cit. p. 507. (508) Op. cit. p. 510. 194 – Augusto César Leite de Carvalho da relação trabalhista, seus sujeitos ou os correspondentes sindicatos, sempre que instados a acrescentar ao salário um valor que, pago em um momento singelo do contrato, servisse para obviar as adversidades da conjuntura econômica e, muitas vezes, viabilizar o prosseguimento da negociação coletiva, que sem o afastamento desse seu componente imediato, a insatisfação salarial, resvalasse para um insuperável impasse. Quando a corrosão salarial atingiu o salário mínimo, aconteceu de o governo federal, respon- sável pela solução do problema ou mesmo pela política econômica que conduziu a esse estado de coisas, protagonizar medidas legislativas que acresceram ao salário mínimo, em caráter excepcional, um abono que não se revestiu de caráter salarial. Pôde ser assim uma vez que agora previsto, o mencionado abono, em lei de hierarquia igual à da Consolidação das Leis do Trabalho. Sucedeu desse modo, verbi gratia, com o abono instituído pela Lei n. 8.178, de 1991, malgrado fosse ele convertido em salário por uma lei posterior, a Lei n. 8.238, de 1991. Importante é sedimentar, frente a tudo isso, que o abono está mencionado entre as parcelas salariais porque foi essa a reação do legislador à conduta empresarial de conceder abono continuado, com respaldo em norma emergencial – que excluía a natureza de salário do abono pago durante a sua vigência –, editada para abrandar os efeitos danosos da Segunda Grande Guerra. Desde então, o abono está associado a medidas contratuais, convencionais ou legais, que visem a atenuar as conse- quências deletérias de crises econômicas corrosivas do poder aquisitivo do salário. É possível, então, afirmar-se que o conceito do abono é, no âmbito trabalhista, essencialmente histórico. Essa correlação entre o abono e a urgência de se reagir à defasagem salarial define, hoje, o instituto sob exame. Não servindo a esse desiderato, há gratificação, não há abono. O abono não se revela, porém e portanto, um reajuste de salário, mas sim um pagamento isolado – ou instantâneo, como afirma Amauri Mascaro Nascimento(509) – que arrefece ou debela, momentaneamente, o dese- quilíbrio entre o salário e o preço das utilidades que ele deve prover. Por oportuno, uma observação crítica: ocorreu, vezes sem conta, de o empregador anuir em pagar algum valor a título de abono em meio às discussões sobre reajuste de salário, travadas com o sindicato da categoria obreira. Contudo, para fugir a encargos fiscais, previdenciários e mesmo traba- lhistas, alguns acordos e convenções coletivas passaram a ostentar cláusulas que intitulavam o abono como gratificação não ajustada. Tal prática é, entretanto, uma simulação grosseira, ao menos por duas óbvias razões: se a parcela é ajustada mediante acordo individual ou coletivo, ou ainda mediante convenção coletiva de trabalho, descabe, contraditoriamente, falar-se que há gratificação não ajus- tada(510); ademais, resta defeso às partes se desonerar de obrigações fiscais sem que lei, norma de origem estatal, autorize, expressamente, essa isenção. Todavia, a jurisprudência tem consentido, em hipótese parecida, que normas coletivas de traba- lho atribuam ao abono, inclusive quando é assim denominado, a natureza de parcela não salarial. A justificativa para essa concessão à negociação coletiva é a de assegurar efetividade ao art. 7º, XXVI, da Constituição, que diz sobre a validade das convenções e acordos coletivos. Quando se tornaram comuns as normas coletivas que previam o pagamento de abono sem natureza salarial, não raro para evitar que os aposentados se beneficiassem da parcela em sua complementação de proventos (calculada, quase sempre, com base no salário pago aos trabalhadores em atividade), o TST editou a orientação jurisprudencial 346 de sua SBDI-1 em claros termos: “A decisão que estende aos inativos a concessão de abono de natureza jurídica indenizatória, previsto em norma coletiva apenas para os empregados em atividade, a ser pago de uma única vez, e confere natureza salarial à parcela, afronta o art. 7º, XXVI, da CF/88”. (509) Op. cit. p. 220. O autor sustenta, porém, que o abono pode ter configurações e causas múltiplas, também por isso se distinguindo das atualizações salariais. Ao definir abono, Amauri Mascaro Nascimento converge com a definição sugerida em nosso texto, ao afirmar: “Em nosso direito, abono é um adiantamento salarial, uma antecipação do pagamento de salários, eventual, não continuado, para atender a determinadas situações de perda do poder aquisitivo dos salários”. (510) Neste sentido, Catharino, op. cit. p. 514. O autor defende, porém e em seguida: “Se, pelo contrário, o empregador, no curso do contrato de trabalho, por ato unilateral e sob a garantia expressa da lei, conceder um aumento de salário sob o título de abono, este ficará à margem da remuneração”. A observação tem a ver, ao que percebemos, com o fato de o mestre baiano sustentar a sobrevigência do Decreto-lei n. 3.813/41. Intuímos que, assim descontextualizada, a lição seria de lege ferenda, pois a norma atualmente em vigor diz da natureza salarial do abono sem abrir exceção. E, pela circunstância de o seu conceito histórico, já referido, associá-lo a medidas isoladas que compensam a perda de poder aquisitivo do salário, não se deve confundi-lo com a gratificação não ajustada, que é também um ato de liberalidade, mas com móvel diverso. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 195 A nosso pensamento, poderia a jurisprudência ter considerado o maldisfarçado intuito de excluir os aposentados como aspecto revelador de fraude, o suficiente para restaurar a natureza salarial do abono previsto, nas mencionadas circunstâncias, em normas coletivas de trabalho. Não foi assim, porém, que sucedeu. 9.2.4 O salário-base e os complementos salariais Antes de estudarmos o círculo periférico da retribuição do trabalho, importante é enaltecer uma característica que somente o núcleo salarial apresenta. É que, neste, há sempre uma parte que lhe é essencial, fixada por unidade de tempo ou obra, o núcleo do núcleo. Referimo-nos ao salário-base ou salário básico, que é assim retratado em parecer de Arnaldo Sussekind(511): Na aplicação da legislação brasileira do trabalho, cumpre distinguir o salário fixo, ajustado por unidade de tempo ou de obra (salário básico ou salário normal), das prestações que, por sua natureza jurídica, integram o complexo salarial, como complementos do salário básico. Quando o §1o do art. 457 da CLT determina que as comissões, percentagens, gratificações ajustadas, diárias para viagem (quando excedentes da metade do salário estipulado – §2o) e abonos pagos pelo empregador integram o salário do empregado, significa que tais prestações possuem natureza salarial, mas não compõem o salário básico fixado no contrato de trabalho. A distinção entre salário e remuneração é útil, porque algumas verbas têm apenas o salário como base de cálculo, como veremos adiante. Há, porém, parcelas outras cuja base de cálculo é ainda mais restrita, atendo-se ao salário-base. Ocorre, desse modo, com gratificações ajustadas mediante normas coletivas, sempre que elas fixam o valor de tais gratificações numa proporção qualquer com o salário básico, não se podendo ampliar, em detrimento da vontade coletiva, esse parâmetro. O mesmo sucede, verbi gratia, no tocante à base de cálculo do adicional de periculosidade, assim se posicio- nando o Tribunal Superior do Trabalho(512). Importa consultar, porém, as características dos complementos salariais, para que assim possam ser percebidas as regras comuns a eles e ao salário-base, identificando-se aquelas outras regras que tocam a apenas uma dessas categorias do salário. São comuns (ao salário-base e aos complementos salariais) as seguintes características: a) o caráter alimentar; b) a irredutibilidade. Seguindo, em boa parte, a orientação de Amauri Mascaro Nascimento(513), enumeramos as seguintes características dos complementos salariais: a) a acessoriedade; b) a periodicidade específica; c) a plurinormatividade; d) a multicausalidade; e) a condicionalidade. Do caráter alimentar e consequente irredutibilidade cuidaremos mais adiante, ao versar sobre os princípios jurídicos do salário. 9.2.4.1 A acessoriedade dos complementos salariais – a questão correlata da composi- ção do salário mínimo Quanto à acessoriedade, convém ponderar que o empregado não pode receber somente abono, ou apenas diárias para viagem, adicionais ou gratificações habituais, por exemplo. Dada a sua natureza e até por sua fórmula de cálculo, os complementos salariais devem sempre se somar a uma parte essen- cial do salário, o salário-base. Em tudo isso há salário, mas o salário-base o é primitivamente, indepen- dendo da existência de outras parcelas para atender à necessidade de retribuição da força de trabalho. Denomina-se salário-base aquela parcela salarial ajustada para atender ao fim singelo de remu- nerar o trabalho em estado puro, ou seja, quando não se consideram aspectos extraordinários ou atípicos do trabalho que justificam o acréscimo de adicionais, gratificações, abonos etc. Paga-se salá- rio-base pelo fato, apenas, de se trabalhar, enquanto os complementos salariais são adicionados em razão das circunstâncias em que se trabalha. (511) SÜSSEKIND, Arnaldo. Pareceres sobre direito do trabalho e previdência social, VII. Arnaldo Sussekind e Délio Maranhão. Participação de Luiz Inácio Barbosa Carvalho. São Paulo: LTr, 1992. p. 137. O autor-parecerista faz remissão a Délio Maranhão, Catharino e Luiz José de Mesquita. (512) Vide Súmula 191 do TST, editada ao tempo em que vigia a Lei n. 7.369/1985. (513) Op. cit. p. 63. 196 – Augusto César Leite de Carvalho O salário-base não deve ser, necessariamente, fixado por unidade de tempo, mas é sempre salá- rio fixo e a ele precisa associar-se, ao que entendemos, a garantia do salário mínimo. Explica-se. O salário-base pode ser fixado por unidade de tempo ou por unidade de obra, podendo ainda ser misto, ou seja, ter parte fixada em função do tempo de trabalho e o restante a variar por serviço realizado. Sendo fixado por unidade de obra, nada obsta que o salário-base seja integrado, somente, por um valor ou percentual fixo para cada peça fabricada (peceiro) ou em razão de cada mercadoria vendida (comissionista puro). Veremos, ao tratar dos princípios informantes do salário, que o valor ou percen- tual fixado não pode ser reduzido. Importa notar, a essa altura, que a soma das quantias assim recebidas (salário inicialmente fixado por tempo ou obra) comporá o salário-base do empregado, a ela se acrescentando os complementos salariais, ou seja, outras parcelas que, sendo salariais em razão da habitualidade, servem a fins específicos. Questão interessante é a de conciliar tal acessoriedade dos complementos salariais com a juris- prudência que, surpreendentemente, permite sejam essas parcelas computadas para efeito de inte- gralização do salário mínimo. Vale dizer: o empregador pode desonerar-se da obrigação de pagar o salario mínimo se a soma do salário-base com os complementos salariais alcançar o seu valor (o valor do salário mínimo). E por que surpreende a jurisprudência que assim se posiciona? É que, quando o empregador paga gratificações, prêmios, adicionais noturno ou de transferência, não o faz pela razão singela de se beneficiar do trabalho, como ocorre quando paga o salário-base. Paga aquelas outras parcelas por outras e específicas razões. A nosso ver, se a obrigação de pagar o salário mínimo está presente na hipótese de pagar-se apenas o salário-base, não poderia o acréscimo de complementos salariais fazer com que esses complementos, acessórios por natureza, nascidos para se somar ao salário mínimo, ganhassem inusitadamente a característica que é imanente à parcela principal, qual seja, a de não ser menor que o salário mínimo. Não é demasia recordar que a regra legal garante à mera contratação da força de trabalho, sic et simpliciter, a retribuição equivalente ao salário mínimo. Sendo ainda mais específico, podemos lembrar que os adicionais não se prestam, simplesmente, à remuneração da energia de trabalho disponibili- zada. Eles remuneram ou indenizam a adversidade ou o risco; noutro canto, as diárias para viagem, mesmo quando têm valor elevado, indenizam despesas necessárias à realização do trabalho em outras plagas, que não naquela da habitual prestação de serviço, e assim por diante. Em sua singeleza, a disponibilidade da força de trabalho é remunerada mediante salário-base(514) e é nessa dimensão sala- rial que já se apresenta a obrigação de pagar um valor mínimo. Mas insistimos em sustentar esse ponto de vista em primeira pessoa porque a jurisprudência não parece tranquila nesse sentido, havendo forte tendência na direção oposta: há a clara tendência jurisprudencial de validar o pagamento de salário que só alcança o valor do salário mínimo quando considerados, não apenas o salário-base, mas também os complementos salariais. É o que se extrai, por exemplo, da Súmula Vinculante 16 do STF: “Os artigos 7º, IV, e 39, § 3º (redação da EC 19/98), da Constituição, referem-se ao total da remuneração percebida pelo servidor público”. Bem assim, a orientação jurisprudencial 272 da SBDI-1: “A verificação do respeito ao direito ao salário mínimo não se apura pelo confronto isolado do salário-base com o mínimo legal, mas deste com a soma de todas as parcelas de natureza salarial recebidas pelo empregado diretamente do empregador”. Apesar da autoridade desses verbetes, que talvez sejam consequência das mirabolâncias esti- pendiárias praticadas por algumas entidades da Federação com vistas a atender à exigência de pagar o salário mínimo (inventando gratificações e abonos para alcançá-lo à falta de lei que elevasse a base salarial dos seus servidores), a verdade é que a inclusão dos adicionais habituais no plexo salarial cria algum desconforto para os magistrados que se encontram na contingência de seguir, como é natural, a jurisprudência sumulada. Por exemplo, já decidiu o Tribunal Superior do Trabalho: SALÁRIO-BASE – VALOR INFERIOR AO MÍNIMO LEGAL – ARTIGO 7º, INCISO IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDE- RAL – IMPOSSIBILIDADE. O salário-base dos trabalhadores deve corresponder, pelo menos, ao salário mínimo (514) Lembra Arnaldo Sussekind (op. cit. p. 138) o ensinamento da Organização Internacional do Trabalho (in Los salarios. OIT. Genebra, 1964. p. 53): “As prestações adicionais, às quais se pode dar o nome de salário indireto, podem ser definidas como suplementos dos salários ordinários [...], porém não correspondem a nenhum trabalho determinado”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 197 legal. O acréscimo de gratificações ao salário-base com valor inferior ao salário mínimo, não obstante ultrapasse esse valor, transgride o inciso IV do artigo 7º da Constituição Federal. A única hipótese em que valores pecuni- ários podem ser adicionados ao salário para alcançar o salário mínimo diz respeito àqueles trabalhadores que recebem remuneração variável (CF, art. 7º, inc. VII). Revista conhecida, mas não provida”.(515) Ainda no âmbito do TST: DIFERENÇAS SALARIAIS – INOBSERVÂNCIA DO SALÁRIO MÍNIMO – ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. I – Apesar da incontrastável natureza salarial do adicional de insalubridade, não se enquadra na Orientação Jurisprudencial n. 272 da SBDI-1/TST. Isso porque o adicional de insalubridade é, por definição, salário condi- ção, isto é, retribui o trabalho exercido em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, sem integrar o salário, sendo devido apenas enquanto perdurar a situação de risco à saúde do empregado, na dicção dos artigos 192 e 194 da CLT. II – Lado outro, é preciso observar que a multi- citada orientação, ao se referir a “todas as parcelas de natureza salarial recebidas pelo empregado diretamente do empregador”, está se reportando às verbas do artigo 457, § 1º, da CLT, entre as quais não se inclui o adicio- nal de insalubridade, não se divisando contrariedade à Orientação Jurisprudencial n. 272 da SBDI-1 do TST. III – Paradigmas imprestáveis [...](516) Ao que vislumbramos, a exceção, que confirma essa regra, poderia ser apenas o abono criado por estados e municípios para alcançar o valor do salário mínimo até a superveniência de lei local que iguale o salário-base dos servidores ao salário mínimo nacional. É que esses abonos, instituídos às vezes mediante lei, têm a finalidade de suprir a defasagem do salário mínimo, não servem a outro desiderato. Não estamos a fugir, portanto, à lógica do nosso raciocínio(517). É necessário, todavia, ressaltar que a jurisprudência recusa-se a endossar, ao menos com firmeza, tal entendimento, pois tem prevalecido a tese de que outras parcelas salariais podem compor o salário mínimo, preservando-se, ainda assim, a garantia constitucional (artigo 7o, IV, da Constituição). 9.2.4.2 A periodicidade dos complementos salariais Sobre a periodicidade específica, cabe antecipar que o pagamento de salário deve observar, com rigor, a periodicidade mensal, estatuída no artigo 459 da CLT. Mas esse mesmo dispositivo ressalva a possibilidade de comissões, percentagens e gratificações serem pagas com outra periodicidade. Os complementos salariais comportam uma periodicidade diferente da mensal, se essa outra periodicidade lhes é inerente. Não há sentido em se exigir um prêmio anual a cada mês, se foi ele insti- tuído para ser pago a cada ano. Bem assim a gratificação semestral. Também as comissões, em se tratando de vendedor externo, podem ser pagas, por força de expresso ajuste, a cada trimestre, pois assim autoriza o artigo 4o, parágrafo único, da Lei n. 3.207, de 1957. Se, porém, o empregado realiza vendas no interior do estabelecimento empresarial, a periodicidade das comissões será a mensal, porque a ele não se reporta a Lei n. 3.207, de 1957. De lege ferenda, entendemos que deveria ser sempre mensal a periodicidade das comissões, em se cuidando de comissionista puro(518). É pertinente indagar se os adicionais habituais poderiam observar outra periodicidade, diferente da mensal, já que se configuram complementos salariais. A nossa resposta seria negativa. A interpretação do artigo 466 da CLT – que põe a salvo as comissões, percentagens e gratificações da periodicidade mensal – não deve ser extensiva, para que se a aplique a outras atribuições econômicas que, revestindo-se de natureza salarial, sejam calculadas à razão do mês de trabalho. O citado dispositivo de lei estabelece a periodicidade mensal como regra para o salário, não somente para o salário-base. Salvo nos casos em que a prestação salarial seja instituída, por norma estatal, coletiva ou mesmo contratual, para ser paga com outra periodicidade, os complementos salariais que não se insiram na ressalva do artigo 466 deverão ser pagos mensalmente. Assim se estará a cumprir, inclusive, o postu- lado in dubio pro misero. (515) TST, 3a Turma, RR 463697/98, Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, DJ 19/04/02. (516) TST, 4ª Turma, RR 113400-04.2007.5.04.0812, Rel. Min. Antônio José de Barros Levenhagen, Publicação: 11/09/2009. (517) Também não estamos a tratar da hipótese em que o credor da prestação de trabalho não admite a sua condição de empregador e remunera o trabalhador a outro qualquer título, que não salário. Em se verificando a existência de emprego, decerto que a correta denomi- nação (salário) servirá, inclusive, para que se constate se o empregado venceu, embora mediante outra rubrica, ao menos o salário mínimo. (518) Marly Cardone (op. cit. p. 85) observa que a legislação argentina prevê a periodicidade mensal das comissões, sem estabelecer exceção alguma. 198 – Augusto César Leite de Carvalho 9.2.4.3 A multicausalidade e a plurinormatividade dos complementos salariais Também são características dos complementos salariais a multicausalidade e a plurinormativi- dade. Bem se sabe como é impreciso o conteúdo da relação de emprego, à dessemelhança do que sucede a outras relações jurídicas. Novas técnicas de produção agrícola e industrial e avanços da comunicação virtual têm tornado ainda mais complexa e diversificada a prestação de trabalho em todos os setores da economia, tudo a exigir dos sujeitos da relação laboral a revisão de conceitos e métodos de divisão do trabalho. É natural a correlação entre a incessante inovação das condições de trabalho e a criação de novas formas de remuneração, que se somam àquelas que já existem para corresponder ao labor em situações adversas e de risco, ao tempo de serviço, à gratidão do empregador etc. São muitas as causas de remunerar, portanto. E desde os primórdios da intervenção estatal ou, antes ainda, desde que os sindicatos surgiram e obtiveram o compromisso, firmado por empresários, de respeito a convenções coletivas de trabalho, forjadas para a regulação do trabalho em detrimento do monopólio estatal da produção normativa, o direito do trabalho tem oferecido mecanismos próprios para a solução de conflitos trabalhistas, em níveis variados de abstração e sempre com o escopo de atender a essa diversidade de causas, ou de adequar a norma mais abstrata a uma realidade singular e diferenciada. O pluralismo jurídico é, destarte, uma nota marcante do direito laboral, pois a norma que disci- plina a utilização alheia da força de trabalho se origina em organismos internacionais ou no Estado, na atuação do sindicato ou do poder regulamentar do empregador, podendo ainda nascer no contrato expresso ou tácito. 9.2.4.4 A condicionalidade dos complementos salariais A condicionalidade é mais uma característica dos complementos salariais. Diz-se que, a princípio, a manutenção de qualquer deles está condicionada à continuação, na ordem dos fatos, da causa que o gerou. Cessando a sua causa, indevido passa a ser o adicional. Em contrapartida, advoga-se que a estabilidade econômica do empregado não pode ser esquecida, bastando, por exemplo, a habitualidade de qualquer gratificação(519) ou adicional(520) para que seja atraída essa parcela pelo núcleo salarial, tornando-se, a partir daí, insusceptível de supressão. Essa querela jurídica contrapõe, em verdade, interesses realmente antagônicos, com uma agra- vante: entendendo-se que é impossível a supressão de um adicional habitual, desestimula-se o empregador a envidar esforços no sentido de eliminar o desconforto ou o risco que está a ensejar o referido adicional. Por tal razão, a jurisprudência trabalhista já se mostra dócil ao entendimento de que se integra ao salário o adicional de insalubridade (habitual) somente durante o período em que se der, de fato, a exposição a agentes nocivos à saúde(521), além de admitir a supressão do adicional noturno, pago com habitualidade, quando o empregado passa, por iniciativa do empregador, a labo- rar no turno do dia(522). Movido por igual preocupação, o Tribunal Superior do Trabalho tem entendido que o empregador não se obriga a pagar horas extras habituais indefinidamente, sendo-lhe facultado indenizar a redução salarial, consequente dessa cessação de sobrejornada, na forma da sua Súmula 291: “A supressão total ou parcial, pelo empregador, de serviço suplementar prestado com habitualidade, durante pelo menos 1 (um) ano, assegura ao empregado o direito à indenização correspondente ao valor de 1 (um) mês das horas suprimidas, total ou parcialmente, para cada ano ou fração igual ou superior a seis meses de prestação de serviço acima da jornada normal. O cálculo observará a média das horas (519) Vide Súmula 78 do TST: “A gratificação periódica contratual integra o salário, pelo seu duodécimo, para todos os efeitos legais, inclu- sive o cálculo da natalina da Lei n. 4.090/62”. (520) Vide, v. g., a Súmula 139 do TST: “O adicional de insalubridade, pago em caráter permanente, integra a remuneração para cálculo de indenização”. (521) Vide orientação jurisprudencial n. 102 da SDI 1 do TST. Enfatiza a Súmula 248 do TST, por outra via, que “a reclassificação ou descaracterização da insalubridade, por ato da autoridade competente, repercute na satisfação do respectivo adicional, sem ofensa a direito adquirido ou ao princípio de irredutibilidade salarial”. (522) Vide Súmula 265 do TST. O Enunciado 60 recomendava, sem qualquer ressalva, a integração do adicional noturno habitual ao salário. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 199 suplementares nos últimos 12 (doze) meses anteriores à mudança, multiplicada pelo valor da hora extra do dia da supressão”. Pode-se notar, portanto, que, quando confrontada com a atração dos adicionais pelo núcleo sala- rial e consequente perpetuação do labor em condições adversas ou de risco, é a condicionalidade dos complementos salariais que goza da atual preferência da mais alta Corte do Trabalho. Mas vale repa- rar que o não pagamento da indenização recomendada pela Súmula 291 do TST obriga o empregador a integrar ao salário as horas extras habituais, sendo total a prescrição quinquenal que, segundo a jurisprudência, flui a partir da supressão do labor em sobretempo(523). 9.2.5 Prestações trabalhistas sem natureza salarial ou remuneratória A ocorrência de relação de emprego implica a remuneração pelo labor prestado. Contudo, essa prestação de trabalho assegura, também, o direito de o empregado receber parcelas que não integram o seu salário, malgrado se insiram no conteúdo do contrato de emprego. O trabalhador as recebe porque é empregado, mas a lei lhes retira a natureza salarial ou mesmo remuneratória. Quando o empregador descumpre tais prestações, a Justiça do Trabalho pode ser acionada para obrigá-lo a adimpli-las ou a ressarcir o dano consequente, suportado pelo empregado. A competência desse ramo especializado do Poder Judiciário é mero corolário da inclusão dessas parcelas no rol das obrigações trabalhistas que, como visto, não se constituem salário. Dada a sua relevância, tratemos de três dessas prestações sem natureza salarial: a participação nos lucros, resultados ou gestão, com ênfase para a experiência relativa ao Programa de Integração Social (PIS); o auxílio-alimentação vinculado ao Programa de Alimentação ao Trabalhador; o vale- -transporte. 9.2.5.1 A participação nos lucros, resultados ou gestão da empresa Houve tempo em que se sustentou ser a relação de emprego um vínculo societário, em que empregado e empregador agiam, qual sócios, visando ao êxito do empreendimento. Também se disse- minou a ideia de que a assimetria econômica e social entre os sujeitos do liame empregatício poderia ser menor se o empregador se deixasse contagiar pela conduta de alguns empresários, mais comuns no continente europeu, que se rendiam à conveniência de permitir que o empregado participasse mais ativamente dos desígnios da empresa, auferindo os lucros ou resultados daí consequentes. Até ser editada a Constituição de 1988, defendia-se com ardor a natureza salarial da participação em lucros, recomendando o antigo Enunciado 251 do Tribunal Superior do Trabalho (revogado em 1994): “A parcela participação nos lucros da empresa, habitualmente paga, tem natureza salarial, para todos os efeitos legais”. As Cartas Políticas de 1946 e de 1967 referiam-se à participação nos lucros da empresa e esta última à participação do empregado na gestão empresarial, mas nada diziam sobre a natureza de tal parcela. A matéria recebeu novo trato, contudo, na Constituição de 1988, pois em seu artigo 7o, XI, está garantida, entre os direitos sociais do trabalhador, a “participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei”. O surgimento da participação nos resultados atende à conveniência de não restringir o direito às hipóteses de lucro contábil. O aposto desvinculada da remuneração foi, logo e por sua vez, compreen- dido como um embaraço à sobrevigência do referido Enunciado 251 do Tribunal Superior do Trabalho, porquanto, dali por diante, não se poderia inserir a parcela sob comento na remuneração do empregado. Embora o mencionado dispositivo constitucional parecesse exigir regulamentação em lei apenas da participação do empregado na gestão da empresa, o fato é que se editou a Lei n. 10.101, de 2000, para regular “a participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados da empresa como instru- mento de integração entre o capital e o trabalho e como incentivo à produtividade” (artigo 1o). A norma não está, diretamente, a impor uma participação qualquer do empregado em lucros ou resultados, (523) Vide orientação jurisprudencial n. 63 da SDI 1 do TST. 200 – Augusto César Leite de Carvalho pois somente prescreve os parâmetros a serem observados na instituição dessa vantagem, a ocorrer, segundo reza o seu artigo segundo, por iniciativa de uma “comissão escolhida pelas partes, inte- grada, também, por um representante indicado pelo sindicato da respectiva categoria” ou por meio de “convenção ou acordo coletivo”. De modo a evitar que se disfarce salário mediante o pagamento de parcela intitulada participação em lucros, a Lei n. 10.101/2000 exige sejam fixadas regras claras sobre os parâmetros de sua fixação (índices de produtividade, qualidade ou lucratividade da empresa, programa de metas, resultados e prazos etc.) e proíbe seja distribuída a participação em lucros ou resultados em mais de duas vezes por ano ou em periodicidade inferior a um trimestre civil(524). Apesar de não estar revestida de caráter remuneratório, a participação nos lucros ou resultados é hipótese de incidência de imposto de renda (artigo 3o, §5o, da Lei n. 10.101/00), isso a denunciar como foi moderado o interesse de estimular a regulação da matéria, por norma coletiva. 9.2.5.2 O Programa de Integração Social (PIS) Como a Constituição de 1967 preconizava a “integração do trabalhador na vida e no desenvol- vimento da empresa, com participação nos lucros e, excepcionalmente, nos resultados [...]”, criou-se o Programa de Integração Social, o PIS, mais adiante unido ao PASEP – Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público. O atual Fundo de Participação PIS-PASEP é constituído sobretudo de recursos provenientes de contribuição imposta a empregadores e entes públicos, podendo o empre- gado, cadastrado há pelo menos cinco anos em citado programa, receber um abono anual de valor nunca menor que o salário mínimo(525). A complexidade do custeio e do funcionamento do PIS-PASEP não exclui a natureza trabalhista – porquanto consequente do contrato de emprego –, de resto atribuível à obrigação de cadastrar o empregado no mencionado programa e, bem assim, à de recolher a contribuição correspondente. Por isso mesmo, enuncia a Súmula 300 do Tribunal Superior do Trabalho: “Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar ações de empregados contra empregadores, relativas ao cadastramento no Plano de Integração Social (PIS)”. 9.2.5.3 O Programa de Alimentação ao Trabalhador Dissemos, a seu tempo, que a alimentação fornecida pelo empregador aos seus empregados reveste-se de natureza salarial, sempre que atender aos pressupostos do salário-utilidade, notada- mente quando lhe puder ser atribuída a finalidade retributiva. Nesse sentido, orienta a Súmula 251 do Tribunal Superior do Trabalho: “O vale para refeição, fornecido por força do contrato de trabalho, tem caráter salarial, integrando a remuneração do empregado, para todos os efeitos legais”. Malgrado tudo isso, a Lei n. 6.321, de 1976, permitiu que as pessoas jurídicas pudessem deduzir, de seu lucro tributável, o dobro das despesas que realizassem em programas de alimentação ao traba- lhador previamente aprovados pelo Ministério do Trabalho. Em seu artigo terceiro, a citada lei exclui dessa despesa o caráter de salário de contribuição, impedindo, assim, que incidisse sobre referido custo empresarial a contribuição previdenciária. Sob tal influência, evoluiu a jurisprudência para assentar que a alimentação assim fornecida – referimo-nos à alimentação fornecida pelo empregador que se inscreveu no PAT – não tem natureza salarial. É o que está sedimentado na orientação jurisprudencial n. 133 da SDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho: “A ajuda alimentação fornecida por empresa participante do Programa de Alimentação (524) Tal não impediu, porém, que o TST, instado a decidir sobre acordo específico, relativizasse, a nosso sentir sem forte base jurídica, o rigor da Lei n. 10.101/2000. Assim sucedeu mediante a jurisprudência que se consolidou por meio da OJ transitória 70 da SBDI-1: “A despeito da vedação de pagamento em periodicidade inferior a um semestre civil ou mais de duas vezes no ano cível, disposta no art. 3º, § 2º, da Lei n. 10.101, de 19.12.2000, o parcelamento em prestações mensais da participação nos lucros e resultados de janeiro de 1999 a abril de 2000, fixado no acordo coletivo celebrado entre o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e a Volkswagen do Brasil Ltda., não retira a natureza indenizatória da referida verba (art. 7º, XI, da CF), devendo prevalecer a diretriz constitucional que prestigia a autonomia privada coletiva (art. 7º, XXVI, da CF)”. (525) Vide Lei n. Complementar n. 7, de 1970; Lei n. Complementar n. 26, de 1975 e, regulamentando-a, o Decreto n. 78.276, de 1976. Há outras leis regulando a matéria, nem sempre tratando de assuntos trabalhistas. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 201 ao Trabalhador, instituído pela Lei n. 6.321/76, não tem caráter salarial. Portanto, não integra o salário para nenhum (sic) efeito legal”. 9.2.5.4 O vale-transporte O artigo 458, §2o, III, da CLT impede que se atribua natureza salarial ao “transporte destinado ao deslocamento para o trabalho e retorno, em percurso servido ou não por transporte público”. É óbvio que a lei se refere ao transporte fornecido pelo empregador aos seus empregados. A necessidade de transporte para o empregado vencer o percurso casa-trabalho dá ensejo a três distintas questões jurídicas: a primeira é relativa à não caracterização como salário, conforme vimos; a segunda é pertinente à inclusão do tempo na jornada de trabalho, assunto este a ser deslindado no capítulo deste livro dedicado à duração do trabalho; a terceira questão refere-se à obrigação imposta ao empregador, quando ele não fornece veículo (próprio ou fretado) para o citado trajeto, de entregar vale-transporte, em quantidade correspondente, ao empregado. A obrigação de fornecer o vale-transporte onera o trabalhador em até 6% de seu salário-base e está prevista na Lei n. 7.418, de 1985, que exclui da vantagem a natureza salarial (artigos 4o, parágrafo único, e 2o, a, respectivamente). Regulamentando a mencionada lei, prescreve o Decreto n. 95.247, de 1987, em seu artigo 5o, que é vedado ao empregador substituir o vale-transporte por antecipação em dinheiro, salvo se houver insuficiência de estoque do multicitado vale-transporte. Esses dois dispositi- vos geraram, como adiante se há notar, alguma quizila nos tribunais. É que a polêmica surgiu acerca das consequências jurídicas da conduta do empregador que, em vez de fornecer vale-transporte, paga o equivalente em dinheiro. Estaria atendida a exigência legal? Ainda assim estaria afastada a natureza salarial? A jurisprudência se sedimentou na direção de compreender que o pagamento da quantia correspondente ao vale-transporte desonera o empregador quanto à obrigação em análise e não transmuda o vale-transporte em parte do salário, mantendo-se ainda assim seu cariz indenizatório(526). De toda sorte, e quanto aos empregados domésticos, o art. 19 da Lei n. Complementar 150, de 2015, é claro ao dispor: A obrigação prevista no art. 4º da Lei n. 7.418, de 16 de dezembro de 1985, poderá ser substituída, a critério do empregador, pela concessão, mediante recibo, dos valores para a aquisição das passagens necessárias ao custeio das despesas decorrentes do deslocamento residência-trabalho e vice-versa. Quando o empregador descumpre essa prestação, que é essencialmente trabalhista, cabe à Justiça do Trabalho condená-lo a ressarcir o empregado, tornando-o indene. Até recentemente, enten- dia-se que era do empregado o ônus de provar a condição de usuário do transporte público, assim se entendendo na esteira do que recomendava a antiga orientação jurisprudencial 215 da SBDI-1, verbete este que foi finalmente revogado pelo Pleno do TST, em maio de 2011. Em suma, atribui-se ao empregador o encargo de provar que o trabalhador, à dessemelhança de outros trabalhadores, não utilizava o transporte público para o deslocamento entre sua residência e o local de trabalho, sendo prudente que o empregador pré-constitua essa prova ao admitir o empregado, na forma estatuída no Decreto n. 95.247/1987 (usa-se geralmente um formulário que o empregado preenche ao ser admitido na empresa e nele esclarece o seu meio de transporte). 9.3 A remuneração A fórmula brasileira de distinguir o salário (a ser pago necessariamente pelo empregador) da gorjeta (que é paga por terceiro mas integra a remuneração, sem compor o salário) não se repete em outros vários países. A preocupação nos países ibéricos, por exemplo, é a de não permitir que a gorjeta (ou parcela paga por terceiro) integre o salário, sem que Portugal ou Espanha se preocupem em instituir uma nova categoria jurídica (como a “remuneração”, no Brasil) na qual se aloje esse ganho do trabalhador(527). (526) TST, 3ª Turma, RR 12-54.2012.5.09.0022, Rel. Min. Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 06/02/2015 TST, 5ª Turma, RR 5793-97.2012.5.12.0014, Rel. Min. Maria Helena Mallmann, DEJT 06/03/2015; TST, 7ª Turma, AIRR 280600-34.2009.5.02.0032, Rel. Min. Cláudio Mascarenhas Brandão, DEJT 16/10/2015; TST, 8ª Turma, AIRR 10308-39.2013.5.03.0032, Rel. Min. Dora Maria da Costa, DEJT 20/03/2015. (527) É o que explicam João Leal Amado (LEAL AMADO, João. Contrato de Trabalho. Coimbra: Editora Coimbra, 2013, p. 302) acerca da 202 – Augusto César Leite de Carvalho Está visto que o legislador teve a clara intenção de não permitir que a gorjeta, ou seja, a parte da remuneração paga por terceiro, compusesse o salário mínimo. Retirou-lhe, assim, a natureza salarial. A doutrina(528) e a jurisprudência(529) se mostram atentas a tal regra. Por essa mesma razão, a habitua- lidade da gorjeta não a faz atraída pelo núcleo salarial. Embora não ratificada pelo Brasil, a Convenção 172 da OIT, concernente ao trabalho em hotéis, restaurantes e estabelecimentos similares, explicita, em seu art. 6, que “o termo gorjeta significa o dinheiro que o cliente dá voluntariamente ao trabalhador, além do que deve pagar pelos serviços recebidos” e, na fração de interesse, arremata prescritivamente: “independentemente das gorjetas, os trabalhadores interessados deverão receber uma remuneração básica que será paga com regularidade”. Com pertinência, Rodrigues Pinto(530) anota, ainda, que não apenas a gorjeta, mas também a grati- ficação em sentido estrito, caracterizada pela liberalidade (não contratualidade, inclusive por lhe faltar a habitualidade) e por seu caráter eventual, integra a remuneração (sem integrar o salário enquanto preserva essas características). Os teóricos do direito laboral que bipartem a retribuição do trabalho(531) incluem, também no círculo da remuneração, os adicionais eventuais, pois somente os adicionais habi- tuais se incorporam ao salário. 9.3.1 A gorjeta imprópria Questão vexatória foi, em dado momento, a caracterização como salário ou gorjeta do adicio- nal na conta, cobrado pelo empregador ao cliente para posterior distribuição, a seu talante, entre os empregados. Referimo-nos ao acréscimo de 10% (normalmente), que bares e restaurantes somam ao preço de seus produtos, impedindo que o cliente empreste à gorjeta a sua marca característica, que é a espontaneidade. Ademais, a gorjeta espontânea é paga, pelo terceiro, diretamente ao empregado, enquanto o adicional na conta é cobrado pelo empregador e por este repassado, total ou parcialmente, ao trabalhador que lhe presta serviço. Houve tempo em que a doutrina recomendava não atribuir ao adicional na conta a caracterís- tica de gorjeta(532), mas essa orientação foi recusada pelo legislador. Em 1967(533), acrescentou ele ao artigo 457 da CLT um terceiro parágrafo, com claro sentido: “Considera-se gorjeta não só a impor- tância espontaneamente dada pelo cliente ao empregado, como também aquela que fora cobrada pela empresa ao cliente, como adicional nas contas, a qualquer título, e destinada à distribuição aos empregados”. regra vigente em Portugal e, na mesma linha, a propósito da Espanha, dizem-no Martín, Rodriguez-Sanudo e García (MARTÍN VALVERDE, Antonio, RODRÍGUEZ-SAÑUDO GUTIÉRREZ, Fermín, GARCÍA MURCIA, Joaquín. Derecho del Trabajo. Madrid: Tecnos, 2004, p. 577) (528) Segundo Amauri Mascaro Nascimento (op. cit. p. 255), assim se manifestam, além dele próprio, os laboralistas Orlando Gomes, Russomano, Roberto Barretto Prado, Amaro Barreto, Catharino e Délio Maranhão, entre outros. (529) “Ação rescisória improcedente porque pretende rescindir decisão que não atribui às gorjetas compulsórias a feição salarial. Gorjeta não é contraprestação salarial mínima, e não compõe o calculo do salário mínimo, embora integre a remuneração do empregado. Artigos setenta e seis e quatrocentos e cinquenta e sete da CLT interpretados. Matéria interpretativa não faz prosperar ação rescisória. Enunciado oitenta e três do TST. A decisão rescindenda aplicou de forma correta os dispositivos legais apontados como violados. Rescisória improcedente. Recurso ordinário a que se nega provimento” (TST, Turma DI , Relator Ministro Ministro Vantuil Abdala, Acórdão: 0004588, Decisão: 24-10-1995, Recurso Ordinário Em Ação Rescisória, Número do processo: 0090516, Ano: 93, DJ 07-12-95, p. 42876). Também: “Gorjeta – Obrigatoriedade de pagamento de salário. A gorjeta não constitui espécie de remuneração variável, já que não é paga pelo empregador. Logo, este não se exime do pagamento do salário, ainda que mínimo, a que tem direito todo trabalhador em decorrência do contrato laboral. Recurso a que se nega provimento” (TST, SBDI – I, Rel. Min. Leonaldo Silva. Fonte: SDI – 8 – JUL/97, p 62). Ou ainda: “Gorjetas – Salário mínimo legal – Obrigação de pagamento diretamente pelo empregador. O salário mínimo legal é a contraprestação mínima devida e paga ao empregado, diretamente pelo empregador, em virtude dos serviços que aquele presta a este. A gorjeta não é uma paga do empregador ao empregado, mas sim quantia oferecida ao trabalhador pelos beneficiários dos serviços. Exatamente por isto, ainda que o valor das gorjetas supere, a cada mês, o salário mínimo legal, o empregador não se isenta de pagar ao empregado o salário mínimo legal. Embargos conhecidos e providos” (TST, SBDI – I, Rel. Min. Vantuil Abdala. Fonte: SDI – 14 – JAN/98, p 32). (530) Op. cit. p. 259. (531) Não se inclui, entre os arautos da bipartição, o professor José Augusto Rodrigues Pinto. (532) Em 1951, ao tempo em que o legislador brasileiro não se havia imiscuído nessa discussão, Martins Catharino (op. cit., p. 549) observou que o adicional na conta, que preferia intitular participação nas entradas, era obrigatório, força de lei, na Alemanha, Itália, França, Argen- tina e Espanha, enquanto em outros países, como nos Estados Unidos, vinha a ser adotado pelas próprias empresas, como forma de impedir que os empregados recebessem gorjeta diretamente da clientela. Mas o festejado laboralista baiano rematava: em ambas as hipóteses, a rigor, não há como se falar em gorjetas, e sim na sua abolição mediante um regime de percentagens. O adicional fixado na nota de despesa, e recolhido pela casa, é uma verdadeira participação nas entradas e como tal constitui salário, fora de qualquer dúvida. (533) Por meio do Decreto-lei 229, de 28/02/67. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 203 O adicional na conta é usualmente chamado gorjeta imprópria, não se distinguindo os seus efei- tos jurídicos, quando cotejado com a gorjeta típica ou espontânea. Tanto o adicional na conta quanto a gorjeta espontânea escapam do círculo menor do salário para compor apenas a remuneração. Não têm natureza salarial, mas sim e somente remuneratória. É, por isso, inexato que possa a gorjeta, inclusive a gorjeta imprópria, compor o salário mínimo. Por outro lado, o empregador se investe de discricionariedade maior quando adota a gorjeta imprópria e então repassa, entre seus empregados, os valores desse modo arrecadados. Em vez de os repassar apenas aos garçons diretamente responsáveis pelas contas que os originaram, pode atribuí-los equitativamente a outros empregados que terão contribuído igualmente para a formação do ativo contábil, a exemplo do maitre, do cozinheiro e de outros garçons escalados para mesas cuja situ- ação topográfica pareça menos convidativa aos clientes. Vedado, todavia, ao empregador é destinar a gorjeta imprópria, ou parte dela, a empregados que não participaram dos serviços à clientela ou, ainda mais grave, para si próprio. A jurisprudência tem enfatizado que o poder diretivo, titularizado indiscutivelmente pelo empre- gador, não autoriza a indevida apropriação de ganho que é, por definição, parte da remuneração dos empregados. Nem mesmo a norma coletiva de trabalho pode transferir para outras pessoas, menos ainda para o sindicato que a subscreve, a gorjeta que remunera garçons e congêneres responsáveis por auferi-la(534). 9.3.2 A oportunidade de ganho, inclusive as gueltas Ao discorrer sobre a gorjeta, Sergio Pinto Martins(535) prestigia, com pertinência, o seu significado vulgar, intuitivo, não raro incorporado à linguagem jurídica. Observa, então, o autor: Gorjeta tem origem na palavra gorja, de garganta, no sentido de dar de beber, com signifi- cado equivalente a propina. Em outras línguas, são utilizadas as seguintes palavras: trink- geld, no alemão; pourboire, no francês; mancia, no italiano; e tip, no inglês. Seria uma forma de retribuição do cliente ao empregado que o serviu, mostrando o reconhecimento pelo serviço prestado, que foi bem servido. Geralmente, a gorjeta é oferecida aos garçons, ou aos trabalhadores de hotéis e restaurantes. O legislador tentou regular o fato de o empregado servir a terceiros e destes receber uma parte de sua remuneração. Ao fazê-lo, porém, usou o conceito comum de gorjeta, supondo exaurir a matéria ao delimitar os efeitos do seu pagamento. A questão que se põe é, porém, inevitável: há outras formas de remuneração do trabalho por terceiros, distintas da gorjeta? Se há, estariam essas outras formas de remuneração, que não provêm do empregador, reguladas, analogicamente, pelo artigo 457 da CLT, que impede sejam elas computadas na composição do salário mínimo? Nominando autores italianos que estaria a secundar, Amauri Mascaro Nascimento(536) refere a oportunidade de ganho, que é “a situação objetiva que se forma num vínculo de emprego, em decor- rência da qual parte do salário vem de terceiro, como a gorjeta”. O que se está a sustentar é que o ganho oportunizado pela prestação de serviço ao empregador integra a remuneração do empregado, à semelhança do que sucede à gorjeta. Exemplo de oportunidade de ganho, vale dizer, de quantia auferida pelo empregado mediante pagamento por terceiro, mas em razão da prestação de emprego, é oferecido pelo mesmo autor. (534) Ementa de precedente emblemático: EMBARGOS. ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. GORJETAS. PREVISÃO DE RETEN- ÇÃO. QUARENTA POR CENTO DO VALOR PARA O EMPREGADOR E O SINDICATO DA CATEGORIA PROFISSIONAL. INVALI- DADE. DIFERENÇAS SALARIAIS DEVIDAS. Extrapola os limites da autonomia coletiva cláusula de acordo coletivo de trabalho mediante a qual se pactua a retenção de parte do valor das gorjetas para fins de indenização e ressarcimento das despesas e benefícios inerentes à introdução do próprio sistema de taxa de serviço bem como para contemplar o sindicato da categoria profissional, mormente se se constata que a retenção atinge mais de um terço do respectivo valor. A gorjeta, retribuição pelo bom atendimento, não se reveste de natureza salarial, mas integra a remuneração do empregado nos termos do art. 457 da CLT e da Súmula 354 do TST, segundo a qual -as gorjetas, cobradas pelo empregador na nota de serviço ou oferecidas espontaneamente pelos clientes, integram a remuneração do empregado-, de modo que ajuste desse jaez reveste-se de nulidade e implica afronta ao art. 9º da CLT. Embargos de que se conhece e a que se nega provimento (TST, SBDI-1, E-ED-RR 139400-03.2009.5.05.0017, Relator Ministro Márcio Eurico Vitral Amaro, DEJT 21/11/2014). (535) Op. cit. p. 223. (536) Op. cit. p. 136. 204 – Augusto César Leite de Carvalho Amauri Mascaro Nascimento lembra o caso dos percentuais de uso das cadeiras em salões de barbeiro ou de cabeleireiro, enfatizando que citados percentuais – que em nossa experiência forense vimos ser disfarçada na forma de “aluguel de cadeira” – integra a remuneração porque “é decorrente da oportu- nidade de ganho que o empregador enseja ao trabalhador, para que obtenha parte da remuneração proveniente de terceiro”. Atualmente, não é incomum a percepção, por empregados vendedores, de parcela paga pelo fabricante da mercadoria vendida, e não pelo empregador. Às vezes intitulada “prêmio”, noutras sendo chamada de “comissão”, o fato é que essa parcela é paga por terceiro em razão do trabalho prestado ao empregador. A doutrina e a jurisprudência costumam chamar essas atribuições econômicas de “gueltas” e é indiscutível que se está a tratar de mais uma oportunidade de ganho, propiciada pelo vínculo de emprego(537). A nosso pensamento, a compreensão sistêmica do direito do trabalho permitirá, sempre e ademais, que se revele a onerosidade da prestação laboral por meio da oportunidade de ganho, o que bastaria para sinalizar a existência de vínculo empregatício. O sistema jurídico é, todavia, ainda mais fecundo: se a ratio da regra legal, que distingue salário de remuneração, gravita em torno da necessidade de não permitir que o empregador se exonere da obrigação de pagar salário mínimo através de parcela paga por terceiro, extrai-se que a oportunidade de ganho não poderá servir para desembaraçar o empregador desse ônus. Além da quantia paga por terceiro, o empregador estará a dever o salário mínimo, sempre e portanto. Mostrando-se coerente, o ordenamento trabalhista contém, inclusive, uma norma que segue essa orientação. Referimo-nos ao artigo 12, parágrafo único, da Lei n. 5.889, de 1973, que estatui normas reguladoras do trabalho rural. O dispositivo cuida da plantação intercalar ou subsidiária, que é muito comum nas propriedades rurais do Nordeste, quando o fazendeiro pretende formar novos pastos, mas, em vez de contratar apenas a semeadura do capim, ajusta-a com o rurícola e também permite que este, entre uma e outra linha ou cova de sementes, plante o feijão, o milho ou a hortaliça que o próprio empregado poderá comerciar ou lhe auxiliará a subsistência. A norma está assim posta: Embora devendo integrar o resultado anual a que tiver direito o empregado rural, a plantação subsidiária ou intercalar não poderá compor a parte correspondente ao salário mínimo na remuneração geral do empregado, durante o ano agrícola. Sendo comercializado diretamente pelo empregado, o produto da plantação intercalar o é, regra geral, com terceiro, que não o empregador. Embora a legislação rural não esteja atenta à distinção legal(538) entre remuneração e salário, é certo que tratou a parte da remuneração do empregado, paga por terceiro, da mesma forma como o fizera o texto consolidado, ou seja, sem permitir que essa parcela seja considerada na composição do salário mínimo. (537) Nesse sentido: REMUNERAÇÃO. BONIFICAÇÕES CONCEDIDAS POR TERCEIROS EM VIRTUDE DO CONTRATO DE TRABALHO. -GUELTAS-. NATUREZA JURÍDICA. SÚMULA N. 354/TST. GORJETAS. APLICAÇÃO, POR ANALOGIA. 1. A exemplo das gorjetas ofertadas por clientes, as -bonificações- pagas por laboratórios, a título de -incentivo- pelo desempenho nas vendas, a empre- gada de empresa atacadista de produtos farmacêuticos e afins -- as denominadas -gueltas- -- decorrem diretamente do contrato de trabalho. Aludida parcela integra a remuneração da empregada para todos os efeitos legais. Aplicação, por analogia, da Súmula n. 354 do TST e do artigo 457, § 3º, da CLT. 2. Por força do contrato de trabalho, o empregador possibilita ao empregado auferir -bonificações- ou -prêmios- dos laboratórios cujos produtos sejam comercializados em maior quantidade. 3. O empregador atacadista igualmente se beneficia diretamente com o incremento nas vendas de produtos de determinado fornecedor. As -bonificações- percebidas por seus empregados, conquanto efetuadas por terceiros, repercutem diretamente no lucro do empreendimento e constituem verdadeiro atrativo à admissão de novos empre- gados. 4. Embargos não conhecidos (TST, SBDI-1, E-RR 224400-06.2007.5.02.0055, Rel. Ministro João Oreste Dalazen, DEJT 30/05/2014); RECURSO DE REVISTA. GUELTAS. NATUREZA JURÍDICA. INTEGRAÇÃO. REFLEXOS. A parcela denominada -guelta-, paga por terceiros – fornecedores – em decorrência da venda dos produtos deste pelo empregado, durante a execução do contrato de trabalho com o empregador, assemelha-se às gorjetas, e, como tal, deve integrar a remuneração para todos os efeitos legais, nos termos do artigo 457 da CLT, aplicando-lhe, por analogia, o entendimento da Súmula n. 354, não servindo de base apenas para cálculo do aviso-prévio, do adicional noturno e do repouso semanal remunerado. Precedentes. Recurso de revista conhecido e não provido (TST, 2ª Turma, RR 63200- 43.2009.5.01.0056, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, DEJT 24/02/2012) (538) Catharino, em Compêndio Universitário de Direito do Trabalho (op. cit. p. 441), afirma, embora a mencionar, a seu tempo, o Estatuto do Trabalhador da Terra, sucedido pela atual Lei n. 5889/73: “Podemos dizer que no Brasil existem três conceitos de remuneração ou salário: o trabalhista comum (da CLT), o trabalhista rural ou agrário (do ETR), e o previdencial (da LOPS, mais de natureza tributária: ‘salário-de- -contribuição’, ‘salário-base’, ‘salário-benefício’)”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 205 9.3.2.1 O direito de arena como oportunidade de ganho Outro exemplo elucidativo de oportunidade de ganho é o direito de arena, regulado pelo art. 42 da Lei n. 9.615, de 1998 (Lei n. Pelé). Cuida-se de valor recolhido por entidades desportivas – em razão da transmissão imagética, normalmente televisiva, de jogo ou evento do esporte – e repassado ao sindicato dos atletas, a fim de ser distribuído entre os jogadores que participaram do espetáculo. A exploração comercial da imagem do atleta motivou a ação do legislador, pois o direito de imagem é direito fundamental da personalidade, conforme se extrai do art. 5º, X, da Constituição: “são inviolá- veis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Por sua vez, o art. 20 do Código Civil(539) permite seja proibida a comercialização da imagem se assim ocorrer sem a anuência da pessoa cuja imagem for explorada. A Lei n. 12.395, de 2011, emprestou ao artigo 42 da Lei n. 9.615, de 1998, um novo e mais minu- cioso texto: Art. 42. Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem. § 1º Salvo convenção coletiva de trabalho em contrário, 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais serão repassados aos sindicatos de atletas profissionais, e estes distribuirão, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo, como parcela de natureza civil. § 2º O disposto neste artigo não se aplica à exibição de flagrantes de espetáculo ou evento desportivo para fins exclusivamente jornalísticos, desportivos ou educativos, respeitadas as seguintes condições: I – a captação das imagens para a exibição de flagrante de espetáculo ou evento desportivo dar-se-á em locais reservados, nos estádios e ginásios, para não detentores de direitos ou, caso não disponíveis, mediante o forne- cimento das imagens pelo detentor de direitos locais para a respectiva mídia; II – a duração de todas as imagens do flagrante do espetáculo ou evento desportivo exibidas não poderá exceder 3% (três por cento) do total do tempo de espetáculo ou evento; III – é proibida a associação das imagens exibidas com base neste artigo a qualquer forma de patrocínio, propa- ganda ou promoção comercial. Além de detalhar o modo como deve ser controlado o uso das imagens relativas aos eventos de esporte pelas entidades de prática desportiva, o novo preceito reduz de vinte para cinco por cento a parte do direito de arena que cabe ao atleta e passa a exigir a intermediação dos sindicatos no repasse do direito de arena ao atleta profissional. Sutilmente, acrescenta que o direito de arena se configura “parcela de natureza civil”. O legislador não disfarçou o objetivo de excluir a natureza remuneratória do direito de arena que é repassado ao atleta. A surpreendente alteração legislativa pode decerto vingar, em seu indisfarçado propósito, dado que se situa em um ambiente de relativa ambiguidade entre a finalidade retributiva e o uso da imagem, a exigir um esforço maior do intérprete e do aplicador do direito do trabalho. Mas há um modo distinto de interpretar a novidade, uma vez que as parcelas de natureza civil não estariam, por essa singela razão, desvestidas de caráter retributivo ou estigmatizadas pela impossi- bilidade de se incluírem, para efeitos trabalhistas, na remuneração do empregado. Como se percebe ao estudo do salário-utilidade, as prestações in natura que se incorporam ao salário podem ter origem em um contrato civil de locação de um imóvel ou de um veículo, sem que essa característica germinal contamine a posterior integração ao salário. Não parece que o fato de a parcela ser proveniente de terceiro e de revestir-se de caráter remuneratório, nunca salarial, influenciaria nessa análise: poder- -se-ia argumentar que o direito de arena, embora parcela de natureza civil, incorporar-se-ia à remu- neração do atleta empregado, cabendo à jurisprudência explorar e amadurecer o exame desse tema. O direito de arena corresponde, portanto, a quantia paga por terceiro, o agente de comunicação, e repassado ao atleta cuja imagem fora explorada na transmissão do jogo. Embora se justifique em (539) Art. 20 do Código Civil: Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divul- gação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. 206 – Augusto César Leite de Carvalho virtude da exploração comercial da imagem ou expressão corporal do atleta, o direito de arena atém-se apenas à veiculação de sua imagem no evento desportivo. Não se confunde o direito de arena, como se pode notar, com o direito de uso da imagem do joga- dor em outros eventos ou circunstâncias, vale dizer, com o ajuste entre o clube e o atleta para que a imagem deste seja explorada comercialmente por aquele ou pelas empresas que patrocinaram a sua contratação. O direito de uso da imagem, nesses casos em que transcende o direito de arena, é regido pelas normas de direito civil e, a bem dizer, o preço ajustado não deve integrar a remuneração do empregado (jogador profissional), inclusive porque pode subsistir o ajuste até mesmo quando o atleta suspende temporariamente a sua atividade ou após o encerramento da carreira desportiva. A jurisprudência mostra-se dividida, porém, quanto ao direito de imagem (sem os limites do direito de arena) integrar o contrato de emprego. Por vezes, os juízes têm percebido que algumas entidades desportivas se valem da natureza civil do direito de imagem para dissimular, a esse título, o pagamento de parte do salário. Quando adota tal perspectiva – a nosso ver mais consentânea com o fim social das normas jurídicas ora examinadas – a jurisprudência tem atribuído natureza remuneratória ao valor rela- cionado com o direito de imagem apenas quando percebe o desvirtuamento desse instituto jurídico(540). Noutros casos, os magistrados mostram-se convencidos da natureza remuneratória do direito de imagem “porque a imagem do atleta decorre diretamente do desempenho de suas atividades profissio- nais na entidade desportiva”(541). Há, enfim, interessante construção jurisprudencial, de viés intermedi- ário, que preconiza o enquadramento jurídico do direito de arena a depender de quem exerça a gestão dos negócios publicitários, revestindo-se de natureza remuneratória quando é o empregador quem o faz. Em trecho de ementa elucidativa, assim se manifesta Alexandre Agra Belmonte: A licença ou cessão de imagem é o direito de exploração da imagem pessoal do atleta para efeito de publicidade, através de um contrato civil paralelo ao de emprego. O jogador tem a faculdade de negociar com terceiros o recebimento de parcelas de propaganda (nome, retrato em bonés, tênis e roupas) ou de uso da imagem (figurinhas), ou mesmo o de impedir que ele ocorra. A percepção dos valores correspondentes através de gerenciamento feito pelo próprio empregador gera, por analogia à norma legal pertinente à integração das gorjetas (art. 457 da CLT e Súmula 354 do TST), a sua projeção nas parcelas de natureza remuneratória, uma vez que o próprio tomador propicia e administra o ganho extra para o atleta(542). Ao atribuir caráter remuneratório ao direito de arena, ou ao direito de imagem ressarcido nas circuns- tâncias acima explicitadas, o TST os exclui da base de cálculo das parcelas que, segundo o que reco- menda a Súmula 357 de sua jurisprudência, devem ter apenas o salário como base de cálculo, quais sejam: o aviso-prévio, o adicionais de hora extra e noturno, a remuneração do repouso semanal(543). (540) AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. JOGADOR DE FUTEBOL. DIREITO DE IMAGEM. NATUREZA JURÍDICA. É sabido que o direito do uso da imagem do profissional de futebol efetiva-se, geralmente, mediante a celebração do denomi- nado contrato de cessão do direito de imagem, negócio jurídico no qual o atleta recebe uma contrapartida financeira pela utilização de sua imagem pelo clube de futebol que o contrata. Parte da doutrina entende que tal modalidade de contrato possui natureza civil, razão por que não deve ser objeto de discussão em reclamações trabalhistas. Entretanto, quando utilizada com o intuito de mitigar os encargos trabalhis- tas para fraudar a legislação do trabalho, ocorre o desvirtuamento da referida modalidade contratual, o que atrai a aplicação do art. 9.º da CLT à hipótese. No caso destes autos, o quadro fático delineado pelo Regional, por meio do exame dos documentos carreados, foi de que “o contrato de cessão para a utilização de nome, apelidos, imagem e voz, acostado a fls. 41/47, possui natureza eminentemente civil, inclusive com o pagamento de parcela pecuniária por pessoa jurídica diversa daquela envolvida na relação de emprego”. Assim, a discussão acerca da natureza jurídica do direito de imagem inviabiliza-se, pelo óbice da Súmula n.º 126 deste Tribunal Superior, porquanto, para se chegar a conclusão diversa da esposada pelo Regional, seria necessário o revolvimento dos fatos e das provas, inviável nesta esfera recursal. Agravo de Instrumento conhecido e não provido (TST, 4ª Turma, AIRR 300-42.2009.5.01.0050, Relatora Ministra Maria de Assis Calsing, DEJT 20/02/2015). Em igual sentido: TST, 3ª Turma, RR 352-34.2011.5.01.0061, Relator Ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, DEJT 12/12/2014. (541) TST, 4ª Turma, RR 599-43.2010.5.07.0009, Relator Ministro Fernando Eizo Ono, DEJT 24/10/2014 (542) TST, 3ª Turma, AIRR 49200-82.2009.5.01.0009, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 31/10/2014. (543) Nesse sentido: RECURSO DE REVISTA. DIREITO DE ARENA. NATUREZA JURÍDICA. A jurisprudência desta Corte tem atri- buído natureza jurídica remuneratória à parcela paga ao atleta decorrente do denominado direito de arena. De outro lado, não corresponde a uma parcela paga diretamente pelo empregador, aproximando-se do sistema das gorjetas. Em face de sua similaridade com as gorjetas, aplica-se, por analogia, o artigo 457 da CLT e a Súmula n. 354 do TST, o que exclui os reflexos no cálculo do aviso-prévio, adicional noturno, horas extras e repouso semanal e autoriza, contrariu sensu, na gratificação natalina, férias com o terço constitucional e no FGTS. Recurso de revista conhecido e parcialmente provido (TST, 5ª Turma, RR 156900-80.2008.5.01.0065, Rel. Min. Emmanoel Pereira, DEJT 16/12/2011). Pode ser citado o precedente RR – 1751/2003-060-01-00.2, DJ 02/05/2008, de relatoria do Ministro José Simpliciano Fernandes Fontes, e ainda, entre vários outros, o RR – 1447/2002-012-01-00.0, DJ 23/05/2008, o RR – 12720/2004-013-09-00.7, DJ 12/09/2008 e o RR – Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 207 9.3.3 A remuneração, em especial a gorjeta, como base de cálculo de outras parcelas Além de permitir que se atribua ao empregador a obrigação de pagar, diretamente, o salário mínimo, a distinção legal entre salário e remuneração teria uma segunda utilidade, qual seja, permitir que o legislador, ao definir a base de cálculo de outras verbas trabalhistas, explicite a inclusão, ou não, da gorjeta. Basta, assim, que o legislador prescreva ser a remuneração a base de cálculo para que se inclua, nesta, a gorjeta (também a gratificação não ajustada e, na ótica dos que bipartem a retribuição do trabalho, os adicionais eventuais). Quando o legislador prevê o salário como base de cálculo de uma verba qualquer, o valor desta está restrito ao das parcelas que compusessem o núcleo salarial (salá- rio-base e complementos salariais). É certo, porém, que o legislador ordinário e o constituinte não se ativeram a esse rigor terminológico, não obstante estejamos a tratar de terminologia que é produto de inovação em lei. Um exemplo é elucidativo: o artigo 7o, incisos VI e IX, da Constituição e, antes (cronologicamente) dele, os artigos 59, §1o e 73, da CLT, preveem que a remuneração da hora extraordinária e da hora noturna será superior, respectivamente, à (remuneração) da hora normal e à (remuneração) da hora diurna. Em se adotando a nomenclatura legal, concluiríamos que a remuneração da hora normal e da hora diurna seria compu- tada no cálculo da hora extra e do adicional noturno, o que implicaria a inclusão da gorjeta nessa base de cálculo. A experiência jurídica trilhou, entretanto, um caminho diferente. Faz tempo que se observou a impropriedade de considerar a gorjeta no cálculo da hora extra ou noturna, pois isso importaria a obri- gação de o cliente pagar a gorjeta com o adicional de 50% ou 20%, respectivamente. Como a gorjeta é, por natureza, um gesto espontâneo, que encerra uma liberalidade de terceiro, restaria inviável impor a este a observância de um adicional qualquer(544). Nesse diapasão, mas superando essa expectativa, o Tribunal Superior do Trabalho editou o enun- ciado 354 da súmula de sua jurisprudência: As gorjetas, cobradas pelo empregador na nota de serviço ou oferecidas espontaneamente pelos clientes, inte- gram a remuneração do empregado, não servindo de base de cálculo para as parcelas de aviso-prévio, adicional noturno, horas extras e repouso semanal remunerado. Por exclusão, férias, 13o salário e FGTS devem ser calculados com base na remuneração (salário + gorjeta), calculando-se aviso-prévio, adicional noturno, horas extras e repouso semanal remune- rado(545) a partir do salário, sem as gorjetas. No que tange ao critério proposto para o cálculo de aviso-prévio e repouso semanal remunerado, podemos notar que o enunciado está em consonância com o artigo 487, §1o, da CLT, que refere o salário como base de cálculo da indenização de valor equivalente ao aviso-prévio não concedido, mas contrasta, uma vez mais, com a base de cálculo prevista para a remuneração do repouso, pelo artigo 7o da Lei n. 605, de 1949. E se não era para levar em conta a terminologia legal, entendemos perti- nente a crítica de Luiz Otávio Linhares Renault(546): Quando o aviso-prévio é cumprido pelo empregado, as condições de trabalho remanescem substancialmente inalteradas, pelo que ele continua recebendo as gorjetas. Contudo, o que não se pode esquecer é que o aviso-prévio, trabalhado ou não, constitui tempo de serviço para todos os efeitos legais (v. g., art. 487, §1º, da CLT, Enunciados 5, 94 e 305). Logo, sobre o aviso-prévio indenizado deveriam incidir as gorjetas: afinal, o décimo terceiro salário é uma ficção, assim como o tempo de serviço do pré-aviso indenizado também o é. 1210/2004-025-03-00.7, DJ 16/03/2007, relatados respectivamente pelos ministros Ives Gandra Martins Filho, Horácio Raymundo de Senna Pires e Antônio José de Barros Levenhagen. (544) Neste sentido: “Não há como determinar essa integração no cálculo do adicional noturno, considerando que a gorjeta é paga pelo consumidor, não se alterando conforme o horário em que se desenvolve a jornada de trabalho” (TST, RR 2813/90.6, Rel. Min. Francisco Leocádio, Ac. 2a T. 2666/90.1, 04/12/90, Revista LTr 55-10/1249). (545) Não há por que distinguir a remuneração do repouso semanal da remuneração do repouso em feriados. Se a gorjeta não for conside- rada no cálculo daquele, também não o será no cálculo deste, por óbvio. (546) RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Enunciado n. 354. In: O que há de novo em direito do trabalho. Coordenação de Márcio Túlio Viana e Luiz Otávio Linhares Renault. São Paulo: LTr, 1997. p. 293. 208 – Augusto César Leite de Carvalho No que se refere à exclusão das repercussões das gorjetas no repouso semanal remunerado, a afinidade deste com as férias se revela ainda mais íntima. Ambos, repouso semanal remunerado e férias, constituem exemplos clássicos de interrupção executiva do contrato de trabalho. Os dois insti- tutos enraízam-se no mesmo húmus: razões de ordem biológica, familiar e social. Ora, se o repouso semanal remunerado e as férias ostentam a mesma e idêntica musculatura, nada justifica o repouso anual ser impulsionado, gozado, usufruído com a média das gorjetas e o mesmo não suceder ao repouso semanal. Uma questão interessante é aquela que concerne à possibilidade de se integrarem à remunera- ção, na quantificação de 13o salário e férias – verbas que têm a remuneração como base de cálculo –, as parcelas não salariais, como os adicionais esporadicamente recebidos, as gratificações eventuais (não ajustadas, portanto) ou mesmo as gorjetas recebidas episodicamente. Está visto que a jurispru- dência trabalhista tem preferido bipartir a retribuição do trabalho, incluindo no círculo da remuneração os títulos a que falte a habitualidade. A Súmula 63 do TST, já transcrita, revela, com clareza, a preva- lência dessa orientação jurisprudencial. Em sendo assim, poder-se-ia cogitar da inclusão de parcelas remuneratórias eventuais na base do cálculo das férias, mormente quando o artigo 142, §§5º e 6º, da CLT, prescreve a incorporação de adicionais na quantificação das férias, sem exigir a habitualidade desses adicionais(547). Mas é certo que a jurisprudência(548) tem mencionado a habitualidade das horas extras como premissa necessária ao reflexo da remuneração delas no cálculo de férias, assim se projetando o que recomenda a Súmula 376, II, do TST: “O valor das horas extras habitualmente prestadas integra o cálculo dos haveres traba- lhistas, independentemente da limitação prevista no caput do art. 59 da CLT”. Quanto ao 13º salário, restaria facilitada a integração, à sua base de cálculo, de parcelas remunera- tórias eventuais, pois importaria considerar a remuneração paga no mês de dezembro ou da cessação do contrato, consoante regulam os artigos 1º, §1º e 3º, da Lei n. 4.090, de 1962. Sem embargo desse parâ- metro legal, o TST parece não pretender abandonar o critério da habitualidade, pois continua decidindo que as gratificações habituais ou periódicas são aquelas que repercutem no cálculo do 13º salário(549). Existem, enfim, os complementos salariais que, força de lei ou norma coletiva, ou mesmo por restrição contratual, devem ser apurados com base no salário-base, como acontece com o adicional de periculosidade dos trabalhadores que não são eletricitários(550). 9.4 Os adicionais – vedação à incidência recíproca Para os que ainda tripartem a retribuição do trabalho, há um círculo periférico, que congrega as indenizações (salário + remuneração + indenizações). Entre estas, sobressaem os adicionais pela característica de serem atraídos pelo núcleo salarial sempre que se revelam habituais(551). Também vimos que a jurisprudência mais atual tem adotado a bipartição (salário + remuneração), o que inclui os adicionais no círculo da remuneração, sendo isso evidenciado na Súmula 63 do TST(552). Atribuindo-se o caráter remuneratório aos adicionais, o magnetismo do núcleo salarial ocorre igualmente, converten- do-se em parcela salarial o adicional que é habitualmente recebido. (547) Apesar disso, a Súmula 151 do TST, revogada em dezembro de 2003, recomendava: “A remuneração de férias inclui a das horas extra- ordinárias habitualmente prestadas.” (548) Assim decidiu o TST, por exemplo, no RR 60900-42.2007.5.03.0018, Relatora Ministra Rosa Maria Weber, 3ª Turma, DEJT 19/08/2011 e no RR 30300-09.2005.5.03.0018, Relator Ministro Lelio Bentes Corrêa, 1ª Turma, DEJT 29/04/2011. (549) Vide TST, 1ª Turma, RR 541.134/99, Rel. Min. João Dalazen, DJ 06/05/05. A antiga Súmula 78 do TST, revogada em 2003, integrava apenas a gratificação periódica contratual ao salário, inclusive para o cálculo do 13º salário. Ainda a propósito dessas questões aritméticas que reclamam alguma racionalidade, poder-se-ia conjecturar que se a gratificação não ajustada integra a remuneração (Súmula 63 do TST), mas não é computada no cálculo do 13o salário, o TST estaria a exigir a habitualidade e, portanto, a natureza salarial da gratificação para que esta possa se integrar à base de cálculo do 13o salário. Ao mesmo tempo e por meio da Súmula 354, o TST não inclui o 13o salário entre as parcelas que têm base de cálculo restrita ao salário, o que permitiria a repercussão da gratificação não habitual em seu cálculo. No plano da argumentação, uma solução dialética seria a inclusão do duodécimo da gratificação ajustada no 13o salário (malgrado a referência, na lei, à remuneração de dezembro ou da cessação do contrato), computando-se, quanto à gratificação não ajustada, somente a paga em dezembro ou no mês da cessação do contrato. (550) Vide Súmula 191 do TST. (551) Ou quando puder, de qualquer outra forma, ser revelado o caráter contratual desses adicionais. (552) Súmula 63 do TST: “A contribuição para o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço incide sobre a remuneração mensal devida ao empregado, inclusive horas extras e adicionais eventuais”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 209 Embora os adicionais sirvam usualmente para compensar condições de trabalho em situações adversas ou de risco, essa regra não é absoluta. Basta que se cite o adicional por tempo de serviço para se constatar que as fontes do direito nem sempre guardam coerência com os conceitos forjados pela doutrina. O adicional por tempo de serviço não indeniza coisa alguma, antes premiando o traba- lhador que acumula um período mais longo de trabalho. Os adicionais mais importantes são o de hora extraordinária, o noturno, os de periculosidade e de insalubridade, e o de transferência, pois são devidos à generalidade dos empregados. Há casos de adicionais que são assegurados a categorias específicas, a exemplo do que sucede ao adicional de risco previsto no art. 14 da Lei n. 4.860/65 em favor dos trabalhadores portuários e que, segundo o que preconiza a orientação jurisprudencial 316 da SBDI-1 do TST, deve ser proporcional ao tempo efetivo no serviço considerado sob risco e apenas concedido àqueles que prestam serviços na área portuária. Não se tolera, ademais, a incidência recíproca de um adicional sobre outro (exempli gratia, quando a hora extra é também noturna), dada a necessidade de se evitar o bis in idem. Os adicionais podem acumular-se de modo crescente (o adicional de hora extra sobre a hora remunerada com o adicional noturno e assim por diante, mas sem o caminho de volta(553)). Preconiza-se, inclusive, a incidência do adicional de hora extra sobre outros adicionais devidos com habitualidade, conforme sugerido na Súmula 264 do TST: A remuneração do serviço suplementar é composta do valor da hora normal, integrado por parcelas de natureza salarial e acrescido do adicional previsto em lei, contrato, acordo, convenção coletiva ou sentença normativa(554). A nosso pensamento, o salário que corresponde à hora normal pode atrair outros adicionais porventura habituais, que passam então a integrá-lo, nada justificando, senão a tentativa de evitar o efeito cascata, a regra de serem inacumuláveis os adicionais. A jurisprudência que emana do TST revela-se receptiva a acumulação de adicionais, desde que não se opere, conforme já visto, a incidên- cia recíproca. A Súmula 60, I, do TST, na mesma esteira do verbete relativo à hora extra (referimo-nos à Súmula 264), recomenda: O adicional noturno, pago com habitualidade, integra o salário do empregado para todos os efeitos. Quer quando se calcula o adicional noturno sobre o de hora extra, quer quando se opta pela incidência inversa, impõe-se uma indenização a mais pelo desconforto do trabalho à noite em tempo extraordinário, esta última circunstância potencializando a adversidade daquela. Parte da doutrina(555) e da jurisprudência(556) têm sido sensíveis a esse justo direito. Ademais, há casos em que a jurisprudência, ao promover a exegese legal, restringe a base de cálculo de alguns adicionais. É o que ocorre, por exemplo, com o adicional de periculosidade dos traba- lhadores que não atuam como eletricitários (Súmula 191 do TST(557)) ou com os portuários, conforme se extrai da orientação jurisprudencial n. 60, II, da SDI-1, a saber: “Para o cálculo das horas extras prestadas pelos trabalhadores portuários, observar-se-á somente o salário básico percebido, excluí- dos os adicionais de risco e produtividade.” (553) Se o adicional de hora extra incidiu no cálculo do adicional noturno, não se pode recalcular o adicional de hora extra para que sobre ele reflita o adicional noturno. (554) A interpretação dada por Sérgio Pinto Martins (op. cit., p. 218) a esse verbete é, porém, restritiva, pois argumenta que “a expressão integração das parcelas de natureza salarial, contida no Enunciado 264 do TST, deve ser interpretada com o significado de, v. g., gratifi- cações por tempo de serviço, abonos e gratificações ou adicionais já incorporados ao salário do obreiro”. Um pouco antes, o autor observa que, segundo a dicção legal, o adicional de hora extra deve ser calculado sobre o salário da hora normal (art. 59, §1o e art. 61, §2o, da CLT). (555) Vide SÜSSEKIND, Arnaldo. MARANHÃO, Délio; VIANA, Segadas. Instituições de Direito do Trabalho. Atualização de Arnaldo Sussekind e João de Lima Teixeira Filho. São Paulo: LTr, 1992. p. 742. (556) Vide orientação jurisprudencial n. 47 da SDI-1 do TST: “A base de cálculo da hora extra é o resultado da soma do salário contratual mais o adicional de insalubridade “. Contemplando a incorporação da hora extra e do adicional de periculosidade na base de cálculo do adicional noturno, ver orientações jurisprudenciais 97 e 259 da SDI I do TST. Note-se que o TST, mesmo quando inverte o ângulo de inci- dência, não está, em rigor, permitindo a incidência recíproca. (557) Súmula 191 do TST: “O adicional de periculosidade incide apenas sobre o salário básico e não sobre este acrescido de outros adicio- nais. Em relação aos eletricitários, o cálculo do adicional de periculosidade deverá ser efetuado sobre a totalidade das parcelas de natu- reza salarial”. Esse verbete distinguia os eletricitários pela razão de lhes caber a disciplina da Lei n. 7.369/1985 e essa lei conter preceito indicativo de que a base de cálculo para eles seria todo o plexo salarial, diferentemente dos empregados cujo adicional de periculosidade é regido pela CLT, restringindo-se nesse caso ao salário-base. Sucedeu, porém, de a Lei n. 7.369 ser revogada e a regência do adicional de periculosidade dos eletricitários ser transferida para a CLT, o que tem provocado alguma inquietação acerca de qual a base de cálculo do adicional de periculosidade a eles devido. Voltaremos ao tema quando tratarmos desse adicional. 210 – Augusto César Leite de Carvalho 9.4.1 O adicional de hora extra O artigo 7o, XVI, da Constituição, assegura remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à remuneração do serviço executado na hora normal. Por jornada normal se entende a que é ajustada em contrato(558), desde que respeitado o limite de oito horas diárias e quarenta e quatro horas semanais, previsto no artigo 7o, XIII, da mesma Constituição. Não havendo contrato, norma coletiva ou lei prevendo jornada menor que a constitucional, os citados limites estabelecidos na Constituição (oito horas diárias e quarenta e quatro horas semanais) serão considerados os limites da jornada normal. Se o trabalhador os extrapolar, tornar-se-á devido o adicional de no mínimo 50% sobre a remuneração das horas excedentes. O artigo 7o, XIII, do texto constitucional estabelece marcos, portanto, para o dia e para a semana de trabalho, mas autoriza a compensação(559) do tempo de trabalho, como estudaremos a seu tempo, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. Até antes da Constituição de 1988, o adicional mínimo de hora extra era de 20%, se as horas suplementares fossem previamente ajustadas, sendo de 25% quando não proviessem de expresso ajuste. A remuneração do labor extraordinário resultante de força maior sequer sofria a incidência do adicional. A nova ordem constitucional não faz qualquer exceção, por isso sendo devido o adicional mínimo de 50% sempre que se estiver a pagar pelo trabalho em sobrejornada e não for esta compen- sada com base em acordo ou convenção coletiva de trabalho. Por vezes, o legislador eleva o adicional de modo a fixá-lo em percentual superior ao mínimo legal. É o que se dá, por exemplo, com os advogados empregados, aos quais resulta assegurado um adicio- nal mínimo de 100% sobre a remuneração da hora extraordinária (art. 20, §2o, da Lei n. 8.906/94). Merece especial atenção a hipótese em que o empregado, por receber salário fixado por unidade de obra ou serviço, é credor apenas do adicional – de no mínimo 50% – sobre a remuneração do trabalho realizado além da jornada contratada. É o que recomenda, a propósito dos empregados que recebem apenas comissão, a Súmula 340 do TST: O empregado, sujeito a controle de horário, remunerado à base de comissões, tem direito ao adicional de, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) pelo trabalho em horas extras, calculado sobre o valor-hora das comissões recebidas no mês, considerando-se como divisor o número de horas efetivamente trabalhadas. Em princípio, essa mesma regra se aplica a qualquer empregado cujo salário seja fixado na proporção da quantidade de serviço por ele realizado, como ocorre, por exemplo, com peceiros (remu- nerados à razão das peças que fabrique) ou tarefeiros (remunerado à razão das tarefas de terra cujo plantio ou colheita conclua). Mas a jurisprudência trabalhista precisou posicionar-se acerca das horas extraordinárias prestadas no ambiente penoso e muitas vezes insalubre do corte da cana-de-açúcar, não raro ocorrendo de o cortador de cana consentir com o labor excessivo com vistas à percepção de salário que tinha base de cálculo propositalmente fixada em quantia reduzida pelo empregador, ante a expectativa de o trabalhador produzir mais, em tais e degradantes condições, para amealhar uma soma salarial menos aviltante. Para solucionar a cizânia jurídica que se estabeleceu sobre o tema, o TST decidiu manter a regra para a generalidade dos trabalhadores, mas ressalvou o trabalho extraordinário que se realiza no corte da cana, como se pode inferir da orientação jurisprudencial n. 235 da SBDI-1: O empregado que recebe salário por produção e trabalha em sobrejornada tem direito à percepção apenas do adicional de horas extras, exceto no caso do empregado cortador de cana, a quem é devido o pagamento das horas extras e do adicional respectivo. Ao tratarmos da sanção devida pelo empregador quando ele reduz ou suprime os intervalos que devem ocorrer em meio à jornada ou entre duas jornadas, anotaremos que a jurisprudência tem deno- minado “hora extra” o tempo assim subtraído do descanso do trabalhador. A Súmula 437 do TST(560) e a (558) Contrato expresso ou tácito, pois a prestação habitual de uma jornada menor que a constitucional (oito horas diárias e quarenta e quatro horas semanais) impõe a remuneração de horas de trabalho, que a extrapolem, com o adicional de 50%. (559) Na compensação de jornada, o excesso do tempo de trabalho em um ou alguns dias é compensado com a redução em um dia posterior. (560) Súmula 437 do TST: “INTERVALO INTRAJORNADA PARA REPOUSO E ALIMENTAÇÃO. APLICAÇÃO DO ART. 71 DA CLT. I – Após a edição da Lei n. 8.923/94, a não-concessão ou a concessão parcial do intervalo intrajornada mínimo, para repouso e alimentação, Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 211 orientação jurisprudencial n. 355 da SBDI-1(561) revelam que essa opção terminológica tem permitido que os órgãos judiciais atribuam inclusive natureza salarial ao valor devido a esse título. Embora não concor- demos com essa nomenclatura e seus efeitos, é fato que a jurisprudência está consolidada a respeito. 9.4.1.1 O adicional de acompanhamento em viagem do empregado doméstico É relativamente comum o empregador doméstico fazer-se acompanhar, sobretudo em deslocamentos para estâncias ou sítios de veraneio ou lazer, pelos empregados domésticos que estão a seu serviço. Na maioria das vezes, são viagens de curta duração que, não obstante, geram algum desconforto para o trabalhador, quer pela utilização transitória de acomodações distintas das usualmente destinadas ao seu descanso ou pernoite, quer pelas adversidades próprias às viagens não desejadas. O art. 11 da Lei n. Complementar n. 150, de 2015, inova para exigir que o acompanhamento em viagem, pelo empregado doméstico, seja precedido de acordo escrito e importe a remuneração do tempo de serviço, durante a viagem, com o adicional mínimo de 25% sobre o valor da hora normal. Mas esse adicional pode, mediante acordo, ser convertido em tempo equivalente – ou seja, em um quarto de hora – a se computar no banco de horas do empregado. Com outras palavras: para cada hora de viagem, o empregado doméstico tem acrescidos quinze minutos a serem compensados, com descanso, em seu banco de horas. 9.4.2. O adicional noturno O horário noturno de trabalho, para o trabalhador urbano, estende-se, no mínimo, das 22h às 5h, sendo a hora noturna reduzida, por ficção jurídica, ao tempo de 52 minutos e 30 segundos. Multipli- cando-se esse tempo (52 min 30 seg) por sete (número de horas convencionais, no horário noturno mencionado), infere-se que das 22h às 5h há uma sobra de mais 52 minutos e 30 segundos, o que corresponde a uma hora noturna ficta, como visto. Logo, das 22h às 5h há oito horas noturnas fictas, para efeitos trabalhistas. Em se cuidando, ainda, de trabalhador urbano, o tempo por que ele disponibilizar a sua força de trabalho, no horário noturno, deve ser remunerado com o adicional de 20%, pelo menos. Adiante, veremos que o adicional noturno do trabalhador rural tem tratamento normativo diferente do que é dispensado ao trabalhador urbano. E outras observações acerca do tema merecerão ser igualmente destacadas, por isso sendo analisadas nos subitens seguintes. 9.4.2.1 O trabalho noturno em regime de revezamento A primeira observação é atinente ao fato de o artigo 73 da CLT negar o adicional noturno aos empregados que laboram em regime de revezamento semanal ou quinzenal. Há algum tempo o Supremo Tribunal Federal decidiu que a essa regra faltava fundamento de validade, pois as últimas cartas constitucionais, inclusive a de 1946 (artigo 157, III) e a de 1967 (artigo 165, IV), vêm assegu- rando a todo trabalho noturno, indistintamente, remuneração superior à do diurno. A Súmula 213 do STF é taxativa: a empregados urbanos e rurais, implica o pagamento total do período correspondente, e não apenas daquele suprimido, com acréscimo de, no mínimo, 50% sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho (art. 71 da CLT), sem prejuízo do cômputo da efetiva jornada de labor para efeito de remuneração. II – É inválida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública (art. 71 da CLT e art. 7º, XXII, da CF/1988), infenso à negociação coletiva. III – Possui natureza salarial a parcela prevista no art. 71, § 4º, da CLT, com redação introduzida pela Lei n. 8.923, de 27 de julho de 1994, quando não concedido ou reduzido pelo empregador o intervalo mínimo intrajornada para repouso e alimentação, repercutindo, assim, no cálculo de outras parcelas salariais. IV – Ultrapassada habitualmente a jornada de seis horas de trabalho, é devido o gozo do intervalo intrajornada mínimo de uma hora, obrigando o empregador a remunerar o período para descanso e alimentação não usufruído como extra, acrescido do respectivo adicional, na forma prevista no art. 71, caput e § 4º da CLT.” (561) Orientação jurisprudencial n. 355 da SBDI-1: “INTERVALO INTERJORNADAS. INOBSERVÂNCIA. HORAS EXTRAS. PERÍODO PAGO COMO SOBREJORNADA. ART. 66 DA CLT. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO § 4º DO ART. 71 DA CLT. O desrespeito ao intervalo mínimo interjornadas previsto no art. 66 da CLT acarreta, por analogia, os mesmos efeitos previstos no § 4º do art. 71 da CLT e na Súmula n. 110 do TST, devendo-se pagar a integralidade das horas que foram subtraídas do intervalo, acrescidas do respectivo adicional.” 212 – Augusto César Leite de Carvalho É devido o adicional de serviço noturno, ainda que sujeito o empregado a regime de revezamento. Quanto à redução ficta da hora noturna (52 minutos e 30 segundos), a jurisprudência tem sido menos rigorosa, a ponto de compreender, por exemplo, que é ela incompatível com o regime de trabalho em atividade petrolífera, instituído pela Lei n. 5.811, de 1972(562), e também com o trabalho portuário(563). Há algum tempo, o Tribunal Superior do Trabalho tratou de conflito em que se discutia a redução ficta em turnos ininterruptos de revezamento, para os quais o artigo 7o, XIV, da Constituição fixou limite de seis horas, salvo negociação coletiva. A Quarta Turma do TST se posicionou, inicialmente, de forma a ressalvar a redução ficta da hora noturna em tal hipótese, como se nota na ementa seguinte: O trabalho em turnos ininterruptos de revezamento não se compatibiliza com o cômputo da jornada noturna como reduzida, uma vez que supõe a fixação de 4 turnos de 6 horas para cobrir as 24 horas do dia. Se fosse computada a jornada noturna reduzida, seria impossível fechar o quadro de 4 turnos, pois aquele que correspon- desse à jornada noturna seria menor e descompassaria os demais. Revista provida em parte (TST, 4a Turma, RR 347763/97-9, julgado em set/2000, Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho, Revista LTr 65-01/42). Mas esse entendimento não prevaleceu e sobreveio, então, a orientação jurisprudencial n. 395 da SBDI-1 do TST, verbis: “O trabalho em regime de turnos ininterruptos de revezamento não retira o direito à hora noturna reduzida, não havendo incompatibilidade entre as disposições contidas nos arts. 73, § 1º, da CLT e 7º, XIV, da Constituição Federal”. 9.4.2.2 O trabalho noturno decorrente da natureza da atividade A parte final do §3o do artigo 73 da CLT preceitua que, “em relação às empresas cujo trabalho noturno decorra da natureza de suas atividades, o aumento será calculado sobre o salário mínimo geral vigente na região, não sendo devido quando exceder desse limite, já acrescido da percentagem”. Por algum tempo, entendeu parte da doutrina e da jurisprudência que essa regra atendia à diretriz constitucional, podendo, por exemplo, o proprietário de uma boate, que exercesse atividade tipica- mente noturna, desonerar-se da obrigação de remunerar o trabalho noturno em valor superior ao do diurno quando incidisse o adicional de 20% sobre o salário mínimo, ainda que fosse maior o salário que pagasse ao seu empregado. Sendo o salário pago maior que o salário mínimo acrescido do adicional de 20%, nada mais deveria o empregador. A opinião pretoriana se modificou, porém, como se extrai do verbete n. 313 da súmula da jurispru- dência do STF: “Provada a identidade entre o trabalho diurno e o noturno, é devido o adicional, quanto a este, sem a limitação do art. 73, §3o, da Consolidação das Leis do Trabalho, independentemente da natureza da atividade do empregador”. 9.4.2.3 A prorrogação do trabalho noturno do empregado urbano O §5o do artigo 73 da CLT prescreve: “Às prorrogações do trabalho noturno aplica-se o disposto neste Capítulo”. Não está o dispositivo a tratar de prorrogação de jornada normal, mediante a pres- tação de horas extras, em meio ao horário noturno. Cuida a norma, em vez disso, de prorrogação da jornada noturna, ou seja, do labor que, estendendo-se por toda a noite, avança além das 5h. Nada mais justo que o labor prolongado até depois das 5h seja remunerado com o adicional noturno, pois a fadiga e o desconforto se acentuam com o passar das horas, sendo turva a luz do sol aos olhos que reclamam o sono indormido. Ante a dicção legal, o adicional e também a redução ficta da hora noturna – todo o capítulo, enfim – são devidos na prorrogação da jornada noturna. Mas a jurisprudência tem enfatizado que o dispositivo (artigo 73, §5o, da CLT) não se aplica pelo simples fato de o horário ser misto, ou seja, conter horas noturnas e diurnas, a exemplo do trabalhador rodoviário que inicia sua jornada às 4h30. Não é razoável que se assimile toda a sua jornada como uma prorrogação de jornada noturna. A norma sob comento não tem esse desiderato, mas serve às hipóteses em que a jornada se protrai por todo o horário noturno e continua após às 5h, sendo eluci- dativa a ementa seguinte: (562) Conforme Súmula 112 do TST. (563) Conforme OJ 60, I da SBDI-1. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 213 Distingue-se o horário misto da prorrogação do horário noturno porque, no primeiro, parte do trabalho é prestado no horário noturno e, no segundo, o trabalho compreende toda a jornada noturna e ainda a supera (CLT, art. 73, §4o e 5o) (564). Em igual sentido é a orientação contida na Súmula 60, II do TST(565): “Cumprida integralmente a jornada no período noturno e prorrogada esta, devido é também o adicional quanto às horas prorroga- das. Exegese do art. 73, § 5º, da CLT”. A incidência do adicional ocorre quando o trabalhador passa toda a noite laborando e continua a fazê-lo após o raiar do sol. Trabalha das 22h às 7 ou 8h, por exemplo. Contudo, não pode o empregador valer-se dessa construção jurisprudencial para, em um repro- vável ardil, estabelecer jornada que se inicie logo após às 22h a fim de imunizar-se artificiosamente da obrigação de cumprir o art. 73, §5º da CLT. O Tribunal Superior do Trabalho tem reagido a essa tentativa de desvirtuar a vontade da lei, como se extrai de decisão pertinente da SBDI-1: RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. ADICIONAL NOTURNO. JORNADA MISTA QUE NÃO COMPREENDE A TOTALIDADE DO PERÍODO NOTURNO. A matéria discutida diz respeito à incidência do adicional noturno relativo às horas trabalhadas após as cinco horas da manhã, porquanto cumpria o recla- mante jornada mista, no período compreendido entre 23h10 às 7h10. A leitura da Súmula 60, II, do TST não pode conduzir a uma interpretação que estimule o empregador a adotar jornada que se inicia pouco após às 22h com o propósito de desvirtuar-lhe o preceito. Para garantir a higidez física e mental do trabalhador submetido à jornada de trabalho mista, em face da penosidade do labor noturno prolongado no horário diurno, entende-se que, nos casos de jornada mista (parte no período diurno e parte no período noturno), devido é o adicional noturno quanto às horas trabalhadas que seguem no período diurno, aplicando-se, portanto, a Súmula 60, II, do TST às hipóte- ses de jornada mista, ainda que iniciada pouco após às 22h, se cumprida quase inteiramente no horário noturno. Recurso de embargos conhecido e desprovido (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 154-04.2010.5.03.0149, Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 04/10/2012, Data de Publicação: 15/10/2012) A jurisprudência ainda não é pacífica quanto a aplicar-se também a redução ficta da hora noturna no tocante à hora prorrogada para além das 5h da manhã, ou seja, sobre não se aplicar apenas o adicional. Mas entendemos assista razão à Oitava Turma do TST quando afirma, a respeito da Súmula 60 II do TST, que “a referida súmula encontra-se fundada na orientação contida no parágrafo 5º do artigo 73 da CLT, não obstante se refira ao adicional noturno”. E arremata: “dessa forma, extrai-se que é devida a observância, também, da hora reduzida no cálculo das horas prorrogadas no horário diurno, ou seja, aquelas prestadas após as cinco horas da manhã”(566). 9.4.2.4 O trabalho noturno do empregado rural A Lei n. 5.889, de 1973, exaure, em seu artigo sétimo, a matéria pertinente ao trabalho noturno do empregado rural. Quanto a este, o legislador optou por delimitar o horário noturno em tempo corres- pondente a oito horas convencionais, não se adotando ao trabalho do rurícola, por isso, a redução ficta da hora noturna(567). (564) TRT 12a Região, RO-V 7492/95, Rel. Juiz J. L. Moreira Cacciari, Ac. 2a T. 0073/97, 13/12/96, Revista LTr 61-05/709. (565) A Súmula 60, II resulta da conversão da orientação jurisprudencial n. 6 da SDI 1 e reflete várias decisões do TST, a exemplo da que é encimada pela seguinte ementa: “Horas laboradas além das cinco horas da manhã – Direito ao adicional noturno Se para o trabalho noturno a lei garante um adicional de 20% sobre a hora trabalhada, com muito mais razão ainda quando se cumpre integralmente esta jornada e ainda se permanece trabalhando após ela. Se o que justifica o adicional é o desgaste maior do trabalho à noite igual ou maior desgaste haverá quando se prossegue trabalhando após já ter trabalhado após o período noturno – ubi eaden ratio, ibi eadem legis. Cumprida inte- gralmente a jornada no período noturno, e prorrogada esta, devido é também o adicional quanto às horas prorrogadas. Exegese do art.73, parágrafo 5º, da CLT. Embargos conhecidos e providos” (TST, SDI 1, Proc. TST-E-RR 311.016/96.9, Rel. Min. Vantuil Abdala. Fonte: SDI – 43 – JUN/00, p. 7). Em seu voto vencedor, o ministro relator faz referência aos seguintes precedentes, em igual sentido: E-RR-137.324/94, Ac.710/97, Min. Francisco Fausto, DJ 4/4/97,decisão unânime; E-RR-113.733/94, Ac. 2464/96, Min. Vantuil Abdala, DJ7/3/97, decisão unânime; E-RR-28.871/91, Ac. 652/96 – Min. Luciano Castilho, DJ 4/10/96, decisão unânime e E-RR-31.511/91, Ac. 301/94, Min. Armando de Brito, DJ 20/5/94, decisão por maioria. (566) TST, 8ª Turma, RR 2800-72.2000.5.15.0029, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 27/04/2012. (567) Nesse sentido: “HORA NOTURNA REDUZIDA. ART. 73 DA CLT. INAPLICABILIDADE AO EMPREGADO RURAL EM FACE DE NORMA ESPECÍFICA. ART. 7.º DA LEI 5.889/73. 1. Ao empregado rural não se aplica o art. 73 da CLT para considerar, na jornada noturna, a hora reduzida de 52 minutos e trinta segundos de que trata a norma consolidada. 2. Aos rurícolas não é possível considerar a hora reduzida porque a jornada estipulada no art. 7.º da Lei n. 5.889/73 (de 21 horas às 5 horas do dia seguinte ou de 20 horas às 4 horas do dia seguinte) já perfaz um total de 8 horas diárias. Acaso fosse considerada a hora reduzida, o total da jornada noturna diária seria de 9 horas, 7 minutos e 30 segundos (8 horas x 60 minutos = 480 minutos; 480/52´30´´ = 9 horas, 7 minutos e 30 segundos). 3. O art. 7.º da Lei n. 5.889/73 é norma específica a regular a matéria – jornada noturna para os rurícolas. Não se pode aplicar outro dispositivo – o art. 73 da CLT -, porque não há, na hipótese, qualquer lacuna da lei. Recurso de Embargos de que se conhece em parte e a que se dá provimento” (TST, 214 – Augusto César Leite de Carvalho Para o empregado rural que desenvolve seu serviço na lavoura, o horário noturno se estende, quando menos e por força de lei, das 21h às 5h. O horário noturno do empregado rural que presta serviço pastoril o é das 20h às 4h. Em ambos os casos, o adicional mínimo é de 25%. Questão instigante é aquela alusiva à adoção, para o trabalhador rural, da regra contida no art. 73, §5º, da CLT, que estende às horas trabalhadas como prorrogação do trabalho noturno o adicional mínimo de 25%. Entre aplicar subsidiariamente tal preceito legal aos rurais e a alternativa de restringir a sua aplicação aos trabalhadores urbanos, tem predominado na jurisprudência esse último entendi- mento, por razão singela: o art. 7º da CLT, ao excluir o trabalho rural da regência pela CLT, impede que se adote a CLT em favor dos rurícolas, salvo quanto à matéria sobre a qual a Lei n. 5.889/1973 seja omissa; como a Lei n. 5.889/1973 esgota a disciplina do trabalho noturno no campo, não se adota, na agricultura ou no pastoreio, qualquer dos preceitos componentes do art. 73 da CLT, aí incluída a inci- dência do adicional sobre a remuneração do tempo de prorrogação, no trabalho noturno(568). 9.4.2.5 O trabalho noturno em regimes especiais – trabalhador portuário e advogado Ocorre de o legislador prescrever um regime especial para o trabalho noturno de algumas catego- rias, a exemplo daquelas compostas por trabalhadores portuários e por advogados. No que concerne aos portuários, a orientação jurisprudencial n. 60, I da SDI-1 do TST exaure a interpretação da Lei n. 4.860/65 ao recomendar: “A hora noturna no regime de trabalho no porto, compreendida entre dezenove horas e sete horas do dia seguinte, é de sessenta minutos”. Quanto aos advogados, o art. 20, §3o, da Lei n. 8.906/94 prevê, em benefício dos advogados empregados, que “as horas trabalhadas no período das vinte horas de um dia até as cinco horas do dia seguinte são remuneradas como noturnas, acrescidas do adicional de vinte e cinco por cento”. 9.4.3 Os adicionais de insalubridade e de periculosidade O artigo 7º, XXIII, da Constituição assegura “adicional de remuneração para as atividades peno- sas, insalubres ou perigosas, na forma da lei”. O adicional de penosidade não está previsto em lei, nada obstando que normas coletivas ou individuais o prescrevam. Os adicionais de periculosidade e de insalubridade têm previsão legal, podendo ser logo destaca- das, por nós, as suas especificidades, ou seja, os pontos em que se distinguem: hipóteses de incidên- cia e base de cálculo. Em seguida, cuidaremos das características comuns a ambos os adicionais: a necessidade de prévia regulamentação pelo Ministério do Trabalho, a exigência de perícia técnica para a sua constatação, a supressão do direito pela eliminação do risco, a condicionalidade e a inexigibili- dade dos dois adicionais em cúmulo. 9.4.3.1 Hipóteses de incidência O adicional de insalubridade é devido quando o empregado é exposto, por ocasião do trabalho, a agente químico (arsênico, mercúrio, silicatos etc.), físico (ruído, calor, vibração, umidade etc.) ou bioló- gico (lixo, esgoto, doenças etc.) nocivo à sua saúde, acima dos limites de tolerância que são fixados por meio de normas regulamentadoras (NR’s) do Ministério do Trabalho e Emprego(569). As NR’s do MTE consideram os fatores de insalubridade em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos. É o que se extrai do artigo 189 da Consolidação das Leis do Trabalho. SBDI-1, E-RR-150/2000-121-17-00, Rel. Ministro João Batista Brito Pereira, DEJT 31/10/2008), (568) Nesse sentido: TST-RR-72300-17.2008.5.06.0412, Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, 8.ª Turma, DEJT 8/10/2010; TST-RR- 113700-45.2004.5.15.0074, Rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho, 6.ª Turma, DEJT 1.º/7/2011; TST-RR-41685-37.2004.5.15.0120, Rel. Min. Maria de Assis Calsing, 4ª Turma, DEJT 02/09/2011. (569) Lembra Márcio Ribeiro do Valle (VALLE, Márcio Ribeiro do. Insalubridade e periculosidade. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. Vol. 1. São Paulo: LTr, 1993. p. 198) que “toda a regulamentação administrativa da matéria insalutífera prevista na CLT está contida na Portaria 3214, de 8 de junho de 1978, sobretudo na NR 15 e seus respectivos anexos, onde temos, expressamente, a previsibilidade dos limites de tolerabilidade para os ruídos contínuos, intermitentes e de impacto; para a exposição ao calor e às radiações ionizantes e não ionizantes; para os níveis mínimos de iluminamento; para as pressões hiperbáricas, as vibrações, o frio e a umidade; para os agentes químicos com insalubridade caracterizada por limites de tolerabilidade, as poeiras minerais, os chamados agentes biológicos etc.” Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 215 O adicional de periculosidade é exigível, por sua vez e também em consonância com norma regu- lamentadora aprovada pelo Ministério do Trabalho(570), quando a prestação laboral implique risco acen- tuado em razão de o trabalhador expor-se, de modo permanente ou intermitente(571), a inflamáveis, explosivos, energia elétrica, roubos ou outras espécies de violência física nas atividades profissionais de segurança pessoal ou patrimonial, bem assim quando o trabalho consiste em condução de motoci- cleta. É o que se colhe do art. 193 da CLT e de seu §4º(572). Por fim, as Portarias 3.393, de 1987, e 518, de 2003, ambas do Ministério do Trabalho, incluíram entre os destinatários do adicional de periculosidade os empregados em atividades e operações com radiações ionizantes ou substâncias radioativas. A orientação jurisprudencial n. 345 da SDI-1 do TST, cuidando desses trabalhadores, reconhece a eficácia de citadas portarias ministeriais e ressalva: “No período de 12.02.2002 a 06.04.2003, enquanto vigeu a Portaria n. 496 do Ministério do Trabalho, o empregado faz jus ao adicional de insalubridade (pelo dito fato de operar com radiações ionizantes ou substâncias radioativas)”. 9.4.3.2 A base de cálculo dos adicionais de insalubridade e periculosidade Enquanto preponderar o texto da Consolidação das Leis do Trabalho (artigo 192), o adicional de insalubridade incide sobre o salário mínimo, à razão de 10%, 20% ou 40%, segundo seja de grau mínimo, médio ou máximo a nocividade do agente insalubre. Ao início deste capítulo, quando estu- damos o salário mínimo e a vedação constitucional de sua vinculação a outras prestações, vimos o dissenso jurisprudencial sobre a constitucionalidade do citado dispositivo da CLT, que vincula o adicio- nal de insalubridade ao salário mínimo(573). Quando adveio a Súmula Vinculante 4 do STF, o TST reviu a sua Súmula 228 para que ela passasse a conter a seguinte orientação: “A partir de 9 de maio de 2008, data da publicação da Súmula Vinculante n. 4 do Supremo Tribunal Federal, o adicional de insalubridade será calculado sobre o salário básico, salvo critério mais vantajoso fixado em instrumento coletivo”. Como adiante se verá, essa tentativa de pacificar o tratamento da matéria frustrou-se ante a intervenção do STF, por meio de decisão liminar. Outra controvérsia que sempre grassou na jurisprudência se relaciona com a base de cálculo do adicional de insalubridade quando o empregado recebe salário mínimo profissional ou piso salarial. Ao fim de 2003, o TST resgatou a sua antiga Súmula 17: “O adicional de insalubridade devido a empre- gado que, por força de lei, convenção coletiva ou sentença normativa, percebe salário profissional será sobre este calculado”. Mas tal entendimento igualmente não prosperou. (570) Vide, em especial, a NR 16 (com anexos que tratam de atividades e operações perigosas com explosivos, atividades e operações perigo- sas com inflamáveis, atividades e operações perigosas com radiações ionizantes ou substâncias radioativas, atividades e operações perigosas com exposição a roubos ou outras espécies de violência física nas atividades profissionais de segurança pessoal ou patrimonial, atividades e operações perigosas com energia elétrica), a NR 19 (explosivos) e a NR 20 (líquidos combustíveis e inflamáveis) da Portaria 3214/78. (571) Embora o artigo 193 se refira apenas a contato permanente, orienta a Súmula 364 do TST: “Tem direito ao adicional de periculosidade o empregado exposto permanentemente ou que, de forma intermitente, sujeita-se a condições de risco. Indevido, apenas, quando o contato dá-se de forma eventual, assim considerado o fortuito, ou o que, sendo habitual, dá-se por tempo extremamente reduzido.”. (572) Com a redação dada pelas Leis ns.12.740/2012 e 12.997/2014. Antes de serem editadas essas leis, o art. 193 da CLT referia-se a “contato permanente com inflamáveis ou explosivos”, observando Márcio Ribeiro do Valle que, não obstante essa dicção, “não é necessário que o trabalhador venha a operar diretamente com substâncias perigosas para perceber o adicional de periculosidade. Exemplo clássico disso é o da secretária de posto de gasolina que trabalha no escritório montado anexo à bomba de abastecimento, a qual, embora não lide com inflamáveis, presta porém serviços permanentes em área nitidamente perigosa, tendo direito, por isso e assim, ao adicional questionado”. (573) A nosso pensamento, a vedação constitucional deve ter interpretação finalística, consultando-se, assim, o interesse do constituinte de não permitir a indexação da economia por essa via. Em sendo o adicional de insalubridade uma prestação salarial, decerto que a vinculação de seu valor ao salário mínimo não tem efeitos inflacionários, ao menos não figurando como um modo deliberado de indexar a economia. Contudo, há um outro entrave à vinculação do adicional de insalubridade ao salário mínimo, comentado em monografia do juiz do trabalho Fabio Túlio Correia Ribeiro. É que o Decreto-lei n. 2351/87 revogou parcialmente o artigo 192 da CLT, pois extinguiu o salário mínimo e instituiu o salário mínimo de referência e o piso nacional de salário, entendendo-se, ao tempo de sua vigência, que o adicional de insalu- bridade incidiria sobre este último (orientação jurisprudencial n. 3 da SDI-1 do TST). Restaurando-se o salário mínimo e seus conceitos econômico e jurídico, a repristinação do artigo 192 da CLT estaria vedada pelo artigo 2o, §3o, da LICC. 216 – Augusto César Leite de Carvalho É que toda essa evolução jurisprudencial resultou prejudicada quando o Supremo Tribunal Federal, após estabelecer a Súmula Vinculante 4 – “salvo nos casos previstos na Constituição, o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial” – decidiu, na sequência, ao apreciar recursos extraordinários por meio dos quais se pretendia fixar novo parâmetro para o cálculo do adicional de insalubridade, que o Poder Judiciário não poderia atuar como legislador positivo, o que implicava a manutenção do salário mínimo como base de cálculo do citado adicional(574). Esclareceu o Ministro Ives Gandra, do TST: [...] assim decidindo, a Suprema Corte adotou técnica decisória conhecida no Direito Constitucional Alemão como declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade (‘Unvereinbarkeitserklärung’), ou seja, a norma, não obstante ser declarada inconstitucional, continua a reger as relações obrigacionais, em face da impossibili- dade de o Poder Judiciário se substituir ao legislador para definir critério diverso para a regulação da matéria. [...] O Direito Constitucional pátrio encampou tal técnica no art. 27 da Lei n. 9.868/99, o qual dispõe que, ‘ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado’. ‘In casu’, o momento oportuno fixado pela Suprema Corte foi o da edição de norma que substitua a declarada inconstitucional(575). Foi também o TST instado a manifestar-se acerca da sobrevigência de sua súmula 17, que, como visto, preconizava a incidência do adicional de insalubridade sobre o salário profissional das categorias que tinham direito a esse piso salarial diferenciado. Está a prevalecer, porém e novamente sob influên- cia de decisões proferidas pelo STF, o entendimento de que a norma instituidora do salário profissional deve prescrever igualmente a base de cálculo do adicional de insalubridade, pois do contrário incidiria ele sobre o salário mínimo(576). É que quando o STF foi provocado sobre a matéria, especialmente em reclamação que teve o ministro Cezar Peluso como relator, manifestou-se no sentido de que “o salário profissional, ainda que previsto em acordo ou convenção coletiva de trabalho, só pode ser tido como base de cálculo do adicional se esses documentos fizerem menção a essa condição específica. Vale dizer que não basta que a convenção ou acordo estabeleça o salário profissional do interessado. É preciso que ela estabeleça que tal salário é a base de cálculo do benefício [...]”(577). De toda sorte, o tema está em evidente fase de transição. A Súmula Vinculante 4 do STF não trouxe uma solução definitiva, antes a protraindo para um tempo em que norma jurídica finalmente constitucional sobrevenha. A intenção que movia o TST de constitucionalizar a matéria, dando nova redação à Súmula 228 de sua jurisprudência, foi inibida pela firme disposição de o STF reconduzi-la ao nível legal, numa inversão de papéis que parece incompatível com os novos tempos de ativismo judicial e com o propósito aparentemente irrepreensível, que inspirou a corte judicial trabalhista, de adotar a analogia ao dispositivo de lei que regulava a base de cálculo do adicional de insalubridade como modo de afastar a incidência de um preceito reconhecidamente inconstitucional. O adicional de periculosidade incide, por sua vez, sobre o salário-base do empregado. O artigo 193, §1º, da CLT, assegura o adicional sob comento “sobre o salário, sem os acréscimos resultantes de grati- ficações, prêmios ou participações nos lucros da empresa”. Ocorreu de o TST decidir que essa ressalva, tocante a gratificações, prêmios ou participações nos lucros, deveria ser aplicada restritamente (o que redundaria na incidência do adicional de periculosidade sobre outras parcelas salariais), assim agindo em consonância com a regra in dubio pro misero. Essa linha de interpretação não preponderou, contudo, pois a incidência somente sobre o salário-base está consagrada na Súmula 191 do TST. É de se notar, em remate, que a Lei n. 7.369, de 1985, previa o adicional de periculosidade sobre o salário que percebesse o trabalhador exposto a energia elétrica. Como inexistia referência ao salário-base (574) Nesse sentido, as decisões do STF nos processos seguintes: RE 565.714/SP, julgado no mesmo dia 30/abr/2008 em que editada a Súmula Vinculante 4; também o STF, Primeira Turma, RE 457.380-AgR/RS, Rel. Min. Carmen Lúcia; o RE 452.445-AgR/ES, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa etc. (575) TST, 7ª Turma, ED-AIRR – 112140-78.2005.5.04.0029 , Relator Ministro Ives Gandra Martins Filho, j. 11/06/2008, publicação em 13/06/2008. (576) Nesse sentido: TST, 2ª Turma, RR – 164100-84.2002.5.15.0025 , Relator Ministro José Simpliciano Fontes de F. Fernandes, j. 06/05/2009, publicação em 22/05/2009. (577) STF, Rcl 7.579/DF, DJe de 3/11/2009. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 217 nem restrição à incidência sobre qualquer prestação salarial, a mesma Súmula 191 enfatizava, como ainda enfatiza, que “em relação aos eletricitários o cálculo do adicional de periculosidade deverá ser sobre a totalidade das parcelas de natureza salarial”. Ocorreu, porém, de a Lei n. 7.369/85 ser revogada pela Lei n. 12.740, de 8 de dezembro de 2012. Então, todas as questões relativas ao adicional de periculosidade devido aos eletricitários passaram à regência da CLT, pois a citada Lei n. 12.740/2012 inseriu a energia elétrica entre os fatores de risco previs- tos no texto consolidado. Se a tendência jurisprudencial for a de cancelar a parte final da Súmula 191(578), para universalizar o salário-base como base de cálculo do adicional de periculosidade (inclusive para eletri- citários), decerto se protegerá o direito adquirido e a imunização contra a redução salarial que serão asse- gurados aos trabalhadores eletricitários que já laboravam ao tempo em que vigia a Lei n. 7.369/85. Outra importante reflexão, neste tópico, é pertinente à possibilidade de o adicional de periculo- sidade ser pago em valor proporcional ao tempo de exposição ao risco. Até tempo recente (maio de 2011), preponderava, não obstante o desconforto intelectual de parte da jurisprudência, a ponderação contida na Súmula 364, II, do TST, ou seja, a regra de que o percentual de 30% poderia ser reduzido para fazê-lo proporcional ao tempo de exposição ao risco, desde que essa proporção fosse prevista em norma coletiva. Assim estava previsto, por igual, no Decreto 93.412, de 1986, que regulamentava a Lei n. 7.369/85 (lei que regulava a periculosidade no setor elétrico e foi ab-rogada pela Lei n. 12.740/2012). O Tribunal Superior do Trabalho fez-se receptivo, porém, ao argumento de ser inviável a mitigação das regras de proteção ao meio ambiente laboral, à segurança e à saúde do trabalhador. Como bem define o item I da mesma Súmula 364, o adicional de periculosidade é integralmente devido quando há trabalho intermitente ou continuado em condições de risco, sendo esse direito de indisponibilidade absoluta. Por isso, o TST cancelou o mencionado item II da sua Súmula 364. Contra a alternativa de reduzir o adicional na proporção do tempo de exposição, terminou preva- lecendo a decisão de assegurar o adicional integralmente (incidente sobre o salário mensal) em qual- quer circunstância, porque, ainda quando é intermitente o trabalho arriscado, os efeitos danosos do agente perigoso não se reduzem em virtude de ser intermitente a sua ação. A explosão ou o choque elétrico são letais, ainda que o empregado não se exponha a esses agentes ininterruptamente. Assim está na Súmula 361 do TST: O trabalho exercido em condições perigosas, embora de forma intermitente, dá direito ao empregado a receber o adicional de periculosidade de forma integral, tendo em vista que a Lei n. 7.369/85 não estabeleceu qualquer proporcionalidade em relação ao seu pagamento. 9.4.3.3 A prévia regulamentação pelo Ministério do Trabalho Porquanto assim referido em lei(579), a mera condição de risco à saúde ou à incolumidade física não bastam à configuração do direito ao adicional de insalubridade ou ao adicional de periculosidade, respectivamente. Necessária é a prévia regulamentação do Ministério do Trabalho, indicando a condi- ção de trabalho como insalubre ou perigosa. Vale dizer: não é porque labora em situação de risco que o empregado tem direito a qualquer dos dois adicionais, pois o tem somente na hipótese de norma oriunda do Ministério do Trabalho arrolar a sua condição de trabalho como insalubre ou perigosa. Uma breve reflexão é inevitável: a percepção sempre finita do homem, inclusive daqueles que integram os centros de positivação das normas de direito, estaria a reclamar a utilização dos métodos de integração da norma estatal (analogia, costumes, princípios gerais de direito), mesmo no universo formalista dos teóricos que pugnam pela completude do ordenamento jurídico. A necessidade de enquadramento em normas regulamentadoras significaria, em vez disso, um resgate do critério da reserva legal, tão caro ao direito penal, mas proscrito em outras searas do direito. Por que estaria o direito do trabalho a exigir o critério formalista, qual seja, a subsunção do trabalho perigoso ou insalu- bre em tipo normativo específico? (578) Súmula 191 do TST – O adicional de periculosidade incide apenas sobre o salário básico e não sobre este acrescido de outros adicio- nais. Em relação aos eletricitários, o cálculo do adicional de periculosidade deverá ser efetuado sobre a totalidade das parcelas de natureza salarial. (579) Artigos 190 e 193 da CLT. 218 – Augusto César Leite de Carvalho A exigência de enquadramento da atividade insalubre em norma regulamentadora seria, portanto, uma manifestação atávica do direito do trabalho? Parece-nos que a resposta deve ser negativa. A nossa intuição é a de que poucas atividades não gerariam os adicionais de insalubridade ou periculo- sidade, em se prescindindo da prévia regulamentação ministerial. A sabedoria popular ensina que para se correr perigo, na sociedade contemporânea, basta estar vivo. A regra inserta nos artigos 190 e 193 da CLT, exigente de prévia e expressa regulamentação, atenderia, pois, ao postulado da segurança jurídica, no ambiente empresarial. Ainda assim, quer parecer-nos mais justa a solução anteriormente prevista no Decreto-lei n. 389, de 1968, a prever que “os efeitos pecuniários, inclusive adicionais, decorrentes do trabalho nas condi- ções de insalubridade ou periculosidade atestadas, serão devidos a contar da data do ajuizamento da reclamação”. Em suma, os empregados ou o sindicato que os representasse poderiam postular o adicional mesmo sem a existência de norma regulamentadora, mas nesse caso o adicional seria devido, se o fosse, apenas a partir do ajuizamento da ação judicial. A Lei n. 6.514, de 1977, revogou, contudo, a norma antecedente (DL 389/68), emprestando ao artigo 196 da CLT a sua atual redação: Os efeitos pecuniários decorrentes do trabalho em condições de insalubridade ou periculosidade serão devidos a contar da data da inclusão da respectiva atividade nos quadros aprovados pelo Ministério do Trabalho, respei- tadas as normas do art. 11(580). A ação trabalhista movida por empregado, quando ainda está em curso o seu contrato, é, de toda sorte, mais rara. A situação do trabalhador mais constante na Justiça do Trabalho é a daquele cujo vínculo de emprego já se desfez. Sobre serem insuficientes as normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho para a regência das inusitadas condições de trabalho, que o progresso tecnológico promove, influencia-nos o pensa- mento de Martins Catharino, que, investido de sua autoridade octogenária, ainda em vida afirmou: “devido ao fabuloso progresso científico-tecnológico, os quadros de atividades e operações insalubres são frequentemente alterados [...]. O problema maior não é o da falta de previsão e de atualização, mas o da deficiência de fiscalização, do descumprimento de disposições preventivas, eliminatórias ou compensatórias da insalubridade”(581). Também é esse o entendimento prevalecente no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, como se extrai da Súmula 448, I, de sua jurisprudência: “Não basta a constatação da insalubridade por meio de laudo pericial para que o empregado tenha direito ao respectivo adicional, sendo necessária a clas- sificação da atividade insalubre na relação oficial elaborada pelo Ministério do Trabalho”(582). Contudo, a mais alta corte trabalhista tem atenuado os efeitos da interpretação gramatical de algu- mas normas regulamentadoras, a exemplo do que fez quando não distinguiu fabricação e manuseio de óleos minerais, ao aplicar a NR 15, Anexo XIII(583), bem assim ao assegurar o adicional de periculo- sidade a eletricitários que não prestavam serviço em empresas geradoras ou distribuidoras de energia elétrica, embora o fizessem em setor elétrico de outras empresas(584). Noutras passagens, o TST foi provocado a respeito de a limpeza de sanitários corresponder, ou não, ao trabalho ou operação em contato permanente com “esgotos (galerias e tanques)” ou com “lixo urbano (coleta e industrialização)”, previstos no Anexo n. 14 da NR 15 como serviços expostos a insa- lubridade em grau máximo. A Corte conciliou sua primeira impressão de que inexistia insalubridade no trabalho de limpar residências ou pequenos escritórios com a insistência de peritos judiciais que afirmavam dar-se, noutros casos, a nocividade de serviço que incluía o primeiro tratamento das fétidas e malsadias cloacas humanas. Editou, em claro exercício de ponderação, o item II da Súmula 448 de sua jurisprudência: A higienização de instalações sanitárias de uso público ou coletivo de grande circulação, e a respectiva coleta de lixo, por não se equiparar à limpeza em residências e escritórios, enseja o pagamento de adicional de insalu- bridade em grau máximo, incidindo o disposto no Anexo 14 da NR-15 da Portaria do MTE n. 3.214/78 quanto à coleta e industrialização de lixo urbano. (580) O artigo 11 da CLT regula a prescrição trabalhista. (581) Revista TST, vol. 65, out/dez 1999, p. 225. (582)A Súmula 448 do TST substituiu a antiga Orientação Jurisprudencial n. 4 da SBDI-1, alterando-se apenas o seu item II, com conteúdo que será em seguida examinado. (583) Conforme orientação jurisprudencial 171 da SDI –1 do TST. (584) TST-RR 347753/97.4 – Ac. 4a T. 24/5/00 – Rel. Min. Barros Levenhagen. Revista LTr 65-02/198. Vide orientação jurisprudencial n. 324 da SDI I do TST. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 219 Outra polêmica candente se instaurou a propósito de aplicar-se aos empregados que prestam serviço em aviários, manuseando resíduos de animais mortos, o Anexo 14 da NR 15, que prevê a insa- lubridade do trabalho realizado, em condições semelhantes, nos estábulos e cavalariças. A exposição desses trabalhadores aos mesmos agentes biológicos sensibilizou a SBDI-1 do TST, que assegurou aos empregados em aviários o adicional de insalubridade previsto para o labor em estábulos e cavalariças(585). Em nenhum desses casos houve analogia – a exigir o adicional para atividades não referidas, mas com igual grau de nocividade –, havendo, menos que isso, mera interpretação extensiva (lex minus dixit quam volit), que estendeu os efeitos da norma à situação de fato que já integrava, embora implicitamente, a sua expressão. A palavra, que de regra é incapaz de expressar a objeto em toda a sua extensão, fora assimilada como exemplificativa de uma certa situação de fato, sem restringir a dimensão desta(586). Situação curiosa é aquela atinente à necessidade de prévia regulamentação pelo Ministério do Trabalho das hipóteses em que o adicional de periculosidade é devido pela exposição a roubo ou violência física em atividades profissionais de segurança pessoal ou patrimonial. A Lei n. 12.740, de 8 de dezembro de 2012, inovou no texto da CLT esse direito, sem que os atores sociais o conhecessem de experiências normativas anteriores (salvo por cláusulas eventuais de convenções ou acordos cole- tivos que eventualmente contemplavam tal direito). Sobreveio, enfim e em dezembro de 2013, o Anexo 3 da Norma Regulamentadora 16 do MTE a esclarecer que deve ser considerado perigoso o trabalho prestado por “empregados das empresas prestadoras de serviço nas atividades de segurança privada ou que integrem serviço orgânico de segurança privada, devidamente registradas e autorizadas pelo Ministério da Justiça, conforme Lei n. 7102/1983 e suas alterações posteriores” e por “empregados que exercem a atividade de segurança patrimonial ou pessoal em instalações metroviárias, ferroviárias, portuárias, rodoviárias, aeroportuárias e de bens públicos, contratados diretamente pela administração pública direta ou indireta”. 9.4.3.4 A necessidade de perícia técnica em sede judicial O artigo 195, §2o, da CLT prevê a necessidade de se designar perícia técnica sempre que reque- rido, em juízo, o adicional de insalubridade ou o adicional de periculosidade. Mesmo quando a condi- ção de trabalho em situação de risco é incontroversa, a exemplo do que sucede ao frentista de posto de gasolina(587), a práxis tem sido a realização da prova pericial. O juiz da instrução designa então um engenheiro de segurança do trabalho ou um médico do trabalho para o fim específico de constatar se as condições concretas de trabalho se subsumem em item prescritivo de alguma norma regulamenta- dora. A jurisprudência tem exigido a perícia até mesmo quando o empregador é revel, não oferecendo defesa em juízo. A perícia é, portanto, necessária, podendo o perito, sobretudo quando alterado o local de traba- lho, valer-se de documentos que porventura requisitar junto a órgãos públicos, testemunhas, plantas, desenhos, fotografias ou quaisquer outros elementos na fundamentação de seu laudo. Ademais, nada obsta que a conclusão do laudo seja condicionada à verificação de alguma situação de fato, impossível de ser investigada in loco e a ser apurada em juízo, por meio de outros elementos de prova(588). Há, porém, ao menos quatro situações em que essa exigência de perícia é relativizada. A primeira diz respeito aos casos em que o empregador admite o trabalho insalubre ou perigoso alegado, mas argumenta, por exemplo, que pagou o adicional vindicado. Se não apenas o fato é incontroverso, mas também o é o direito, desnecessária é a prova pericial(589). A outra situação é aquela em que as (585) Nesse sentido: TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 15590-35.2010.5.04.0000, Relator Ministro Carlos Alberto Reis de Paula, DEJT 10/06/2011; TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 1382996-09.2004.5.04.0900, Relator Ministro Lelio Bentes Corrêa, DEJT 05/11/2010; TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 23900-05.2007.5.04.0010, Relator Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, DEJT 29/07/2011. (586) Mesmo em direito penal, admite-se a interpretação extensiva. Damásio de Jesus exemplifica, afirmando que o artigo 130 do Código Penal não pune apenas a exposição ao perigo de contágio de doença venérea, mas também o próprio contágio; o artigo 235 incrimina a bigamia, abrangendo a poligamia etc. (JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 34). (587) Vide Súmula 39 do TST: “Os empregados que operam em bomba de gasolina têm direito ao adicional de periculosidade”. Em igual sentido, a Súmula 212 do STF. (588) Cf. VALLE, Márcio Ribeiro do. Op. cit. p. 202. (589) Nesse sentido, a Súmula 453 do TST (antiga orientação jurisprudencial 406 da SBDI-1): “O pagamento de adicional de periculosidade 220 – Augusto César Leite de Carvalho partes dissentem a propósito do direito ao adicional, mas convergem no tocante ao fato de um laudo relativo a outro empregado referir-se a condições de trabalho idênticas às do empregado que ajuizou a ação sob exame. O Tribunal Superior do Trabalho já decidiu favoravelmente à utilização de laudo emprestado(590). A terceira situação (de inexigibilidade da perícia) é aquela retratada na orientação jurisprudencial nº 278 da SDI I do TST: A realização de perícia é obrigatória para a verificação de insalubridade. Quando não for possível sua realização, como em caso de fechamento da empresa, poderá o julgador utilizar-se de outros meios de prova(591). Por derradeiro, a jurisprudência tem avançado para perceber que, após a edição da CLT – e, nela, do art. 195, §2º que está a exigir prova pericial – sobrevieram, por autorização do art. 200 da mesma Consolidação das Leis do Trabalho, as normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho que exigem das empresas a elaboração e implantação do PCMSO – Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (NR 7) e do PPRA – Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (NR 9), bem como a sua guarda pelo prazo de vinte anos(592). O PCMSO visa à promoção e à preservação da saúde do conjunto dos trabalhadores, encetando a “prevenção, rastreamento e diagnóstico precoce dos agravos relacionados ao trabalho”, enquanto o PPRA objetiva a preservação da saúde e integridade física dos trabalhadores, por meio da “antecipa- ção, reconhecimento, avaliação e consequente controle da ocorrência de riscos ambientais existentes ou que venham a existir no ambiente de trabalho”. Quando realizados com exação, o PCMSO e o PPRA revelam, não raro, o risco inerente às condições de trabalho a propósito das quais se postulam os adicionais ora analisados. Há precedentes jurisprudenciais, inclusive do TST(593), que mitigam a exigência de perícia quando o PCMSO ou o PPRA vem aos autos e basta, se bastar, para atestar o trabalho insalubre ou perigoso além dos limites de tolerância. Tal avanço na aplicação da regra legal reveste-se de indiscutível propriedade, sobretudo naqueles casos em que a atividade supostamente insalubre ou perigosa desenvolve-se em área erma, para onde não se deslocam peritos com facilidade. E como se trata de prova documental cuja pré-constituição é imposta por lei, nada impede, antes se recomenda, que o juiz determine a apresentação do PCMSO e do PPRA sob a cominação de confesso prevista nos artigos 399, I e 400 do CPC de 2015(594). Aqui não parece aplicável a construção jurisprudencial que entende insuficiente a revelia para atestar o trabalho de risco, pois se está agora a cuidar de determinação judicial para fim específico, que resultaria desau- torizada e mesmo anódina se não aparelhada da sanção processual correspondente. Fora dessas hipóteses, o pedido de adicional de insalubridade ou periculosidade importa a reali- zação da perícia, devendo o empregado arcar, o mais das vezes, com os honorários profissionais, dada a insuficiência do quadro de peritos das superintendências regionais do trabalho e a inexistência do cargo de perito no quadro de servidores dos tribunais regionais e Varas do trabalho. Sempre que o efetuado por mera liberalidade da empresa, ainda que de forma proporcional ao tempo de exposição ao risco ou em percentual inferior ao máximo legalmente previsto, dispensa a realização da prova técnica exigida pelo art. 195 da CLT, pois torna incontroversa a existência do trabalho em condições perigosas.” (590) TST-RR 488514/98 – Ac. 2a T. – Rel. Juiz Convocado Márcio Ribeiro do Valle – DJU 4/8/2000. Revista TST, Brasília, vol. 66, n. 3, jul/set 2000. p. 400. (591) A prescindibilidade da perícia, nesse caso em que a empresa encerrou suas atividades, não implica dizer que a perícia porventura realizada é inválida. Conforme entendeu a Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho, “a apuração da insalubridade após encerrado o contrato de trabalho, quando as condições da obra já não seriam as mesmas, não invalida o laudo técnico pericial. O art. 195 da CLT não dita qualquer condição para a realização da perícia, enquanto que o art. 429 do CPC preceitua que o perito, no desempenho de sua atividade, pode dispor de diversas fontes de informação e dos meios necessários à produção da prova” (TST-RR-590454/99 – Ac. 2a T. – Rel. Min. Valdir Righetto – DJU 17/3/2000. Trecho da ementa extraída da Revista TST, Brasília, vol. 66, n. 2. abr/jun 2000. p. 342). (592) Conforme art. 7.4.5.1 da NR 7 e art. 9.3.8.2 da NR 9. (593) “[...] ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. PERÍCIA. PPRA (PROGRAMA DE PREVENÇÃO DOS RISCOS AMBIENTAIS). Havendo registro no PPRA da empresa de que o local de trabalho do reclamante era insalubre, com classificação no Anexo 3 da NR-15, o deferimento do adicional de insalubridade com base nesse documento, ou seja, sem a realização de perícia nos presentes autos, não viola o disposto no artigo 195 da Consolidação das Leis do Trabalho, que exige perícia para a caracterização do labor em condições insalubres. Precedentes. Recurso de revista não conhecido. [...]”(TST, 1ª Turma, RR 757-84.2013.5.08.0003, Relator Ministro Lelio Bentes Corrêa, DEJT 06/03/2015). Em igual sentido: TST, 1ª Turma, AIRR 1700-83.2013.5.08.0203, Relator Ministro Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 24/10/2014; TST, 1ª Turma, AIRR 562-87.2013.5.03.0052, Relator Desembargador Convocado Alexandre Teixeira de Freitas Bastos Cunha, DEJT 22/05/2015. (594) Esses dispositivos repetem o teor dos artigos 358, I e 359 do CPC de 1973. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 221 empregado postula tais adicionais e não é beneficiário de assistência judiciária gratuita(595), cabe-lhe prover os honorários periciais. 9.4.3.5 A supressão do direito ao adicional pela neutralização ou eliminação do risco O artigo 191 da CLT prescreve: “A eliminação ou a neutralização da insalubridade ocorrerá: I – com a adoção de medidas que conservem o ambiente de trabalho dentro dos limites de tolerância; II – com a utilização de equipamentos de proteção individual ao trabalhador, que diminuam a intensidade do agente agressivo a limites de tolerância”. O primeiro inciso refere, portanto, as medidas de proteção coletiva, a exemplo do sistema de ventilação adequado para ambientes de trabalho em que emprega- dos operem com manganês(596). O inciso segundo faz alusão aos equipamentos de proteção individual (EPI), como aqueles enumerados na NR 6 da Portaria 3214, de 1978: protetores faciais, óculos de segurança, máscaras para soldadores, capacetes, luvas, mangas de proteção e cremes protetores. Se a ventilação é suficiente para dissipar a poeira contaminada ou o equipamento de proteção individual imuniza o trabalhador, neutralizando os efeitos nocivos do agente insalubre, cessa o direito de o empregado receber o adicional de insalubridade. O mesmo se dá, por óbvio, na hipótese de a nocividade não ser apenas neutralizada, mas, para além disso, eliminada. Vale, porém, a advertência da Súmula 289 do TST: O simples fornecimento do aparelho de proteção pelo empregador não o exime do pagamento do adicional de insalubridade, cabendo-lhe tomar as medidas que conduzam à diminuição ou eliminação da nocividade, dentre as quais as relativas ao uso efetivo do equipamento pelo empregado. Quanto ao adicional de periculosidade, a lei não contempla a possibilidade de o direito ao adicio- nal cessar em razão de os equipamentos de proteção individual neutralizarem o risco. O artigo 194 da CLT estatui que “o direito do empregado ao adicional de insalubridade ou de periculosidade cessará com a eliminação do risco à sua saúde ou integridade física [...]”(597). É possível inferir, portanto, que o empregador se desonera do adicional de insalubridade quando logra eliminar ou neutralizar o agente insalubre; e se desobriga de pagar o adicional de periculosidade quando elimina (sem que se cogite aqui de neutralização) o fator de risco à integridade física do empregado. Não por coincidência, há autores que consideram quase impossível a eliminação do risco para os que lidam, constantemente, com inflamáveis, explosivos, radiações ionizontes, substâncias radio- ativas ou energia elétrica (a doutrina se desenvolveu quando não estava previsto o adicional para o serviço de segurança pessoal ou patrimonial). Márcio Ribeiro do Valle(598) especula, inclusive, que “a cessação do pagamento do adicional de periculosidade ocorre com o término do trabalho nas áreas de risco ou com a transferência do empregado para setores da empresa que não sejam perigosos, não porém com o fornecimento de EPI que efetivamente eliminasse o risco à integridade física do trabalhador pela periculosidade”. Pode ocorrer de a eliminação (ou também a neutralização, em se tratando de insalubridade) ser obtida após o empregado ter assegurado, em processo judicial, o direito ao adicional de insalubridade ou periculosidade. O fato superveniente da eliminação do risco autorizaria o empregador a descumprir, (595) O art. 790-B da CLT dispensa os honorários periciais dos trabalhadores que sejam beneficiários de gratuidade judiciária. A Resolução 66/2010 do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, com as atualizações previstas nas Resoluções 78/2011 e 115/2012, disciplina a maté- ria. Ao julgar o AIRR-944/2005-069-03-41.1, a Ministra Dora Maria da Costa observou que “nas hipóteses de dispensa do pagamento dos honorários periciais, por ser beneficiária da Justiça gratuita a parte sucumbente no objeto da perícia, esta Corte, seguindo entendimento do Supremo Tribunal Federal – RE 224.775/MS, 2ª Turma, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 24/05/2002 e RE 207.732/MS, 1ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie Northfleet, DJ de 2/8/2002 -, vem firmando posicionamento de que a responsabilidade pelo adimplemento dessa verba deve ser imposta ao Estado, uma vez que incumbe a esse garantir efetividade aos princípios do amplo acesso à justiça e da assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (CF, art. 5º), assegurando-se, consequentemente, máxima eficácia aos direitos e garantias fundamentais insculpidos em nossa Lei n. Fundamental”. Precedentes da SBDI-1 nesse sentido: TST-E-RR-1017/2002-002-24-00, Ministro Horácio Senna Pires, publicada no DJ de 29/06/2007 e TST-E-ED-RR- 913/2004-022-24-00, SBDI-1, Rel. Min. João Batista Brito Pereira. DJ – 14/12/2007. (596) Vide NR 15 – Anexo 12, capítulo sobre manganês e seus compostos, item 6. (597) Sergio Pinto Martins (op. cit. p. 216) observa que “para o adicional de periculosidade não ser devido, mister se faz que o risco seja eliminado, e não neutralizado, porque a qualquer momento o laboralista pode ser surpreendido com uma descarga elétrica, em que tal risco continua logicamente a existir”. (598) Op. cit. p. 210. 222 – Augusto César Leite de Carvalho a partir de então, o dispositivo sentencial? A jurisprudência tem entendido que, nesses casos, aplica- -se o artigo 471, I, do CPC, obrigando-se o empregador a ajuizar uma ação revisional com o fim de se exonerar do adicional até ali devido. Parece-nos acertada essa orientação, pois não pode o empre- gador reclamar os embaraços de uma ação judicial se impeliu o empregado, antes, a manejá-la para obter o reconhecimento do direito ao adicional. Se acaso se submetesse o empregador aos resultados de perícia extrajudicial, a ação revisional seria prescindível. Noutro sentido, Valentin Carrion(599) advoga que a vocação simplificadora do direito processual laboral permite o debate sobre a supressão do trabalho de risco após a condenação judicial, no processo de execução da sentença, parecendo-lhe desnecessária a ação revisional. 9.4.3.6 A condicionalidade do direito ao adicional de insalubridade ou periculosidade Vimos que o pagamento habitual ou continuado de um adicional o faz atraído pelo núcleo salarial, o que impediria a sua supressão. Por outro lado, também já percebemos, ao estudarmos a condiciona- lidade como uma das características dos complementos salariais, que é inconveniente a preservação do direito ao adicional quando isso significa um desestímulo para o empregador, que não tem interesse em eliminar a adversidade do trabalho se continuará a sofrer os seus efeitos financeiros. Essa encruzilhada jurídica fez surgir a Súmula 248 do Tribunal Superior do Trabalho, em que a Corte judicial faz clara opção pela condicionalidade, ao recomendar: “a reclassificação ou descarac- terização da insalubridade, por ato da autoridade competente, repercute na satisfação do respectivo adicional, sem ofensa a direito adquirido ou ao princípio de irredutibilidade salarial”. Resumindo, a necessidade de se combater o trabalho arriscado induz a jurisprudência a compre- ender os adicionais de insalubridade e de periculosidade como prestações devidas sob condição. Isso não obstante, é certo que os citados adicionais, enquanto forem pagos com habitualidade, refletirão no valor de outras parcelas, que têm no salário a sua base de cálculo. Assim está preconizado, aliás, em alguns verbetes da súmula da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho(600). 9.4.3.7 A inacumulabilidade dos adicionais de insalubridade e de periculosidade A Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 193, §2o, prevê que “o empregado poderá optar pelo adicional de insalubridade que porventura lhe seja devido”. À parte o desvio de ótica, pois não pode ser uma ventura laborar em condições insalubres, é certo que o citado dispositivo sempre foi interpretado como uma proibição a que o empregado pudesse exigir os dois adicionais, quando ambos os agentes, insalubre e perigoso, estiverem presentes. Na esteira dessa compreensão, o item 15.3 da Norma Regulamentadora 15 do Ministério do Traba- lho estabelece: “No caso de incidência de mais de um fator de insalubridade, será apenas considerado o de grau mais elevado, para efeito de acréscimo salarial, sendo vedada a percepção cumulativa”. Interpretando-se assim o art. 193, §2º da CLT, bem se vê que se cuida de regra injusta, pois permite que o empregado labore em situação de risco à sua integridade física sem que receba o adicional correspondente, pois estaria recebendo adicional relativo a agente nocivo à sua saúde, ou vice-versa. Ao versar sobre essa impossibilidade legal de acumulação dos dois adicionais, Rodrigues Pinto(601) lembra que tal norma proibitiva é um legado da Lei n. 2.573/55, que instituiu o adicional de periculosi- dade, mas é enfático: “Explicação jurídica não encontramos para isso, daí entendermos ter havido uma recaída do legislador em favor do poder econômico”. A orientação jurisprudencial que tem prevalecido é, entretanto, a de que os adicionais de insalubridade e de periculosidade são inacumuláveis. Como quer que seja, é hora de se questionar a validade dessa norma frente ao que preceitua o artigo 7o, XXIII, da Constituição, que diz ser direito do trabalhador o “adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei”. Ante o postulado da norma (599) Op. cit. p. 176. Nota ao artigo 194 da CLT. (600) Vide Súmulas nº 132 (sobre integração do adicional de periculosidade) e 139 (integração do adicional de insalubridade enquanto percebido). (601) Op. cit. p. 344. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 223 mais favorável, consagrado no caput desse dispositivo constitucional, a norma legal está autorizada a regular os casos em que são devidos os adicionais de penosidade, insalubridade ou periculosidade e a fixar os respectivos percentuais. A conjunção ou estaria presente, no texto do inciso sob análise, pois o uso da conjunção aditiva (e) faria concluir que toda atividade penosa também seria insalubre e, por igual, necessariamente perigosa. A nosso entendimento, não estaria o legislador infraconstitucional autorizado a suprimir o direito ao adicional de periculosidade, em hipótese que a lei enumera como de risco. E como o suprime sem qualquer justificativa, o artigo 193, §2º da CLT se apresenta, pura e simplesmente, como a negação de um direito fundado na Constituição. Ademais, o art. 8, item 3, da Convenção 148 da OIT preconiza: “Os critérios e limites de exposição deverão ser fixados, completados e revisados a intervalos regulares, de conformidade com os novos conhecimentos e dados nacionais e internacionais, e tendo em conta, na medida do possível, qualquer aumento dos riscos profissionais resultante da exposição simultânea a vários fatores nocivos no local de trabalho”. O Estado brasileiro novamente se comprometeu, ao ratificar a Convenção 155 da OIT, a implementar o que recomenda o seu art. 11, b: “deverão ser levados em consideração os riscos para a saúde decorrentes da exposição simultânea a diversas substâncias ou agentes”. Portanto, a orientação jurisprudencial que predomina, no sentido de que são inacumuláveis os adicionais de insalubridade e de periculosidade, frustra, a nosso ver, o desígnio constitucional e também o compromisso assumido pelo Brasil quando ratificou as Convenções 148 e 155 da OIT; em rigor, essa orientação relativiza o direito fundamental à compensação monetária pela exposição a agentes nocivos à saúde ou à integridade física do trabalhador. Assim se posicionou, em julgamento emblemático e por unanimidade, a Sétima Turma do Tribunal Superior do Trabalho, seguindo voto da relatoria do Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão(602). Uma observação é, ainda, necessária. Mesmo que se tenha como constitucional o preceito ante- visto, que prescreve a inacumulabilidade dos citados adicionais, decerto isso não impedirá o empre- gado de postular os dois adicionais em juízo, cabendo-lhe escolher qual deles pretende receber na hipótese de a perícia constatar tanto o trabalho insalubre como o labor em situação de risco. 9.4.4 O adicional de transferência O artigo 469, §3o, da Consolidação das Leis do Trabalho assegura o direito ao adicional de no mínimo 25% sobre o salário, sempre que o empregado é transferido, provisoriamente, de uma para outra localidade de trabalho. (602) RECURSO DE REVISTA. CUMULAÇÃO DOS ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE. POSSIBILIDADE. PREVALÊNCIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS E SUPRALEGAIS SOBRE A CLT. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA DO STF QUANTO AO EFEITO PARALISANTE DAS NORMAS INTERNAS EM DESCOMPASSO COM OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INCOMPATIBILIDADE MATERIAL. CONVENÇÕES NOS 148 E 155 DA OIT. NORMAS DE DIREITO SOCIAL. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. NOVA FORMA DE VERIFICAÇÃO DE COMPATIBILIDADE DAS NORMAS INTEGRANTES DO ORDENAMENTO JURÍDICO. A previsão contida no artigo 193, § 2º, da CLT não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 7º, XXIII, garantiu de forma plena o direito ao recebimento dos adicionais de penosidade, insalubridade e periculosidade, sem qualquer ressalva no que tange à cumulação, ainda que tenha remetido sua regulação à lei ordinária. A possibilidade da aludida cumulação se justifica em virtude de os fatos geradores dos direitos serem diversos. Não se há de falar em bis in idem. No caso da insalubridade, o bem tutelado é a saúde do obreiro, haja vista as condições nocivas presentes no meio ambiente de trabalho; já a pericu- losidade traduz situação de perigo iminente que, uma vez ocorrida, pode ceifar a vida do trabalhador, sendo este o bem a que se visa prote- ger. A regulamentação complementar prevista no citado preceito da Lei n. Maior deve se pautar pelos princípios e valores insculpidos no texto constitucional, como forma de alcançar, efetivamente, a finalidade da norma. Outro fator que sustenta a inaplicabilidade do preceito celetista é a introdução no sistema jurídico interno das Convenções Internacionais nos 148 e 155, com status de norma materialmente cons- titucional ou, pelo menos, supralegal, como decidido pelo STF. A primeira consagra a necessidade de atualização constante da legislação sobre as condições nocivas de trabalho e a segunda determina que sejam levados em conta os -riscos para a saúde decorrentes da exposição simultânea a diversas substâncias ou agentes-. Nesse contexto, não há mais espaço para a aplicação do artigo 193, § 2º, da CLT. Recurso de revista de que se conhece e a que se nega provimento (TST, 7ª Turma, RR 1072-72.2011.5.02.0384 , Relator Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, DEJT 03/10/2014). DEJT 03/10/2014). A SBDI-1, em sessão de 28 de abril de 2016, manteve, porém e por voto da maioria dos ministros que compunham a sessão naquele dia, a jurisprudência segundo a qual os adicionais de insalubridade e de periculosidade são inacumuláveis, vencidos, nos três processos sob julgamento (E-RR 443-80.2013.5.04.0026, E-RR 10722-70.2013.5.12.0037 e E-ARR 1081- 60.2012.5.03.0064), os ministros Augusto César Leite de Carvalho, Cláudio Mascarenhas Brandão, Hugo Carlos Scheuermann e Alexandre Agra Belmonte. 224 – Augusto César Leite de Carvalho O assunto deve ser mais bem estudado no tópico relativo à alteração do contrato de trabalho, em capítulo próprio. É interessante frisar, porém, que se tem interpretado o citado dispositivo de lei como uma garantia do direito ao adicional de transferência nos casos de transferência provisória, mesmo nas hipóteses em que o empregador está autorizado a transferir o empregado, por ser ele, por exemplo, exercente de cargo de confiança (artigo 469, §§ 1o e 2o, da CLT). Segundo esse entendimento, que é claramente majoritário, a transferência definitiva não dá direito ao adicional de transferência(603). Quanto ao mais, o empregador deve ressarcir as despesas de transferência, independentemente da obrigação de pagar o adicional de transferência, cujo fato gerador é o desconforto do trabalho em outra localidade. Assim dispõe o artigo 470 da CLT. Também tem pertinência, aqui, a discussão sobre o adicional de transferência se integrar definiti- vamente ao salário ou se caracterizar como salário sob condição. A jurisprudência tem pendido para o aspecto da condicionalidade, como se pode inferir da seguinte ementa(604): O adicional de transferência pago de forma habitual constitui salário condicional em face do que estatui o art. 457, §1o, da CLT. Assim, enquanto pago, deve o adicional computar-se no salário para todos os efeitos, inclusive para cálculo das férias e do 13o salário. 9.5 Os princípios informantes da teoria jurídica do salário É natural que os princípios que informam um ramo qualquer do conhecimento sejam estudados a início, pois neles devemos desvendar toda a sua base teórica ou, em se cuidando das ciências sociais, as normas que, por serem fundantes do sistema, apresentam um grau maior de abstração. Por tratarmos de remuneração e salário, estamos, porém, a inverter essa orientação lógica, pois houve a necessidade de assimilarmos, antes, os conceitos e os tipos salariais e remuneratórios mais específicos, o que viabilizará, estamos certos, a compreensão dos princípios e a delimitação de sua incidência. Outra observação é, também, necessária. É que, tal como se deu no estudo dos princípios do direito do trabalho, apresenta-se, entre os princípios informantes da teoria do salário, um princípio que, a bem ver, precede os demais e é deles uma clara projeção. Referimo-nos ao princípio da irre- dutibilidade, do qual emanam os outros princípios, que também estudaremos, observando a seguinte nomenclatura(605): integridade, intangibilidade, igualdade e certeza de pagamento. 9.5.1 Princípio da irredutibilidade Antes de ser editada a Constituição de 1988, dizia-se irredutível o salário com esteio na regra do artigo 468 da CLT, que proscreve a alteração prejudicial do contrato de emprego, mesmo quando o contrato é alterado com a formal anuência do empregado. Com efeito, não há, idealmente, alteração mais prejudicial que aquela que resulta em redução do salário. Existiam, então, duas claras exceções à regra – infraconstitucional – da irredutibilidade do salário: a redução transitória, em hipótese de força maior, não superior a 25% (artigo 503 da CLT), e a redução salarial prevista em acordo coletivo de trabalho, em razão de conjuntura econômica adversa e por no máximo três meses, também não superior a 25% do salário contratual (artigo 2o da Lei n. 4923, de 1965). Em 1988, o princípio da irredutibilidade foi erigido ao nível constitucional e, no mesmo passo, permitiu-se que o salário fosse reduzido mediante negociação coletiva. Em outras palavras, o princípio foi elevado ao patamar mais elevado das categorias normativas, mas ali mesmo foi relativizado. Os teóricos do direito do trabalho não tardaram a perceber que o artigo 503 da CLT não era mais compatível com a ordem constitucional, pois, mesmo em caso de força maior, há, agora, a necessi- dade de norma coletiva para que o salário seja reduzido. (603) Nesse sentido a OJ 113 da SBDI-1 do TST: “O fato de o empregado exercer cargo de confiança ou a existência de previsão de transfe- rência no contrato de trabalho não exclui o direito ao adicional. O pressuposto legal apto a legitimar a percepção do mencionado adicional é a transferência provisória”. (604) TST, RR 385775/97.7, Rel. Min. João Oreste Dalazen, Ac. 1a Turma, apud Valentin Carrion, Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, p. 328. (605) Essa divisão e a denominação dos princípios repetem as que foram adotadas, em festejado Curso de Direito do Trabalho, por Mozart Victor Russomano. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 225 Grassa controvérsia, entretanto, quanto a se aplicar o prazo de três meses previsto no artigo 2o da Lei n. 4.923, de 1965, quando acordo coletivo de trabalho dispuser sobre a redução salarial para fazer face a circunstâncias da economia. O contra-argumento é alusivo à força da autonomia privada coletiva nos assuntos cuja regulação lhe fora entregue pelo poder constituinte, o suficiente para que a redução de salário não fique restrita aos três meses referidos na mencionada lei. Ao estudarmos a distinção entre remuneração e salário, restou claro que a parcela remuneratória somente se torna irredutível quando se converte em salário, sendo, o mais das vezes, atraída pelo núcleo salarial em virtude de sua habitualidade. Apenas a atribuição econômica que se reveste das características de parcela salarial está protegida pelo princípio da irredutibilidade, dada a ênfase com que se apresenta, nela, a natureza alimentar. Portanto, o recebimento de uma parcela por longo tempo a faz integrar-se ao patrimônio do empre- gado, dele não podendo, mais, ser subtraída. A extensão desse tempo não segue regra rigorosa na jurisprudência(606), atendendo em verdade ao princípio da razoabilidade: se é tempo bastante para que se perceba um ajuste tácito com vistas ao recebimento da parcela, deduz-se a sua natureza salarial. Relembramos, ainda, que o salário, regra geral, pode ser fixado por unidade de tempo ou de obra. Há fixação de um valor nominal (R$ 1.000,00 por mês, exempli gratia) para certo tempo de trabalho ou, na outra hipótese, a fixação de um valor (R$ 2,00) ou de uma percentagem (2%) para cada peça fabricada ou vendida. O salário, que é fixado, não pode sofrer redução, isso não obstando que o valor mensal do salário por unidade de obra oscile segundo o desempenho do empregado. A vedação incidiria se o empregado tivesse a sua comissão reduzida de 2% para 1%, malgrado assim sucedesse em um mês cujas vendas o fizessem receber, sem embargo dessa redução percentual, um valor total de comissões maior que o do mês anterior. Abomina o direito do trabalho a redução direta do salário e, por igual, aquela que se dá por via oblíqua, disfarçada, mediante retenção ou do desconto indevido. É o que veremos na análise dos demais princípios. 9.5.2 Princípio da integridade do salário O princípio da integridade do salário se realiza no postulado seguinte: o empregado deve receber salário justo e integral, mesmo quando o seu valor não foi previamente ajustado. 9.5.2.1 A integridade do salário e sua determinação supletiva O conceito de salário justo é relativizado pelo direito, pois não equivale à real utilidade do trabalho, como se daria se tratássemos de uma relação de empreitada ou não estivéssemos em um sistema capitalista de produção, com atenção voltada à necessidade de se resguardar a parte que corresponde ao lucro do empregador. A justeza do salário está emoldurada no artigo 460 da Consolidação das Leis do Trabalho, verbis: Na falta de estipulação do salário ou não havendo prova sobre a importância ajustada, o empregado terá direito a perceber salário igual ao daquele que, na mesma empresa, fizer serviço equivalente, ou do que for habitualmente pago para serviço semelhante. Logo, o fato de o empregado e o empregador não terem acertado, ao início do vínculo, o exato valor do salário, não importa o direito mínimo, vale dizer, não dará direito ao empregado de receber apenas o salário mínimo legal. O parâmetro, em vez disso, será o salário do empregado que exercer função semelhante na mesma empresa ou, não havendo tal empregado, o salário que usualmente se pagar aos exercentes da citada função. Poderá o empregado, assim, ajuizar ação trabalhista com vistas à determinação supletiva de seu salário pela Justiça do Trabalho. Aliás, autores há que defendem, a nosso ver com razão, a possibilidade (606) A antiga Súmula 76 do TST referia-se à incorporação ao salário da parcela que fosse recebida por dois anos ou por todo o contrato. A atual Súmula 291 do TST, seguindo o parâmetro fixado pelo dispositivo legal em que se inspirou (art. 9º da Lei n. 5.811/72), refere-se à percepção por um ano de horas extraordinárias como suficiente para caracterizar a habitualidade dessas. 226 – Augusto César Leite de Carvalho de o empregado se valer, por analogia, do citado artigo 460 da CLT para postular a revisão de seu salário, sempre que surpreendido, em meio ao pacto, pelo aumento da quantidade de trabalho que lhe é cobrada pelo empregador(607). É pena que essa norma, conotativa de civilidade, seja dificilmente utilizada em conjunturas econômicas que favorecem o desemprego, pois sabe o empregado que põe sob ameaça o seu disputado posto de trabalho se pedir, em juízo, a revisão de seu salário. 9.5.2.2. A integridade do salário e a vedação de descontos Versa o princípio da integridade sobre salário justo e também sobre salário integral, o que importa a vedação de descontos salariais. Atendendo a circunstâncias da realidade, o legislador proibiu os descontos de salário no artigo 462 da CLT, mas ressalvou, no mesmo dispositivo e em seu parágrafo primeiro, as exceções a essa regra, autorizando os descontos seguintes: a) dedução de adiantamento de salário; b) determinação em lei, a exemplo do imposto de renda retido na fonte e da contribuição previ- denciária; c) descontos previstos em norma coletiva, como a contribuição assistencial devida a sindicatos; d) dedução do valor correspondente ao dano, doloso ou intencional, praticado contra o patrimônio do empregador; e) ressarcimento do dano culposo, ou seja, do dano não intencional(608), cometido por inadvertên- cia, imprudência ou imperícia do empregado, sendo esse desconto por dano culposo condicionado à expressa previsão contratual. O tempo passou e novas modalidades de desconto, envolvendo o empregado, fizeram surgir uma séria discussão, na jurisprudência trabalhista, sobre a possibilidade de o empregador descontar, por exemplo, prêmios mensais de seguro de vida e mensalidade de planos de assistência médica ou odontológica. Sustentava-se, por um lado, que os novos descontos não foram previstos no artigo 462 da CLT porque tratam de uma realidade que não era vivenciada pelo legislador de 1943, sendo indicativo de sua licitude o fato de os empregados utilizarem os serviços garantidos nos tais contratos de assistência médica e hospitalar, quando deles precisam. Os adversários da referida tese lembravam, porém, a possibilidade de o empregador obter autorização para os descontos em norma coletiva – sendo indício de coação econômica a não utilização desse meio de validar tais descontos – e, também, o fato de eles serem autorizados, quase sempre, em documentos inseridos em meio a outros muitos, que o empregado assina em seu momento de admissão, premido pela necessidade de não perder a oportunidade de emprego. Após intensa discussão, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Súmula 342, que alargou a possibilidade do desconto e, inclusive, transferiu ao empregado o ônus de provar o caráter coativo de sua autorização. Verbis: Descontos salariais efetuados pelo empregador, com a autorização prévia e por escrito do empregado, para ser integrado em planos de assistência odontológica, médico-hospitalar, de seguro, de previdência privada, ou de entidade cooperativa, cultural ou recreativa associativa dos seus trabalhadores, em seu benefício e dos seus dependentes, não afrontam o disposto no art. 462 da CLT, salvo se ficar demonstrada a existência de coação ou de outro defeito que vicie o ato jurídico. Mais recentemente, a Lei n. 10.820, de 2003 (com as alterações previstas na Lei n. 13.097/2015), permitiu que os empregados possam “autorizar, de forma irrevogável e irretratável, o desconto em folha de pagamento ou na sua remuneração disponível dos valores referentes ao pagamento de emprésti- mos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil, quando previsto nos respectivos contratos” (art. 1º). Cuida a citada lei, como se nota, do empréstimo por consignação. O desconto pode incidir inclu- sive sobre o valor das verbas rescisórias (art. 1º, §1º), observando-se sempre a margem consignável (607) Cf. VIANA, Márcio Túlio. Direito de resistência. São Paulo: LTr, 1996. p. 272. O autor afirma secundar Clóvis Salgado. (608) Quando a autorização para o desconto por dano culposo é discutida em dissídio coletivo do trabalho, adota-se, a princípio, a orienta- ção contida no Precedente Normativo n. 118 do TST: “Não se permite o desconto salarial por quebra de material, salvo nas hipóteses de dolo ou recusa de apresentação dos objetos danificados, ou ainda, havendo previsão contratual, de culpa comprovada do empregado”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 227 que corresponde a 30% da remuneração disponível, ou seja, ao saldo da remuneração ou das verbas rescisórias após serem descontadas as consignações compulsórias (art. 2º, VIII e §2º). O empregado pode solicitar o bloqueio, a qualquer tempo, de novos descontos, mas serão bloque- ados, então, apenas os descontos não autorizados anteriormente (art. 1º, §§3º e 4º). A instituição consignatária (a que concede o empréstimo) é de livre escolha do empregado, mesmo quando o seu empregador ou a entidade sindical que o representa houver celebrado convênio com alguma delas (art. 4º, §4º). Ao empregador cabe prestar as informações necessárias à instituição consignatária esco- lhida pelo empregado (art. 3º, I) e, se escolher a que houver porventura celebrado convênio com o seu empregador, não pode ser negado o empréstimo que o empregado solicitar nos limites da margem de consignação (art. 4º, §3º da Lei n. 10.820/2003). A) O desconto salarial e o risco da atividade econômica. Recebimento de cheques sem fundo por frentistas. Dano por colisão de veículo por culpa de motorista. As diferenças de caixa e a gratificação quebra-de-caixa Outra situação, que por algum tempo congestionou a pauta da Justiça do Trabalho, é aquela atinente ao desconto de valores correspondentes a cheques sem provisão de fundos, recebidos por frentistas de postos de combustíveis. Entre a alternativa de permitir, incondicionalmente, que o desconto fosse perpetrado e, de outro lado, a opção de negar essa faculdade ao empregador – o que permitiria a empregados imprevidentes a elevação do risco empresarial (por meio do recebimento de cheques suspeitos) e a empregados inescrupulosos a troca não autorizada de cheques suspeitos por dinheiro do caixa do empregador –, a Subseção I de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho uniformizou o seu entendimento através da orientação jurisprudencial n. 251: É lícito o desconto salarial referente à devolução de cheques sem fundos, quando o frentista não observar as recomendações previstas em instrumento coletivo. Sempre existe alguma dificuldade de dirimir os conflitos em que se opõem a regra de o risco da atividade econômica recair apenas sobre o empregador e, no outro lado, o direito de o empregador estabelecer regras de conduta, exigíveis do empregado, que reduzam o risco empresarial. Assim se dá não somente na realidade dos frentistas de postos de combustíveis, mas também em relação a motoristas, quanto a multas por infração culposa de normas de trânsito ou mesmo pequenas colisões, escusáveis ante a exigência de perícia sobre-humana nos centros urbanos mais conturbados. Sempre houve normas coletivas disciplinando, em alguns casos vedando, qualquer possibi- lidade de desconto salarial. Com o aparente escopo de universalizar tal proteção, o art. da Lei n. 13.103/2015 assegura ao empregado motorista “não responder perante o empregador por prejuízo patrimonial decorrente da ação de terceiro, ressalvado o dolo ou a desídia do motorista, nesses casos mediante comprovação, no cumprimento de suas funções”. Embora o desconto do valor correspondente ao dano ocasionado por culpa do motorista continue remetido à possível autori- zação de cláusula contratual ou de norma coletiva, o prejuízo causado por ação de terceiro não pode gerar desconto salarial, salvo se o empregador tiver a prova de dolo ou desídia do empregado motorista. A nosso sentir, a lei tem redação que protege demasiadamente a defesa patronal, pois ao empregador resta sempre a opção de alegar que a colisão de veículos não foi “decorrente da ação de terceiro”, mas sim da ação negligente do empregado a seu serviço. Mais adequado seria referir o “prejuízo patrimonial que tenha envolvido ação de terceiro”. No meio mais restrito dos operadores de caixa, especialmente dos caixas bancários, a experi- ência jurídica tem consentido a instituição de gratificação intitulada quebra-de-caixa que serve para compensar a obrigação, atribuída então ao empregado, de pagar as diferenças contábeis acaso verifi- cadas no caixa, por ele operado. Quando resulta claro que a gratificação se destina, estritamente, a tal desiderato, parece-nos razoável que se autorize o desconto das diferenças de caixa, dada a respon- sabilidade maior que se comete aos que lidam, diretamente, com a circulação do dinheiro. B) O desconto da contribuição assistencial Há, enfim e nessa seara do desconto salarial, uma questão que mereceu mais intensa reflexão da doutrina e da jurisprudência trabalhista, qual seja, a da contribuição assistencial. Cuida-se de 228 – Augusto César Leite de Carvalho contribuição que reverte em favor do sindicato, à semelhança da contribuição sindical(609), da contri- buição social ou associativa(610) e da contribuição confederativa(611). A contribuição assistencial seria uma quota de solidariedade a que se obrigariam os empregados que, embora representados pelo sindicato em razão da unicidade sindical, não eram dele associados. Esses empregados, não sindicalizados, beneficiam-se das conquistas obreiras obtidas na negociação coletiva, levada a efeito pelo sindicato que detém o monopólio da representação de sua categoria profis- sional, numa dada base territorial. Porque os empregados sindicalizados já pagam a contribuição social ou associativa, parece justo que os empregados que não a recolhem paguem a contribuição assistencial. Com o intuito de evitar a utilização da contribuição assistencial como uma forma dissimulada de o sindicato impor a sindicalização, contrariando o princípio da liberdade sindical, o Tribunal Superior do Trabalho, em um primeiro momento, condicionou o seu desconto à não oposição do trabalhador, que poderia ser manifestada à empresa até dez dias antes do primeiro pagamento reajustado(612). Restou induvidosa, ademais, a legitimidade do Ministério Público do Trabalho, como guardião dos interesses trabalhistas indisponíveis, para ajuizar ação com vistas à anulação de cláusulas de convenção coletiva que previssem a contribuição assistencial sem ressalvar o direito de o empre- gado opor-se ao seu desconto(613). Quando tudo estava assim assentado, o Tribunal Superior do Trabalho foi instado a decidir sobre a constitucionalidade da cobrança da contribuição assistencial aos não associados, dado que o Supremo Tribunal Federal havia afirmado, nos dez precedentes da Súmula 666(614) de sua jurisprudência, que a única contribuição exigível compulsoriamente dos não filiados era a contribuição sindical prevista em lei. Embora o STF estivesse tratando da contribuição confederativa – que é prevista em assembleia geral do sindicato para prover o sistema confederativo (art. 8º, IV, da CF) –, a premissa assim esta- belecida parecia contaminar a contribuição assistencial, porquanto era ela igualmente cobrada dos trabalhadores não associados ao sindicato, sobretudo por ser uma quota de solidariedade desses em relação aos que tinham se associado e já pagavam a contribuição associativa. Atendendo a tal expectativa, mas para surpresa de muitos e nosso desconforto intelectual, o TST editou então o Precedente Normativo n. 119, litteris: Contribuições sindicais. Inobservância de preceitos constitucionais: A Constituição da República, em seus arts. 5o, XX, e 8o, V, assegura o direito de livre associação e sindicalização. É ofensiva a essa modalidade de liberdade cláusula constante de acordo, convenção coletiva ou sentença normativa estabelecendo contribuição em favor de entidade sindical a título de taxa para custeio do sistema confederativo, assistencial, revigoramento ou fortale- cimento sindical e outras da mesma espécie, obrigando trabalhadores não sindicalizados. Sendo nulas as estipu- lações que inobservem tal restrição, tornam-se passíveis de devolução os valores irregularmente descontados. Em última análise, o precedente normativo, que serve à orientação do próprio Tribunal Superior do Trabalho e dos tribunais regionais no julgamento de dissídios coletivos, está a consagrar uma malfazeja sinonímia entre as contribuições assistencial e confederativa, a par de desnaturar a primeira delas: carece de sentido cobrar apenas dos empregados sindicalizados uma contribuição que se justi- fica como uma quota de solidariedade dos não sindicalizados. Em nosso socorro, cabe lembrar a orien- tação que emana do Comitê de Liberdade Sindical do Conselho de Administração da OIT(615): (609) Vide estudo nosso sobre a inconstitucionalidade da contribuição sindical: CARVALHO, Augusto César Leite de. Contribuição sindical – direito de não a receber. In: Temas relevantes de direito material e processual do trabalho. Coordenação de Carla Teresa Martins Romar e Otávio Augusto Reis de Sousa. São Paulo: LTr, 2000. p. 508. (610) Prevista nos estatutos da entidade sindical, obrigando apenas os associados. (611) Deliberada por assembléia geral do sindicato, que geralmente autoriza a sua previsão em norma coletiva, para custear o sistema confe- derativo (artigo 8o, IV, da Constituição). Não raro, a jurisprudência estabelece uma conveniente sinonímia entre a contribuição assistencial e a contribuição confederativa, como se nota no Precedente Normativo n. 119, transcrito no texto. (612) Conforme antigo Precedente Normativo n. 74 do TST. (613) Vide art. 83 da Lei n. Complementar n. 75, de 1993, inciso IV, que diz competir ao Ministério Público do Trabalho “propor as ações cabíveis para declaração de nulidade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos indisponíveis dos trabalhadores”. (614) Súmula 666 do STF: “A contribuição confederativa de que trata o art. 8º, IV, da Constituição, só é exigível dos filiados ao sindicato respectivo”. (615) Apud ROMITA, Arion Sayão. Sindicalismo, economia, estado democrático: estudos. São Paulo: LTr, 1993. p. 116 (O autor faz remis- são: OIT. “La libertad sindical”, 3a ed., Genebra, 1985, p. 69, n. 324). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 229 Em um caso no qual a lei autorizava a cobrança de uma quota de solidariedade pelo sistema de desconto em folha, de trabalhadores que não eram associados ao sindicato-parte em uma convenção coletiva, mas que desejavam beneficiar-se de suas disposições (valor da quota: inferior a dois terços das quotas pagas pelos trabalhadores associados ao sindicato), o Comitê entende que este sistema, embora não coberto pelas normas internacionais de trabalho, não parece em si mesmo incompatível com o princípio de liberdade sindical. Além disso, a desnaturação da contribuição assistencial impede que um mecanismo bem elabo- rado, que permite seja contrabalançado o ônus do associado com o bônus do não associado, seja usado com o propósito de restabelecer o equilíbrio entre os trabalhadores sindicalizados e os que não o são. A resistência da maior corte regional do Brasil, com sede em São Paulo, bem diz a necessidade de ser revista, ao menos num ambiente de monismo sindical, o mencionado precedente normativo. Assim decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região(616): Não paira dúvida de que a categoria congrega todos os trabalhadores, quer sejam sindicalizados ou não. Disso resulta que pertencer à categoria e ser ou não sindicalizado são duas coisas distintas. Pertencer à categoria inde- pende do trabalhador, posto que é uma questão de classificação. Já ser ou não sindicalizado é fator que depende da sua vontade. Se a assembleia geral fixar a contribuição, esta será devida para toda a categoria, pena de afron- tar-se conceitualmente o termo categoria. Categoria é o todo, associados e não associados e não somente asso- ciados. Não se pode excluir dos benefícios das normas coletivas os trabalhadores não sindicalizados, justamente porque pertencem à categoria, pouco importando sejam ou não sindicalizados. O direcionamento jurisprudencial da mais alta Corte Trabalhista (Precedente Normativo n. 119) traduz incentivo a que os trabalhadores não mais se filiem aos seus sindicatos. Renovam-se, portanto, os auspícios de que se modifique a orientação da Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal Superior do Trabalho, a fim de que se consagre a possibilidade de cobrar-se dos trabalhadores não sindicalizados (de preferência, apenas deles) a contribuição assistencial, ainda que lhes seja permitido o direito de opor-se a essa cobrança nos moldes do antigo Precedente Normativo 74 da SDC. Conjugar-se-iam, de tal maneira, o direito à livre filiação sindical – pois o trabalhador não sindica- lizado não seria induzido a sindicalizar-se, inclusive porque estaria livre para opor-se à cobrança da contribuição assistencial – e a necessidade de se estabelecer algum equilíbrio entre a vantagem de beneficiar-se da atuação do sindicato, que a todos alcança, e o ônus de financiar o movimento sindi- cal, que atinge mais gravemente os sindicalizados. Assim se daria um passo, talvez mais eficiente, na direção de abolir-se definitivamente a contribuição sindical obrigatória, aquela prevista em lei. C) O desconto de salário do empregado doméstico O art. 18 da Lei n. Complementar 150, de 2015, traz preceitos específicos acerca das possibilida- des de descontos salariais no emprego doméstico, a saber: Art. 18. É vedado ao empregador doméstico efetuar descontos no salário do empregado por fornecimento de alimentação, vestuário, higiene ou moradia, bem como por despesas com transporte, hospedagem e alimentação em caso de acompanhamento em viagem. § 1o É facultado ao empregador efetuar descontos no salário do empregado em caso de adiantamento salarial e, mediante acordo escrito entre as partes, para a inclusão do empregado em planos de assistência médico-hospitalar e odontológica, de seguro e de previdência privada, não podendo a dedução ultrapassar 20% (vinte por cento) do salário. § 2o Poderão ser descontadas as despesas com moradia de que trata o caput deste artigo quando essa se referir a local diverso da residência em que ocorrer a prestação de serviço, desde que essa possibilidade tenha sido expressamente acordada entre as partes. § 3o As despesas referidas no caput deste artigo não têm natureza salarial nem se incorporam à remuneração para quaisquer efeitos. § 4o O fornecimento de moradia ao empregado doméstico na própria residência ou em morada anexa, de qualquer natureza, não gera ao empregado qualquer direito de posse ou de propriedade sobre a referida moradia. Há, como se notou há pouco no estudo do salário-utilidade, vedação absoluta de descontos a título de alimentação, vestuário, higiene ou moradia que coincida com a residência do empregador. E de modo (616) TRT 2a Região, RO 02980452909, Ac. 5a T. 19990440630, 24.8.99, Rel. Juiz Desig. Francisco Antonio de Oliveira, Revista LTr 65-01/52. 230 – Augusto César Leite de Carvalho muito racional, o legislador também proíbe que o empregador, ao se fazer acompanhar de empregado doméstico em viagem, desconte do salário deste as despesas com transportes e hospedagem. O adiantamento do salário sempre dá ensejo, evidentemente, ao desconto do valor adiantado quando há o pagamento do salário global. Já se tem presente que essa regra é a mesma dos demais empregados, não se restringindo aos domésticos. Diferente é a norma, porém, quanto à adesão do empregado doméstico a planos de assistên- cia médico-hospitalar ou odontológica, de seguro ou de previdência complementar. Nesses casos, o desconto da contribuição devida pelo trabalhador depende da sua anuência por escrito e não pode superar o equivalente a vinte por cento do salário. 9.5.3 Princípio da intangibilidade do salário O salário é intangível, intocável, é o alimento que garante a dignidade do trabalhador, pois atende à sua necessidade básica de sobrevivência. Essa intangibilidade revela-se por meio de regras jurídi- cas que protegem o salário contra a imprevidência do empregador ou do próprio empregado, como se pode notar em seguida. 9.5.3.1 Proteção contra a imprevidência do empregador. Falência. Recuperação judicial e extrajudicial. Liquidação extrajudicial Era da tradição do direito brasileiro assegurar ao crédito trabalhista a categoria de crédito privi- legiado, sem ressalvas.(617) Mas a atual Lei n. de Falências (Lei n. 11.101, de fevereiro de 2005), em seu artigo 83, I, traz clara limitação a essa posição preferencial, pois assim se reporta ao crédito que prefere a todos os demais: “os créditos derivados da legislação do trabalho, limitados a 150 (cento e cinquenta) salários mínimos por credor, e os decorrentes de acidentes de trabalho”. Ao expressar-se assim, o legislador está tratando do crédito trabalhista no processo de falência, sendo conveniente observar que a citada lei regula não somente a falência, mas igualmente inova o processo de recuperação judicial e a recuperação extrajudicial, afastando de nosso ordenamento o instituto da concordata. A recuperação extrajudicial não se presta ao escalonamento de dívidas trabalhistas, consoante esclarece o artigo 161, §1o, da Lei n. 11.101, de 2005. Em rigor, cabe notar que a situação do crédito trabalhista, nesse outro procedimento, está contemplada em disposição específica da citada Lei n. 11.101, a saber: Art. 54. O plano de recuperação judicial não poderá prever prazo superior a 1 (um) ano para pagamento dos créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho vencidos até a data do pedido de recuperação judicial. Parágrafo único. O plano não poderá, ainda, prever prazo superior a 30 (trinta) dias para o pagamento, até o limite de 5 (cinco) salários mínimos por trabalhador, dos créditos de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores ao pedido de recuperação judicial. Enquanto estiver em curso o prazo previsto no plano de recuperação judicial (delimitado na proposta do empresário devedor ou por deliberação da assembleia geral de credores), o juízo que a deferiu ordenará a suspensão de todas as ações ou execuções contra o devedor, permanecendo os respectivos autos no juízo onde se processam (artigo 52, II). Mas essa suspensão não poderá durar mais de cento e oitenta dias (art. 6º, §4º, da mesma Lei n. 11.101/2005). Salvo quando cometem irregularidades enumeradas na lei, os gestores da sociedade empresária em processo de recuperação judicial não se afastam do seu comando, embora exerçam a direção da empresa sob a fiscalização do Comitê de Credores, se houver, e do administrador judicial (artigo 64 da Lei n. 11.101). Mutatis mutandis, essa regra pareceria conspirar para que se aplicasse, nos casos de recuperação judicial, a orientação contida na antiga Súmula 227 do STF para os casos de concordata, qual seja, a de que não haveria embaraços à execução do crédito nem a reclamação do empregado na Justiça do Trabalho. É certo, contudo, que todas as ações judiciais se suspenderão, por até seis meses, durante a execução do plano de recuperação judicial já antes aprovado, conforme sobrevisto. (617) Vide art. 449 da CLT. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 231 Voltando à falência, convém resgatar o antigo dissenso doutrinário e jurisprudencial sobre o juízo competente para executar dívidas trabalhistas contra massas falidas. Confrontava-se a previsão do artigo 114 da Constituição, que dizia ter competência a Justiça do Trabalho para julgar os dissídios que tinham origem no cumprimento de suas sentenças(618), com a prudência de se remeter ao juízo (cível) da falência a tarefa de estabelecer a ordem dos pagamentos, de modo a impedir que trabalhadores com execução judicial nas Varas do trabalho tivessem privilégio em relação aos empregados que habi- litassem seus créditos perante o juízo falimentar, diretamente. A controvérsia parece agora dirimida pelo artigo 6o, §2o, da Lei n. 10.101/2005, porque nele está previsto que “as ações de natureza trabalhista, inclusive as impugnações a que se refere o art. 8o desta Lei(619), serão processadas perante a Justiça especializada até a apuração do respectivo crédito, que será inscrito no quadro-geral de credores pelo valor determinado em sentença”. Sobretudo em razão de a antiga redação do artigo 114 da Constituição não ter sido preservada pela Emenda Constitucio- nal 45/2004 (no que tange à competência da Justiça do Trabalho para julgar dissídios pertinentes ao cumprimento de suas sentenças), não serão suscitadas dúvidas, decerto, quanto à eficácia da referida norma de competência. Concluindo o estudo relativo à proteção do empregado nos casos de imprevidência do empre- gador, falta tratar da liquidação extrajudicial. No ponto que interessa, está assinalado no artigo 18 da Lei n. 6.024, de 1974 que a decretação da liquidação extrajudicial pelo Banco Central produzirá, de imediato, os seguintes efeitos, ipsis litteris: a) suspensão das ações e execuções iniciadas sobre direitos e interesses relativos ao acervo da entidade liquidanda, não podendo ser intentadas quaisquer outras, enquanto durar a liquidação; b) vencimento antecipado das obrigações da liquidanda; c) não atendimento das cláusulas penais dos contratos unilaterais vencidos em virtude da decre- tação da liquidação extrajudicial; d) não fluência de juros, mesmo que estipulados, contra a massa, enquanto não integralmente pago o passivo; e) interrupção da prescrição relativa a obrigações de responsabilidade da instituição; f) não reclamação de correção monetária de quaisquer divisas passivas, nem de penas pecuniá- rias por infração de leis penais ou administrativas. A intenção do legislador foi, induvidosamente, a de equiparar os efeitos da liquidação decretada pelo Banco Central aos da falência declarada pelo juiz. Entretanto, em pelo menos dois momentos a jurisprudência trabalhista mostra-se refratária a essa política legislativa. É o que se percebe ao se consultar a orientação jurisprudencial n. 143 da SBDI-1 do TST: “A execução trabalhista deve prosse- guir diretamente na Justiça do Trabalho mesmo após a decretação da liquidação extrajudicial. Lei n. 6.830/80, arts. 5º e 29, aplicados supletivamente (CLT, art. 889 e CF/1988, art. 114)”. Na mesma trilha de resistência ao preceito legal, recomenda a Súmula 304 do TST: Os débitos trabalhistas das entidades submetidas aos regimes de intervenção ou liquidação extrajudicial estão sujeitos a correção monetária desde o respectivo vencimento até seu efetivo pagamento, sem interrupção ou suspensão, não incidindo, entretanto, sobre tais débitos, juros de mora. 9.5.3.2 Proteção contra a imprevidência do empregado. Incessibilidade. Impenhorabili- dade do salário Quando o empregado é imprevidente, fazendo despesas incompatíveis com o seu ganho salarial ou não estimando, convenientemente, os limites virtuais de seus gastos, a ordem jurídica também o protege, no tocante à incolumidade de seu salário, que não pode ser objeto de cessão nem penhora. (618) Tal como previam os artigos 5o e 29 da Lei n. 6.830, de 1980, em relação aos créditos tributários, afastando-os da apreciação do juízo da falência, pretensamente universal. (619) A impugnação pode ser concernente inclusive ao valor do débito e estão legitimados para opô-la não apenas o devedor, mas também os seus sócios, outros credores e o Ministério Público (art. 8o da Lei n. 10.101/2005). 232 – Augusto César Leite de Carvalho O tema da incessibilidade (impossibilidade de cessão) está intimamente relacionado com os limi- tes de licitude dos descontos salariais, já vistos ao exame do princípio da integridade. Cabe lembrar, apenas, que cessão é a forma de alienação de bens incorpóreos – vendem-se terrenos, casas e carros; cedem-se direitos. Em acréscimo ao que foi analisado a propósito dos descontos, basta dizer que o empregado não pode ceder a terceiro, menos ainda ao empregador, o direito de receber o salário correspondente à disponibilidade de sua força de trabalho. Regra geral, toda prestação de natureza alimentícia é insusceptível de cessão. Sobre a impenhorabilidade, vale dizer, acerca da impossibilidade de o salário servir como garantia (constrição judicial) para o pagamento de outros débitos do empregado, que enquanto esteve a vigorar o CPC de 1973, seu artigo 649, IV, sempre incluiu, entre os bens impenhoráveis, “os vencimentos dos magistrados, dos professores e dos funcionários públicos, o soldo e os salários, salvo para pagamento de prestação alimentícia”. O CPC de 2015 contém regra aparentemente mais ponderada ao prescrever, em seu art. 833, IV, que impenhoráveis são “os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal [...]”, mas ressalva os crédi- tos alimentícios e, na parte de nosso maior interesse, também permite a penhora da remuneração que supere o valor correspondente a cinquenta salários mínimos mensais, no que o superar (art. 833, §2º). A lei continua pondo a salvo os alimentos devidos pelo empregado, pela razão óbvia de que está a cuidar de crédito revestido da mesma natureza (alimentar) que confere ao salário a sua intangibilidade. Mas, quanto a débitos de outra natureza que um empregado tenha contraído, a lei não mais reveste o seu salário, quanto ao valor, de impenhorabilidade absoluta, dado que autorize a constrição judicial sobre quantia que, não obstante se configure parte do salário ou da remuneração, excederia supos- tamente a importância necessária à provisão de alimentos(620). Interessante notar que essa regra de contenção da impenhorabilidade protege a execução de créditos de todos os tipos, lamentando-se que não se tenha concebido a penhorabilidade de salário menor (menor que cinquenta salários mínimos mensais) quando o crédito exequendo é igualmente um crédito salarial(621). Também o CPC de 2015 não se refere às indenizações devidas em razão de ilícitos trabalhistas, a exemplo do que sucedia no CPC de 1973. De toda sorte, e em exegese que não se modificaria, ao que intuímos, pela superveniência de nova lei processual, os tribunais da Justiça Comum, perante os quais é normalmente invocada a garantia da intangibilidade do salário, têm enfatizado que não somente as parcelas estritamente salariais, mas todas e quaisquer verbas inerentes ao contrato de trabalho, mesmo aquelas que são indenizadas ao tempo da despedida, incluem-se no conjunto dos bens impenhoráveis(622). (620) A bem dizer, já havia precedente do Superior Tribunal de Justiça que relativiza a impenhorabilidade prevista no art. 649, IV, do CPC (de 1973), sob a premissa de tornar-se penhorável o crédito alimentar quando, por circunstâncias do caso concreto, inserir-se, de fato, na esfera de disponibilidade do devedor. Nesse sentido: “Processual civil. Recurso Especial. Ação de execução. Penhora em conta corrente. Valor relativo à restituição de imposto de renda. Vencimentos. Caráter alimentar. Impenhorabilidade. Art. 649, IV, do CPC. Trata-se de ação de execução, na qual foi penhorada, em conta bancária, quantia referente à restituição do imposto de renda. A devolução do imposto de renda retido ao contribuinte não descaracteriza a natureza alimentar dos valores a serem devolvidos, quanto se trata de desconto parcial do seu salário. É impenhorável o valor depositado em conta bancária, referente à restituição do imposto de renda, cuja origem advém das receitas compreendidas no art. 649, IV, do CPC. A verba relativa à restituição do imposto de renda perde seu caráter alimentar, tornando-se penhorável, quando entra na esfera de disponibilidade do devedor. Em observância ao princípio da efetividade, mostra-se desrazoável, em situações em que não haja comprometimento da manutenção digna do executado, que o credor seja impossibilitado de obter a satisfação de seu crédito, sob o argumento de que os rendimentos previstos no art. 649, IV, do CPC, gozam de impenhorabilidade absoluta. Recurso especial não provido” (STJ, REsp 1150738/MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/05/2010, DJe 14/06/2010). (621) Sempre inquietou a parte da doutrina e da jurisprudência trabalhistas a possibilidade de se decidir, de lege ferenda, que nos casos em que altos-empregados vencem elevados salários a garantia da intangibilidade estaria restrita à quantia necessária à provisão de alimentos, dada a ratio da norma sob comento. É incipiente, porém, a elaboração teórica nesse sentido, salientando Amauri Mascaro Nascimento (op. cit., p. 154) que a impenhorabilidade prevista no Código de Processo Civil é absoluta, não se confundindo com a impenhorabilidade rela- tiva (até um quinto do salário), em voga no direito italiano, nem com a impenhorabilidade proporcional, consagrada pelo direito argentino (maior, na proporção do salário). É provável que, em pouco tempo, tenha-se igualmente como superada a orientação jurisprudencial n. 153 da Subseção II de Dissídios Individuais, do TST, que não flexibiliza a regra da impenhorabilidade quando enuncia: Ofende direito líquido e certo decisão que determina o bloqueio de numerário existente em conta salário, para satisfação de crédito trabalhista, ainda que seja limi- tado a determinado percentual dos valores recebidos ou a valor revertido para fundo de aplicação ou poupança, visto que o art. 649, IV, do CPC contém norma imperativa que não admite interpretação ampliativa, sendo a exceção prevista no art. 649, § 2º, do CPC espécie e não gênero de crédito de natureza alimentícia, não englobando o crédito trabalhista. (622) Anotando essa orientação jurisprudencial, Theotonio Negrão faz as seguintes remissões: RT 618/198 e JTA 98/145. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 233 9.5.4 Princípio da igualdade de salário O princípio da igualdade aspira à universalidade. Não se traduz, no âmbito do direito do trabalho, apenas como o direito de um empregado exigir salário igual ao do seu colega, por um justificado anseio de isonomia, que estaria fundado no artigo 461 da CLT. Mais que isso, o empregado pode se valer do artigo 5o da Constituição para postular jornada igual, ambiente de trabalho igualmente saudável e, enfim, a igualdade em todas as suas projeções. A dificuldade reside em identificar, ante caso concreto, uma similaridade de condições que renda ensejo ao tratamento isonômico, pois o princípio da igualdade também se realiza, bem é sabido, mediante o tratamento desigual em relação aos desiguais. A lição é de Celso Antônio Bandeira de Mello, verbis: As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida, por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida [...]. Por via do princípio da igualdade, o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibi- lidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas(623). Mesmo no tocante ao salário, há sempre a possibilidade de o empregador estabelecer, informal- mente, um nível salarial para todos os empregados exercentes de certa função e um seu empregado, sem enquadrar essa lide no artigo 461 da CLT, exigir, em juízo, o salário assim assegurado. Em suma, o princípio da igualdade não faz restrições ao vínculo de emprego, devendo concretizar-se também neste e em toda sua amplitude. 9.5.4.1 Os pressupostos da equiparação salarial com empregado brasileiro A situação mais comum, porém, é decerto aquela em que um empregado pede para ser equipa- rado, no que tange ao salário, a outro empregado brasileiro(624). O legislador infraconstitucional optou por prevenir o litígio, especificando, desde logo, as condições físicas ou corpóreas que justificam a igualdade salarial(625). Fê-lo no artigo 461 da CLT, in verbis: Art. 461 – Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, nacionalidade ou idade. § 1º – Trabalho de igual valor, para os fins deste Capítulo, será o que for feito com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica, entre pessoas cuja diferença de tempo de serviço não for superior a 2 (dois) anos. § 2º – Os dispositivos deste artigo não prevalecerão quando o empregador tiver pessoal organizado em quadro de carreira, hipótese em que as promoções deverão obedecer aos critérios de antiguidade e merecimento. § 3º – No caso do parágrafo anterior, as promoções deverão ser feitas alternadamente por merecimento e por antiguidade, dentro de cada categoria profissional. § 4º – O trabalhador readaptado em nova função por motivo de deficiência física ou mental atestada pelo órgão competente da Previdência Social não servirá de paradigma para fins de equiparação salarial. A leitura do dispositivo não nos traz, a bem ver, uma lista dos elementos de discriminação, ou seja, das características do trabalho que, por serem desiguais, impediriam a equiparação salarial. A contra- rio sensu e com melhor técnica, há, na norma, a indicação de quais os caracteres comuns ao trabalho do equiparando e do paradigma, que permitem àquele exigir a equiparação de seu salário ao deste. Os pressupostos da equiparação salarial são os seguintes: (623) MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: RT, 1978. p. 24. (624) Quando o empregado paradigma não é brasileiro, sendo-o o equiparando, aplicam-se outros parâmetros, fixados no artigo 358 da CLT, como adiante se verá. (625) Tarso Fernando Genro (GENRO, Tarso Fernando. Direito Individual do Trabalho. São Paulo : LTr, 1994. p. 208) observa que, ao regrar a equiparação salarial, o legislador reduziu o alcance do princípio da igualdade de salários, consagrado no artigo 7o, XXXII, da Constitui- ção. A nosso pensamento, a crítica é demasiadamente severa, pois os elementos de discriminação referidos no artigo 461 da CLT são úteis à verificação dos pontos de desigualdade, que justificam o tratamento desigual. Mas o autor tem razão, indiscutivelmente, quando afirma, reportando-se ainda ao princípio constitucional, que “na verdade, os dispositivos que regulam a isonomia só devem deixar de ser aplicados se o próprio quadro (de carreira) adapta a sua estrutura à norma constitucional e não se torna um mero escudo de disparidades”. 234 – Augusto César Leite de Carvalho • Idêntica função – o equiparando e o paradigma devem exercer funções idênticas, ou melhor, a mesma função. Quando o tema é equiparação salarial, interessa a função, importando menos o cargo e as tarefas singulares. Função é a atribuição ou o conjunto de atribuições em sua essência (desprezam-se tarefas secundárias), mas na dimensão do real (do que realmente acontece); é o conteúdo ocupacional do empregado sob a perspectiva do que há, nele, de essencial e é, de fato, levado a efeito, em sua prática diária(626). O cargo é também uma unidade de atribuições, mas a sua dimensão é apenas a ideal, ou seja, reflete um elenco de deveres funcionais (uma função) que pode, ou não, se realizar. O empregado investido no cargo de vendedor estará, presumivelmente, a realizar vendas, mas poderá alegar e provar que exerce função mais elástica, fazendo entrega e cobrança das mercadorias que vende, ou mesmo que a sua real função não corresponde àquela que seria inerente ao cargo de vendedor, prevalecendo, então, o princípio da primazia da realidade. Usando, ainda, o exem- plo do vendedor, cabe notar que tarefas singelas, como a de etiquetar a mercadoria ou a de promover a venda de certa linha de produto, podem, pela menor importância ou intensidade, não compor a essência da função de vendedor, a depender do exame de cada caso concreto. • Trabalho de igual valor – o artigo 461, §1o, define o que vem a ser trabalho de igual valor, referindo-se, então, à igual produtividade, à mesma perfeição técnica e ao tempo de exercício da função. Produtividade significa capacidade de produzir, não sendo o mesmo que produ- ção(627). O empregado que não é assíduo pode produzir pouco, mas revelar uma produtividade superior à do empregado que não falta ao trabalho. A perfeição técnica que se exige é aquela que faz o produto ou o serviço realizado pelo equiparando ter a mesma qualidade do produto ou serviço realizado pelo paradigma. Tarso Genro observa que “a perfeição técnica deve ser perquirida em função do que exige o produto em fabricação (ou o serviço em execução) e não na forma abstrata de quem pode fazer melhor”(628). Enfim, se o paradigma estiver ou esteve exercendo a função por mais tempo que o equiparando e essa diferença de tempo for superior a dois anos, descaracterizado estará o trabalho de igual valor. Malgrado o dispositivo legal faça menção ao tempo de serviço, há jurisprudência assente no sentido de que interessa, como sobredito, o tempo de exercício da função(629). • Mesmo empregador – o equiparando e o paradigma devem prestar serviço para o mesmo empregador. Essa regra, de fácil inteligência, ganha alguma complexidade quando o interes- sado invoca a figura do empregador único, com esteio numa interpretação possível do artigo 2o, §2o, da CLT. Quando o dispositivo é interpretado no sentido de que está ele a consagrar também a solidariedade ativa, um empregado pode pedir equiparação com um paradigma que exerce a mesma função e trabalho de igual valor, embora o faça em outra empresa do grupo econômico a que pertence o seu empregador. • Mesma localidade – o equiparando e o paradigma devem prestar ou ter prestado trabalho na mesma localidade, o que não importa dizer “mesmo estabelecimento”. Houve tempo em que a jurisprudência trabalhista adotou o entendimento de que mesma localidade significaria mesma região socio econômica, viabilizando, assim, que empregados com igual custo de vida deves- sem apresentar salário com igual poder aquisitivo. Em municípios contíguos, não é razoável a discrepância de salários. Mais adiante, o Tribunal Superior do Trabalho firmou posição quanto a mesma localidade significar mesmo município, ou até mesma cidade(630). Finalmente, o TST adotou orientação dialética, mais justa, ao recomendar, por meio do item X da Súmula 6 de (626) Para Magano, secundado por Rodrigues Pinto (op. cit. p. 299), “a função corresponde à atividade concretamente exercida pelo empre- gado, atividade essa que se decompõe em diversas tarefas”. Em igual sentido, Tarso Genro (op. cit. p. 209) nota que “não importa a nomen- clatura da função, mas o seu desdobramento prático, que também não se mede pelo resultado, mas pelo elenco de movimentos e/ou operações intelectuais”. (627) Cf. Rodrigues Pinto. op. cit. p. 300. Márcio Túlio Viana (VIANA, Márcio Túlio. Equiparação salarial. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. Vol. II. São Paulo : LTr, 1993. p. 312) completa: “Mas não a capacidade teórica – e sim a que o empre- gado revela ter, efetivamente”. (628) Op. cit. p. 209. (629) Vide Súmula 6, II, do TST: “Para efeito de equiparação de salários em caso de trabalho igual, conta-se o tempo de serviço na função e não no emprego”. (630) “Equiparação salarial – Mesma localidade. No art. 461 da CLT a expressão “mesma localidade” para efeitos de isonomia salarial indica o local em que o empregado presta serviços, na mesma cidade. Desse modo, a prestação de serviço em municípios distintos constitui fato impeditivo do acolhimento do pedido de equiparação salarial, já que o panorama do custo de vista não é idêntico. Recurso conhecido e não-provido” (TST, SBDI – I, Rel. Min. Leonaldo Silva. Ementário SDI – 21 – AGO/98, p. 27) Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 235 sua jurisprudência: “O conceito de mesma localidade de que trata o art. 461 da CLT refere-se, em princípio, ao mesmo município, ou a municípios distintos que, comprovadamente, perten- çam à mesma região metropolitana”. • Contemporaneidade – embora a norma legal não exija, ao menos expressamente, a contempo- raneidade dos serviços prestados pelo equiparando e pelo paradigma como um pressuposto do direito à equiparação salarial, é certo dizer que doutrina e jurisprudência trabalhistas adotam essa orientação, qual seja, a de que a função deve ser exercida à mesma época, pois, como lembra Márcio Túlio Viana(631), “a situação – ou, talvez, a sensação – de injustiça nasce quando se têm, lado a lado, pessoas exercendo a mesma função, com igual empenho, e, sem qualquer razão, recebendo tratamento diferente”. O que justifica essa exigência de contemporaneidade é o entendimento de que se insere no poder diretivo do empregador promover a sucessão de um empregado por outro, contratando o empregado sucessor mediante salário menor que o pago ao empregado antecedente. Alguma polêmica se criou em torno da discussão sobre as equiparações salariais poderem se comunicar, ou seja, indagava-se a possibilidade de um empregado, que obteve a equiparação salarial em juízo, servir de paradigma para outros empregados. A princípio, não havia óbice a essa postulação, pois se pressupunha que o salário maior, assegurado em processo judicial, seria o salário mais justo, para aquele empregado e para tantos outros que provassem exercer a mesma função. Mais adiante, a jurisprudência evoluiu para entender que deveria excetuar as hipóteses em que o paradigma indicado era beneficiário de vantagem pessoal ou de tese jurídica já superada. Fora daí, não importava se o paradigma tinha antes obtido a equiparação salarial com outro colega de trabalho, pois bem diz a lógica formal que se A = B e B = C, conclui-se que A = C. Houve, porém, interposição de inúmeros recursos patronais ao TST com o objetivo de demonstrar que essa regra estaria possibilitando a equiparação salarial em cadeia também nos casos em que a identidade de funções ou o trabalho de igual valor se desvirtuava em meio à sucessão de trabalhado- res equiparados. Por maioria, os ministros do Tribunal entenderam que a equiparação em cadeia pode- ria mesmo dar ensejo ao desvirtuamento do direito à isonomia, mas a redação(632) atribuída à Súmula 6, VI, não pareceu clara, para alguns, no tocante a quem caberia o ônus de provar a importância, ou desimportância, da equiparação salarial em cadeia no caso concreto. Caberia ao empregado provar que preencheria os requisitos do artigo 461 da CLT também em relação aos paradigmas remotos? Ou caberia ao empregador provar que a existência de equiparações sucessivas seria empecilho à caracterização da igualdade material? Em setembro de 2012, o Pleno do TST reuniu-se para, entre o mais, deliberar acerca de um novo texto para a Súmula 6, VI, em que se esclareceu ser relevante a cadeia equiparatória, para o fim de afastar o direito de diferenças salariais, somente se “o empregador produzir prova do alegado fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito à equiparação salarial em relação ao paradigma remoto”. Em rigor, ficou então consignado que a quebra da identidade material apresenta-se como um fato impeditivo do direito à equiparação salarial, a ser alegado e provado pelo empregador, sob pena de preva- lecer o argumento de lógica formal há pouco referido(633). Caberia observar, em parêntese, que o conceito fato impeditivo tem significado já consolidado na doutrina de direito material e processual e consiste, em verdade, na ausência de condição de existência que normalmente se presumiria presente (a exemplo da capacidade dos sujeitos do contrato e, no que particularmente nos interessa, da identidade funcional entre empregados que conseguem provar, sucessivamente, o direito à equiparação de salários)(634). (631) Op. cit. p. 315. (632) Na primeira mudança, a Súmula 6, VI, do TST ganhou a seguinte redação: “Presentes os pressupostos do art. 461 da CLT, é irrelevante a circunstância de que o desnível salarial tenha origem em decisão judicial que beneficiou o paradigma, exceto se decorrente de vantagem pessoal, de tese jurídica superada pela jurisprudência de Corte Superior ou, na hipótese de equiparação salarial em cadeia, se não demons- trada a presença dos requisitos da equiparação em relação ao paradigma que deu origem à pretensão, caso arguida a objeção pelo reclamado”. (633) Se A = B e B = C, conclui-se que A = C. (634) Chiovenda (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. 2. Campinas: Bookseller, 1998. p. 450) esclarece que, diferentemente dos fatos modificativos e extintivos, os fatos constitutivos e os fatos impeditivos se apresentam como condições de existência de uma relação jurídica. Ilustrando com a hipótese em que um comprador reivindica a coisa adquirida e o réu afirma que não falava sério ao propor a venda, diz Chiovenda sobre essas condições de existência do direito: “No exemplo aduzido (de uma venda) é normal, é regra que os dois contratantes possam comprar e vender, que a coisa possa ser vendida; mas que precisamente aquelas duas 236 – Augusto César Leite de Carvalho Entre os fatos impeditivos do direito à equiparação salarial, inclui-se a diferença de mais de dois anos no exercício da função entre o empregado que promove ação na Justiça do Trabalho e o seu paradigma imediato, ou seja, aquele que ele percebe, em seu ambiente de trabalho, a fazer o mesmo e a receber salário mais elevado. É preciso deixar claro, porém, que o mesmo não ocorre na equiparação em cadeia, quando a empresa sustenta ser maior o salário desse paradigma porque ele teria obtido o direito a equiparar-se com outros empregados, sendo esses os paradigmas remotos. O fato de esses paradigmas remotos contarem tempo superior a dois anos no exercício da mesma função não pode ter relevância (a mesma relevância que teria se tal diferença no tempo de exercício da mesma função fosse alegada quanto ao paradigma imediato), dado que isso importaria desconhecer a circunstância de as empresas manterem historicamente empregados que, anos a fio, desempenham as mesmas atribuições e portanto recebem igual padrão de salário. É o mesmo que dizer: o empregador não se exime de praticar a igualdade de salários pela razão singela de um seu empregado (ilustrativamente, o empregado A) já contar mais de dois anos no exer- cício de dada função. Se há empregado (B) admitido menos de dois anos após o primeiro (A) e outros empregados (C, D, E etc.) sucessivamente admitidos menos de dois anos após, todos haverão de rece- ber o mesmo salário, sendo fato irrelevante o de o último dos empregados (E) ser contratado quando o primeiro deles (A) estava há quatro ou cinco anos exercendo a mesma função. Foi o que decidiu o Pleno do TST em março de 2015, passando então o item VI da Súmula 6 a expressar o seguinte: Presentes os pressupostos do art. 461 da CLT, é irrelevante a circunstância de que o desnível salarial tenha origem em decisão judicial que beneficiou o paradigma, exceto: a) se decorrente de vantagem pessoal ou de tese jurídica superada pela jurisprudência de Corte Superior; b) na hipótese de equiparação salarial em cadeia, susci- tada em defesa, se o empregador produzir prova do alegado fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito à equiparação salarial em relação ao paradigma remoto, considerada irrelevante, para esse efeito, a existência de diferença de tempo de serviço na função superior a dois anos entre o reclamante e os empregados paradigmas componentes da cadeia equiparatória, à exceção do paradigma imediato. Também se dissente sobre ser possível o empregado, que exerce trabalho intelectual, postu- lar a equiparação de salário com outro que exerça a mesma função, malgrado a dificuldade de se perquirir, em tal caso, o trabalho de igual valor. Argumenta-se, por exemplo, que não há como avaliar a qualidade do serviço de um advogado, ou mesmo de um jogador de futebol ou de um animador de programa televisivo, que agregam a tarefas manuais ou físicas um coeficiente individual de esforço intelectivo, distinguindo-se, um do outro, nessa medida. É forte, porém, o entendimento contrário, pois iterativas decisões do Tribunal Superior do Trabalho têm consagrado, após intensos debates, o direito de o trabalhador intelectual exigir, em seu favor, o cumprimento do artigo 461 da CLT(635), como se pode extrair da Súmula 6, VII, da jurisprudência daquela Corte: Desde que atendidos os requisitos do art. 461 da CLT, é possível a equiparação salarial de trabalho intelectual, que pode ser avaliado por sua perfeição técnica, cuja aferição terá critérios objetivos. Outra questão inicialmente tormentosa foi aquela atinente à natureza da pretensão, pois se supôs, em um primeiro momento, que a sentença judicial, ao reconhecer o direito à equiparação salarial, teria pessoas tenham vendido ou comprado aquela coisa, não é uma regra, não é um fato constante da vida, mas um fato singular. Tem-se, por consequência, de provar os fatos singulares específicos (constitutivos), não os fatos genéricos, constantes. A falta de um fato normal, constante, habitualmente ocorrível, é uma anormalidade; a quem tiver interesse, cumpre afirmá-la e prová-la (fato impeditivo)”. Conforme Lopes da Costa (apud CARRION Valentin, Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 702), a lei, quando prevê expressamente os fatos impeditivos, costuma dizer exceto se, a não ser que, salvo se. (635) TST, Ac. SBDI1-5422/97, Proc. N. TST-AG-E-RR-197.754/95.1, Rel. Min. Milton de Moura França, Ementário SDI – 17 – ABR/98, p. 52. Em seu voto, o ministro relator transcreve excerto da obra de Arnaldo Sussekind, em que este autor proscreve a equiparação de salário entre trabalhadores intelectuais: “Não obstante de aplicação geral (artigo 461 da CLT) certo é que, na prática, a regra do salário igual para trabalho de igual valor dificilmente poderá determinar a equiparação salarial entre empregados cujo trabalho seja de natureza intelectual ou artística. É que o valor das prestações de serviços intelectuais ou artísticos não pode ser aferido por critérios objetivos, dificultando, senão impossibilitando, a afirmação de que dois profissionais empreendam suas tarefas com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica. Entre dois advogados de uma empresa, dois cantores de uma emissora radiofônica, dois atletas profissionais de uma equipe de futebol poder-se-ia verificar se o trabalho realizado é de igual valor? Cremos que não. E neste sentido firmou-se a jurisprudência” (Instituições de Direito do Trabalho. Vol. I. São Paulo: LTr, 1991. p. 412/413). Há referência, ainda, à obra de autores de direito do trabalho que relativizam, em última análise, a exigência de identidade funcional, a exemplo de Délio Maranhão: “Primeira condição, e fundamental, para a isonomia de salários é a identidade da função. Mas a mesma função pode compreender um número, maior ou menor, de serviços. O fato de, eventu- almente, existir diferença entre os serviços executados por ocupantes de igual função, que se podem, no entanto, substituir uns aos outros sem alteração funcional, não lhes tira o direito à equiparação de salário” (Direito do Trabalho. 13ª edição, Rio de Janeiro: FGV, 1985. p. 192). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 237 natureza constitutiva, e, por isso, não poderia um empregado requerer tal equiparação quando já não estava mais a prestar serviço para a empregadora que o havia discriminado, no tocante ao salário. Não tardou o Tribunal Superior do Trabalho a dirimir a questão, editando o item IV da Súmula 6 de sua jurisprudência: É desnecessário que, ao tempo da reclamação sobre equiparação salarial, reclamante e paradigma estejam a serviço do estabelecimento, desde que o pedido se relacione com situação pretérita. Resta dizer que a equiparação salarial é possível entre empregados de empresas públicas ou sociedades de economia mista(636), mas sofre restrições no tocante aos servidores celetistas da admi- nistração direta, bem assim das autarquias e fundações públicas(637). Por derradeiro, a exigência de mesma localidade não impede que o empregador, público ou privado, obrigue-se, mediante norma interna ou regulamentar, a pagar o mesmo salário para emprega- dos que lhe prestem serviço em todos os seus estabelecimentos, situados em municípios ou mesmo em estados diversos. No caso, a equiparação salarial estará fundada no regulamento de empresa, que prefere à norma legal se mais favorável ao trabalhador. 9.5.4.2 A existência de quadro de carreira – fato impeditivo da equiparação. Direito ao enquadramento Ainda que estejam presentes todos os mencionados pressupostos da equiparação salarial, o empregador não está obrigado a atender a uma pretensão de tal ordem se o seu pessoal estiver orga- nizado em quadro de carreira, que assegure progressões salariais segundo os critérios de antiguidade e merecimento. Assim está previsto no artigo 461, §2o, da CLT. Para impedir que o empregador forje um quadro de carreira com o objetivo único de se desvencilhar do dever imposto pelo caput do artigo 461 da CLT, o Tribunal Superior do Trabalho firmou o entendimento de que o quadro de carreira deve ser homologado pelo Ministério do Trabalho. Essa exigência não está na lei, salvo para os casos em que o paradigma é um estrangeiro(638). O item I da Súmula 6 do TST consa- gra, porém, essa construção jurisprudencial, “excluindo, apenas, dessa exigência (homologação pelo Ministério do Trabalho) o quadro de carreira das entidades de Direito Público da administração direta, autárquica e fundacional e aprovado por ato administrativo da autoridade competente”. Havendo quadro de carreira homologado pelo Ministério do Trabalho, poderá o empregado pedir o seu enquadramento no cargo e nível funcional a que tiver direito, sendo competente a Justiça do Trabalho para apreciar essa postulação(639). Se o quadro de carreira não foi homologado, o empregador não o poderá opor ao pedido de equiparação salarial, mas nada obsta que o empregado perceba a violação de alguma de suas cláusulas, pelo empregador, exigindo o seu cumprimento em virtude de a cláusula transgredida ser uma condição mais benéfica que aquela a que está sujeito(640). É bom notar que a exigência de homologação do quadro de carreira é imposta contra o empregador, não o sendo contra o empregado. Questão vexatória, neste tema, é a possibilidade de o empregador instituir quadro de carreira em que contemple a progressão por merecimento ou antiguidade, mas acresça a tais critérios outros tantos, como a disponibilidade financeira e a necessidade de seus órgãos diretivos autorizarem previa- mente cada progressão. A nosso ver, condicionar a progressão à disponibilidade financeira da empresa importa desvencilhar-se o empregador do risco do negócio, que lhe cabe por força do que dispõe o art. 2º da CLT. Afinal, não pode o empregador alegar dificuldade de ordem econômica para descumprir a (636) Súmula 455 do TST: “À sociedade de economia mista não se aplica a vedação à equiparação prevista no art. 37, XIII, da CF/1988, pois, ao admitir empregados sob o regime da CLT, equipara-se a empregador privado, conforme disposto no art. 173, § 1º, II, da CF/1988”. (637) Orientação jurisprudencial 297 da SBDI-1: “O art. 37, inciso XIII, da CF/1988, veda a equiparação de qualquer natureza para o efeito de remuneração do pessoal do serviço público, sendo juridicamente impossível a aplicação da norma infraconstitucional prevista no art. 461 da CLT quando se pleiteia equiparação salarial entre servidores públicos, independentemente de terem sido contratados pela CLT”. (638) Vide artigo 358 da CLT. (639) Vide Súmula 19 do TST: “A Justiça do Trabalho é competente para apreciar reclamação de empregado que tenha por objeto direito fundado no quadro de carreira”. (640) Cf. Márcio Túlio Viana. Op. cit. p. 318. O autor menciona, ainda, hipóteses em que o quadro de carreira não afasta o direito à equipa- ração, a exemplo daquelas em que o quadro é omisso quanto ao cargo do equiparando e do paradigma, ou houve falha no enquadramento do paradigma, ou ainda quando há piso salarial, fixado em lei, sem que o quadro de carreira o contemple. 238 – Augusto César Leite de Carvalho regra da isonomia salarial, o mesmo se dando quando opta por instituir quadro de carreira que o livra dos critérios estabelecidos pelo art. 461 da CLT(641). Mais grave, segundo nos parece, é a cláusula do quadro de carreira que condiciona a progressão por antiguidade ou mérito a prévia autorização da diretoria da empresa. O TST repeliu essa objeção empresarial quando editou, no âmbito da sua Subseção 1 de Dissídios Individuais, a Orientação Juris- prudencial Transitória n. 71: “A deliberação da diretoria da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, prevista no Plano de Carreira, Cargos e Salários como requisito necessário para a concessão de progressão por antiguidade, por se tratar de condição puramente potestativa, não constitui óbice ao deferimento da progressão horizontal por antiguidade aos empregados, quando preenchidas as demais condições dispostas no aludido plano”. Embora referente a certa sociedade empresária (Empresa de Correios e Telégrafos), a construção jurisprudencial se tem adotado para a universalidade delas, na esteira do que preceitua o art. 122 do Código Civil a respeito das condições suspensivas: “entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.”. A mais alta corte do trabalho adotou, contudo, outra diretriz quando houve de decidir acerca da ausência de deliberação de diretoria, exigida em quadro de carreira, nos casos de progressão por mérito. Prevaleceu o entendimento de que não haveria, nessa outra hipótese, condição puramente potestativa, pois é induvidoso que a omissão da empresa não seria o único óbice ao direito de progres- são se estaria esse direito a depender da conduta ou desempenho meritório do empregado, ou seja, de histórico funcional do trabalhador que justificasse a obtenção do direito à progressão(642). Nossa compreensão é a de ter escapado à maioria sempre qualificada da SBDI-1 a percepção de que, ao omitir-se na obrigação que se impôs de deliberar sobre o direito à progressão por mérito de certo empregado, o empregador submete-se à sanção do art. 129 do Código Civil: “Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer [...]”. Seja ou não puramente potestativa a condição de a diretoria da empresa deliberar sobre o direito à progressão por merecimento, haveria de se considerar atendida (641) Esse entendimento não é pacífico, porém, na jurisprudência, como se pode notar do precedente seguinte: EMBARGOS REGIDOS PELA LEI N. 11.496/2007. PROMOÇÃO POR MERECIMENTO. PLANO DE CARREIRAS, CARGOS E SALÁRIOS. COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO – CONAB 1. As promoções horizontais por merecimento, instituídas no âmbito da CONAB, em face de sua natureza subjetiva, não decorrem unicamente do transcurso de tempo. Encontram-se adstritas, de acordo com as normas internas da empresa, à necessidade de submissão do empregado a avaliações de desempenho e de observância ao limite de 1% (um por cento) da folha salarial para todos os empregados contemplados. 2. A Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do TST, em precedentes especí- ficos relacionados à CONAB, firmou entendimento no sentido de que, mesmo configurada a omissão do empregador, não se presumem implementados os requisitos para concessão de promoções por merecimento previstos em norma interna da empresa. 3. Embargos de que se conhece, por divergência jurisprudencial, e a que se nega provimento” (TST, SBDI-1, E-RR 1577-57.2010.5.09.0011, Relator Ministro João Oreste Dalazen, DEJT 31/03/2015). (642) Nesse sentido: “RECURSO DE EMBARGOS – REGÊNCIA PELA LEI N. 11.496/2007 – COMPANHIA NACIONAL DE ABAS- TECIMENTO – CONAB – PLANO DE CARREIRAS, CARGOS E SALÁRIOS – PROGRESSÕES POR MERECIMENTO – INAPLI- CABILIDADE DA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL TRANSITÓRIA N. 71 DA SUBSEÇÃO I ESPECIALIZADA EM DISSÍDIOS INDIVIDUAIS DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO – SUBMISSÃO DA EMPRESA PÚBLICA AOS DITAMES IMPOSTOS PELO CONSELHO DE COORDENAÇÃO E CONTROLE DAS EMPRESAS ESTATAIS – CCE (ATUAL DEPARTAMENTO DE COOR- DENAÇÃO E GOVERNANÇA DAS EMPRESAS ESTATAIS – DEST) – CONDIÇÃO SIMPLESMENTE POTESTATIVA – VALIDADE – AUSÊNCIA DE DELIBERAÇÃO DA DIRETORIA DA EMPRESA – INVIABILIDADE DA CONCESSÃO IMEDIATA DO PEDIDO – ART. 122 DO CÓDIGO CIVIL – INAPLICABILIDADE – TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE. Não se aplica ao pedido de progressões por merecimento o mesmo raciocínio utilizado para as progressões por antiguidade, tratadas na Orientação Jurisprudencial Transitória n. 71 da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho. O critério merecimento é compa- tível com a exigência estabelecida pelo PCCS no tocante à necessidade de prévia deliberação da diretoria da empresa para que se apure a pertinência das promoções a serem concedidas, pressupostos de cunho eminentemente subjetivo, relacionados não só ao desempenho profissional do empregado, como também àqueles aspectos vinculados ao desempenho dos demais postulantes e ao número de promoções possíveis diante das limitações impostas pelo Conselho de Coordenação e Controle das Empresas Estatais-CCE, todos pressupostos que somente podem ser avaliados pela empregadora. A pretensão deduzida em juízo, com base no art. 122 do Código Civil, ainda que se enten- desse não escrita a condição, não se resolveria pela automática progressão do empregado, diferentemente da promoção por antiguidade, mas com exame da responsabilidade civil do empregador e com respaldo na -teoria da perda de uma chance- (perte d’une chance), diante da constatação de ilicitude do ato do empregador que resultasse na perda da oportunidade de alcançar uma situação futura melhor, o que exige, na lição de Sérgio Cavalieri Filho, que -se trate de uma chance real e séria, que proporcione ao lesado efetivas condições pessoais de concorrer à situação futura esperada- (Programa de Responsabilidade Civil, 4ª ed., São Paulo: Malheiros). Tem-se, ainda, tratar-se de condição simplesmente potestativa. Nesse sentido se posicionou a SBDI-1 Plena desta Corte, em sessão realizada em 8/11/2012, conforme precedente TST-ERR-51-16.2011.5.24.007. Recurso de embargos conhecido e desprovido” (TST, SBDI-1, E-ED-RR 794-10.2010.5.18.0013, Relator Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT 19/12/2014). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 239 essa condição porque teria sido o seu implemento maliciosamente obstado pelo empregador. Como visto, fora outra, todavia, a posição majoritária da SBDI-1 do TST. 9.5.4.3 Equiparação salarial com estrangeiro Sempre que o empregado equiparando é brasileiro e o paradigma é estrangeiro, o pedido de equi- paração salarial deverá, segundo a letra da lei, estar alicerçado no artigo 358 da Consolidação das Leis do Trabalho, que não disfarça a sua inspiração na política nacionalista do Governo Vargas. Iniciativa mais recente do legislador veio a alterar a redação do artigo 353 da mesma CLT, o bastante para que não se aplique o citado dispositivo (artigo 358) aos estrangeiros que residam no Brasil há mais de dez anos, aqui possuindo filho ou cônjuge, e aos portugueses. Quando o paradigma é um deles e o equi- parando é brasileiro(643), a regra a ser adotada é, inexoravelmente, a do artigo 461 da CLT, antevista. Como quer que seja, decerto que o agente do direito do trabalho não pode abstrair a igualdade entre brasileiros e estrangeiros, positivada no artigo 5o da Constituição, ao aplicar o artigo 358 da Consolidação das Leis do Trabalho. Havendo a superação dessa justa pecha de inconstitucionalidade, caber-lhe-á consultar a estrutura normativa, para que possa, assim, perceber em que difere a equipa- ração entre brasileiro e estrangeiro. Ao que se dessume do artigo 358 da CLT, a equiparação com trabalhador estrangeiro exige apenas a analogia entre as funções, não exigindo, portanto, a identidade funcional. Como observa o Ministro Mauricio Godinho Delgado, em julgamento de processo no qual se deferiu a equiparação de brasileiro que exercia a função de diretor de recursos humanos com estrangeiro que atuava como dire- tor de engenharia, “o preceito legal contém normatividade diversa daquela do art. 461 da CLT. A dicção do art. 358 da CLT é expressa: função análoga. Ou seja, função semelhante, próxima – sem englobar um feixe de atribuições que conduzam a uma significativa igualdade na função”(644). Além disso, a variável tempo no exercício da função – novamente a lei faz referência, recusada pela doutrina trabalhista, ao tempo de serviço – é tratada de modo diferente, pois o que impede a equi- paração do brasileiro com estrangeiro é o fato de o brasileiro contar menos de dois anos no exercício da função e de o estrangeiro contar mais de dois anos. Não se considera, como se pode notar, a dife- rença de tempo entre um e outro (como se procede na equiparação com brasileiro), mas, sim, o tempo de cada qual. Ainda assim, essa diferença de tempo na função deve ser aferida na data da admissão do empregado que pleiteia a equiparação(645), pois não seria razoável que o brasileiro sempre conquis- tasse o direito à equiparação com estrangeiro quando completasse dois anos na mesma atividade. A alínea c do artigo 358 impede a equiparação de brasileiro com estrangeiro quando o brasileiro for aprendiz, ajudante ou servente, não o sendo o estrangeiro. Por fim, a alínea d prescreve a inviabi- lidade da equiparação “quando a remuneração resultar de maior produção, para os que trabalham à comissão ou por tarefa”. Não há referência à perfeição técnica e, em vez de maior produtividade, o que se exige, como fato impediente da equiparação, é a maior produção. Intuímos, porém, que a razão está com Márcio Túlio Viana(646), quando este magistrado mineiro argumenta: “[...] pelo espírito da norma, parece-nos que, se a diferença de produção resultar dos meios postos à disposição do empregado – sendo, portanto, igual a produtividade – caberá a equiparação”. 9.5.5 Princípio da certeza do pagamento do salário A condição humana do empregador parece concorrer, episodicamente, para insuflá-lo à prática, absolutamente desleal, de forjar o pagamento do salário, desvirtuá-lo ou dizê-lo presumido, a pretexto de que homem algum trabalha sem receber a correspondente remuneração. É incompreensível que tantos anos de experiência trabalhista não tenham feito cessar, no Brasil, os processos judiciais em que se constata, à primeira vista ou mediante perícia grafotécnica, a falsificação material ou ideológica de recibos de pagamento. Nem sempre se irmanam, afinal, a civilização e a civilidade. (643) Se equiparando e paradigma são estrangeiros, que trabalham no Brasil, a regra aplicável é a do artigo 461 da CLT. (644) TST, 6ª Turma, RR 4885-59.2010.5.01.0000, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, Data de Publicação: 24/02/2012. (645) Assim se decidiu no precedente TST, 6ª Turma, RR 4885-59.2010.5.01.0000, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, Data de Publica- ção: 24/02/2012. (646) Op. cit. p. 324. 240 – Augusto César Leite de Carvalho Como o salário é a garantia da sobrevivência do trabalhador e, por via reflexa, da preservação do sistema produtivo, a norma trabalhista solenizou o seu pagamento e o cercou de outras salvaguardas, sempre com vistas a não permitir que a remuneração pelo trabalho prestado fosse um ato duvidoso, incerto, suspeito. 9.5.5.1 A certeza que emana do modo de pagar o salário. O recibo de pagamento e o salário complessivo O artigo 464 da CLT prescreve que “o pagamento do salário deverá ser efetuado contra recibo, assinado pelo empregado; em se tratando de analfabeto, mediante sua impressão digital, ou, não sendo possível, a seu rogo”. Com o intuito de conferir contemporaneidade a essa exigência de recibo, o parágrafo único de citado dispositivo acrescenta: “Terá força de recibo o comprovante de depósito em conta bancária, aberta para esse fim em nome de cada empregado, com o consentimento deste, em estabelecimento de crédito próximo ao local de trabalho”. Houve tempo em que se disse, com base em citado preceito de lei, que o pagamento mediante recibo era da substância do ato. Tinha-se por não realizado o pagamento quando o recibo não era apresentado pelo empregador. A jurisprudência trabalhista abrandou, porém, esse rigor, não apenas pela existência de outros documentos que podiam assegurar o pagamento de salário, a exemplo do cheque nominativo ou do comprovante de transferência bancária, como em virtude da admissão, pelo próprio empregado e em inúmeros processos, de que eram autênticas ou verdadeiras as fichas finan- ceiras ou contracheques não assinados, trazidos aos autos pelo empregador. Mais que isso, ocorre de o empregado confessar, em juízo, o recebimento de salário não referido em recibo, resultando conve- niente que a verdade processual não se dissocie dos fatos reais. Ainda assim, algum rigor subsiste na aplicação do artigo 464 da CLT, sendo incomum a aceitação de prova testemunhal, simplesmente, como apta a produzir a certeza do pagamento. Também incon- troverso que o ônus de provar o pagamento do salário – fato extintivo da obrigação – é do empregador, inclusive do empregador doméstico, pouco importando se a este não se aplica o citado artigo 464 da Consolidação das Leis do Trabalho(647). Inexiste, enfim, um modelo de recibo que seja recomendável, podendo ser usado, exempli gratia, um formulário impresso ou um texto manuscrito e improvisado. A única exigência é a de que sejam discriminados, nele, títulos e valores que se pagam. Quando não ocorre a discriminação das parcelas e respectivos valores, mas há a referência a uma quantia global para a quitação de várias parcelas, diz-se que há salário complessivo, sendo enfática a Súmula 91 do Tribunal Superior do Trabalho: “Nula é a cláusula contratual que fixa determinada importância ou percentagem para atender englobada- mente vários direitos legais ou contratuais do trabalhador”. O verbete faz alusão a cláusula contratual, mas em sua esteira são recusados, também, os reci- bos que contêm a referência a salário complexo ou complessivo. Por exemplo, se o empregador fizer constar, em um recibo qualquer, que está quitando, mediante o pagamento de uma quantia global, o salário-base e mais horas extras, adicional noturno, adicional de periculosidade e outras parcelas, entende-se que estará quitando apenas o salário-base, a parcela principal, mantendo-se a obrigação quanto às parcelas acessórias. A quitação destas exigiria a indicação do valor que se estaria pagando em razão de cada uma delas(648). (647) Vide art. 7o, a, da CLT. (648) Nesse sentido: “RECURSO DE EMBARGOS. MOTORISTA CARRETEIRO. AUSÊNCIA DE CONTROLE DE JORNADA. VALI- DADE DE NORMA COLETIVA. PAGAMENTO, EM PERCENTUAL, DE COMISSÕES QUE ENGLOBAM HORAS EXTRAORDINÁ- RIAS E DIÁRIAS. RECURSO DE REVISTA NÃO CONHECIDO. SALÁRIO COMPLESSIVO. Não há se falar em validade de norma coletiva que prevê a quitação da parcela relacionada às horas extraordinárias e diárias pelo pagamento em um único valor denominado comissões, eis que o ato de englobar parcelas não é admitido no direito do trabalho, com o fim de coibir fraude e possibilitar a transparên- cia da remuneração paga ao empregado, não se admitindo o pagamento complessivo. A Súmula 91 do c. TST do c. TST não faz distinção em relação a cláusula contratual ser oriunda de norma coletiva ou individual. O princípio que norteou a edição da Súmula 91 do c. TST, proteção do salário do trabalhador contra fraudes que podem se originar do pagamento complessivo, resta violado. Embargos conhecidos e providos” (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 36700-32.2008.5.09.0094 , Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 16/08/2012, Data de Publicação: 24/08/2012). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 241 Mas a Subseção I de Dissídios Individuais do TST tem tolerado, a nosso ver com razão, que normas coletivas de trabalho englobem, para fins contábeis, mas com o conhecimento e a compre- ensão dos empregados (presumível ante a exigência de que assim se proceda mediante negociação coletiva de trabalho), o pagamento de parcelas naturalmente correlacionadas, a exemplo de quando se quitam horas de trabalho e a sua repercussão na remuneração do repouso semanal por meio de um valor previamente tarifado com esse propósito(649), ou de quando se calcula o adicional noturno com um acrés- cimo que corresponde, matematicamente, ao valor que resultaria da redução ficta da hora noturna(650). 9.5.5.2 A certeza quanto ao valor do salário Está visto que é vedado pagar o salário somente em utilidade. Ademais, prevê o artigo 463 da CLT que “a prestação, em espécie, do salário será paga em moeda corrente do País”, ressentindo-se de vali- dade o pagamento que não observar essa regra(651). O empregador não pode, portanto, pagar em moeda estrangeira ou, sem a expressa anuência do empregado, por meio de depósito bancário ou cheque(652). Nas hipóteses em que o salário é ajustado em moeda estrangeira, tem-se posicionado a jurispru- dência no sentido de a conversão do salário dever observar o câmbio em vigor na data do contrato, sobre esse salário se aplicando os aumentos intercorrentes da categoria(653). São inevitáveis, nesse ponto, duas ressalvas à regra de o empregado não poder receber salário em moeda estrangeira: a) o empregado contratado no Brasil ou transferido, de qualquer sorte, para prestar serviço no exterior, deve ter o seu salário ajustado em moeda nacional, mas pode optar por receber a sua remuneração, no todo ou em parte, em moeda estrangeira, enquanto trabalhar em outro país (artigo 5o, §§1o e 2o, da Lei n. 7.064/82); b) o técnico estrangeiro, domiciliado no exterior e contratado para serviço especializado e transitório no Brasil, pode ajustar o seu salário em moeda estrangeira, valendo a taxa de conversão em vigor na data de vencimento da obrigação (artigos 1o e 3o do Decreto-lei n. 691/69)(654). 9.5.5.3 A certeza quanto ao tempo e ao lugar do pagamento de salário Quando não é depositado em conta bancária, o salário deve ser pago em dia útil e no local de trabalho, em meio à jornada ou imediatamente após o seu encerramento, conforme enuncia o artigo 465 da Consolidação das Leis do Trabalho. Observa Valentin Carrion(655) que “a constante do legislador é impedir quaisquer dificuldades ao empregado ou prejuízo direto ou indireto; as longas filas à saída do serviço, o pagamento em horário que retira do empregado parte apreciável do seu descanso e quaisquer outras anomalias são condenadas pelo legislador e puníveis administrativa e judicialmente”. (649) Nesse sentido: “RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. REFLEXOS DAS HORAS EXTRAS NOS REPOUSOS SEMANAIS REMUNERADOS. ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. Discute-se, no presente caso, a validade da norma coletiva que incorporou ao salário-hora o descanso semanal remunerado e suas consequências quanto à condenação aos reflexos das horas extras sobre os DSRs. Não sendo o caso de salário complessivo, exatamente por derivar de norma coletiva e estar suportado por critério de razoabilidade, entende-se válida a norma coletiva que incorporou ao salário-hora o descanso semanal (CF/88, art. 7º, XXVI), o que afasta a incidência dos reflexos das horas extras sobre os DSRs, sob pena de propiciar o duplo pagamento pela mesma parcela. Recurso de embargos conhecido e provido” (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-ED-ARR 112700-41.2008.5.15.0083 , Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 18/10/2012, Data de Publicação: 26/10/2012). (650) Nesse sentido: “RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. ADICIONAL DE TURNO. NORMA COLETIVA. PREVISÃO DE SUBSTITUIÇÃO DO ADICIONAL NOTURNO E DA HORA NOTURNA REDUZIDA. Adoção de entendimento predo- minante neste Tribunal Superior no sentido de ser possível, por meio de negociação coletiva, substituir o adicional noturno e a redução ficta da hora noturna pelo adicional de turno, quando mais vantajoso para o empregado. Precedentes. Recurso de embargos conhecido e não provido” (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-ED-RR 114700-29.1997.5.02.0255, Rel. Min. Delaíde Miranda Arantes, Data de Publicação: 25/11/2011). (651) Art. 463, parágrafo único, da CLT: “O pagamento do salário realizado com inobservância deste artigo considera-se como não feito”. (652) Conforme já visto, o artigo 464, parágrafo único, da CLT autoriza, com o consentimento do empregado, apenas o pagamento de salário mediante depósito em conta bancária. Não faz menção ao pagamento em cheque. Isso não obstante, a Convenção n. 95 da OIT, ratificada pelo Brasil, permite o pagamento em cheque quando previsto em convenção coletiva ou sentença arbitral, ou ainda quando o empregado o consentir. (653) Em nota ao art. 463 da CLT, Valentin Carrion (op. cit. p. 313) transcreve ementa pertinente (TST, RR 4874/74, Rel. Min. Barata Silva, Ac. 2a T. 792/75). (654) Há, contudo, norma geral que prescreve a nulidade do contrato em moeda estrangeira (Decreto-lei n. 857/69). (655) Op. cit. p. 315. 242 – Augusto César Leite de Carvalho A violação dessa regra estaria a implicar uma sanção de natureza econômica imposta ao empre- gador que, aproveitando ao empregado, não estaria claramente definida em lei. Como se tem compor- tado, então, o empregado que não recebe o seu salário em hora e lugar adequados? Por ora, não conhecemos caso em que o trabalhador se tenha recusado a receber o salário em situação descon- fortável, oscilando os empregados entre a tentativa de caracterizar o pagamento, em tempo ou lugar indevidos, como uma justa causa do empregador, que daria ensejo à resolução do contrato (artigo 483, d, da CLT), ou em postular a configuração do tempo de espera pelo dinheiro do salário, após o encer- ramento da jornada, como tempo à disposição do empregador, dada a obrigação de este proceder ao pagamento imediatamente após o fim do turno de trabalho. Nessa última hipótese, configurar-se-ia a prestação de horas extraordinárias. Somente as peculiaridades de cada caso concreto podem dizer da pertinência dessas possíveis soluções para a violação do artigo 465 da CLT, pois é ao ao exame do fato real que se verifica, ou não, abuso por parte do empregador. Por derradeiro, impende relembrar que, a salvo os complementos salariais que são exigíveis em periodicidade específica (v. g., comissões, gratificação semestral etc.), o salário deve ser pago até o quinto dia útil do mês subsequente ao da prestação de trabalho. O artigo 459, parágrafo único, da CLT, ao estabelecer citado prazo, institui uma garantia mínima em favor do empregado, nada obstando que norma coletiva alargue essa proteção, compelindo o empregador a pagar o salário no mesmo mês da prestação laboral. Também é possível que o empregador se obrigue, por força de contrato individual, expresso ou tácito, a pagar em prazo menor. Como o uso e o costume vinculam o empregador (artigo 8o da CLT), o fato de o empregador habitualmente pagar o salário no mesmo mês da prestação de trabalho importa ajuste tácito (artigo 442 da CLT) e, portanto, a contratualidade desse prazo mais favorável. Quanto a essa possibilidade de haver ajuste tácito a propósito da data de pagamento, tem enten- dido de modo diferente, porém, o Tribunal Superior do Trabalho, como se pode inferir da orientação jurisprudencial n. 159 da SDI-I: “Diante da inexistência de previsão expressa em contrato ou em instru- mento normativo, a alteração de data de pagamento pelo empregador não viola o art. 468, desde que observado o parágrafo único, do art. 459, ambos da CLT”. A exigibilidade da prestação salarial em certo prazo tem, enfim, duas claras implicações, que não podem ser olvidadas. A primeira diz respeito à correção monetária, pois não se pode incidir índice de atualização desde antes de a parcela salarial ser exigível(656). A segunda implicação é concernente à prescrição quinquenal (artigo 7o, XXIX, da Constituição), sendo relevante atentar para o aspecto de não prescreverem as parcelas em meio a um mês qualquer, uma vez que o prazo prescricional somente flui a partir do vencimento da obrigação(657). (656) Vide, nesse sentido, a Súmula 381 do TST: “O pagamento dos salários até o 5º dia útil do mês subsequente ao vencido não está sujeito à correção monetária. Se essa data limite for ultrapassada, incidirá o índice da correção monetária do mês subsequente ao da prestação dos serviços, a partir do dia 1º”. O ideal, a nosso ver, seria que a parcela salarial em atraso fosse atualizada a partir do dia seguinte ao quinto dia útil do mês subsequente ao de trabalho, conforme se infere do raciocínio ora anotado. (657) Por exemplo, se o empregado se diz credor de horas extras há muitos anos e ajuizou ação trabalhista em 4/maio/2014, o marco da prescrição seria 4/maio/2009, data em que o salário de todo o mês de abril de 2009 ainda não era exigível. Portanto, ser-lhe-ão asseguradas as horas extras prestadas a partir de 1/abr/2009, porque se tornaram elas exigíveis no quinto dia útil do mês de maio de 2009 e o marco da prescrição é anterior (4/maio/2009). Em suma, todo o salário do mês de abril de 2009 estaria a salvo da prescrição. CAPÍTULO X DURAÇÃO DO TRABALHO 10.1 Duração. Jornada. Horário O conceito, que a palavra exprime, pode ser alargado, pois a palavra é um bem da cultura. A expressão que dá título a esta relevante passagem de nosso estudo é duração do trabalho e por ela se quer referir não apenas o tempo de trabalho efetivo. Para além disso, estuda-se, sob tal rótulo, o tempo durante o qual o empregado disponibiliza a sua força de trabalho e, também, o tempo de descanso, necessário à recomposição da força física, ao arejamento da atividade intelectual, à dedicação a outras atividades, ao lazer, à arte, à interação social. Quando nos reportamos, estritamente, à extensão de tempo por que o empregado mantém a sua energia de trabalho à disposição do empregador, aludimos à jornada de trabalho. Em rigor, a origem etimológica(658) da palavra jornada restringiria o seu significado ao de extensão de tempo a cada dia e é neste sentido que preferimos empregar o vocábulo. Mas é certo que a lei, a doutrina e a jurisprudência referem-se a jornada para mencionar, também, a carga horária de trabalho semanal (jornada semanal) ou mesmo mensal (jornada mensal). Os termos inicial e final de cada jornada revelam, enfim, o horário de trabalho. Um empregado cumpre jornada de oito horas se trabalha, por exemplo, no seguinte horário: das 8h às 12h e das 14h às 18h. Estudemos, a início, o modo como se caracteriza a jornada e, em seguida, ainda no âmbito da duração do trabalho, os intervalos devidos em meio à jornada ou entre as jornadas. É hora, bem se nota, de analisar como a prestação laboral, que é regida pelo direito do trabalho, delimita-se no tempo. 10.2 A jornada de trabalho É exato dizer que o empregador deve remunerar todo o tempo por que pode dispor da força de trabalho do empregado. A jornada de trabalho compreende, portanto, as horas e frações de hora que o empregador haverá de considerar no momento em que calcular a remuneração do trabalhador, sendo útil, para esse fim, a identificação dos critérios gerais e especiais de fixação de jornada(659). Como sugerem as expressões, critérios gerais serão aqueles adotados para todos os empregados, sendo especiais os critérios relativos à fixação da jornada de algumas categorias de trabalhadores. São critérios gerais: a) o do tempo de efetivo trabalho b) o do tempo à disposição do empregador c) o do tempo de deslocamento residência-trabalho-residência d) o do tempo de afastamento justificado da atividade laborativa (658) Jornada, segundo Deonísio da Silva, doutor em Letras pela USP, “vem do provençal jornada, que designa o caminho feito em um dia. Mais tarde serviu para marcar também o trabalho realizado do alvorecer ao anoitecer. Sua origem remota é jorna, acrescida do sufixo ada. Jorna é aliteração do latim diurna, da expressão opera diurna, obras de um dia. Serviu de base à palavra jornal, que em italiano, língua irmã do português, ambas filhas do latim, é giornale, provavelmente mesclada ao latim diurnale, de um dia. O vocábulo passou a designar realizações que duravam mais de um dia, como é o caso do maior evento literário brasileiro, a Jornada de Literatura de Passo Fundo [...]” (659) Cf. DELGADO, Mauricio Godinho. Jornada de trabalho e descansos trabalhistas. Belo Horizonte: RTM, 1996. p. 21. O autor denomina critérios básicos o tempo efetivamente laborado, o tempo à disposição no centro de trabalho e o tempo despendido no deslocamento resi- dência-trabalho-residência. Ao lado desses critérios básicos, diz o autor, “há ainda dois critérios especiais, aventados por normas específicas de certas categorias profissionais brasileiras: o critério do tempo-prontidão (ou horas-prontidão) e o critério do tempo sobreaviso (horas sobreaviso)”. 244 – Augusto César Leite de Carvalho São critérios especiais: a) o do tempo de prontidão b) o do tempo de sobreaviso c) o do tempo de intervalo especial O propósito, em seguida, é o de esquadrinhar cada um desses critérios, remetendo-os à prática, ou seja, às hipóteses nas quais cada um deles se aplica. 10.2.1 Critérios gerais de fixação da jornada 10.2.1.1 O tempo de trabalho e o tempo à disposição do empregador – o ônus da prova Como regra, a jornada é composta pelo tempo em que o empregado mantém a sua energia de trabalho à disposição do empregador, aí se incluindo aquele em que executa ordens ou as aguarda, simplesmente. Há alguma dificuldade em se dimensionar a jornada prestada fora do estabelecimento do empre- gador, mas isso não impede que o empregado demonstre a existência de controle, pelo empregador, do seu tempo de serviço externo. Ocorrendo o controle, subentende-se a existência de jornada. Como vimos no capítulo em que tratamos do teletrabalho e se verá no subtítulo em que trataremos do regime de sobreaviso, acresceu-se recentemente ao art. 6º da CLT um parágrafo único, equipa- rando os meios telemáticos ou informatizados de exercício do poder de comando ao modo pessoal de exercer-se esse poder. É como dizer: a ordem que se recebe pela via telemática não se distingue, para efeito de caracterizar a subordinação reveladora do emprego, da ordem que o empregado recebe diretamente do empregador. E por que estaria o novel parágrafo único do art. 6º da CLT a desafiar a jurisprudência consoli- dada? É que, se, por um lado, o novo dispositivo explicita ser idôneo o meio informatizado para confi- gurar a subordinação do empregado, por outro se pode compreender que o legislador prescreve, até por coerência, a impossibilidade de o empregador escudar-se na imposição de controle telemático como modo de eximir-se das obrigações que adviriam se mantivesse o trabalhador sob seu olhar constante e físico, sem o auxílio do recurso eletrônico. Como analisaremos ao estudar o regime de sobreaviso como um dos critérios especiais de fixação da jornada de trabalho, a obrigação de o traba- lhador manter-se on line por todo o tempo, aguardando eventual solicitação do empregador, deverá ajustar-se à nova dicção da lei. A lei admite, porém, a possibilidade de o serviço externo ser prestado em condições incompatíveis com o controle da jornada pelo empregador (trataremos, adiante, da exceção prevista no artigo 62, I, da CLT). E a jurisprudência, por seu turno, tem resistido à ideia de considerar, ao menos para o fim de estabelecer se houve excesso de jornada de trabalho, o tempo em que o empregado presta labor em domicílio. Isso tem reflexo, inclusive, no cômputo, assim inviabilizado, das preciosas horas que o professor dedica, em sua casa, à preparação de aulas e provas, bem assim à correção destas. Outra consideração importante é a de que as viagens a serviço não se incluem, integralmente, na jornada de trabalho. Por exemplo, motoristas e vendedores pracistas costumam trabalhar dias consecutivos em cidades diferentes daquelas em que têm família e domicílio. O tempo dispensado a assuntos alheios aos negócios da empresa (inclusive refeições e pernoites em estabelecimentos à margem da estrada ou nas cidades intercorrentes ao trajeto), em meio às viagens, não é, regra geral, computado como jornada de trabalho. A construção jurisprudencial nesse sentido influenciou, também e por outra via, a dedução de que o tempo de concentração dos atletas profissionais não se inclui na jornada, salvo o que for despendido com atividades de treinamento(660). (660) No sentido do texto: “Horas Extras. Jogador de Futebol. Período de Concentração. A concentração é obrigação contratual e legalmente admitida, não integrando a jornada de trabalho, para efeito de pagamento de horas extras, desde que não exceda de 3 dias por semana”. Recurso de revista a que nega provimento” (TST, 4a Turma, Rel. Min. Antônio José de Barros Levenhagen, Proc. RR 405769/97, decisão em 29/03/2000, DJ 05/05/2000). Também no mesmo sentido: TST, 2a Turma, Rel. Min. Marcelo Pimentel, Proc. RR 6884/84, decisão em 11/03/86, DJ 05/05/86. Ralph Cândia (Comentários aos Contratos Trabalhistas Especiais, p. 105) sustenta que há horas extras quando extra- Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 245 Noutra seara, em junho de 2001(661) acresceram-se parágrafos ao artigo 58 da CLT, o primeiro deles a positivar orientação jurisprudencial no sentido de que “não serão descontadas nem computa- das como jornada extraordinária as variações de horário no registro de ponto não excedentes de cinco minutos, observado o limite máximo de dez minutos diários”. É bom acentuar que o empregador cujo estabelecimento tem mais de dez empregados está obrigado a exigir o registro de ponto (artigo 74, §§2o e 3o, da CLT), sendo seu, portanto, o ônus de provar, em juízo, a jornada cumprida por seus empregados (ainda que não possua cartões ou livro de ponto)(662). Sendo o quadro de até dez empregados, ao empregado é atribuído o ônus de provar o trabalho que teria excedido a jornada contratual ou legal. Quando tratou do empregado doméstico em lei específica (a Lei n. Complementar n. 150/2015), o legislador estabeleceu que é, no âmbito residencial onde tal trabalho se realiza e independentemente da quantidade de empregados na residência, “obrigatório o registro do horário de trabalho do empre- gado doméstico por qualquer meio manual, mecânico ou eletrônico, desde que idôneo”. Portanto, é do empregador doméstico o ônus de pré-constituir a prova da real jornada de trabalho, ou de prová-la se não houver diligenciado, durante o vínculo, o registro de ponto. Nos subtítulos seguintes, decerto se perceberá que a jurisprudência está atenta à circunstância de o tempo à disposição da empresa nem sempre se apresentar como um tempo em que o trabalhador permanece no interior do estabelecimento. Por certo deriva dessa compreensão a inclusão na jornada do tempo de percurso entre a residência e o local de trabalho, sempre que há a necessidade de o empregador fornecer veículo para citado deslocamento (Súmula 90) ou ele ocorre dentro da unidade produtiva (Súmula 429) – mas essas outras maneiras de estar à disposição do empregador, sem prestar trabalho, apresentam-se, em seguida e por apelo didático, como modalidades específicas de cumprimento da jornada. 10.2.1.2 O tempo de deslocamento residência-trabalho-residência e o tempo de trajeto interno A proximidade entre a residência do empregado e o local de seu trabalho pode permitir que ele prefira vencer esse trajeto caminhando ou em veículo próprio. Não sendo assim, o deslocamento até o local de trabalho, como o seu retorno, podem ocorrer em transporte de uso público ou em veículo fornecido pelo empregador(663). Quando o empregador fornece o citado transporte, o faz para aumentar a comodidade do empre- gado ou para viabilizar a prestação de trabalho. Computa-se o tempo de deslocamento na jornada de trabalho somente nessa última hipótese, ou seja, quando o transporte é fornecido porque de outro modo não há como o trabalhador chegar até o local de sua prestação de serviço. Tal qual predizia a Súmula 90 do TST, a atual redação do artigo 58, §2o, da Consolidação das Leis do Trabalho é elucidativa: O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de trans- porte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução. Estamos a cuidar das horas in itinere. Houve época em que empregadores de menor escrúpulo tentaram se desvencilhar dessa obrigação – de incluir as horas in itinere na jornada dos seus emprega- dos – cobrando-lhes, num ingênuo ardil, uma quantia irrisória, como um modo de sugerir que o trans- porte estaria sendo custeado pelos próprios empregados. O Tribunal Superior do Trabalho preveniu o litígio, editando a Súmula 320: O fato de o empregador cobrar, parcialmente ou não, importância pelo transporte fornecido, para local de difícil acesso, ou não servido por transporte regular, não afasta o direito à percepção do pagamento das horas in itinere. polada a carga horária semanal máxima, prevista em lei. (661) Lei n. 10.243, de 19 de junho de 2001. (662) A Súmula 338 do TST confirma esse ônus da prova, a recair sobre o empregador: “É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não apresentação injustificada dos controles de frequência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário”. (663) Sem que esse transporte possa se caracterizar, a teor da nova redação do artigo 458, §2º, III, da CLT, salário-utilidade. 246 – Augusto César Leite de Carvalho A caracterização das horas itinerantes também se mostrou conflituosa nos caos em que o horário de trabalho não era compatível com o transporte coletivo de uso público. O TST editou, a propósito, a Súmula 90, III (antigo Enunciado 324), que recomenda: “A mera insuficiência do transporte público não enseja o pagamento das horas in itinere”. Isso não obstante, a Alta Corte trabalhista não radicaliza esse entendimento, pois está atenta à singularidade dos casos em que há absoluta inviabilidade de o empregado valer-se do transporte público. Nesse toar, a Súmula 90, II, do TST é taxativa: A incompatibilidade entre os horários de início e término da jornada do empregado e os do transporte público regular é circunstância que também gera o direito às horas in itinere. E se apenas parte do trajeto, entre a residência do empregado e o seu local de trabalho, é servida por transporte público. Nesses casos, não é usual, porque pouco prático, o fornecimento de transporte, pelo empregador, somente a partir da última parada de ônibus. O empregador normal- mente transporta o trabalhador desde a sua residência até o estabelecimento da empresa, embora pudesse fazê-lo a partir do último ponto de transporte público. O Tribunal Superior do Trabalho refle- tiu, todavia, a necessidade, mais relevante, de estimular o empregador a transportar os seus empre- gados, com evidente proveito para estes, ao editar o Enunciado 325, agora convertido na Súmula 90, IV, de sua jurisprudência: Se houver transporte público regular, em parte do trajeto percorrido em condução da empresa, as horas in itinere remuneradas se limitam ao trecho não alcançado pelo transporte público. É de questionar-se: pode a norma coletiva de trabalho definir o tempo médio de deslocamento entre as casas dos trabalhadores e seus respectivos locais de trabalho? A jurisprudência se inclinou inicialmente por validar tais cláusulas normativas, dado que manifesta a conveniência de confiar à vontade coletiva a tarefa de dimensionar o tempo médio despendido pelos empregados para vencer as diferentes distâncias a partir das diferentes casas em que residiriam. Não tardou, porém, para que sindicatos fragilizados, em consórcio com empregadores inescrupulosos, fizessem inserir em acordos coletivos cláusulas normativas que delimitavam em tempo muito reduzido, excessivamente destoante da realidade, o tempo in itinere que era comprovadamente maior. Com requinte de má-fé, alguns instrumentos coletivos surgiram com a previsão de que a remuneração das horas de deslocamento não teria caráter remuneratório ou que esse tempo não excedia a jornada legal, como se a norma jurí- dica pudesse transpor seu conteúdo deontológico e pretensiosamente mudar a realidade. Atento a esse movimento desleal de alguns atores sociais, o TST realinhou a sua jurisprudência para fixar que as horas in itinere são direito indisponível, não se revestindo de validade a cláusula normativa que nega a existência do direito em contraste com o fato real do deslocamento em veículo do empregador até local não servido por transporte público(664). Também se tem invalidado a cláusula de convenção ou acordo coletivo que nega a evidente natureza remuneratória da contraprestação salarial paga em razão do tempo in itinere(665). A respeito da definição do tempo médio de deslocamento por norma coletiva, o TST tem insistido na tese de validade da cláusula que serve a tal desiderato, pois é indiscutível a conveniência de se estabelecer o tempo provável do trajeto gasto, em média, pelos trabalhadores, prevenindo-se assim conflitos internos e, por igual, a judicialização desses conflitos. Mas a mesma Corte judicial tem enfati- zado que essa delimitação deve atender ao princípio da razoabilidade, assim não sucedendo quando o tempo fixado em norma coletiva é menor que a metade do tempo verdadeiramente despendido pelo trabalhador até o local de trabalho, ou vice-versa(666). A mesma lógica segundo a qual o tempo de deslocamento em transporte fornecido pelo emprega- dor até o estabelecimento empresarial deve ser computado na jornada é, por coerência, adotada em caso similar, atinente às situações em que o empregador transporta o trabalhador desde a portaria de seu estabelecimento até o lugar da prestação de serviço. A Justiça do Trabalho entende que a duração desse trajeto interno, ou seja, no interior do estabelecimento da empresa, não pode ser subtraído do empregado sem qualquer contrapartida(667), sobretudo se aproveita exclusivamente ao empregador e é (664) Nesse sentido: TST, SBDI-1, E-RR 1863-86.2011.5.18.0128, Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, DEJT 03/10/2014. (665) Nesse sentido: TST, SBDI-1, 825-39.2011.5.18.0128, Rel. Min. Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 05/12/2014; TST-SBDI-1, E-RR 1052-89.2011.5.09.0092, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, DEJT 17/10/2014. (666) Nesse sentido: TST, SBDI-1, E-RR 33900-97.2009.5.09.0093, Rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho, DEJT 19/12/2014; TST, SBDI-1, AgR-E-RR 185000-74.2008.5.09.0242, Rel. Min. João Oreste Dalazen, DEJT 19/12/2014. (667) Vide orientação jurisprudencial transitória n. 36 da SDI 1 do TST: “Horas in itinere. Tempo gasto entre a portaria da empresa e o local Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 247 relativamente longo o caminho entre a portaria e o local de trabalho. Em maio de 2011, o TST editou, sobre o tema, a Súmula 429 de sua jurisprudência para esclarecer: Considera-se à disposição do empregador, na forma do art. 4º da CLT, o tempo necessário ao deslocamento do trabalhador entre a portaria da empresa e o local de trabalho, desde que supere o limite de 10 (dez) minutos diários. Situação excepcional é a que diz sobre os trabalhadores da indústria petroquímica, regidos por lei própria e minudente acerca da duração de seu trabalho. Têm decidido os órgãos de jurisdição que não se insere a hora in itinere na jornada do empregado regido pela Lei n. 5.811, de 1972, que disciplina o traba- lho dos petroleiros. É que a mencionada lei especial teria regulado, exaustivamente, a jornada e também a obrigação de o empregador fornecer transporte ao empregado que labora na indústria petroquímica, não incluindo o tempo, gasto em transporte fornecido pelo empregador, na jornada de trabalho(668). 10.2.1.3. O tempo de afastamento justificado Aos empregados assiste, regra geral, o direito de verem computadas na jornada de trabalho as horas em que não prestam serviço nem disponibilizam a sua força de trabalho, mas se abstêm de fazê- -lo com apoio em justificativa prevista em lei ou em outra espécie normativa. É o caso, por exemplo, dos afastamentos que se dão em consequência de enfermidade, devidamente atestada. Como a lei faz alusão, quase sempre, ao afastamento por pelo menos um dia, não se percebe, decerto, que o mal a afligir o empregado pode justificar a sua ausência por apenas algumas horas. Ao estudarmos os casos de interrupção do contrato de emprego, outras situações, em que as horas de afastamento justificado devem ser remuneradas, podem ser lembradas. Por ora, é interes- sante notar, exempli gratia, que várias normas coletivas asseguram ao dirigente sindical o direito de se ausentar do trabalho, para o desempenho de atividades associativas, sem prejuízo do salário(669). Também a ausência para depor em juízo não ocorre em prejuízo da remuneração correspondente às horas subtraídas à prestação de trabalho para esse fim(670). 10.2.2 Critérios especiais de fixação da jornada(671) 10.2.2.1 O tempo de prontidão Enuncia o artigo 244, §3o, da CLT que o trabalhador ferroviário estará de prontidão quando “ficar nas dependências da Estrada, aguardando ordens. A escala de prontidão será, no máximo, de doze horas. As horas de prontidão serão, para todos os efeitos, contadas à razão de 2/3 (dois terços) do salário-hora normal”. Como dependências da Estrada devem ser compreendidas as dependências da empresa ou via férrea respectiva, conforme explica Mauricio Godinho Delgado(672). A proporção de 2/3 (dois terços) permite que o trabalhador ferroviário receba, por cada jornada de doze horas em regime de prontidão, o equivalente a uma jornada de trabalho efetivo por oito horas (2/3 x 12 h = 8 h). O trabalhador de prontidão não executa tarefas por todo o tempo, mas se submete a um regime especial que tem em vista a realização de serviços imprevistos ou a substituição de empregados falto- sos, tal qual prescreve o artigo 244 da CLT. É um regime de trabalho especial, assim como o é o labor em regime de sobreaviso, a ser adiante analisado. de serviço. Devidas. Açominas”. O TST tem adotado essa mesma orientação para outros casos, nos quais figura outro empregador, mas a mesma situação de fato. (668) Nesse sentido: TST, SBDI-1, E-ED-RR 424/1999-161-17-00, Rel. Min. Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DJ de 20/06/2008; TST, SBDI-1, E-ED-RR 40500-21.2003.5.04.0761, Rel. Min. Horácio Raymundo de Senna Pires, DEJT 10/06/2001. (669) Não havendo norma coletiva ou contrato nesse sentido, prevalece o artigo 543, §2º, da CLT, que converte o tempo de ausência ao trabalho, para o desempenho da liderança ou representação sindical, em licença não remunerada. (670) Vide artigo 473, VIII, da CLT. (671) Mauricio Godinho Delgado (op. cit. p. 26) sustenta que o caráter especial desses critérios vinculam-se à regência normativa de cate- gorias específicas e, também, ao aspecto de sua integração à jornada ser sempre parcial. Como acrescentamos os intervalos especiais aos critérios especiais de fixação da jornada, não vislumbramos, nestes, a última das mencionadas características (integração parcial), que é inerente apenas às horas de prontidão e às horas de sobreaviso. (672) Op. cit. p. 26. 248 – Augusto César Leite de Carvalho Não há, no regime de prontidão, a ansiosa sensação de permanecer em estado de trabalho, pois a energia pode ser desviada para outra atividade, porventura lúdica, até o instante da primeira ordem, que pode não chegar. O que o configura não é, portanto, a suspensão do esforço físico, já que os vigias e vigilantes se mantêm fisicamente inertes, mas com a responsabilidade de guardar, em meio a essa eventual inércia de movimentos, o patrimônio do empregador. No regime de prontidão, o trabalhador ferroviário se comporta, ao revés, como se a própria subordinação ao empregador permanecesse, até a primeira ordem, em estado de latência. Essa digressão tem a ver com a controvérsia pertinente à constitucionalidade dos dispositivos celetários que tratam do regime de prontidão e, como veremos em seguida, do regime de sobreaviso. Seria constitucional a manutenção do empregado em regime de prontidão por até doze horas, como previsto no artigo 244, §3o, da CLT? Ou o limite de oito horas diárias, assegurado no artigo 7o, XIII, da Constituição, há de preponderar? O que pode justificar a recepção da norma consolidada pela ordem constitucional em vigor é a sua especificidade, que não foi cogitada pelo poder constituinte. De toda sorte, é árida a jurisprudência sobre a constitucionalidade das jornadas previstas em lei para esses regimes especiais(673), bem assim quanto à sua adoção, por analogia, no vínculo entre outras categorias, que não a do ferroviário, e seus respectivos empregadores. 10.2.2.2 O tempo de sobreaviso A reflexão, que há pouco levamos a efeito, sobre a constitucionalidade do regime de prontidão vale, por igual, para o regime de sobreaviso, que se distingue pelo fato de o trabalhador ferroviário não permanecer nas dependências da empresa a aguardar ordens, pois que as aguarda em sua própria residência, como reza o artigo 244, §2o, da CLT: Considera-se de sobreaviso o empregado efetivo, que permanecer em sua própria casa, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço. Cada escala de sobreaviso será, no máximo, de vinte e quatro horas. As horas de sobreaviso, para todos os efeitos, serão contados à razão de 1/3 (um terço) do salário normal. A proporção de 1/3 (um terço) faz com que as vinte e quatro horas de sobreaviso tenham remune- ração equivalente a oito horas de trabalho efetivo. A doutrina e a jurisprudência têm estendido a outras categorias, por analogia, a regra estabelecida em favor do trabalhador ferroviário. O verbete n. 229 da Súmula do TST enuncia, por exemplo, que “as horas de sobreaviso dos eletricitários são remuneradas à razão de 1/3 (um terço) sobre a totalidade das parcelas de natureza salarial”. O mesmo Tribunal Superior do Trabalho viu-se às voltas com a questão tormentosa de decidir sobre a influência dos aparelhos celulares, bem assim de meios telemáticos como laptops e tablets, na defini- ção do que seria o regime de sobreaviso. Durante certo tempo, adotou-se a compreensão de que “o uso de aparelho de intercomunicação, a exemplo de BIP, ‘pager’ ou aparelho celular, pelo empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso, uma vez que o empregado não permanece em sua residên- cia aguardando, a qualquer momento, convocação para o serviço”. Assim estava assentado na antiga orientação jurisprudencial n. 49 da SBDI-1, mais adiante convertida na Súmula 428 do TST. Nessa fase inicial, prevaleceu, portanto, o entendimento de que não se poderia aplicar o regime de sobreaviso, assegurado aos ferroviários que permanecem em casa aguardando ordens, para empre- gados que estariam livres para sair de casa e receber a ordem de serviço na praia ou no cinema. Preferiu-se não adotar a analogia com o regime de trabalho em ferrovias. Sucederam, porém, os julgamentos em que o Tribunal Superior do Trabalho foi provocado a respeito da situação intermediária em que o trabalhador não está apenas na contingência de ser acio- nado pelo empregador, via telefone celular ou meio telemático, mas se obriga a permanecer em regime de escala ou plantão, restringindo as suas atividades de descanso ou lazer àquelas que pode realizar em um certo perímetro urbano ou rural cuja proximidade com o local de trabalho permita atender a (673) Há decisões favoráveis, porém, à constitucionalidade do artigo 243 da CLT, que exclui as normas gerais sobre duração de trabalho dos empregados em ferrovias do interior, onde o serviço é intermitente ou de pouca intensidade. Valentin Carrion (CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo : Saraiva, 2001. p. 197), ao anotar o citado artigo da CLT, transcreve ementas que dizem de seu fundamento de validade (TST, RR 43508/92.8, Rel. Min. Leonaldo Silva, Ac. 4a T. 2538/92 e TST, RO-AR 68643/93.4, Rel. Manoel Mendes de Freitas, Ac. SDI 1648/96). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 249 ordens de serviço dadas num telefonema ou numa mensagem eletrônica que podem surgir a qualquer momento. A distinção é clara: não se trata somente da possibilidade de ser convocado a trabalhar por meio telefônico ou telemático, mas de mesclar o tempo de disponibilidade dedicado à empresa com as horas normalmente destinadas ao usufruto de direitos fundamentais como o repouso, o lazer, a moradia, a crença religiosa, a convivência familiar e associativa, todos direitos relacionados à sadia qualidade de vida preconizada pelo art. 226 da Constituição, ou seja, pelo dispositivo reitor de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. A mesma alta tecnologia que subtrai empregos, automatizando a atividade econômica, contribui, paradoxalmente, para a dedicação ao labor de muito ou de todo o tempo. Cada vez mais, o tempo do trabalho não é apenas o tempo de prestação laboral. À Justiça do Trabalho coube dirimir um conflito latente que decorria das mudanças trazidas com a inserção e o avanço da tecnologia da informação no mundo do trabalho, alterando os métodos e a comunicação no ambiente laboral. O empregado que cumpre regime de plantão não tem tempo inteiramente livre enquanto aguarda o chamado do empregador. Atento a essa nova realidade, o TST reviu o verbete n. 428 da súmula de sua jurisprudência para acrescer-lhe o item II e assim definir a matéria: SOBREAVISO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 244, § 2º DA CLT I – O uso de instrumentos telemáticos ou informatizados fornecidos pela empresa ao empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso. II – Considera-se em sobreaviso o empregado que, a distância e submetido a controle patronal por instrumen- tos telemáticos ou informatizados, permanecer em regime de plantão ou equivalente, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço durante o período de descanso. Afastou-se, assim, o risco de a jurisprudência trabalhista consentir, involuntariamente, que a pres- tação de o empregado usar um aparelho de telefonia como meio de disponibilizar a sua força de traba- lho, sem solução de continuidade, não correspondesse a qualquer contraprestação salarial. A nosso ver, contribuiu para a modificação da jurisprudência a inclusão, em dezembro de 2011, de parágrafo único ao art. 6º da CLT, com o teor seguinte: “Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”(674). Como está revelado na ementa da Lei n. 12.551/2.011, o citado acréscimo no texto da lei visa a “equiparar os efeitos jurídicos da subor- dinação exercida por meios telemáticos e informatizados à exercida por meios pessoais e diretos”. Cuida-se, portanto, de um novo e mais elástico modo de ser da subordinação. Em rigor, o novo preceito legal não estaria predizendo a obviedade de que se revestirá de validade a ordem que chegar ao empregado pela via telemática ou informatizada, aspecto que jamais se pôs em debate (nunca se desconsiderou, como reveladora de subordinação, a ordem que se recebe por mensa- gem eletrônica ou quiçá por telefone). Se não é essa a intenção do legislador, conclui-se que o parágrafo único do art. 6º da CLT estabelece, como sujeição ao poder de comando, aquela que se realiza enquanto o trabalhador permanece aguardando ordem por meio de serviços telefônicos(675) ou informáticos. As horas do dia em que o empregado se submete ao comando virtual – com limitação, por exem- plo, de seu eventual desejo de deslocamento para lugar mais distante – são horas de submissão ao poder diretivo, diz a lei. E como a lei se antecipou à experiência dos tribunais, ou a ela verdadeiramente se opôs, coube à jurisprudência definir se tal forma de disponibilizar a energia de trabalho importaria tempo à disposição que configuraria jornada normal de trabalho, ou se a hipótese seria a de tempo de sobreaviso. Optou-se, como se infere da nova redação da Súmula 428, II, do TST, por compreender que se considera “em sobreaviso o empregado que, a distância e submetido a controle patronal por instrumentos telemáticos ou informatizados, permanecer em regime de plantão ou equivalente, aguar- dando a qualquer momento o chamado para o serviço durante o período de descanso”. Há, enfim, o regime de sobreaviso que é previsto, pelo artigo 5o da Lei n. 5.811, de 1972, espe- cificamente para os empregados que prestam serviços em atividades de exploração, perfuração, (674) A inserção do parágrafo único no art. 6º da CLT foi promovida pela Lei n. 12.551, de 15 de dezembro de 2011. (675) Embora o adjetivo “telemática” refira-se ao “conjunto de serviços informáticos fornecidos através de uma rede de telecomunicações”, decerto que não seria adequado distinguir, para os efeitos da lei, a ordem veiculada por e-mail daquela que se dá por meio telefônico. 250 – Augusto César Leite de Carvalho produção e transferência de petróleo no mar, ou em exploração, perfuração e produção de petróleo em áreas terrestres distantes ou de difícil acesso, ou, ainda, em trabalho de geologia de poço ou na supervisão de qualquer dos serviços regidos pela citada lei(676). O artigo 5o, §1o, da Lei n. 5.811 define o regime de sobreaviso dos petroleiros como “aquele em que o empregado permanece à disposição do empregador por um período de 24 (vinte e quatro) horas para prestar assistência aos trabalhos normais ou atender a necessidades ocasionais de operação”. O §2o prevê: “Em cada jornada de sobre- aviso, o trabalho efetivo não excederá de doze horas”. Quando a sua norma de regência é a Lei n. 5.811/72, o empregado em sobreaviso recebe, além de seu salário normal, um acréscimo de 20% a título de adicional de sobreaviso, além de ter direito a um repouso de vinte e quatro horas consecutivas para cada período de vinte e quatro horas em que permanecer em regime de sobreaviso. Não raro, ocorre de o regime de sobreaviso dos petroleiros ser desvirtuado, porque destes se exige o trabalho em jornadas fixas de doze horas, pagando-se o adicional referido pelo fato de sua permanência na plataforma marítima ou na estação de trabalho, a aguardar ordens, durante a outra metade de todos os dias. A existência de jornada fixa desnatura, por óbvio, o sobreaviso. 10.2.2.3 O tempo de intervalo especial A favor de todos os empregados, há intervalos intrajornadas (em meio às jornadas) que são devi- dos, mas não são remunerados. A rotina estressante de alguns serviços impõe, porém, a garantia de outros intervalos menores em que o empregado deve relaxar a tensão resultante do trabalho, descon- centrando-se antes de retomar o labor. Assim e extraordinariamente, a lei e outras fontes jurídicas asseguram o direito a intervalos intrajornadas que se incluem na jornada e devem ser remunerados, como se o empregado não houvesse interrompido a sua prestação laboral. Podemos notar, a propósito, que o artigo 72 da Consolidação das Leis do Trabalho prevê o direito a intervalos de dez minutos, não deduzidos da duração normal do trabalho, para cada período de noventa minutos em serviço permanente de mecanografia. Conferindo atualidade ao preceito, a Súmula 346 do TST estende o direito nele consagrado, por analogia, aos digitadores. Em benefício dos empregados que trabalham no interior das câmaras frigoríficas e para os que movimentam mercadorias do ambiente quente ou normal para o frio, e vice-versa, o artigo 253 da CLT instituiu um intervalo de vinte minutos para cada período de uma hora e quarenta minutos de trabalho contínuo, computado esse intervalo como de trabalho efetivo. Havia dúvida sobre o dispositivo se aplicar em ambientes artificialmente frios que não correspondiam a câmaras frigoríficas, mas, em boa hora, o TST editou, sobre o tema, a Súmula 438 de sua jurisprudência: O empregado submetido a trabalho contínuo em ambiente artificialmente frio, nos termos do parágrafo único do art. 253 da CLT, ainda que não labore em câmara frigorífica, tem direito ao intervalo intrajornada previsto no caput do art. 253 da CLT. Também quando disciplina o trabalho em minas de subsolo, a Consolidação das Leis do Trabalho assegura: “Em cada período de 3 (três) horas consecutivas de trabalho, será obrigatória uma pausa de 15 (quinze) minutos para o repouso, a qual será computada na duração normal de trabalho efetivo”. Quanto ao músico, a regra atende à peculiaridade do seu serviço: com exceção do intervalo desti- nado à refeição, os outros intervalos que se verificarem em meio à jornada do músico serão computa- dos como de serviço efetivo, à expressão do artigo 41, §2o, da Lei n. 3.857, de 1960. É comum, ainda, em normas coletivas que regulam o trabalho de rodoviários, a inclusão na jornada de pequenos intervalos fruídos nos momentos em que os motoristas estacionam os ônibus nos terminais ou pontos da estrada, para em seguida iniciarem novo trecho da viagem. Sempre que a norma, estatal ou coletiva, inclui o intervalo na jornada a ser remunerada, estamos a tratar deste critério especial de fixação da jornada de trabalho. (676) Que disciplina, também, o trabalho na refinação do petróleo, na indústria do xisto, na indústria petroquímica e no transporte de petróleo e seus derivados por meio de dutos. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 251 10.2.3 Jornada extraordinária Na ordem dos fatos, a jornada de um empregado é divisada a partir da utilização dos critérios gerais e especiais de sua fixação, já estudados. No âmbito do direito do trabalho, interessa perceber se a jornada que realmente ocorre se enquadra nos limites da jornada normal ou ordinária, autorizados pela norma trabalhista. Quando inexiste fonte formal de direito assegurando jornada menor, o empre- gado não pode laborar além da oitava hora diária e da quadragésima quarta hora semanal, salvo em regime de compensação de jornada, tal como prescreve o artigo 7o, XIII, da Constituição. Sobre esse dispositivo constitucional, são duas as observações importantes. É que o citado artigo da Constituição não prevê a possibilidade de a carga horária máxima, nele referida, ser extrapolada mediante contrato. E faz alusão, num paradoxo apenas aparente, à possibilidade de essa mesma carga horária ser reduzida, mas mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. Quanto à derradeira observação, resulta claro que a norma coletiva somente é necessária se a redução de jornada importar diminuição do salário, estando o inciso XIII em consonância com o inciso VI, do mesmo artigo sétimo da Carta Política, este último inciso a exigir a negociação coletiva de traba- lho para o ajuste que vise à redução salarial. Se a redução da jornada não ocorrer com a proporcional redução do salário, prescinde-se da negociação coletiva. A primeira das observações, acima destacadas, é, no entanto, alusiva à inexistência de norma constitucional que autorize a contratação de horas suplementares(677), ou seja, de horas de trabalho excedentes da carga horária constitucional. Nessa medida, alguns autores sustentam que não teria sido recepcionada, pela atual Constituição, a regra do artigo 59, caput, da CLT, que permitia a contrata- ção de até duas horas suplementares por dia. Assim se posicionam, por exemplo, José Augusto Rodri- gues Pinto(678) e Márcio Túlio Viana(679), que afirma secundar Vantuil Abdala e lamenta, no particular, a divergência de Arnaldo Sussekind. Os juslaboralistas que defendem a sobrevigência do caput do artigo 59 da CLT exibem, a seu favor, não somente o grau maior de abstração do texto constitucional, que impede seja ele interpretado restritivamente, mas também o fato de o seu artigo 7o, XVI, prever a remuneração do serviço extra- ordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal. Como não se deve supor que a Constituição estaria a regular os efeitos jurídicos de ato que reputou ilícito, presume-se que está ela a atribuir licitude a alguma situação em que há prestação de jornada extraordinária. Por isso, seria válido o artigo 59 da CLT. Nessa teia dialética, poder-se-ia contra-argumentar que o serviço extraordinário referido no inciso XVI (que prevê o adicional de 50%) não seria aquele que excedesse a carga horária máxima prevista no inciso XIII (oito horas diárias ou quarenta e quatro semanais), ambos incisos do artigo sétimo da Constituição. A jurisprudência é, inclusive, assente no sentido de que é devido o adicional de 50% sobre as horas excedentes de jornadas reduzidas, inferiores à de oito horas, a exemplo da jornada do professor(680). Além disso, serviço extraordinário não poderia ser, ao mesmo tempo, habitual, força de contrato. A contratação de hora extraordinária comportaria, claramente, uma antinomia em termos. (677) Sendo objeto de contrato, a hora excedente perde o atributo de extraordinária, sendo denominada, por isso, de hora suplementar. (678) PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2000. p. 333. (679) VIANA, Márcio Túlio. Adicional de horas extras. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. Vol. II. São Paulo: LTr, 1993. p. 173 (680) “Do adicional de horas extras. Professor. Havendo descumprimento da jornada máxima consignada pela Lei n. Consolidada, deve o empregador sujeitar-se ao pagamento do adicional pelo trabalho suplementar. Entendimento contrário, tornaria letra morta o contexto legal pertinente à matéria em epígrafe, porquanto a remuneração do trabalho extraordinário de forma superior ao normal virá, exatamente, desestimular a prática reiterada de exigir do professor a prestação de serviços além do limite fixado. Recurso não provido” (TST, SDI 1, Proc. n. TST-E-RR-221.992/95.6, Rel. Min. José Luiz Vasconcelos. Fonte: SDI – 31 – JUN/99, p. 53). Em seu voto, o ministro relator sustentou: “A controvérsia em epígrafe cinge-se a respeito de se é devido ou não o pagamento do adicional de 50% (cinquenta por cento) da remuneração da hora normal, a título extraordinário, em razão do excesso de aulas ministradas, tendo em vista os limites estatuídos no artigo 318 Cele- tizado, para o magistério. O artigo supracitado preconiza que “num mesmo estabelecimento de ensino não poderá o professor dar, por dia, mais de 04 (quatro) aulas consecutivas, nem mais de 06 (seis), intercaladas”. Neste diapasão, a jornada do professor está limitada a quatro aulas consecutivas ou a seis intercaladas. Contudo, sendo esse limite excedido, o empregador deverá remunerar as horas suplementares com o adicional de 50% (cinquenta por cento), preconizado pelo artigo 7º, inciso XVI, da atual Carta Magna, que assim versa: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal.” Não existe, pois, dissonância entre o contexto jurídico celetário em relação a este dispositivo constitucional, mas sim um complemento entre os dois”. 252 – Augusto César Leite de Carvalho Ainda assim, toda essa discussão se torna bizantina se o Ministério do Trabalho não se render à inconstitucionalidade da contratação de horas extraordinárias, excedentes da oitava hora diária ou da quadragésima quarta hora semanal, autuando e punindo os empregadores que, fomentando os índices de desemprego, infringirem o preceito maior. É mais tímida a influência da Justiça do Trabalho, que atua, muita vez, quando o conflito está instaurado e o empregado, a bem dizer, não mais o é. A sobrejornada cumprida por tal empregado, reclamante na Justiça do Trabalho, deve ser remunerada com o adicional de 50%, posto que ilícita e ainda mesmo quando superior ao limite de duas horas extras diárias(681). 10.2.3.1 Jornada realmente extraordinária O artigo 7o, XIII, da Constituição regula apenas a duração do trabalho normal, limitando-a a oito horas diárias e quarenta e quatro horas semanais. Fatos anormais podem acontecer, porém, a ensejar a prestação de horas realmente extraordinárias de trabalho. Tentando exaurir a regência dessa maté- ria, o artigo 61 da CLT refere três situações que justificam a exigência de horas extras, ao prescrever: Art. 61 – Ocorrendo necessidade imperiosa, poderá a duração do trabalho exceder do limite legal ou conven- cionado, seja para fazer face a motivo de força maior, seja para atender à realização ou conclusão de serviços inadiáveis ou cuja inexecução possa acarretar prejuízo manifesto. § 1º – O excesso, nos casos deste artigo, poderá ser exigido independentemente de acordo ou contrato coletivo e deverá ser comunicado, dentro de 10 (dez) dias, à autoridade competente em matéria de trabalho, ou, antes desse prazo, justificado no momento da fiscalização sem prejuízo dessa comunicação. § 2º – Nos casos de excesso de horário por motivo de força maior, a remuneração da hora excedente não será inferior à da hora normal. Nos demais casos de excesso previstos neste artigo, a remuneração será, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) superior à da hora normal, e o trabalho não poderá exceder de 12 (doze) horas, desde que a lei não fixe expressamente outro limite. § 3º – Sempre que ocorrer interrupção do trabalho, resultante de causas acidentais, ou de força maior, que determinem a impossibilidade de sua realização, a duração do trabalho poderá ser prorrogada pelo tempo necessário até o máximo de 2 (duas) horas, durante o número de dias indispensáveis à recuperação do tempo perdido, desde que não exceda de 10 (dez) horas diárias, em período não superior a 45 (quarenta e cinco) dias por ano, sujeita essa recuperação à prévia autorização da autoridade competente. É fácil notar que duas das situações estão relacionadas com a força maior, que vem a ser, segundo o artigo 501 da CLT, «todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente». Como observam Evaristo de Moraes Filho e Antonio Carlos Flores de Moraes(682), “em caso de acidente em que a perícia conclua pela deficiência das instalações da empresa, os danos não serão considerados como causados por motivo de força maior”. Em qualquer situação, as horas extras devem ser remuneradas com o adicional de 50%(683), pois assim o exige o artigo 7o, XVI, da Constituição. A extrapolação da jornada normal pode ocorrer para fazer face a motivo de força maior (a fabri- cação, v. g., de bens necessários à atenuação dos efeitos de inundação ou incêndio iminente) ou para recuperar o trabalho interrompido em razão de causas acidentais ou força maior (por exemplo, horas extraordinárias para resgatar a normalidade da produção industrial e, por conseguinte, a parti- cipação da empresa no mercado, após a interrupção causada por força maior). São, assim, situações que precedem e sucedem os efeitos drásticos da força maior, devendo o empregador, no primeiro caso, comunicar em até dez dias o labor extraordinário, que é ilimitado, ao Ministério do Trabalho; na segunda hipótese, a comunicação ao Ministério do Trabalho é prévia e as horas extras estão limitadas a duas por dia, em período não superior a quarenta e cinco dias por ano. A terceira e última situação, que justifica a prestação de horas extraordinárias, é aquela em que o labor excedente acontece para atender à realização ou conclusão de serviços inadiáveis ou cuja inexe- cução possa acarretar prejuízo manifesto. Há serviços, como o de enchimento de lajes com concreto, (681) Assim recomenda a Súmula 376 do TST. (682) MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução ao direito do trabalho. Evaristo de Moraes Filho, Antonio Carlos Flores de Moraes. São Paulo: LTr, 1991. p. 405. (683) Carece de fundamento de validade, portanto, a primeira parte do artigo 61, §2º, da CLT, que prevê: “Nos casos de excesso de horário por motivo de força maior, a remuneração da hora excedente não será inferior à da hora normal”. Interpretava-se o dispositivo como um permissivo para o pagamento, nesses casos, de horas extras sem o adicional. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 253 em obras de construção civil, que não podem mesmo ser interrompidos. Outro exemplo: por motivos estranhos à vontade do empregador, um bem ou um serviço que deve ser produzido a certo tempo, para atender a uma necessidade sazonal, pode ter essa produção retardada, justificando a sobrejor- nada. Nesses casos, a jornada não pode ser prorrogada além da décima segunda hora. A Lei n. 13.103, de 2015, adicionou ao art. 235-D da CLT, que trata dos motoristas, regra exceptiva da jornada normal. Adotando uma cláusula aberta à interpretação dos atores sociais e das autoridades que fiscalizam o trabalho e o trânsito nas estradas, o §6º de mencionado artigo autoriza: Em situações excepcionais de inobservância justificada do limite de jornada de que trata o art. 235-C, devida- mente registradas, e desde que não se comprometa a segurança rodoviária, a duração da jornada de trabalho do motorista profissional empregado poderá ser elevada pelo tempo necessário até o veículo chegar a um local seguro ou ao seu destino. Quando a prestação de horas extras não se enquadra em qualquer dessas situações, nem se cuida de compensação de jornada autorizada em acordo ou convenção coletiva de trabalho, cabe ao Ministério do Trabalho aplicar a multa administrativa cabível. Mas essa ilicitude não ocorre em prejuízo do direito à remuneração da hora extraordinária com o adicional de 50%, que é inevitavelmente devido. 10.2.3.2 Jornada extraordinária do empregado doméstico A Lei n. Complementar n. 150, de 2015, disciplina a jornada de trabalho do empregado doméstico e atende, bem se vê, ao desígnio predito no parágrafo único do art. 7º da Constituição, que incluiu, em sua atual redação e finalmente, o tempo de trabalho dessa estigmatizada categoria como fato juridica- mente delimitado. Ao fazê-lo, esteve o legislador entre as opções de autorizar por ajuste individual e a de proibir simplesmente a jornada extraordinária nas hipóteses em que a negociação coletiva é exigida dos demais trabalhadores. A matéria é vexatória porque o caráter difuso da representação sindical no âmbito da categoria doméstica e mesmo a usual inexistência de coletividades de empregados em cada residência conspiram para dificultar ou impossibilitar a ação sindical. É fato que a opção do legislador foi claramente a de permitir que se ajustasse por acordo individual as condições de trabalho que, para outras categorias de trabalhadores, exigem negociação coletiva. Assim, facultou-se ao empregado e ao empregador, mediante acordo escrito e individual, estabelecerem o regime de doze horas de trabalho por trinta e seis horas de descanso. Prescinde-se, a propósito, da negociação coletiva exigida pela Súmula 444 do TST para empregados não domésticos (art. 10 da LC 150/2015). Na mesma linha, autoriza-se, no emprego doméstico, a formação de banco de horas sem a nego- ciação coletiva exigível, segundo a Súmula 85, V, do TST, em relação a outros trabalhadores. É o que se verá no subitem relacionado à compensação de jornada, logo adiante. 10.2.3.3 Jornada extraordinária de motoristas de transporte rodoviário Quanto ao motorista, trabalhador rodoviário, a Lei n. 12.619, de 2012, não havia alterado a sua jornada, que continuava sendo de oito horas, com intervalo entre jornadas de onze horas e trinta e cinco horas de descanso semanal. Mas as alterações que sobrevieram com a Lei n. 13.103, de 2 de março de 2015, foram muito significativas. A primeira dessas leis, a Lei n. 12.619, atendeu a uma demanda de toda a sociedade por maior segurança nas estradas e à necessidade, também por isso, de assegurar uma condição de trabalho mais justa e adequada para os trabalhadores rodoviários. O mesmo não sucedeu com a citada lei de 2015. Em meio a um estado de acomodação ou letargia dos motoristas empregados, a Lei n. 13.103 foi sancionada, sem vetos, após a paralisação de estradas e a ameaça de retenção, em seus acostamentos, de toda a produção nacional, tudo a pretexto de ser inviá- vel, em razão do custo empresarial ou da infraestrutura das rodovias brasileiras, o cumprimento de parte expressiva das regras atinentes à jornada e aos intervalos dos motoristas previstas na Lei n. 12.619. O retrocesso na proteção da saúde e segurança de motoristas, estradas e seus usuários pode sentir-se, por exemplo, quando se percebe que os motoristas agora podem ser remunerados em função da distância percorrida, do tempo de viagem ou da quantidade de produtos transportados (art. 235-G 254 – Augusto César Leite de Carvalho da CLT, alterado pela Lei n. 13.103), ao contrário do que expressamente previa a Lei n. 12.619, de 2012(684). Ou seja, os rodoviários voltam à contingência de imprimir maior velocidade e de transportar cargas mais pesadas para auferir maior remuneração e, certamente, não deixarão de fazê-lo para preservar a pavimentação e a segurança das rodovias. Ademais, a carga horária dos motoristas foi elastecida pela Lei n. 13.103/2015 até um limite inco- mum a outras categorias profissionais, como se não houvesse esgotamento fisiológico na condução de veículos em estradas brasileiras e o tempo maior ou excessivo de viagem não fosse um fator de estí- mulo ou induzimento a acidentes de trânsito. Pode prorrogar-se tal jornada por mais duas horas além da oitava hora diária, ou por mais quatro horas se essa prorrogação for ajustada mediante negociação coletiva de trabalho. Ao fim de julho de 2015, sobreveio a Lei n. 13.154/2015 para estender essa regra “aos operadores de automotores destinados a puxar ou a arrastar maquinaria de qualquer natureza ou a executar trabalhos de construção ou pavimentação e aos operadores de tratores, colheitadeiras, autopropelidos e demais aparelhos automotores destinados a puxar ou a arrastar maquinaria agrícola ou a executar trabalhos agrícolas”. O §13 do art. 235-C, trazido com a Lei n. 13.103/2015, esclarece que “salvo previsão contratual, a jornada de trabalho do motorista empregado não tem horário fixo de início, de final ou de intervalos” – a pretexto de assegurar-se autonomia ao trabalhador rodoviário, permite-se ao empregador alterar constantemente os horários de trabalho, o que exigirá dos órgãos de controle uma atenção maior para distinguir, frente a casos concretos, o que é consentâneo com as oscilações naturais do trabalho rodo- viário do que se pode apresentar pontualmente como abusivo. Além de eliminar a exigência de negociação coletiva para a compensação de jornadas, contida no art. 235-C, §6º da CLT(685) ao tempo em que vigia a Lei n. 12.619/2012, a Lei n. 13.103, de 2015, inseriu ainda alguns preceitos ambíguos na CLT, como fez ao acrescentar ao art. 235-D, que regula o repouso semanal dos motoristas, o §8º: “Para o transporte de cargas vivas, perecíveis e especiais em longa distância ou em território estrangeiro poderão ser aplicadas regras conforme a especificidade da operação de transporte realizada, cujas condições de trabalho serão fixadas em convenção ou acordo coletivo de modo a assegurar as adequadas condições de viagem e entrega ao destino final”. É certo que as normas coletivas, sempre alvissareiras na inovação de regras necessárias à definição de rotinas imperceptíveis aos olhos do legislador ordinário, não poderão, contudo, reduzir ou suprimir direitos trabalhistas absolutamente indisponíveis, sob pena de terem as suas cláusulas questionadas e virtualmente anuladas mediante ação judicial. Ao fim e ao cabo, o texto da CLT, por obra da Lei n. 13.103, de 2015, teve acrescido, entre outros, o art. 235-C, com o seguinte teor(686): Art. 235-C. A jornada diária de trabalho do motorista profissional será de 8 (oito) horas, admitindo-se a sua pror- rogação por até 2 (duas) horas extraordinárias ou, mediante previsão em convenção ou acordo coletivo, por até 4 (quatro) horas extraordinárias. (684) Art. 235-G em redação anterior, dada pela Lei n. 12.619/2012: “É proibida a remuneração do motorista em função da distância percor- rida, do tempo de viagem e/ou da natureza e quantidade de produtos transportados, inclusive mediante oferta de comissão ou qualquer outro tipo de vantagem, se essa remuneração ou comissionamento comprometer a segurança rodoviária ou da coletividade ou possibilitar violação das normas da presente legislação”. (685) Verbis: “O excesso de horas de trabalho realizado em um dia poderá ser compensado, pela correspondente diminuição em outro dia, se houver previsão em instrumentos de natureza coletiva, observadas as disposições previstas nesta Consolidação”. (686) O texto que segue é o alterado pela Lei n. 13.103, de 2015. A Lei n. 12.619 tinha regra mais protetiva: “Art. 235-C.  A jornada diária de trabalho do motorista profissional será a estabelecida na Constituição Federal ou mediante instrumentos de acordos ou convenção coletiva de trabalho. §1º - Admite-se a prorrogação da jornada de trabalho por até 2 (duas) horas extraordinárias. §2º - Será considerado como traba- lho efetivo o tempo que o motorista estiver à disposição do empregador, excluídos os intervalos para refeição, repouso, espera e descanso. §3º - Será assegurado ao motorista profissional intervalo mínimo de 1 (uma) hora para refeição, além de intervalo de repouso diário de 11 (onze) horas a cada 24 (vinte e quatro) horas e descanso semanal de 35 (trinta e cinco) horas. §4º - As horas consideradas extraordinárias serão pagas com acréscimo estabelecido na Constituição Federal ou mediante instrumentos de acordos ou convenção coletiva de trabalho. §5º - À hora de trabalho noturno aplica-se o disposto no art. 73 desta Consolidação. §6º - O excesso de horas de trabalho realizado em um dia poderá ser compensado, pela correspondente diminuição em outro dia, se houver previsão em instrumentos de natureza coletiva, obser- vadas as disposições previstas nesta Consolidação. Art. 235-D da CLT -  Nas viagens de longa distância, assim consideradas aquelas em que o motorista profissional permanece fora da base da empresa, matriz ou filial e de sua residência por mais de 24 (vinte e quatro) horas, serão observados: I – intervalo mínimo de 30 (trinta) minutos para descanso a cada 4 (quatro) horas de tempo ininterrupto de direção, podendo ser fracionados o tempo de direção e o de intervalo de descanso, desde que não completadas as 4 (quatro) horas ininterruptas de direção; II – intervalo mínimo de 1 (uma) hora para refeição, podendo coincidir ou não com o intervalo de descanso do inciso I”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 255 § 1o Será considerado como trabalho efetivo o tempo em que o motorista empregado estiver à disposição do empregador, excluídos os intervalos para refeição, repouso e descanso e o tempo de espera. [...] § 5o As horas consideradas extraordinárias serão pagas com o acréscimo estabelecido na Constituição Federal ou compensadas na forma do § 2o do art. 59 desta Consolidação. [...] § 16 Aplicam-se as disposições deste artigo ao ajudante empregado nas operações em que acompanhe o motorista. § 17. O disposto no caput deste artigo aplica-se também aos operadores de automotores destinados a puxar ou a arrastar maquinaria de qualquer natureza ou a executar trabalhos de construção ou pavimentação e aos operadores de tratores, colheitadeiras, autopropelidos e demais aparelhos automotores destinados a puxar ou a arrastar maquinaria agrícola ou a executar trabalhos agrícolas. Seguindo tendência doutrinária e jurisprudencial normalmente alusiva a outras categorias com trabalho menos penoso, o art. 235-F da CLT autoriza, também para o motorista profissional, o regime de doze horas de trabalho por trinta e seis horas de descanso, desde que esse regime de trabalho seja permitido em convenção ou acordo coletivo. Transfere-se para o sindicato que representa os trabalha- dores rodoviários a responsabilidade de aceitar, ou não, cláusula normativa de tal jaez. Por sua vez, o art. 235-D da CLT, em seu §4º, exclui da jornada de trabalho, a nosso ver com propriedade, o período em que o motorista empregado ou o ajudante ficarem espontaneamente no veículo usufruindo dos intervalos de repouso. Mas dois de seus parágrafos, tratando embora do repouso semanal, estabelecem critérios que poderiam, em tese, suscitar dúvida acerca de não estar mesmo o motorista, como sugere a lei, à disposição do empregador. Veja-se o que prescrevem: § 5o Nos casos em que o empregador adotar 2 (dois) motoristas trabalhando no mesmo veículo, o tempo de repouso poderá ser feito com o veículo em movimento, assegurado o repouso mínimo de 6 (seis) horas consecu- tivas fora do veículo em alojamento externo ou, se na cabine leito, com o veículo estacionado, a cada 72 (setenta e duas) horas. [...] § 7o Nos casos em que o motorista tenha que acompanhar o veículo transportado por qualquer meio onde ele siga embarcado e em que o veículo disponha de cabine leito ou a embarcação disponha de alojamento para gozo do intervalo de repouso diário previsto no § 3o do art. 235-C, esse tempo será considerado como tempo de descanso. Não há novidade, propriamente, quando a lei evita a inclusão na jornada do motorista do tempo de viagem em que inexiste trabalho, mas sim o uso do veículo ou de alojamentos como locais de repouso. Fundada no postulado da razoabilidade, a jurisprudência sempre consentiu que fosse assim, não obstante o descanso, longe de casa e da família, não se desse por escolha do empregado. O que parece inovador, em verdade, é o aspecto de estabelecer-se em lei que a contingência de o motorista dever permanecer no veículo em movimento, quando outro motorista o conduz ou é o veículo rebocado, não revela tempo à disposição do empregador, mas sim tempo de descanso. Dir-se-ia de descanso compulsório, e não remunerado. Enquanto vigeu a Lei n. 12.619/2012, a solução legal encontrada para a hipótese de o emprega- dor adotar revezamento de motoristas trabalhando em dupla no mesmo veículo era, conforme se lia no então art. 235-E, §6º, da CLT(687) (derrogado pela Lei n. 13.103/2015), considerar tempo de reserva o interregno em que o motorista, após cumprir sua jornada, permanecia em repouso com o veículo em movimento (dirigido por seu colega), ali se prescrevendo que esse tempo excedente, tempo de reserva, seria remunerado na proporção de 30% da hora normal. Na ocasião, e ainda crédulo na seriedade da proposta normativa, escrevemos em comentário ao mencionado dispositivo: “O motorista descansa durante o tempo de reserva, embora usufrua esse repouso no interior de veículo em movimento, a confiar na boa condução de seu colega de turno e na tranquilidade da rodovia cujas eventuais imperfeições embalarão o seu sono. A simbiose entre (687) Antigo art. 235-E, §6º da CLT, com a redação que lhe dava a Lei n. 12.619/2012: “Nos casos em que o empregador adotar revezamento de motoristas trabalhando em dupla no mesmo veículo, o tempo que exceder a jornada normal de trabalho em que o motorista estiver em repouso no veículo em movimento será considerado tempo de reserva e será remunerado na razão de 30% (trinta por cento) da hora normal”. 256 – Augusto César Leite de Carvalho descanso e apreensão parece autorizar a solução encontrada pelo legislador, que prescreve a remu- neração desse tempo na proporção de 30% do salário correspondente à hora de trabalho”. A Lei n. 13.103/2015 retirou, porém e como visto, qualquer contrapartida para a obrigação de o motorista permanecer no veículo, em movimento, enquanto relaxa sua estrutura osteomuscular sem relaxar, necessariamente, seu estado de espírito, seu estado neurológico, a tensão de não descansar em local e circunstância de sua preferência. A alteração trazida pela Lei n. 12.619/2012(688), e mantida pela Lei n. 13.103/2015, foi a inovação do tempo de espera, agora conceituado e regido por parágrafos do art. 235-C da CLT que ganharam nova redação. In verbis: § 8º. São considerados tempo de espera as horas em que o motorista profissional empregado ficar aguardando carga ou descarga do veículo nas dependências do embarcador ou do destinatário e o período gasto com a fiscalização da mercadoria transportada em barreiras fiscais ou alfandegárias, não sendo computados como jornada de trabalho e nem como horas extraordinárias. § 9º. As horas relativas ao tempo de espera serão indenizadas na proporção de 30% (trinta por cento) do salá- rio-hora normal. § 10 Em nenhuma hipótese, o tempo de espera do motorista empregado prejudicará o direito ao recebimento da remuneração correspondente ao salário-base diário. § 11 Quando a espera de que trata o § 8º for superior a 2 (duas) horas ininterruptas e for exigida a permanência do motorista empregado junto ao veículo, caso o local ofereça condições adequadas, o tempo será considerado como de repouso para os fins do intervalo de que tratam os §§ 2º e 3º, sem prejuízo do disposto no § 9º. § 12. Durante o tempo de espera, o motorista poderá realizar movimentações necessárias do veículo, as quais não serão consideradas como parte da jornada de trabalho, ficando garantido, porém, o gozo do descanso de 8 (oito) horas ininterruptas aludido no § 3º. Art. 235-D § 3º. O motorista empregado, em viagem de longa distância, que ficar com o veículo parado após o cumprimento da jornada normal ou das horas extraordinárias fica dispensado do serviço, exceto se for expres- samente autorizada a sua permanência junto ao veículo pelo empregador, hipótese em que o tempo será consi- derado de espera. Se o empregado aguarda carga, a descarga ou a fiscalização do veículo em que moureja como motorista ou ajudante, por óbvio não está atendendo à própria conveniência, mas sim e seguramente à de seu empregador, vale dizer, às vicissitudes da atividade por este desenvolvida. A lei, como se percebe, estatui que esse tempo não integra a jornada, pois é tempo de espera a ser “indenizado” à razão de 30% do salário-hora. As mudanças que sobrevieram com a Lei n. 13.103/2015, afora outras que serão vistas quando estudarmos os intervalos intrajornadas e interjornadas, podem ser, em síntese, assim referidas: • a nova redação do §8º do art. 235-C tenta impedir que o exegeta do direito do trabalho cogite de incluir o tempo de espera na jornada de trabalho do motorista ou do ajudante; • o tempo de espera, se superior a duas horas, converte-se, a partir daí, em tempo de intervalo intrajornada ou de repouso semanal, mas continua sendo indenizado na proporção de 30% do salário-hora (sem prejuízo da remuneração do repouso semanal); • as manobras que o motorista fizer no veículo, desde que necessárias à movimentação da carga ou à sua fiscalização, não converterão o tempo de espera ou de repouso em tempo de jornada, mas o repouso semanal estará desfigurado se não houver ao menos oito horas inin- terruptas de descanso; • caso o empregador autorize a permanência do empregado junto ao veículo após o cumpri- mento da jornada normal, em viagens de longa distância, o tempo em que o motorista assim permanecer deverá ser considerado tempo de espera. Embora seja prematura a afirmação de que careceria de validade ou eficácia a regulação do tempo de espera, causam real estranheza as mudanças advindas com a Lei n. 13.103/2015. Quando (688) Na redação dada pela Lei n. 12.619/2012, agora revogada, os parágrafos do art. 235-C que regulavam o tempo de espera tinham o teor seguinte: “§8º São consideradas tempo de espera as horas que excederem à jornada normal de trabalho do motorista de transporte rodovi- ário de cargas que ficar aguardando para carga ou descarga do veículo no embarcador ou destinatário ou para fiscalização da mercadoria transportada em barreiras fiscais ou alfandegárias, não sendo computadas como horas extraordinárias. § 9º.  As horas relativas ao período do tempo de espera serão indenizadas com base no salário-hora normal acrescido de 30% (trinta por cento).” Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 257 menos, provocam questionamentos inclementes: seria compatível com a máxima efetividade do direito fundamental ao repouso semanal remunerado o usufruto desse repouso como tempo em espera? E se há o gravame de esse descanso semanal ser interrompido pela necessidade de executar manobras no veículo, instrumento de trabalho? Acerca das viagens de longa distância, é de se indagar acerca de haver enfim a realização de sobrejornada quando o motorista permanece junto ao veículo, não por “autorização” ou permissão do empregador, mas por imposição deste, após cumprir sua jornada normal. Trata-se, ao que se nota, de tempo em que o motorista aguarda carga, descarga ou fiscalização de postos fiscais ou alfandegários além da sua jornada normal de oito horas. Ou de jornada que terá alcançado dez ou doze horas, a prevalecer o que preceitua a Lei n. 13.103/2015. Em princípio, esse tempo seria extraordinário e deveria ser remunerado com o adicional mínimo de 50%, porque assim imporia o art. 7º, XVI, da Constituição. A jornada de trabalho, truísmo é dizer, não se esgota no tempo em que o empregado executa tarefas manuais, pois compreende também aquele no qual o empregado permanece à disposição de seu empregador (acompanhando o carregamento ou descarregamento da carga que lhe foi confiada, por exemplo). Cabe esperar para saber se a jurisprudência endossará o critério legal ou resgatará, por entendê-lo destoante, o parâmetro constitucional. 10.2.4 Jornadas normais reduzidas – bancários, telefonistas, operadores cinematográ- ficos, mineiros, cabineiros de elevador, professores, advogados, aeronautas, técnicos em radiologia, artistas e músicos Está visto que a jornada normal do empregado não é, necessariamente, aquela delimitada pelo artigo 7o, XIII, da Constituição, podendo ser inferior à de oito horas quando assim prevista em contrato, norma coletiva ou lei. Havendo jornada reduzida, o tempo que a exceder deverá ser remunerado com o adicional de 50%. Podem ser enumeradas algumas categorias a que são asseguradas jornadas reduzidas, força de lei. Iniciando por aquelas beneficiadas no texto consolidado, podemos nos referir à categoria do bancário que não exerce cargo de confiança bancária(689), sendo de seis horas a sua jornada, conforme artigo 224 da CLT. Incluem-se nesse regime os empregados em empresas de crédito, financiamento e investimento(690) e em empresas de processamento de dados integrantes do mesmo grupo econômico, mas são excluídos os trabalhadores que, embora laborando em casas bancárias, integrem categorias profissionais diferenciadas(691) ou sejam empregados de empresas interpostas de vigilância(692). A jornada de seis horas é também prevista no artigo 227 da CLT, em favor dos operadores de serviço de telefonia, telegrafia submarina ou subfluvial, de radiotelegrafia ou de radiotelefonia, em empresas que explorem tais serviços e, bem assim, em favor das telefonistas de mesa em empresas que não os explorem, conforme recomenda a Súmula 178 do TST. Havia uma inicial resistência da jurisprudência em adotar a mesma jornada para os operadores de televendas (ou operadores de tele- marketing), mas a OJ 273 da SBDI-1, que consagrava essa restrição, foi cancelada em maio de 2011, revelando-se assim a tendência jurisprudencial de adotar para os operadores de televendas a jornada prevista no art. 227 da CLT(693). Por outro lado, a jurisprudência tem recusado a aplicação, por analogia, do artigo 227 da CLT ao operador de telex(694) e ao digitador(695). (689) Vide artigo 224, §2º, da CLT e Súmula 102, IV do TST. Exclusão dos caixas (Súmula 102, VI) e dos advogados empregados de banco (Súmula 102, V). Divisor 220 (Súmula 343). (690) Vide Súmula 55 do TST. (691) Vide Súmula 117 do TST. (692) Vide Súmula 257 do TST. (693) Nesse sentido: RECURSO DE REVISTA. HORAS EXTRAS. JORNADA DE TRABALHO. OPERADOR DE TELEMARKETING. A jurisprudência desta Corte, que antes era no sentido da não aplicação da regra do art. 227 ao operador de telemarketing, foi recentemente alterada com o cancelamento da OJ 273 da SBDI-1 do TST para sinalizar a duração de trabalho de seis horas diárias ou trinta e seis semanais, nos exatos termos do art. 227 da CLT, em favor do trabalhador que exerce citada função e não raro realiza, concomitantemente, os serviços de telefonia e digitação. Recurso de revista conhecido e não provido (TST, 6ª Turma, RR 9800-65.2008.5.15.0087, Rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 17/08/2011, Data de Publicação: 26/08/2011). (694) Vide orientação jurisprudencial n. 213 da SDI 1 do TST. (695) TST, 3ª Turma, RR 345391/97, Min. Carlos Alberto Reis de Paula, DJU 04.02.00. Fonte consultada: Revista do TST, Brasília, vol. 66, n. 1, jan/mar 2000, p. 345. 258 – Augusto César Leite de Carvalho O artigo 234 da CLT fixa em seis horas a jornada máxima dos operadores cinematográficos e seus ajudantes, autorizando o seu parágrafo único a prorrogação de citada jornada, visando a exibi- ções extraordinárias, somente quando concedido um intervalo de duas horas. O avanço tecnológico presente nas cabines de transmissão das atuais salas de cinema as diferencia daquelas que existiam à época em que surgiu a proteção sob exame, mas é certo que pouco se tem debatido a respeito da contemporaneidade de tal proteção. A jornada normal do trabalhador em mina de subsolo é, por igual, de seis horas, consoante reza o artigo 293 da CLT, incluindo-se nessa jornada alguns intervalos que, conforme já estudado (subitem 2.2.3), a integram. Além do caráter inóspito do ambiente subterrâneo, com ventilação e iluminação artificiais, a exposição a minerais insalubres – como a sílica, o carvão ou o sal – torna imprescindível a tutela concernente à redução do tempo nas lavras subtérreas. Também é de seis horas a jornada máxima do cabineiro de elevador, pois para tanto o protege a Lei n. 3.270, de 1957. O estado de confinamento em uma cabine, por longo tempo, faz atual essa proteção, sem embargo de rarear, isso sim, o ofício de cabineiro, ou ascensorista, ante a circunstância de os elevadores mais modernos serem de fácil manuseio e às vezes interativos, com instrução de seus usuários por meio de vozes e sinais que dispensam a ajuda de um condutor profissional. A condição de trabalho do professor se distingue, notadamente a partir das últimas séries do ensino fundamental, quando o exercente do magistério divide a sua jornada em aulas que ministra para alunos de diferentes instituições de ensino. Em relação a esse professor ou mesmo ao que ensina em um só estabelecimento escolar, o artigo 318 da CLT estatui que eles não poderão, a cada dia e em cada escola, dar mais de quatro aulas consecutivas, nem mais de seis aulas intercaladas. A jurisprudência tem enfatizado que o intervalo correspondente ao recreio dos alunos não basta para que as aulas se configurem intercaladas, sendo necessário, para tal, que haja realmente tempo vago e significativo entre uma e outra aula. O recreio se caracteriza, regra geral, como tempo à disposição do empregador(696). A jornada normal do advogado empregado é de quatro horas, com o limite de vinte horas por semana, salvo acordo ou convenção coletiva ou em caso de dedicação exclusiva(697), conforme dispõe o artigo 20 da Lei n. 8.906, de 1994. O artigo 12 do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB exige que a dedicação exclusiva seja prevista expressamente no contrato de emprego do advogado e, quanto aos advogados contratados antes da edição da Lei n. 8.906/1994, orienta a orientação jurisprudencial 403 da SBDI-1: “O advogado empregado contratado para jornada de 40 horas semanais, antes da edição da Lei n. 8.906, de 04.07.1994, está sujeito ao regime de dedicação exclusiva disposto no art. 20 da referida lei, pelo que não tem direito à jornada de 20 horas semanais ou 4 diárias”. Por sua vez, diferencia-se a jornada do aeronauta a depender de ele integrar uma tripulação mínima ou simples, composta ou, enfim, de revezamento, conforme previsto na Lei n. 7.183, de 1984. O aero- viário é, a seu turno, o trabalhador que, não sendo aeronauta, exerce função remunerada em servi- ços terrestres de empresas aéreas. A duração do trabalho do trabalhador aeroviário é a do empregado comum, como se pode notar à leitura do Decreto n. 1.232, de 1962, que regulamenta a citada profissão. Para técnicos em radiologia, o artigo 14 da Lei n. 7.394, de 1985, fixa jornada (rectius: carga horária) semanal de vinte e quatro horas. O artigo 11, §2o, dessa mesma lei, estende, no que couber, os direitos nela assegurados a auxiliares de radiologia que trabalham em câmara clara e escura(698). A nosso pensamento, o dispositivo que favorece os auxiliares de radiologia não terá eficácia se a carga horária semanal dos técnicos em radiologia não for, por seu intermédio, garantida aos citados auxiliares, dada a inviabilidade de compatibilizar com as funções dos auxiliares de radiologia os demais preceitos da lei em comento. É inviável que as leis se ressintam de palavras inúteis (verba (696) TST, 3ª Turma, RR 1864900-72.2008.5.09.0005, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, DEJT 10/10/2014; TST, 5ª Turma, RR 1775500-20.2006.5.09.0651, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, DEJT 05/12/2012. (697) Sobre o assunto, artigo de José Augusto Rodrigues Pinto em Revista LTr 59-02/159. Sobre dedicação exclusiva: Revista LTr 65-11/1365. (698) Câmara escura é aquela em cujo interior há vedação de luz natural, mas apenas luz de baixa intensidade, o suficiente para o manuseio e revelação das películas radiográficas (ou filmes radiográficos). A câmara clara é a área adjacente à câmara escura, onde técnicos e auxiliares manipulam as radiografias, nelas atuando antes e depois da revelação, sendo o local normalmente destinado à identificação das imagens radiográficas. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 259 cum effectu sunt accipienda). A jurisprudência parece seguir nessa direção de assegurar aos auxilia- res de radiologia que operam em câmaras claras e escuras a jornada reduzida prevista para os técni- cos de radiologia(699). Quanto a artistas e técnicos em espetáculos de diversão, a jornada será de seis horas, com limite de trinta horas semanais, para os que trabalham em radiodifusão, fotografia e gravação; no teatro, a jornada corresponderá ao tempo das sessões, limitadas estas ao número de oito por semana; no circo, a jornada deverá ser de seis horas, com limite de trinta e seis horas por semana; na dublagem, será a jornada de seis horas, com limite de quarenta horas por semana. Assim dispõem as alíneas do artigo 21 da Lei n. 6.533, de 1978. O músico cumpre jornada de cinco horas, que pode ser prorrogada, com remuneração dobrada, por mais uma hora nos estabelecimentos de diversões públicas e por mais duas horas nos casos de força maior ou festejos populares e serviço reclamado pelo interesse nacional, tudo em consonância com os artigos 41 e 42 da Lei n. 3.857, de 1960. Há profissões que, embora regulamentadas em alguns de seus aspectos, não estão regidas por lei específica no tocante à jornada de trabalho. É possível exemplificar: sujeitam-se, como os emprega- dos em geral, à carga horária prevista no artigo 7o, XIII, da Constituição e aos ditames da Consolidação das Leis do Trabalho, os atletas profissionais de futebol(700), os médicos(701) e os engenheiros(702). O marítimo também tem jornada de oito horas, mas a intermitência de seu trabalho autoriza a divisão da jornada em quartos(703) de pelo menos uma hora e no máximo quatro horas, sendo os intervalos de no mínimo quatro horas, tudo em consonância com o artigo 248, §§ 1o e 2o, da CLT. 10.2.5 Compensação de jornadas. Banco de horas e fonte do direito A única hipótese em que o labor prestado além da oitava hora diária não deve ser remunerado com o adicional de 50% é aquela em que se dá a compensação de jornada, autorizada por acordo ou convenção coletiva de trabalho. Bem entendido, a compensação de jornada se revela quando o excesso de horas em um dia é compensado pela correspondente diminuição em outro dia. Exemplo típico de compensação de jornada é a semana inglesa, em que as horas que seriam de trabalho aos sábados são distribuídas em meio aos demais dias da semana. Assim, a semana de trabalho tem quarenta e quatro horas, mas repartidas pelos cinco primeiros dias úteis, ou seja, de segunda a sexta-feira. Era esse o módulo semanal de compensação, o único possível até o advento da Lei n. 9.601, de 21/1/98, que alterou o artigo 59, §2o da CLT e lhe acrescentou o §3o, sucedendo-se nova alteração nesse dispositivo celetista até que alcançasse ele sua atual redação: Art. 59, §2o: Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de 1 (um) ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previs- tas, nem seja ultrapassado o limite máximo de 10 (dez) horas diárias. Art. 59, §3o: Na hipótese de rescisão do contrato de trabalho sem que tenha havido a compensação integral da jornada extraordinária, na forma do parágrafo anterior, fará o trabalhador jus ao pagamento das horas extras não compensadas, calculadas sobre o valor da remuneração na data da rescisão. Inovou-se, dessa maneira, o módulo anual de compensação de jornada, que os intérpretes do trabalho logo intitularam banco de horas. Cuida-se da possibilidade de acordo ou convenção coletiva de trabalho permitir que o empregado cumpra jornada superior à de oito horas – o que se dá, normal- mente, em período de maior demanda dos bens produzidos ou serviços prestados pela empresa –, (699) Nesse sentido: TST, 3ª Turma, RR 41300-14-2003-5-04-0029, Rel. Min. Horácio de Senna Pires, DEJT de 26.02.2010; TST, 6ª Turma, RR 1504500-64.2005.5.09.0008, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, DEJT 18.11.2011. (700) Vide Lei n. 6.354, de 1976. (701) Vide Súmula 370 do TST: “Tendo em vista que as Leis ns. 3.999/1961 e 4.950/1966 não estipulam a jornada reduzida, mas apenas esta- belecem o salário mínimo da categoria para uma jornada de 4 horas para os médicos e de 6 horas para os engenheiros, não há que se falar em horas extras, salvo as excedentes à oitava, desde que seja respeitado o salário mínimo/horário das categorias”. (702) Vide texto da Súmula 370, na nota de rodapé anterior. (703) Em linguagem náutica, quarto de modorra significa o segundo quarto da noite, em que o sono se torna mais pesado, quase invencí- vel; quarto de prima, o primeiro quarto da noite. Em linguagem castrense, quarto de sentinelas são as duas horas por que se estende, pelos regulamentos militares, cada vigília das sentinelas. 260 – Augusto César Leite de Carvalho compensando esse tempo excedente com a diminuição proporcional das horas de trabalho em perío- dos de demanda reprimida, desde que essa compensação se dê no prazo máximo de um ano. Havendo dissolução do contrato antes de o empregado ter reduzida a sua jornada, para compensar as horas excedentes que já prestou, a sobrejornada é remunerada como hora extra, com o adicional de 50%. Ao menos três notas são necessárias, ao exame desse módulo anual de compensação de jornada. A primeira nota é alusiva à ruptura de um padrão de conduta que era tradicional no direito do trabalho, dizendo respeito à remuneração do trabalho até o início do mês subsequente ao da prestação laboral, em conformidade com o artigo 459 da CLT. No novo (entre nós, brasileiros) módulo anual, a hora de trabalho, que será compensada até um ano depois de prestada, não é remunerada desde logo, o que tem inspirado no trabalhador a angustiante sensação de que está a laborar sem receber a contra- prestação salarial. A hora excedente será remunerada quando compensada, convertendo-se em hora extraordinária, devida com o adicional de 50%, se não o for e o contrato se dissolver. Uma segunda nota importante é relativa à circunstância de o citado dispositivo não regular a hipótese em que o empregado já teve reduzida a sua jornada, pois ingressou na empresa em período de menor atividade econômica, mas o seu contrato se dissolveu antes de ele prestar sobrejornada que compensasse as horas sem trabalho. Nessa hipótese, que é inversa à prevista em lei (artigo 59, §3o, da CLT), entendemos que nada deverá o empregado se o contrato se dissolver sem sua culpa ou iniciativa, pois o risco da atividade econômica é do empregador. Caso o empregado se demita ou provoque a sua dispensa com o mal disfarçado objetivo de não compensar a redução de jornada, pare- ce-nos razoável exigir do empregado a remuneração das horas de trabalho que não prestou. O tema ainda é pouco explorado, porém, nas arengas judiciais. A última nota é concernente à espécie normativa que pode permitir a compensação de jornada. Bastaria o ajuste individual, entre empregado e empregador, sem a participação do sindicato que repre- senta a categoria profissional? Sendo afirmativa a resposta, estaremos a aquiescer com a conduta de empregador inescrupuloso que, mantendo alta rotatividade entre os seus empregados, todos com contrato de curta duração, poderia obter, no processo admissional e protegido pela ameaça de desem- prego que ronda a vida social, a concordância expressa do empregado no sentido de que toda a sua sobrejornada seria compensada em até um ano. Ao final do breve contrato, pagaria as horas exceden- tes como horas extraordinárias e teria, assim, adiado a remuneração de tais horas por vários meses... Cristalizou-se, por isso, a jurisprudência no sentido de somente se permitir a compensação de jornadas mediante ajuste individual, nos moldes da Súmula 85 do TST, quando a compensação se opera nos limites do módulo semanal, exigindo-se a negociação coletiva de trabalho nos casos em que a compensação de jornada se dá mediante banco de horas. Na esteira de vários julgados do Tribunal Superior do Trabalho que seguiam esse entendimento(704), acresceu-se o item V à Súmula 85: “As disposições contidas nesta súmula não se aplicam ao regime compensatório na modalidade ‘banco de horas’, que somente pode ser instituído por negociação coletiva”. Quanto à limitação, imposta pelo artigo 59, §2o, da CLT, de não ser, em qualquer regime de compensação, ultrapassado o máximo de dez horas diárias, o Tribunal Superior do Trabalho, ao menos no que toca ao regime 12 x 36 (doze horas de trabalho por trinta e seis horas de descanso), preferiu enfatizar a autoridade da norma coletiva, em detrimento da norma legal, sempre com esteio no artigo 7o, XIII, da Constituição. A ementa seguinte é disso expressiva: HORAS EXTRAS. ACORDO DE COMPENSAÇÃO. VALIDADE DO REGIME DE 12 POR 36 HORAS. Tendo em vista o disposto no art. 7º, XXVI, da Lei n. Maior, a autonomia da negociação coletiva deve prevalecer de forma a valorizar a negociação entre os representantes das categorias defendidas. Por outro lado, o art. 7º, XIII, da Carta Política faculta a compensação de horário, mediante acordo ou convenção coletiva, sem impor quaisquer limitações. Assim, combinando os incisos supracitados, deve prevalecer o instrumento coletivo celebrado entre as partes, que estipulou o regime de revezamento de 12 horas trabalhadas por 36 de descanso. Ademais, o art. 59, §2º, da CLT, que dispõe sobre a faculdade de prorrogação da jornada normal de trabalho, mediante acordo de compensação, desde que não ultrapasse o limite de dez horas, refere-se, expressamente, às jornadas diárias, enquanto que, no regime de revezamento de 12 por 36 horas, a prorrogação não é diária, pois existe período de 36 horas para descanso. Revista conhecida e provida (705) (704) Nesse sentido as seguintes decisões da SBDI-1: E-RR 3100-06.2005.5.09.0068, E-RR 191300-34.2001.5.02.0261, E-RR 2113700- 10.2002.5.12.0900. (705) TST, 5ª Turma, RR-346.292/97, Rel. Juiz Convocado Levi Ceregato, DJU 17.12.99. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 261 Vários anos depois desse precedente, editou-se a Súmula 444 do TST, consagrando-se definiti- vamente a orientação segundo a qual o regime 12 x 36 pode ser estabelecido, desde que o seja por negociação coletiva. Assim está redigido o citado verbete: SÚMULA 444 – Jornada de trabalho. NORMA COLETIVA. LEI. Escala de 12 por 36. Validade. É valida, em cará- ter excepcional, a jornada de doze horas de trabalho por trinta e seis de descanso, prevista em lei ou ajustada exclusivamente mediante acordo coletivo de trabalho ou convenção coletiva de trabalho, assegurada a remune- ração em dobro dos feriados trabalhados. O empregado não tem direito ao pagamento de adicional referente ao labor prestado na décima primeira e décima segunda horas. Em verdade, a mencionada súmula permitiu que não somente a vontade coletiva, mas também as leis stricto sensu pudessem estabelecer o regime 12 x 36. É o caso, por exemplo, da Lei n. Comple- mentar n. 150/2015 – que autoriza o regime 12 x 36 no emprego doméstico desde que ajustado por acordo escrito – e também de leis municipais que podem consagrar tal regime, ainda que em nada expressem a vontade da categoria específica de trabalhadores. Ainda quanto ao emprego doméstico, o art. 2º da LC n. 150/2015 consente que o empregado doméstico e seu empregador ajustem a compensação de jornadas, desde que o façam por escrito (§4º). Desse modo, o trabalho além da oitava hora diária pode ser compensado em outro dia, esta- belecendo o §5º do mencionado dispositivo que as primeiras quarenta horas excedentes devem ser compensadas no mesmo mês em que prestadas e as horas de trabalho que extrapolem esse limite – ou seja, a partir da quadragésima primeira hora excedente – devem ser compensadas em até um ano. 10.2.6 Turnos ininterruptos de revezamento Entre os direitos sociais, de índole trabalhista, fundados na Constituição, está a “jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva”. Assim dispõe o artigo 7o, XIV, da Carta Magna. A expressão turnos ininterruptos de revezamento deve ser compreendida como aquela a encerrar o labor sem interrupção, ressalvados os intervalos legais, e em sistema de rodízio, de modo a não sofrer solução de continuidade em meio às vinte e quatro horas de todos os dias. Embora haja, comumente, a menção à continuidade da atividade econômica, interessa, particularmente, a continuidade do serviço executado pelo empregado, na empresa, por todas ou quase todas as horas de todos os dias(706). Em escrito anterior, vínhamos sustentando, com o respaldo de doutrina e jurisprudência conver- gentes(707), que o regime de turnos ininterruptos de revezamento se descaracterizaria quando fossem interrompidos por algumas horas de inatividade ou quando houvesse horas de trabalho, diurnas ou noturnas, em que o empregado não trabalhasse. Mas nos parece que o Tribunal Superior do Trabalho tem razão quando se posiciona de modo diferente e assim atende mais amplamente ao desígnio cons- titucional, fazendo-o por meio da Orientação Jurisprudencial n. 360 da SBDI-1 do TST: Turno ininterrupto de revezamento. Dois turnos. Horários diurno e noturno. Caracterização. Faz jus à jornada especial prevista no art. 7o, XIV, da CF/1988 o trabalhador que exerce suas atividades em sistema de alternân- cia de turnos, ainda que em dois turnos de trabalho, que compreendam, no todo ou em parte, o horário diurno e o noturno, pois submetido à alternância de horário prejudicial à saúde, sendo irrelevante que a atividade da empresa se desenvolva de forma ininterrupta. Com esteio em tal entendimento, o empregado se submete a esse regime especial quando os seus turnos de trabalho se alternam entre turnos diurnos e noturnos, de maneira a que o seu relógio biológico e a sua saúde enfim possam ser virtualmente abalados por sistema de revezamento que não considera a predisposição orgânica para o sono em horários regulares e preferencialmente noturnos. Em suma, configura-se o regime de turnos ininterruptos de revezamento pela presença de dois aspec- tos: a sujeição a regime de revezamento e a presença de turnos diurnos e noturnos. Havendo turnos ininterruptos de revezamento, a prorrogação da jornada normal – de seis horas – é possível somente por meio de negociação coletiva de trabalho. É vedado ao legislador infraconstitucional (706) Os vigilantes de uma fábrica podem trabalhar, em turnos ininterruptos de revezamento, mesmo quando a fábrica está inativa, à noite. (707) MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2001. p. 463. O autor afirma secundar Amauri Mascaro Nasci- mento. Ainda sobre a descaracterização dos turnos ininterruptos de revezamento quando o empregado não trabalha em todos os turnos: TST-ERR-337610/97 – SBDI-1 – Rel. Min. José Luiz Vasconcellos – DJU 6.10.2000. Fonte consultada: Revista do Tribunal Superior do Trabalho 67/1, p. 407. 262 – Augusto César Leite de Carvalho imiscuir-se no assunto, pois está ele reservado, apenas, à vontade dos atores sociais. A jurisprudên- cia vem enfatizando, inclusive, que a prorrogação não imorta a autorização par a prestação de horas extraordinárias, pois o que se alarga é a própria jornada normal, em vista da especificidade das condi- ções de trabalho. A Súmula 423 do TST assim o diz: Estabelecida jornada superior a seis horas e limitada a oito horas por meio de regular negociação coletiva, os empregados submetidos a turnos ininterruptos de revezamento não têm direito ao pagamento das 7a e 8a horas como extras. A doutrina e a jurisprudência mal disfarçam, contudo, a dificuldade, que emergiu a partir da neces- sidade de se dar efetividade à norma constitucional, de solucionarem três questões jurídicas: a) como compatibilizar a meia-expressão turnos ininterruptos com a regra celetista de que a jornada excedente de quatro horas deve conter intervalo de quinze minutos, sendo de uma a duas horas o intervalo devido em meio a jornadas de mais de seis horas (artigo 71 da CLT); b) a dúvida sobre ainda viger o regime de trabalho previsto para a indústria petroquímica (Lei n. 5811/72), com turnos de revezamento de oito ou até doze horas, sem autorização em norma coletiva; c) como conciliar os turnos de seis horas com a redução ficta da hora noturna (artigo 73, §1o, da CLT). Analisemos cada uma dessas questões, indicando a orientação jurisprudencial prevalecente. 10.2.6.1 Os intervalos em turnos ininterruptos de revezamento A palavra turno não tem o mesmo significado de jornada, pois é qualquer das subdivisões desta. O artigo 412 da Consolidação das Leis do Trabalho estatui, por exemplo e em favor do menor, que “após cada período efetivo, quer contínuo, quer dividido em 2 (dois) turnos, haverá um intervalo de repouso, não inferior a 11 (onze) horas”. Num outro viés, é válido trazer à lembrança que turnar, em espanhol, significa revezar, sendo comum, entre os latinos, a referência a turno para mencionar uma das turmas que se revezam. A interpretação do artigo 7o, XIV, da Constituição não pode desprezar as duas tendências semânticas. Se há jornada de seis horas no trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, desso- me-se que os turnos (e não as jornadas) é que são ininterruptos (a) e que se revezam as turmas ou turnos entre si (b). Logo, a jornada não poderia, no caso, ser dividida em turnos. Houvesse a intenção de regular a sucessão de jornadas, com intervalo interno e em sistema de rodízio, decerto o texto cons- titucional faria alusão a jornadas ininterruptas de revezamento. Tentando resgatar a origem da expressão, Arnaldo Sussekind(708) reproduziu, um mês depois de ser editada a Carta de 05/out/88, parte do debate havido entre os constituintes, na Comissão de Siste- matização. O relator da matéria era o constituinte Bernardo Cabral e se manifestaram os constituintes Israel Pinheiro, Luís Roberto Ponte, Domingos Leonelli, Virgidásio de Senna e Mário Lima, conver- gindo todos quanto ao fato de o novo preceito constitucional assegurar jornada de seis horas para trabalhadores que cumprissem períodos de trabalho em seis horas ininterruptas. É essa a conclusão de Sussekind e, num outro artigo, também a de Octavio Bueno Magano(709). Tudo não obstante, a jurisprudência reagiu à faculdade, que se outorgava ao empregador, de cobrar jornadas de até seis horas sem intervalo, num claro retrocesso em relação à regra inserta no artigo 71 da CLT. Assim, o Tribunal Superior do Trabalho editou o enunciado 360 da súmula de sua jurisprudência: A interrupção do trabalho destinada a repouso e alimentação, dentro de cada turno, ou o intervalo para repouso semanal, não descaracteriza o turno de revezamento com jornada de 6 (seis) horas previsto no art. 7o, XIV, da Constituição da República de 1988. Também o Supremo Tribunal Federal adotou, por maioria expressiva de votos(710), o entendimento de que a concessão de intervalo de quinze minutos dentro da jornada de seis horas, nas empresas que operam em turnos ininterruptos de revezamento durante as vinte e quatro horas do dia, não descarac- teriza o sistema previsto no artigo 7o, XIV, da Constituição(711). (708) SÜSSEKIND, Arnaldo. Jornada de trabalho em turnos de revezamento. Revista LTr 52-11/1327, São Paulo, ano 52, novembro 1988. (709) MAGANO, Octavio Bueno. Turnos ininterruptos de revezamento. Revista LTr 53-6/653, São Paulo, ano 53, junho 1989. (710) Dez votos contra um, do Ministro Carlos Mário Velloso. (711) Ao apreciar o RE 205815 (Sessão de 4-12-97). No mesmo sentido: RTJ 173/945 (RE 208118). Às vezes, o caráter ininterrupto é asso- ciado à atividade empresarial e não ao trabalho individual do empregado (decisão do STF, nesse sentido, na Revista LTr 62-09/1210), sem Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 263 10.2.6.2 A sobrevigência da Lei n. 5.811/72 A Lei n. 5.811, de 1972, dispõe sobre o regime de trabalho dos empregados nas atividades de explo- ração, perfuração, produção e refinação de petróleo, industrialização do xisto, indústria petroquímica e transporte de petróleo e seus derivados por meio de dutos. A citada lei autoriza o trabalho em turnos ininterruptos de revezamento de oito e de doze horas, restringindo esse último, o turno de doze horas, às atividades de exploração, perfuração, produção e transferência de petróleo no mar, bem como às ativida- des de exploração, perfuração e produção de petróleo em áreas terrestres distantes ou de difícil acesso. Tanto no regime de oito horas quanto no de doze horas, o empregado pode ser obrigado a estar dispo- nível, no local de trabalho ou em suas proximidades, durante o intervalo reservado a repouso e alimentação, sendo-lhe garantido o direito, em contrapartida, de receber alimento gratuito e a remuneração em dobro da hora de repouso e alimentação(712). Sendo o regime o de oito horas, ao empregado assiste o repouso de vinte e quatro horas consecutivas para cada três turnos trabalhados; no regime de doze horas, a proporção é de vinte e quatro horas consecutivas de repouso para cada turno de trabalho(713). Há, portanto, um regime especial de trabalho na atividade petrolífera. A questão vexatória é, pois, concernente à possibilidade de o regime especial, regulado pela Lei n. 5.811/72, não ter sido recepcio- nado pela ordem constitucional em vigor. O dissenso é essencialmente jurídico e nos remete à contro- vérsia sobre a prevalência do critério da hierarquia ou o da especialidade quando estão em conflito uma norma geral superior e uma norma especial de menor grau hierárquico. Refletindo sobre o tema, Norberto Bobbio não esconde a sua perplexidade, a dificuldade de pôr cobro a uma antinomia jurídica de tal ordem, ao afirmar: O caso mais interessante de conflito é [...] aquele que se verifica quando entram em oposi- ção não mais um dos dois critérios fortes (hierárquico e de especialidade) com o critério fraco (o cronológico), mas os dois critérios fortes entre si. É o caso de uma norma superior-ge- ral incompatível com uma norma inferior-especial. (...) Qual dos dois critérios se deve apli- car? Uma resposta segura é impossível. Não existe uma regra geral consolidada. A solução dependerá também, neste caso, como no da falta de critérios, do intérprete, o qual aplicará ora um ora outro critério segundo as circunstâncias. A gravidade do conflito deriva do fato de que estão em jogo dois valores fundamentais de todo ordenamento jurídico, o do respeito da ordem, que exige o respeito da hierarquia e, portanto, do critério da superioridade, e o da justiça, que exige a adaptação gradual do Direito às necessidades sociais e, portanto, respeito do critério da especialidade. Teoricamente, deveria prevalecer o critério hierárquico: se se admitisse o princípio de que uma lei ordinária especial pode derrogar os princípios constitucionais, que são normas generalíssimas, os princípios fundamentais de um orde- namento jurídico seriam destinados a esvaziar rapidamente de qualquer conteúdo. Mas, na prática, a exigência de adaptar os princípios gerais de uma Constituição às sempre novas situações leva frequentemente a fazer triunfar a lei especial.(714) Embora seja outra a orientação que atualmente prevalece na jurisprudência, entendemos que não se deveria olvidar o fato que o poder constituinte quis regulado. Com tal propósito e após examinar os deba- tes que precederam a votação do dispositivo constitucional sob foco, observou Arnaldo Sussekind(715): A imediata e plena vigência do questionado inciso XIV determina, por incompatibilidade, a revogação das disposições da aludida Lei n. 5.811 sobre o tema. É que esse diploma legal de 1972 teve por finalidade exclusiva possibilitar a adoção de turnos ininterruptos de oito ou doze horas, em escalas de revezamento, nas atividades que relacionou. As prestações por ele instituídas em favor dos empregados correspondiam a compensações pela penosidade do trabalho sem intervalo em jornadas superiores às recomendadas e generalizadas; foram vinculadas e condicionadas à prestação de serviços, sem interrupção, em longas jornadas embargo de o preceito sob análise não se referir, textualmente, a turnos de revezamento em atividade empresarial ininterrupta. (712) Vide artigos 2º, §2º e 3º, II e III, da Lei n. 5.811/72. (713) Vide artigos 3º, V e 4º, II, da Lei n. 5.811/72. (714) BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: Editora UnB, 1997, p. 108. (715) SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANA, Segadas. Instituições de Direito do Trabalho. Atualização de Arnaldo Sussekind e João de Lima Teixeira Filho. Vol. II. São Paulo: LTr, 1993. p. 719. Em igual sentido, Sergio Pinto Martins (op. cit. p. 462). 264 – Augusto César Leite de Carvalho de trabalho. Ora, foi precisamente esse regime de jornadas ininterruptas em turnos de reve- zamento que a Assembleia Nacional Constituinte quis extinguir, ressalvada a hipótese de ser estipulado em negociação coletiva. Com efeito, os constituintes verbalizaram mesmo a clara intenção de impor o turno de seis horas para o trabalho na indústria petroquímica(716). Optam os tribunais trabalhistas, contudo, por privilegiar o critério da especialidade, como se pode extrair de julgamento recente da SBDI-1 do TST(717): A Lei n. 5.811/72 cuida de uma situação específica, ou seja, de empregados da indústria petroquímica e transporte de petróleo e seus derivados e plataforma. Veio para regular as condições de trabalho dos petroleiros e daqueles que laboram em plataformas marinhas, concedendo-lhes vantagens, como repouso de 24 (vinte e quatro) horas após o trabalho em regime de revezamento em turno de doze horas, entre outros, previstos nos incisos I, II, III e IV do artigo 3o da referida Lei. Com a edição da referida lei, os petroleiros e trabalhadores afins obtiveram sensível melhora das condições de trabalho a que, até então, estavam sujeitos. Não é aceitável a tese de que a Constituição Federal tenha revogado a legislação especial da categoria, impondo-lhe normas gerais previstas para todos os trabalhadores, como é o caso do artigo 7o, incisos XIII e XIV, da Constituição da República, visto que, sem sombra de dúvida, a Lei n. 5811/72 é mais favorável à classe dos petroleiros e trabalhadores afins. Quando a Constituição Federal adentrou por todos os campos do Direito do Trabalho, estabeleceu de forma genérica, sem violentar aquilo que o legislador já o expressara de forma determinada. Recurso de Embargos não conhecido. Seguindo essa trilha, a Súmula 391, I, do TST proclamou, enfim, a ultra-atividade da Lei n. 5.811, de 1972: “A Lei n. 5.811/72 foi recepcionada pela CF/88 no que se refere à duração da jornada de trabalho em regime de revezamento dos petroleiros”. 10.2.6.3 A redução da hora noturna no sistema de turnos ininterruptos de revezamento Ao estudarmos o adicional noturno, em capítulo de nosso curso dedicado à remuneração do trabalhador, notamos que a jurisprudência se mostrou inicialmente indecisa sobre ser compatível a redução ficta da hora noturna com a jornada prevista para os turnos ininterruptos de revezamento. Reiteramos, assim, a ementa que deu maior projeção à quizila jurídica: O trabalho em turnos ininterruptos de revezamento não se compatibiliza com o cômputo da jornada noturna como reduzida, uma vez que supõe a fixação de 4 turnos de 6 horas para cobrir as 24 horas do dia. Se fosse compu- tada a jornada noturna reduzida, seria impossível fechar o quadro de 4 turnos, pois aquele que correspondesse à jornada noturna seria menor e descompassaria os demais. Revista provida em parte. (718) A decisão do Tribunal Superior do Trabalho evidencia a inteligência e o raciocínio lógico dos que a proferiram, compondo a sua Quarta Turma. Mas se expõe a um ponto crítico, que revela as antinomias em que incorre, sem querer, a experiência jurídica. É que os intervalos de pelo menos quinze minutos – os quais, consoante externamos, não descaracterizam os turnos ininterruptos de revezamento – se somam às jornadas de seis horas, acrescentando mais sessenta minutos (ou uma hora) ao final dos quatro turnos de trabalho(719). Logo, o dia com quatro turnos, de seis horas e quinze minutos cada, precisa ter vinte e cinco horas(720). O turno ininterrupto de revezamento que seja inteiramente noturno deverá ter somente cinco horas e quinze minutos, computando-se a redução ficta da hora noturna (1 hora convencional = 52 min 30 seg)(721). Portanto, a Súmula 360 do TST, que mantém a exigência de intervalo para empregados que trabalham em turnos ininterruptos de revezamento, faz renascer a coerência sistêmica, a compa- tibilidade entre a jornada de seis horas dos turnos ininterruptos de revezamento e a redução ficta da hora noturna, prevista no artigo 73, §1o, da CLT. Restava esperar as novas investidas da jurisprudência trabalhista e ela não tardou a reagir, conforme se extrai da orientação jurisprudencial n. 395 da SBDI-1: O trabalho em regime de turnos ininterruptos de revezamento não retira o direito à hora noturna reduzida, não havendo incompatibilidade entre as disposições contidas nos arts. 73, § 1º, da CLT e 7º, XIV, da Constituição Federal. Aplica-se, portanto, a redução ficta da hora noturna quando há trabalho em turnos ininterruptos de revezamento. (716) Na transcrição dos diálogos, levada a efeito por Sussekind (Revista LTr 52-11/1327), nota-se que os constituintes Virgidásio de Senna e Mário Lima enfatizam a adoção da jornada de seis horas na indústria petroquímica. (717) TST, SBDI-1, ERR 359979/97, Min. Carlos Alberto Reis de Paula, DJ 22.06.01, p. 306. (718) TST, RR 347763/97-9, Ac. 4a T., 20/9/2000, Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho, Revista LTr 65-01/42. (719) [4 turnos x (6 h + 15 min) = 24 horas + 60 minutos] (720) [6,25 horas x 4 = 25 horas] (721) [5 h 15 min = 315 min : 52,5 min = 6 horas noturnas] Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 265 10.2.7 Trabalhadores não protegidos pela norma regente da duração do trabalho Quando a Constituição de 1988 previu a jornada máxima de oito horas, salvo compensação de jornada, sustentou-se que o seu art. 7º, XIII não ressalvava qualquer categoria ou espécie de trabalha- dores e, por isso, não teria fundamento de validade o art. 62 da Consolidação das Leis do Trabalho, cujo preceito excluía da proteção assegurada em todo o capítulo que trata da duração do trabalho os empregados que prestam serviço externo incompatível com a fixação de horário de trabalho e os gerentes, com poder de gestão, além dos diretores e chefes de departamento ou filial. Mas a tese da derrogação do art. 62 da CLT pelo art. 7º, XIII, da Constituição não teve maior ressonância, porque logo se percebeu a incompatibilidade entre os dispositivos que tratam de limita- ção de carga horária com a realidade de trabalhadores que autodeterminam seu tempo de trabalho, as horas de labor e de descanso. Em verdade, a lei e os juízes, predominantemente, admitem ser válido e eficaz o art. 62 da CLT nessa medida: estão sem a proteção do capítulo da CLT que trata da duração do trabalho os exer- centes de cargo de confiança e os empregados que prestam serviço externo, desde que uns e outros tenham absoluto controle dos dias e horas em que trabalham. Da parte do legislador, sobreveio o parágrafo único do art. 62 da CLT para explicitar que não têm tal proteção os gerentes, diretores e chefes que recebem salário do cargo de confiança ou gratificação não inferior ao limite percentual (40%) estabelecido pelo parágrafo único do citado artigo. Da parte dos juízes, basta ver o que preconiza a Súmula 287 do TST: A jornada de trabalho do empregado de banco gerente de agência é regida pelo art. 224, § 2º, da CLT. Quanto ao gerente-geral de agência bancária, presume-se o exercício de encargo de gestão, aplicando-se-lhe o art. 62 da CLT. Nota-se que o verbete não faz alusão ao aspecto de o gerente geral determinar sua própria jornada, presumindo que assim se passa pela circunstância de o gerente geral ser um alto-empregado. Em situações limítrofes, quando há dúvida sobre o empregado que foi classificado pela empresa como gerente geral estar mesmo enquadrado na exceção do art. 62 da CLT, a SBDI-1 tem associado o tema à capacidade de o trabalhador definir a própria carga horária(722). Parece-nos que, em se tratando de norma gravosa para o empregado, o parâmetro não poderia ser outro. Quanto ao trabalhador que presta serviço externo, não pode ele pleitear horas extras e noturnas ou dobras de domingos e feriados apenas se labora em condições que lhe permitem autodeterminar (722) Nesse sentido: RECURSO DE EMBARGOS INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI N. 11.496/2007 – HORAS EXTRAORDINÁRIAS – GERENTE GERAL DE AGÊNCIA BANCÁRIA – DECISÃO RECORRIDA QUE AFASTA A EXISTÊNCIA DE PODERES DE GESTÃO COM FULCRO NA PROVA CARREADA AOS AUTOS – COMPROVAÇÃO DE CONTROLE DE JORNADA DE TRABALHO DO GERENTE – INESPECIFICIDADE DA SÚMULA N. 287 DO TST NÃO VERIFICADA. A Turma de origem manteve a condenação do reclamado ao pagamento de horas extraordinárias ao gerente geral de agência, uma vez que a prova testemunhal carreada aos autos demons- trou que havia controle de horário durante o exercício da função de gerente pela reclamante, que estava submetida ao registro da folha de ponto. Sendo assim, afastou a violação do inciso II do art. 62 da CLT e a contrariedade à Súmula n. 287 do TST. Diante dessas premissas fáticas, insuscetíveis de reapreciação em sede extraordinária, não há como se vislumbrar atrito com a Súmula n. 287 do TST, que trata da presunção juris tantum dos poderes de gestão do gerente geral de agência, que, no caso, restou afastada pela prova produzida nos autos. O referido verbete sumular mostra-se, inclusive, inespecífico ao caso dos autos, pois trata apenas da presunção relativa dos poderes de gestão, enquanto que a decisão regional, mantida pela Turma de origem, foi proferida com base na prova testemunhal, que afastou essa presun- ção. Incidência da Súmula n. 296 do TST. Recurso de embargos não conhecido (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-ED-RR 48000-86.2005.5.04.0303, Relator Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Data de Julgamento: 06/09/2012, Data de Publi- cação: 14/09/2012). Ou ainda: RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. BANCÁRIO. HORAS EXTRAS. CARGO DE CONFIANÇA. CARACTERIZAÇÃO. GERENTE DE AGÊNCIA OU GERENTE-GERAL DE AGÊNCIA. 1 – Mostra-se imprópria a alegação de ofensa ao art. 62, II, da CLT em decorrência da redação do art. 894, II, da CLT conferida pela Lei n. 11.496/2007, que excluiu das hipóteses de cabimento dos embargos a violação a preceito de lei. 2 – De acordo com entendimento desta SBDI-1, expresso, entre outros, no julgamento do E-ED-RR-190240-51.2003.5.05.0009, Rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho, DEJT 18/5/2012, pode o bancário ser enquadrado como gerente-geral de agência ainda que detenha poderes de mando e gestão com certas limitações, embora se revele crucial que este empregado não esteja sujeito a controle de jornada. No caso, a Turma deixou assentado que a Corte de origem reconhecera o exer- cício pelo reclamante do cargo de gerente bancário enquadrado na hipótese do art. 224, § 2.º, da CLT e não do art. 62, II, da CLT, apesar de denominado gerente-geral, sendo enfática ao aludir que ele auferia remuneração em valor inferior ao do gerente adjunto, não detinha poder para sozinho efetuar liberação de créditos, não tinha como subordinados os outros gerentes e ostentava, pela procuração firmada, os mesmos poderes do gerente adjunto e de outro bancário indicado pela administração da agência. Entretanto, nada foi mencionado acerca da existência ou não de controle de jornada. Sendo o Tribunal Regional soberano na análise dos fatos e provas, tal como referido na decisão ora embargada, a conclusão acerca de eventual contrariedade à Súmula 287 do TST só seria alcançada mediante reexame do contexto fático e probatório dos autos, tarefa de que não se ocupa a instância extraordinária, nos termos da Súmula 126 do TST. Em vista disso, inviável o reconhecimento de contrariedade à Súmula 287 do TST. [...] Recurso de embargos não conhecido (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 75200-97.2003.5.04.0025, Relatora Ministra Delaíde Miranda Arantes, Data de Julgamento: 16/08/2012, Data de Publicação: 24/08/2012). 266 – Augusto César Leite de Carvalho o seu tempo de trabalho, pois o fazem insusceptível a controle. Esse entendimento tem permitido relevar, inclusive e por sua desimportância, o elemento formal exigido no art. 62, I, da CLT, qual seja, a anotação de que há labor externo incompatível com o controle de jornada – que é uma condição especial de trabalho – na CTPS(723). A premissa válida é, portanto, a da incompatibilidade entre o limite constitucional da jornada e o fato de a jornada ser determinada pelo próprio trabalhador. Se o empregado que presta serviço externo recebe uma carga de trabalho que o obriga a cumprir jornada extenuante, ou tem o seu horário de algum modo controlado pelo empregador, está ele imune à norma excludente e, por isso, pode pleitear os adicionais gerados pelo labor em sobretempo ou à noite. O gerente que cumpre carga horária pode pleitear, igualmente, o adicional que incide sobre o tempo excedente da jornada preordenada pelo empregador. 10.3 Intervalos intrajornadas e interjornadas O intervalo intrajornada é aquele que se situa dentro da jornada de trabalho, em meio a ela. Há, ainda, os intervalos interjornadas, vale dizer, entre as jornadas de trabalho. Para o empregado que labora das 8 às 12h e das 14 às 18h, o seu intervalo intrajornada se estende das 12 às 14h, coincidindo com o seu horário de almoço. Por sua vez, o primeiro intervalo interjornada se inicia, no caso, às 18h e termina às 8h da manhã seguinte, com a sua volta ao trabalho. No exemplo dado, outros intervalos interjornadas corresponderiam, certamente, ao repouso semanal, ao descanso em feriados e nos períodos de férias. Vamos por partes. 10.3.1 Intervalos intrajornadas Quando examinamos os critérios especiais de fixação da jornada, pudemos observar que há intervalos intrajornadas que, em caráter excepcional, integram-se à jornada de trabalho do empregado. Regra geral, o intervalo intrajornada não é, todavia, computado no tempo de trabalho, não sendo, assim, remunerado. Reza o artigo 71 da Consolidação das Leis do Trabalho: Art. 71 – Em qualquer trabalho contínuo, cuja duração exceda de 6 (seis) horas, é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação, o qual será, no mínimo, de 1 (uma) hora e, salvo acordo escrito ou contrato coletivo em contrário, não poderá exceder de 2 (duas) horas. § 1º – Não excedendo de 6 (seis) horas o trabalho, será, entretanto, obrigatório um intervalo de 15 (quinze) minutos quando a duração ultrapassar 4 (quatro) horas. § 2º – Os intervalos de descanso não serão computados na duração do trabalho. § 3º – O limite mínimo de 1 (uma) hora para repouso ou refeição poderá ser reduzido por ato do Ministro do Trabalho e Previdência Social, quando, ouvido o Departamento Nacional de Higiene e Segurança do Trabalho (DNHST), se verificar que o estabelecimento atende integralmente às exigências concernentes à organização dos refeitórios e quando os respectivos empregados não estiverem sob regime de trabalho prorrogado a horas suplementares. § 4º – Quando o intervalo para repouso e alimentação, previsto neste artigo, não for concedido pelo empregador, este ficará obrigado a remunerar o período correspondente com um acréscimo de no mínimo 50% (cinquenta por cento) sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho. A propósito da extensão do intervalo, bem se vê que este será de pelo menos quinze minutos se a jornada for de mais de quatro horas e de até seis horas. Será de uma a duas horas o intervalo nos casos em que a jornada for de mais de seis horas. Em princípio, a extensão do intervalo intrajornada estaria atrelada à extensão da jornada contra- tual do empregado, ou seja, seria de pelo menos uma hora o intervalo do trabalhador contratado para laborar mais de seis horas diárias. Ocorre, entretanto, que essa compreensão seria injusta em relação àqueles que trabalham por mais de seis horas habitualmente, embora esse tempo excedente da sexta hora seja de horas extraordinárias. Para atender a essa aspiração de equidade, editou-se a orientação jurisprudencial n. 380 da SBDI-1 do TST, mais tarde convertida no item IV da Súmula 437: (723) Nesse sentido: TST, SDI 1, ERR-303642/96, Rel. Min. Rider Nogueira de Brito, DJU 4/2/00, Revista TST, Brasília, vol. 66, n. 1, jan/ mar 2000, p. 357. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 267 Ultrapassada habitualmente a jornada de seis horas de trabalho, é devido o gozo do intervalo intrajornada mínimo de uma hora, obrigando o empregador a remunerar o período para descanso e alimentação não usufruído como extra, acrescido do respectivo adicional, na forma prevista no art. 71, caput e § 4º da CLT. Em relação aos motoristas profissionais, a Lei n. 13.103, de 2015, prevê que se deve assegurar ao motorista profissional empregado intervalo mínimo de uma hora para refeição, podendo esse período coincidir com o tempo de parada obrigatória na condução do veículo estabelecido pelo Código de Trân- sito Brasileiro. A redução ou fracionamento do intervalo dos motoristas observa as regras explicitadas no subitem seguinte. 10.3.1.1 Intervalo mínimo. Autorização do Ministério do Trabalho para redução e efeitos da supressão. Regra específica para o motorista profissional Permite-se, mas apenas mediante prévia autorização do Ministério do Trabalho, a redução do limite mínimo de uma hora, devido aos empregados com jornada de mais de seis horas. A norma indivi- dual ou coletiva(724) não basta à redução do intervalo mínimo, dada a necessidade de ser inspecionado o atendimento às exigências previstas no artigo 71, §3o, da CLT. Quando o empregador não concede o intervalo mínimo (de quinze minutos ou de uma hora, a depender da jornada), obriga-se a remunerar o tempo correspondente com um acréscimo de no mínimo 50% sobre o valor da hora normal de trabalho. Não há, então, hora extra, mas o legislador comina uma sanção pecuniária de valor igual à remuneração mínima de uma hora extraordinária, como forma de estimular o cumprimento do preceito normativo. O fato de o valor da sanção coincidir com o da hora extra levou alguns juízes, em um primeiro momento, a associá-la a alguma hora física, em que teria havido trabalho, embora devesse haver intervalo. O raciocínio os fez concluir que a citada hora já estaria remunerada, faltando o empregador pagar apenas o adicional. Confundia-se a hora de trabalho com a sanção aplicada pela existência de trabalho em hora destinada ao descanso. Malgrado a dissensão inicial na jurisprudência, a exegese dada ao dispositivo pelo Tribunal Superior do Trabalho caminha em outro sentido e se coaduna com o nosso entendimento(725), conforme se nota à leitura da sua Súmula 437, I: Após a edição da Lei n. 8.923/94, a não concessão ou a concessão parcial do intervalo intrajornada mínimo, para repouso e alimentação, a empregados urbanos e rurais, implica o pagamento total do período correspon- dente, e não apenas daquele suprimido, com acréscimo de, no mínimo, 50% sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho (art. 71 da CLT), sem prejuízo do cômputo da efetiva jornada de labor para efeito de remuneração. Nota-se, à leitura do verbete, que deve ser remunerada integralmente a hora de intervalo mesmo quando é esse intervalo concedido parcialmente(726). E, para os trabalhadores em geral, somente autori- zação do Ministério do Trabalho, nunca a norma coletiva, permitiria a redução do intervalo intrajornada. Ademais, o TST tem decidido que a remuneração do intervalo intrajornada – devida quan- do o intervalo é reduzido ou não concedido pelo empregador – deve repercutir no cálculo de outras parcelas porque se reveste de natureza salarial. Assim está inscrito na Súmula 437, III, do TST: Possui natureza salarial a parcela prevista no art. 71, § 4º, da CLT, com redação introduzida pela Lei n. 8.923, de 27 de julho de 1994, quando não concedido ou reduzido pelo empregador o intervalo mínimo intrajornada para repouso e alimentação, repercutindo, assim, no cálculo de outras parcelas salariais. (724) Nesse sentido, a Súmula 437, II, do TST é conclusiva: “É inválida cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública (art. 71 da CLT e art. 7º, XXII, da CF/1988), infenso à negociação coletiva”. (725) Em edições anteriores, já sustentávamos que a circunstância de o valor da hora extra ter sido considerado como parâmetro justo para o valor da sanção longe está de ter essa consequência: a hora trabalhada é remunerada porque foi hora de efetivo trabalho; a de intervalo, por outra causa, vale dizer, pela causa oposta. Ademais, a interpretação literal do artigo 71, §4º, da CLT dispensa até mesmo a máxima in dubio pro misero ao impor a sanção correspondente à remuneração da hora com o adicional. (726) Em edições anteriores, sustentamos, sem êxito, que o tempo de intervalo a ser remunerado, com o adicional de 50%, seria o tempo que faltaria para completar o intervalo mínimo. Assim se daria, a nosso sentimento, a forma mais justa de aplicar a sanção legal, pois resulta injusto que o empregador flagrado ao conceder intervalo quase completo seja punido com o mesmo rigor aplicado àquele que não concedeu intervalo algum. Mas o TST vem decidindo, como visto, que o pagamento total do tempo de intervalo (vale dizer, o pagamento de uma hora, com o adicional, para os empregados que cumprem jornada de mais de seis horas) deve ocorrer mesmo quando o empregador concede parte desse intervalo. 268 – Augusto César Leite de Carvalho Embora tenhamos reserva quanto a essa compreensão do TST, pois nos parece que a sanção prevista no art. 71, § 4º, da CLT não se confundiria com as parcelas que teriam finalidade retributiva, é certo que o citado item III da Súmula 437 alarga a sanção legal, desestimulando, ainda mais, o empre- gador que pretende descumprir a obrigação de conceder o descanso em meio à jornada de trabalho. A Lei n. 13.103, de 2015, mantém a regra da CLT segundo a qual se deve assegurar ao motorista profissional, que seja empregado e tenha jornada de mais de seis horas, intervalo mínimo de uma hora para refeição. Mas prevê, em adendo, que pode esse intervalo coincidir com o tempo de parada obrigatória na condução do veículo estabelecido pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), qual seja, o intervalo previsto no art. 67-C do CTB(727): Art. 67-C. É vedado ao motorista profissional dirigir por mais de 5 (cinco) horas e meia ininterruptas veículos de transporte rodoviário coletivo de passageiros ou de transporte rodoviário de cargas. §1º. Serão observados 30 (trinta) minutos para descanso dentro de cada 6 (seis) horas na condução de veículo de transporte de carga, sendo facultado o seu fracionamento e o do tempo de direção desde que não ultrapassa- das 5 (cinco) horas e meia contínuas no exercício da condução. §1º-A. Serão observados 30 (trinta) minutos para descanso a cada 4 (quatro) horas na condução de veículo rodoviário de passageiros, sendo facultado o seu fracionamento e o do tempo de direção. §2º. Em situações excepcionais de inobservância justificada do tempo de direção, devidamente registradas, o tempo de direção poderá ser elevado pelo período necessário para que o condutor, o veículo e a carga cheguem a um lugar que ofereça a segurança e o atendimento demandados, desde que não haja comprometimento da segurança rodoviária. Especificamente quanto aos motoristas profissionais que transportam passageiros, a Lei n. 13.103, de 2015, adicionou à CLT o art. 235-E, a prescrever: Para o transporte de passageiros, serão observados os seguintes dispositivos: I – é facultado o fracionamento do intervalo de condução do veículo previsto na Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997 – Código de Trânsito Brasileiro, em períodos de no mínimo 5 (cinco) minutos; II – será assegurado ao motorista intervalo mínimo de 1 (uma) hora para refeição, podendo ser fracionado em 2 (dois) períodos e coincidir com o tempo de parada obrigatória na condução do veículo estabelecido pela Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997 – Código de Trânsito Brasileiro, exceto quando se tratar do motorista profis- sional enquadrado no § 5o do art. 71 desta Consolidação; III – nos casos em que o empregador adotar 2 (dois) motoristas no curso da mesma viagem, o descanso poderá ser feito com o veículo em movimento, respeitando-se os horários de jornada de trabalho, assegurado, após 72 (setenta e duas) horas, o repouso em alojamento externo ou, se em poltrona correspondente ao serviço de leito, com o veículo estacionado. O Código de Trânsito Brasileiro foi igualmente alterado(728) para proibir agora ao motorista profis- sional a condução ininterrupta por mais de cinco horas e meia quando atua ele em transporte rodoviário coletivo de passageiros ou em transporte rodoviário de cargas. Mas a periodicidade dessa interrupção de jornada na hipótese de transporte de cargas pode ser diferente daquela que se deve observar quando o transporte é de passageiros. É que em seu §1º, o novo art. 67-C do CTB autoriza seja esse intervalo de trinta minutos, tratando-se de transporte de carga, inserido e eventualmente fracionado em meio a fragmentos de seis horas da jornada, desde que não sejam ultrapassadas cinco horas e meia contínuas de condução. Em seu §1º-A, já agora acerca do transporte de passageiros e conforme redação acima transcrita, o intervalo de trinta minutos deve inserir-se e pode ser fracionado em meio a quatro horas na condução desse tipo de transporte. O inciso I do art. 235-E da CLT estabelece, ainda quanto ao transporte de passageiros e como se vê da transcrição supra, que as frações de tal intervalo não podem durar menos de cinco minutos. Mencionado intervalo, imposto pela legislação de trânsito, pode coincidir com o intervalo de no mínimo uma hora para refeição assegurado, pela CLT, aos motoristas que cumprem jornada (integral) (727) Também alterado pela Lei n. 13.103/2015. (728)O art. 67-A, §1º da Lei n. 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro), ao tempo em que vigia a Lei n. 12.619/2012, previa: “Será obser- vado intervalo mínimo de 30 (trinta) minutos para descanso a cada 4 (quatro) horas ininterruptas na condução de veículo referido no caput, sendo facultado o fracionamento do tempo de direção e do intervalo de descanso, desde que não completadas 4 (quatro) horas contínuas no exercício da condução”. Como se anotará em seguida, esse tempo de intervalo, sob a regência da Lei n. 13.103/2015, passou a ser exigido para frações maiores da jornada quando se tratar de transporte de cargas. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 269 de mais de quatro horas. Ademais, esse intervalo regido pela CLT pode ser igualmente dividido em dois intervalos menores e ser gozado no curso da viagem, com o veículo em movimento, quando outro motorista estiver a conduzi-lo, em sistema de revezamento com o motorista que descansa. Quanto ao transporte coletivo de passageiros, a nova lei autoriza uma flexibilização ainda maior do direito ao intervalo intrajornada de motoristas e empregados a ele relacionados, sem distinguir transporte urbano ou interurbano(729). Basta ler, com a boa vontade de quem pretende vencer as agru- ras de um texto legal que regula a matéria com deliberada complexidade, o que prescreve agora o §5º do art. 71 da CLT(730): Art. 71, §5º da CLT – O intervalo expresso no caput(731) poderá ser reduzido e/ou fracionado, e aquele estabele- cido no §1o(732) poderá ser fracionado, quando compreendidos entre o término da primeira hora trabalhada e o início da última hora trabalhada, desde que previsto em convenção ou acordo coletivo de trabalho, ante a natu- reza do serviço e em virtude das condições especiais de trabalho a que são submetidos estritamente os moto- ristas, cobradores, fiscalização de campo e afins nos serviços de operação de veículos rodoviários, empregados no setor de transporte coletivo de passageiros, mantida a remuneração e concedidos intervalos para descanso menores ao final de cada viagem. Logo, a regra do fracionamento do intervalo intrajornada agora ganhou reforço de mitigação, porquanto será possível, em se tratando de transporte coletivo de passageiros que exija labor para além da sexta hora diária, que não apenas se fragmente o intervalo mínimo de uma hora, mas que igualmente seja ele reduzido, desde que assim se proceda mediante negociação coletiva. Em suma, remete-se à autonomia privada a relativização de direito substancialmente relacionado à saúde e à segurança do trabalhador rodoviário e dos usuários das ruas, estradas e do transporte coletivo. Da combinação desses dispositivos extraímos: • O intervalo mínimo de uma hora do motorista de transporte de passageiros (se ele cumpre jornada de mais de seis horas) deve ser destinado à refeição e estar compreen- dido entre a segunda e a penúltima horas da jornada, mas pode ser fracionado ou até reduzido mediante norma coletiva, a qual poderá reduzir ou fracionar também o intervalo de cobradores, fiscais e outros operadores de veículos rodoviários; • Além do intervalo intrajornada previsto para refeições, e para evitar a condução contínua do veículo sem o relaxamento dos órgãos sensoriais, ao motorista não é dado dirigir por mais de cinco horas e meia contínuas e deve ter intervalos que somem trinta minutos para cada quatro horas de viagem se realizar o transporte de passageiros, ou intervalos que somem trinta minutos se fizer o transporte de carga; esse intervalo pode ser fracionado ao alvitre do motorista e de seu empregador, atendendo a conveniências fisiológicas ou da estrada, desde que cada fração do intervalo não seja inferior a cinco minutos; • A hora do intervalo para refeição, ou sua fração, pode coincidir com algum dos intervalos devidos por imposição do art. 67-C do CTB, ou com fração destes, sem que se cumulem os direitos aos distintos intervalos. (729) Paulo Douglas Almeida de Moraes (op. cit., p. 125) anotava, a propósito do texto oriundo da Lei n. 12.619/2012 (que adotava a mesma expressão ambígua “transporte coletivo de passageiros”) que aquela modalidade de fracionamento do intervalo se mostrava incompatível com as peculiaridades do transporte coletivo urbano “o qual exige micropausas a cada volta do ônibus, sejam elas durante a primeira hora ou mesmo ao longo da última hora de trabalho”. Mais adiante, o autor questiona: “Diversamente do que ocorre no transporte coletivo urbano, onde os condutores param, obrigatória e repetidamente, por alguns minutos a cada volta no percurso, o transporte interurbano de passageiros demanda horas de direção entre uma parada e outra, exigindo paradas mais longas, necessárias para permitir que os passageiros façam suas refeições e necessidades fisiológicas. Neste contexto indaga-se: onde está o fundamento para fracionar o intervalo do motorista do transporte interurbano? Como se vê, o legislador reformador transitou além dos limites impostos pela Constituição ao flexibilizar norma de ordem pública garantidora do direito fundamental à saúde do trabalhador sem ao menos prever, como fazia o C. TST, contrapartidas e condições que, mesmo na exceção, pudessem resguardar a saúde dos trabalhadores”. (730) Sob a vigência da Lei n. 12.619, de 2012, o §5º do art. 71 da CLT tinha a seguinte redação: “Os intervalos expressos no caput e no § 1º poderão ser fracionados quando compreendidos entre o término da primeira hora trabalhada e o início da última hora trabalhada, desde que previsto em convenção ou acordo coletivo de trabalho, ante a natureza do serviço e em virtude das condições especiais do trabalho a que são submetidos estritamente os motoristas, cobradores, fiscalização de campo e afins nos serviços de operação de veículos rodoviários, empregados no setor de transporte coletivo de passageiros, mantida a mesma remuneração e concedidos intervalos para descanso menores e fracionados ao final de cada viagem, não descontados da jornada”. (731) O legislador quer referir-se ao intervalo de uma a duas horas assegurado ao empregado com jornada superior a seis horas. (732) O legislador refere o intervalo de quinze minutos assegurado ao empregado que trabalha até quatro horas por dia. 270 – Augusto César Leite de Carvalho 10.3.1.2 Intervalo máximo. Possibilidade de prorrogação por norma escrita. Efeitos da dilação não autorizada Sobre o intervalo máximo de duas horas, cabe frisar que somente pode ele ser excedido se ajuste individual e escrito ou acordo coletivo o autorizar. A Súmula 118 do TST explicita a sanção reco- mendada contra a violação de citada regra: “Os intervalos concedidos pelo empregador, na jornada de trabalho, não previstos em lei, representam tempo à disposição da empresa, remunerados como serviço extraordinário, se acrescidos ao final da jornada”. Assim, se o empregado trabalha, em um dia qualquer, das 8h às 12h e das 15h às 19h, assiste-lhe o direito à remuneração de uma hora extraordinária, pois a hora excedente em seu intervalo, quando somada à jornada de trabalho efetivo, importa a nona hora diária de tempo à disposição do emprega- dor. Se, em vez de laborar até às 19h, esse mesmo empregado encerra sua jornada às 18h em tal dia, não presta hora extraordinária(733). 10.3.2 Intervalos interjornadas Ao cuidarmos dos intervalos interjornadas, interessante é enfatizar, sob o escólio de Rodrigues Pinto(734), que o descanso entre duas jornadas (a), o repouso semanal (b) e as férias (c) visam a “uma tríplice finalidade, física, social e econômica. A primeira objetiva a simples recuperação do organismo; a segunda, o conforto do trabalhador junto à sua família e ante a sua comunidade; a terceira, a manu- tenção de sua capacidade produtiva”. O autor remata: De acordo com a extensão de cada repouso no tempo, associa-se mais diretamente com um desses fins. Os de curta duração praticamente se esgotam na recuperação orgânica; os de média duração se voltam mais para a satisfação social; os de longa duração (férias), para o resultado econômico da manutenção do nível produtivo do empregado. Atingida a sua finalidade, o intervalo estará concedido, pois se cumpre a norma quando se alcança, em concreto, o seu fim social. 10.3.2.1 Intervalo entre duas jornadas. As regras especiais para motoristas O artigo 66 da Consolidação das Leis do Trabalho prescreve o direito a um intervalo mínimo de onze horas entre duas jornadas sucessivas. A desobediência a essa norma implica não somente a multa administrativa, a ser aplicada em consonância com o artigo 75 da mesma CLT. Há construção jurisprudencial que define a sanção cabível sempre que o empregador se vale do regime de reveza- mento de turnos para fazer coincidir o citado intervalo com o repouso semanal. Tratamos, neste passo, da orientação contida na Súmula 110 do TST: No regime de revezamento, as horas trabalhadas em seguida ao repouso semanal de vinte e quatro horas, com prejuízo do intervalo mínimo de onze horas consecutivas para descanso entre jornadas, devem ser remuneradas como extraordinárias, inclusive com o respectivo adicional. Logo, se um empregado, que folga aos domingos, presta trabalho em turnos de seis horas, em regime de revezamento (6 às 12h em uma semana, 12 às 18h na semana seguinte, assim sucessiva- mente), e encerra uma sua jornada às 24h do sábado, o novo turno de trabalho não pode se iniciar nas primeiras horas da segunda-feira, mas deve ser o trabalhador escalado para o turno das 12h desse dia. É que o tempo trabalhado, até que se completem onze horas de descanso após o repouso sema- nal de vinte e quatro horas, haverá de ser computado como horas extraordinárias. Há algum tempo vínhamos sustentando que não víarmos razão para adotar tal orientação apenas em favor de empregados que trabalham em regime de revezamento. A supressão do intervalo inter- jornadas de onze horas deve implicar sempre o cômputo, como sobrejornada, do tempo de trabalho ocorrido em seu prejuízo. (733) [(12h – 8h) + (15h – 14h) + (18h – 15h)] = [4 horas + 1hora + 3horas] = 8horas (734) Op. cit. p. 348. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 271 Enfrentando, em boa hora, o tema, o Tribunal Superior do Trabalho editou a orientação jurispru- dencial n. 355 da sua SDI-1, a consagrar: O desrespeito ao intervalo mínimo interjornadas previsto no art. 66 da CLT acarreta, por analogia, os mesmos efeitos previstos no §4o do art. 71 da CLT e na Súmula n. 110 do TST, devendo-se pagar a integralidade das horas que foram subtraídas do intervalo, acrescidas do respectivo adicional. Sempre propusemos que o fundamento para que assim se entendesse se apegasse à compre- ensão de que uma jornada não se encerraria enquanto o intervalo interjornada de onze horas não se cumprisse, integralmente. Exemplo: a jornada que se iniciasse às 8h, mas sem que se conclu- ísse o intervalo interjornadas de onze horas, conteria horas extras e somente depois se iniciaria a jornada normal. Mas haveria então um paradoxo: se a jornada normal desse dia (referimo-nos ao dia seguinte, que começaria sem a observância do intervalo interjornadas de onze horas) somente se iniciaria quando as horas extras do dia anterior terminassem, neutralizar-se-ia, assim, o efeito da OJ 355, pois as horas extras que correspondessem às primeiras horas do dia fariam com que as horas extraordinárias ao fim desse dia se convertessem em horas normais(735). O fundamento adotado pela atual jurisprudência é, portanto, mais razoável: as horas extras resul- tantes da inobservância do intervalo interjornadas de onze horas não adiam o início da jornada normal e não interferem na quantidade de horas extras resultantes da extrapolação da jornada contratual. O critério de aplicar, analogicamente, a regra legal estabelecida para a supressão do intervalo intrajornada foi, também por isso e sem dúvida, de manifesta propriedade, alcançando o mesmo obje- tivo por que vínhamos pugnando: todo o tempo de trabalho ocorrido em prejuízo do intervalo de onze horas deve ser remunerado como horas extraordinárias. Acerca dos motoristas profissionais, a Lei n. 13.103, de 2015, já comentada em vários subitens deste capítulo, sobretudo naqueles alusivos às jornadas especiais e intervalos intrajornadas, acres- centou ao art. 235-C da CLT o §3º que autoriza o empregador a fracionar o intervalo entre jornadas de onze horas e a incluir, no seu cômputo, o tempo de parada obrigatória previsto no Código de Trânsito Brasileiro (trinta minutos a cada quatro horas), desde que sejam garantidas oito horas de repouso inin- terrupto e as três horas faltantes sejam repousadas em meio às dezesseis horas seguintes. Ainda quanto aos motoristas, o art. 235-C, §4º da CLT estabelece regra que parece consentânea com a realidade do trabalho nas estradas: “Nas viagens de longa distância, assim consideradas aque- las em que o motorista profissional empregado permanece fora da base da empresa, matriz ou filial e de sua residência por mais de 24 (vinte e quatro) horas, o repouso diário pode ser feito no veículo ou em alojamento do empregador, do contratante do transporte, do embarcador ou do destinatário ou em outro local que ofereça condições adequadas”. 10.3.2.2 Repouso semanal e em feriados É certamente de origem religiosa o direito ao descanso semanal. Os hebreus descansavam aos sábados, tendo sabbath o significado de descanso. Os católicos guardam os domingos, dia da ressur- reição de Cristo, prescrevendo a Encíclica Rerum Novarum que “o direito ao descanso de cada dia, assim como à cessação do trabalho no dia do Senhor, deve ser a condição expressa ou tácita de todo contrato feito entre patrões e operários”(736). O artigo 7o, XV, da Constituição assegura “repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos”. Não é mais previsto, em sede constitucional, o repouso em feriados civis e religiosos(737). Quanto ao repouso remunerado em feriados, está o direito regulado pela Lei n. 605, de 1949, e pela Lei n. 9.093, de 1995, como elucidaremos. (735) Por exemplo, se o empregado trabalha diariamente das 6h às 22h, o seu intervalo entre jornadas é de oito horas e, por isso, as três primeiras horas de trabalho são extraordinárias. A prevalecer o fundamento que propúnhamos, a jornada normal se iniciaria às 9h e em vez de as horas extras serem computadas a partir das 14h (oitava hora diária de trabalho), haveria horas extras somente a partir das 17h (oitava hora após as 9h). Para a jurisprudência prevalecente, seria válido afirmar a existência, no exemplo dado, de três horas extras ao início da jornada e mais oito horas extras ao final, aquelas e estas por motivos diferentes. (736) Apud MARTINS, Sergio Pinto. Op. cit. p. 486. (737) Como nota Sergio Pinto Martins (op. cit. p. 487), dispuseram sobre o descanso semanal e em feriados as Constituições de 1934 (artigo 121, §1º, e), de 1937 (art. 137, d) e, assegurando não só o descanso semanal e feriados, mas a sua remuneração, as Constituições editadas em 1946 (art. 157, VI) e em 1967 (art. 158, VII; EC n. 1/69: art. 165, VII). A Constituição de 1988 assegura a remuneração do repouso semanal, mas não se reporta aos feriados. 272 – Augusto César Leite de Carvalho A) A preferência da folga aos domingos. As regras especiais para comerciários e motoristas Em respeito à tradição católica do povo brasileiro, a norma constitucional elegeu o dia de domingo como aquele em que, preferencialmente, deveria ocorrer a folga semanal. Noutras palavras: a folga em um dia da semana é direito indisponível e inviolável, mas a sua ocorrência em dia de domingo é apenas recomendada pela Carta Magna. Dando sentido a essa preferência constitucional, o artigo 67 da Consolidação das Leis do Trabalho está, não é de agora, a prescrever: Será assegurado a todo empregado um descanso semanal de 24 (vinte e quatro) horas consecutivas, o qual, salvo motivo de conveniência pública ou necessidade imperiosa do serviço, deverá coincidir com o domingo, no todo ou em parte. Com maior propriedade, a Lei n. 605, de 1949, e, especialmente, o artigo 6o do decreto(738) que a regulamenta, referiram-se à possibilidade de haver labor em dia de domingo, mas somente quando o justificarem as exigências técnicas da empresa. O artigo 5o, parágrafo único, da Lei n. 605/49 é eluci- dativo: “São exigências técnicas, para os efeitos desta Lei, as que, pelas condições peculiares às ativi- dades da empresa, ou em razão do interesse público, tornem indispensável a continuidade do serviço”. A bem dizer, o Decreto n. 27.048, de 1949, ao regulamentar a Lei n. 605/49, especificou as empre- sas cujas exigências técnicas autorizam o labor em domingo (também em feriados, como adiante expli- caremos). Prescindem de autorização expressa(739), portanto, os empregadores que exercem uma das dezenas de atividades ali enumeradas, sempre que pretenderem cobrar a prestação de trabalho domi- nical. Mas somente esses empregadores e aqueles que obtêm autorização do Ministério do Trabalho podem exercer atividade econômica aos domingos. O dia de domingo será, pois, o dia de descanso, salvo se a atividade econômica estiver mencionada no Decreto 27.048/49, houver autorização legal (como no caso dos comerciários, que adiante estudare- mos) ou permissão específica do Ministério do Trabalho. Nesses casos, a continuidade do serviço justifi- cará o labor em dia de domingo, mas o empregador estará obrigado a instituir escala de revezamento(740) que permita coincidir a folga de cada trabalhador, periodicamente, com o dia de domingo. Por sua vez, o artigo 2o, b, da Portaria do Ministério do Trabalho n. 417, de 10 de junho de 1966, exige que a escala de revezamento seja organizada de modo a assegurar que “pelo menos em um perí- odo máximo de sete semanas de trabalho, cada empregado usufrua pelo menos um domingo de folga”. A propósito, a escala de revezamento deverá sempre contemplar a folga em meio aos sete dias da semana, sob pena de desfigurar-se o direito constitucional ao repouso semanal remunerado. É o que preconiza a Orientação Jurisprudencial n. 410 da SBDI-1 do TST: “Viola o art. 7º, XV, da CF a concessão de repouso semanal remunerado após o sétimo dia consecutivo de trabalho, importando no seu pagamento em dobro”. Situação específica é a dos trabalhadores comerciários. A Lei n. 10.101, de 2000, que disciplina a participação em lucros e resultados, contém dispositivo (artigo 6o e parágrafo único) que autoriza o trabalho aos domingos nas atividades de comércio em geral, desde que observadas a competência dos municípios para legislar sobre assunto de interesse local, a folga em um domingo a cada três semanas (no máximo), as demais normas de proteção ao trabalho e outras previstas em normas coletivas. Isso importa dizer que o comerciário protegido por norma coletiva, na qual se indiquem os domin- gos e feriados em que é permitido o trabalho, somente pode trabalhar nesses limites. Se a norma coletiva nada dispuser sobre o labor em domingo, o trabalho do comerciário pode ocorrer nesse dia, mas a folga semanal deve cair em dia de domingo a cada três semanas. Se lei municipal, com o respaldo do artigo 30, I, da Constituição, proibir a abertura do comércio em domingos e feriados, seja em homenagem a costumes locais, inclusive de inspiração religiosa, seja para atender a outros interesses regionais (uso de vias públicas em dias de guarda ou festivos, incremento de outras atividades econômicas etc.), os comerciários deverão não trabalhar nesses dias. (738) Decreto n. 27.048, de 12.08.49. (739) A autorização expressa era exigida, anteriormente, pelo artigo 68 da CLT. (740) A escala de revezamento é exigida no artigo 6º, § 2º, do Decreto n. 27.048/49, que regulamenta a Lei n. 605/49. Este dispositivo ressalva, apenas, os elencos teatrais e congêneres. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 273 Mas se norma coletiva ou lei municipal não contiverem proibição de labor em domingo ou feriado, o empregador-comerciante pode cobrar a prestação de trabalho em domingos (estabelecendo a citada escala de revezamento) e, como visto, a folga a cada três semanas. Consoante se verá no subi- tem seguinte, o trabalho dos comerciários em feriados estará a depender da permissão expressa em convenção ou acordo coletivo de trabalho. A propósito dos motoristas, a Lei n. 13.103/2015 manteve a permissão, inaugurada pela Lei n. 12.619/2012, de que os dias de trabalho, em viagens de longa distância com duração superior a sete dias, sejam cumulados com vistas a que o empregado, ao retornar ao estabelecimento que lhe serve como base da empresa, ou ao seu domicílio, possa gozar o repouso semanal na proporção de vinte e quatro horas, acrescidas do intervalo interjornadas de onze horas, para cada semana ou fração de semana em que tenha permanecido em viagem(741). A regra, assim posta, rende ensejo a duas considerações: a primeira é atinente às viagens que duram exatos sete dias, pois em relação a elas o motorista deve gozar o seu repouso semanal sem prejuízo do descanso correspondente à semana anterior e, ainda assim, o legislador ter-se-ia mostrado indiferente à jurisprudência consolidada na OJ 410 da SBDI-1, há pouco referida, segundo a qual “viola o art. 7º, XV, da CF a concessão de repouso semanal remunerado após o sétimo dia consecutivo de trabalho, importando no seu pagamento em dobro”. O tempo dirá se o Poder Judiciário convalidará, em razão das peculiaridades do trabalho nas estradas, a folga semanal dos motoristas após o sétimo dia de trabalho. A segunda consideração é pertinente às viagens que duram mais de sete dias. O mencionado art. 235-D da CLT prevê, para tal hipótese, a acumulação dos dias em trânsito e a fruição, ao fim da viagem, de trinta e cinco horas para cada semana ou fração de semana em que o motorista tenha permanecido nas estradas. A empresa terá duas opções: a faculdade de garantir o repouso durante a semana, oferecendo condições adequadas de descanso no percurso do motorista; ou a opção de assegurar o repouso proporcional quando o empregado retornar à base ou à própria casa, desde que não adote essa segunda opção por mais de três semanas consecutivas (art. 235-D, § 2o). A lei desonera o empregador, portanto, da obrigação de prover regime de trabalho que contemple o necessário gozo da folga semanal, direito esse veiculado por preceito constitucional que não discri- mina motoristas e que, segundo a jurisprudência, resulta descaracterizado quando o dia de repouso não se insere entre os sete dias de cada semana. Como agravante, o referido art. 235-D assegura o repouso de trinta e cinco horas (24 horas do repouso semanal + 11 horas do intervalo interjornada) à razão de semana ou fração de semana com trabalho (se o motorista permaneceu dez dias viajando terá direito a apenas uma folga semanal, pois se desconsiderará a fração de três dias trabalhados além da semana de sete dias), o que equivalerá a virtualmente desprezar frações de semana (gastas em viagens) que comporiam, em verdade, uma parte da semana seguinte de eventual labor. Não é tudo. Ainda quanto às folgas semanais que devem suceder as viagens de longa distância – ou seja, viagens que duram mais de sete dias –, há o texto confuso do § 1o do art. 235-D a prever: “É permitido o fracionamento do repouso semanal em 2 (dois) períodos, sendo um destes de, no mínimo, 30 (trinta) horas ininterruptas, a serem cumpridos na mesma semana e em continuidade a um período de repouso diário, que deverão ser usufruídos no retorno da viagem”. Do que se compreende, extrai- -se que, sendo o descanso semanal de trinta e cinco horas por resultar da soma de vinte e quatro horas mais o intervalo entre jornadas de onze horas, está a lei a prescrever que o repouso semanal do motorista pode ser fracionado em dois períodos de repouso, desde que um dos períodos seja de pelo menos trinta horas e os dois períodos tenham como características comuns: situarem-se na mesma semana e sucederem ambos um intervalo entre jornadas de onze horas. B) A folga obrigatória em feriados. As regras especiais para comerciários Ainda quanto aos feriados, cabe reparar que nem todos são dias de descanso. A Lei n. 605, de 1949, em seu artigo 8o, veda o labor em feriados civis e religiosos, salvo quando as já citadas exigências técnicas (741) A Lei n. 12.619/2012 previa intervalo de trinta e seis horas para o motorista que permanecia mais de uma semana em viagem, adicio- nando uma hora ao intervalo cuja extensão resultava da soma do repouso semanal de vinte e quatro horas com o intervalo entre jornadas de onze horas. A Lei n. 13.103/2015 explicitou que essa cumulação de dias e horas de repouso semanal pode ocorrer quando há viagens por mais de sete dias e retirou a benesse de mais um dia, restringindo a trinta e cinco horas o tempo do repouso semanal (acrescido do intervalo entre jornadas de onze horas). 274 – Augusto César Leite de Carvalho da empresa o autorizarem. Inicialmente, supunha-se que os feriados civis poderiam ser previstos em lei federal, reservando-se à legislação municipal a indicação de certo número de feriados religiosos. Mas a edição de leis federais que, com a mesma força imperativa da Consolidação das Leis do Traba- lho, instituiu feriados religiosos fez sucumbir esse desejo do legislador. A Lei n. 9.093, de 1995, deu novo trato à matéria, ao preceituar que são feriados civis os declara- dos em lei federal(742) e a data magna do Estado, fixada em lei estadual, além dos dias de início e de término do ano do centenário de fundação do Município, com previsão em lei municipal. Quanto aos feriados religiosos, a mesma Lei n. 9.093 os limitou aos “dias de guarda, declarados em lei municipal, de acordo com a tradição local e em número não superior a quatro, neste incluída a Sexta-Feira da Paixão”. Logo, o empregador não está obrigado a conceder folga em feriados previstos em lei estadual que não correspondam à data magna do Estado, também não estando impelido a assegurar o descanso de seus empregados em feriados instituídos por leis municipais que não cuidem de dias de guarda, até o limite de quatro feriados, ou daqueles dias em que se festeja o centenário do Município. Se feriados estaduais ou municipais houver, excedendo esses limites de competência legislativa, o trabalho, neles, pode ser exigido. Não o sendo, obriga-se o empregador a remunerar a folga que, por liberalidade sua, concede. Havendo exigências técnicas da empresa que permitam o trabalho em feriados, o empregador poderá remunerar o labor em dobro ou, ao seu alvitre, conceder outro dia de folga, tal como preceitua o artigo 9o da Lei n. 605, de 1949. A opção (remuneração em dobro ou folga compensatória) somente existe em relação ao trabalho ocorrido nos feriados. A prestação laboral em dia de domingo deve sempre observar, conforme já o dissemos, escala de revezamento que assegure folga em outro dia da semana e permita, periodicamente, a folga dominical. No tocante aos domingos, não há a alternativa, para o empregador, de remunerá-lo em dobro. Acerca dos trabalhadores comerciários, o labor em feriados somente pode ocorrer quando expres- samente autorizado por norma coletiva e quando não há restrição em legislação municipal, pois assim estatui o art. 6o-A da Lei n. 10.101/2000. Trata-se de caso peculiar em que um direito trabalhista não regulamentado exaustivamente por norma estatal foi sabiamente transferido à regência da norma cole- tiva, permitindo-se assim aos autores sociais que deliberem, em vista da peculiaridade do comércio que realizam, sobre os feriados em que a abertura da loja e o trabalho realmente se justificam. C) A folga e a remuneração da folga A Constituição consagrou a folga semanal, preferencialmente aos domingos. A norma infracons- titucional vem estabelecendo, por sua vez, os feriados de descanso obrigatório. O direito de não trabalhar nesses dias, ou nos dias de folga compensatória, é indisponível e não está condicionado a qualquer exigência legal. Outra é a regra, contudo, quanto à remuneração dos dias de folga semanal e em feriados. Mesmo lhe sendo assegurada a folga, o empregado poderá gozá-la sem a correspondente remu- neração na hipótese de não atender a duas exigências da lei: assiduidade e pontualidade. Nesse sentido, o artigo 6o da Lei n. 605/49 preceitua: “Não será devida a remuneração quando, sem motivo justificado(743), o empregado não tiver trabalhado durante toda a semana anterior(744), cumprindo integralmente o seu horário de trabalho”. O artigo 8o da mesma lei estende à remuneração da folga em feriados a exigência de assiduidade e pontualidade. A regra é clara: o empregado não tem direito à remuneração do seu dia de folga quando atrasar, injustificadamente e em um ou mais dias da semana anterior, a sua chegada ao trabalho, também não (742) Exemplos: Lei n. 662/49: 1º de janeiro, 1º de maio, 7 de setembro, 15 de novembro e 25 de dezembro; Lei n. 1.266/50: 21 de abril; Lei n. 6.802/80: 12 de outubro. (743) O §1º do citado artigo 6º da Lei n. 605/49 enumera os motivos justificados para a falta ao trabalho (art. 473 da CLT, ausência justificada a critério da administração da empresa, paralisação do serviço por conveniência do empregador, casamento do empregado e acidente de trabalho), prescrevendo o §2º que o atestado médico que autoriza essa falta deve ser emitido por médico do INSS ou, na falta deste e suces- sivamente, de médico do Serviço Social do Comércio ou da Indústria, de médico da empresa etc. Essa ordem de preferência dos atestados médicos deve ser observada, como recomenda a Súmula n. 15 do TST. (744) O artigo 11, §4º, do Decreto n. 27.048/49 é elucidativo: “Para os efeitos do pagamento da remuneração, entende-se como semana o período de segunda-feira a domingo, anterior à semana em que recair o dia de repouso definido no art. 1º”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 275 o tendo se faltar ao serviço em um dia qualquer da semana que antecedeu o domingo ou o feriado em que folgou, sem justificar, validamente, essa falta. Cuida-se, bem se percebe, de norma de extremo rigor, pois uma falta não justificada (mesmo que justificável) importará o desconto (rectius: não paga- mento) do dia em que houve a falta e autorizará o empregador, mais que isso, a não remunerar os dias de repouso da semana seguinte. Noutro passo, o artigo 7o, XV, da Constituição assegura “repouso semanal remunerado, preferen- cialmente aos domingos”. É de se questionar se tem fundamento constitucional de validade a norma inferior que limita, a tal ponto, a remuneração do repouso semanal. Haveria, em parte, uma negação do direito fundado na Carta Maior? A questão, cujo exame não poderia ser aqui exaurido, não pode abstrair o caráter de inicialidade do texto constitucional, que “do ângulo estritamente interpretativo impõe que seus termos e vocábulos sejam interpretados a partir dela mesma”(745). Em se tratando, porém, de instituto que há muito vem sendo regulado por norma infraconstitucional, Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto relativizam a impossibilidade de a interpretação da norma constitucional consultar o sentido tradicional da palavra ou expressão: Se se tratar de palavras de uso comum é este que deverá prevalecer. Se se tratar, contudo, de um termo técnico, o que se deve tomar em conta é toda a tradição existente em torno dele. O que não se pode é erigir uma fonte normativa qualquer como especialmente creden- ciada a fornecer-lhe o verdadeiro sentido”(746). Havendo o direito à remuneração do dia de descanso, as regras a serem observadas são aquelas que se colhem do artigo 7o da Lei n. 605, de 1949: • Para os que trabalham por dia, semana, quinzena ou mês, a remuneração do repouso corresponderá à de um dia de serviço, computadas as horas extraordinárias habitualmente prestadas. A jurisprudência tem sido receptiva à inclusão, também, do adicional noturno habitual, segundo a sua média diária, na remuneração da folga. Uma última e necessária observação, relativa ao disposto no §2o do mesmo artigo 7o da Lei n. 605/49: “Consideram-se já remunerados os dias de repouso semanal do empregado mensalista ou quinzenalista(747), cujo cálculo de salário mensal ou quinzenal, ou cujos descontos por faltas sejam efetuados na base do número de dias do mês ou de 30 (trinta) e 15 (quinze) diárias, respectivamente”. • Para os que trabalham por hora (ou seja, para os empregados horistas, que têm o seu salário calculado à razão da hora de trabalho), a remuneração do repouso equivalerá à de uma jornada normal, com igual inclu- são da média de horas extras (também, a nosso ver, do adicional noturno, ante a clara intenção de igualar a remuneração do dia de trabalho à do repouso). • Para os que trabalham por tarefa ou peça, o equivalente ao salário correspondente às tarefas ou peças feitas durante a semana, no horário normal de trabalho, dividido pelos dias de serviço efetivamente prestados ao empregador. • Para o empregado em domicílio, o equivalente ao cociente da divisão por 6 (seis) da importância total da sua produção na semana. Note-se que a remuneração da folga deve observar a remuneração média diária, sendo aguçado o esforço, que move o legislador, de estabelecer padrões alternativos de cálculo que servem a esse propósito. D) A remuneração do trabalho em dia de folga Se o empregador não concede a folga em domingos e em feriados, ou em algum desses dias, também não a concedendo em outro dia da semana, estará infringindo preceito constitucional que toca à folga semanal – o que o submete a multa administrativa – e, ademais, deverá remunerar em dobro o domingo ou o feriado em que a folga foi suprimida. Ao impor o artigo 9o da Lei n. 605/49 a remuneração em dobro, abriu discussão acirrada sobre ser devida a remuneração em dobro do trabalho realizado em dia de descanso (sem prejuízo da remunera- ção do repouso) ou apenas a dobra da remuneração desse dia, nos casos em que tal remuneração já se tivesse realizado. Por exemplo: o empregado recebe R$ 900,00 por mês, já incluída a remuneração do seu repouso semanal (artigo 7o, §2o, da Lei n. 605/49); caso trabalhe em um dia destinado à folga, (745) Cf. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 103. O autor faz remissão a obra (“Interpreta- ção e aplicabilidade das normas constitucionais”) que escreveu em conjunto com Carlos Ayres Britto. (746) Cf. BASTOS, Curso de direito constitucional, p. 103. (747) Cabe recordar que mensalista e quinzenalista não são os empregados que recebem ao final do mês ou da quinzena, respectivamente, mas, sim, aqueles cujo salário é calculado na proporção do mês ou da quinzena completa de trabalho. 276 – Augusto César Leite de Carvalho teria direito a receber, por esse labor, a remuneração em dobro desse dia no importe de R$ 60,00 (R$ 900,00 : 30dias/mês = R$ 30,00 x 2 = R$ 60,00)? Ou somente a dobra (R$ 30,00)? Tentando solucionar a contenda jurídica, o verbete n. 461 da Súmula do Supremo Tribunal Federal veio a recomendar: “É duplo, e não triplo, o pagamento do salário nos dias destinados a descanso”. Parecia claro, portanto, que estava a jurisprudência a consagrar o entendimento de que o labor em dias de descanso acarretava, apenas, a obrigação de pagar a dobra (de dobrar a remuneração), não havendo respaldo para o pagamento em dobro ser acrescido à paga do repouso. Como o trabalho haveria, mesmo e sempre, de ser remunerado, a sanção legal estava a se esvaziar, era até inócua, pois nada mais, além da singela remuneração do trabalho, pagaria o empregador pelo fato de estar suprimindo a folga do seu empregado. A dobra da remuneração correspondia à mera remuneração pelo trabalho, como se infração nenhuma houvesse sido perpetrada(748). Mudou, todavia, o trato jurídico dispensado ao tema e, em rigor, a matéria não se oferece mais a grande controvérsia. É que o Tribunal Superior do Trabalho, na esteira do entendimento esboçado pela doutrina e já antes externado pela orientação jurisprudencial n. 93 da SDI-1 (cancelada em novembro de 2003), alterou a redação da Súmula 146, que passou a ter a escrita seguinte: O trabalho prestado em domingos e feriados não compensados deve ser pago em dobro, sem prejuízo da remu- neração relativa ao repouso semanal(749). É perceptível que o Tribunal Superior do Trabalho revisitou a Súmula 146 de sua jurisprudência para esclarecer que o dia de repouso deve ser remunerado e, quando nele se cobra trabalho, acresce-se à mencionada remuneração o seu valor em dobro, como contraprestação pelo labor prestado. Quanto às folgas em domingos e feriados em casos nos quais o empregado trabalha em regime 12 x 36 (doze horas de trabalho por trinta e seis horas de descanso), a Súmula 444 do TST(750) escla- receu que, embora as trinta e seis horas de descanso importem a compensação do labor coincidente com os dias de domingo, o dia de trabalho que coincida com feriado deve ser remunerado em dobro, pois o tempo trabalhado no regime 12 x 36 não é suficientemente menor a ponto de as folgas de trinta e seis horas compensarem também as folgas dos feriados(751). 10.3.2.3 Férias A) Conceito, finalidade e história das férias O trabalhador costuma reservar um período do ano para intensificar o convívio com a família e amigos, às vezes viajando para conhecer outros lugares ou se mudando, provisoriamente, para esta- ções de veraneio. O seu descanso remunerado o reanima, quebra a rotina de trabalho e renova a sua capacidade produtiva. (748)Em vez de pedir a dobra pela supressão da folga dominical, o empregado que tinha cumprido a sua carga horária máxima, na semana antecedente, preferia, com razão, postular a remuneração do trabalho como hora extra, pois à dobra simples se somava o adicional de (no mínimo) 50%. (749) No julgamento de um dos vários casos-líderes, que deram ensejo à orientação jurisprudencial n. 93, acima referida, o Ministro Vantuil Abdala, então relator do processo, asseverou, contra o argumento de empregadora que insistia em pagar apenas a dobra da remuneração do repouso: “Aduz (a empregadora) que o v. acórdão embargado, ao desconsiderar que o repouso semanal já está incluído no pagamento mensal, e determinar o seu pagamento em dobro, acabou permitindo o pagamento triplo do pagamento do repouso semanal remunerado trabalhado. Sem razão a recorrente. Em primeiro lugar, não vislumbro qualquer vulneração ao art. 9º da Lei n. 605/49. Isto porque a melhor interpretação do referido dispositivo legal é exatamente no sentido de que deve ser paga em dobro a remuneração do trabalho realizado em dia feriado. Ademais, a “mens legis” é no sentido de que o empregado descanse pelo menos 01 (um) dia em cada semana. Assim, não se concebe que fosse estabelecer a lei o pagamento do trabalho em dia que deveria ser destinado ao repouso, da mesma maneira que o trabalho realizado em dias normais. A remuneração dobrada do dia de repouso trabalhado atende à “mens legis”, servindo de desestímulo a que o empregador descumpra a lei, impondo ao empregado o trabalho em dia que devia ser destinado ao repouso. Aliás, não fosse assim, sequer estar-se-ia respeitando o mandamento constitucional (art. 7º, inciso XVI) que determina o pagamento das horas extras com adicional de 50%. Isto porque quando se trabalha a semana toda e mais ainda no dia de repouso, estar-se-á trabalhando mais de 44 horas na semana, e, portanto, trabalhando em horas extraordinárias. Por essas razões não se vislumbra qualquer vulneração ao art. 9º da Lei n. 605/49 ou atrito com o Enunciado 146/TST”. (750) Súmula 444 do TST: “JORNADA DE TRABALHO. NORMA COLETIVA. LEI. ESCALA DE 12 POR 36. VALIDADE. É valida, em caráter excepcional, a jornada de doze horas de trabalho por trinta e seis de descanso, prevista em lei ou ajustada exclusivamente mediante acordo coletivo de trabalho ou convenção coletiva de trabalho, assegurada a remuneração em dobro dos feriados trabalhados. O empregado não tem direito ao pagamento de adicional referente ao labor prestado na décima primeira e décima segunda horas”. (751) [jornada comum: 44 h/sem x 4.28 sem/mês = 188,32] > [regime 12 x 36: 12 h x 15 dias = 180 h/mês]. A diferença de 8,32 horas não seria suficiente para compensar todos os possíveis feriados intercorrentes aos meses de trabalho. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 277 Resgatando a história das férias, Rodrigues Pinto observa que “o Tratado de Versalhes (1919) e a Convenção de Genebra (1921), emergentes da chamada I Guerra Mundial, deram decisivo impulso à sua universalização nos países industrializados ou em processo de industrialização, com a roupagem complexa (repouso + remuneração) que passou a revesti-la”. Sobre as férias do empregado brasileiro, o autor assim a historia: Entre nós, as férias anuais remuneradas começam a ganhar corpo nos anos 20, refletindo, precisamente, a pressão social provinda dos documentos de Versalhes e Genebra e alcan- çando, de modo significativo, categorias profissionais dotadas de melhor estrutura, tais como as dos ferroviários e bancários. A Consolidação das Leis do Trabalho generalizou-as, como direito dos trabalhadores, respeitadas as exclusões feitas em seu art. 7o aos domésticos e rurais. As barreiras restritivas foram caindo, porém, na medida do avanço do País para a industrialização de sua sociedade(752). O Brasil teria sido o terceiro país a consagrar o direito a férias anuais para determinado grupo de trabalhadores, universalizando esse direito a partir da edição da CLT, em 1943(753). A partir de junho de 1973, quando aprovada a Convenção n. 132 da OIT e, nela, a recomendação de que as férias anuais deveriam ser de tempo correspondente a pelo menos três semanas, somadas à quantidade de feriados a essas semanas intercorrentes, revelou-se, mediante a ratificação de citada convenção, que o direito às férias anuais remuneradas já era realidade em Armênia, Bélgica, Bósnia e Herze- govina, Brasil, Burkina Faso, Camarões, Chade, Croácia, República Checa, Finlândia, Alemanha, Guiné, Hungria, Iraque, Irlanda, Itália, Quênia, Letônia, Luxemburgo, Madagascar, Malta, República da Moldova, Montenegro, Noruega, Portugal, Rússia, Ruanda, Sérvia, Eslovênia, Espanha, Suécia, Suíça, Macedônia, Ucrânia, Uruguai e Iêmen(754). Há países que não asseguram férias mediante lei, como China, Austrália e Estados Unidos, malgrado as normas coletivas e regulamentos de empresa, onde existem, possam suprir a omissão do legislador. E há o caso do Japão, que previa 10 dias de férias sem remuneração, mas, em razão da incidência elevada do karoshi (morte em razão do excesso de trabalho), sobreveio norma governa- mental exigindo férias de trinta dias. A nossa realidade, embora não seja destoante quanto ao tempo de fruição de férias, mostrava-se adversa no tocante à possibilidade de os empregados brasileiros usufruírem confortavelmente de seu tempo de descanso e lazer com o padrão salarial comparativamente menor, que lhes era peculiar. E assim o era a ponto de o poder constituinte de 1988 assegurar ao empregado uma remuneração de férias à qual se acrescia, dali por diante, 1/3 (um terço) do valor do salário, pois vinha a ser este o acréscimo que correspondia à conversão – a máxima conversão possível – da terça parte das férias em dinheiro. A intenção do poder constituinte era certamente a de fazer prescindível a venda de um terço das férias para que o empregado pudesse financiar seu descanso anual. A remuneração das férias, agora com o acréscimo de um terço, deveria servir a essa provisão de fundos. Isso não obstante, o empre- gado brasileiro continuou vendendo a fração de suas férias, sendo inclusive esse direito estendido ao empregado doméstico pela Lei n. Complementar n. 150, de 2015, como adiante se examinará ao estudo da conversão de férias em abono pecuniário. B) Natureza jurídica das férias No sistema jurídico-trabalhista, as férias se apresentam como um período em que, à semelhança do que sucede com o repouso semanal e em feriados, há salário sem a correspondente prestação de trabalho. Adiante, veremos que a suspensão do trabalho, sem prejuízo de sua remuneração, classifica- -se como suspensão parcial do contrato ou, segundo a dicção legal(755), como interrupção do contrato. (752) PINTO, Curso de Direito Individual do Trabalho, p. 367. (753) Observa Vólia Cassar que o Brasil foi o terceiro país do mundo a conceder férias anuais remuneradas de quinze dias consecutivos a empregados, sucedendo a Dinamarca e a Inglaterra (CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 733). (754) Informação obtida no sítio virtual da OIT e disponível em: http://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=1000:11300:0::NO:11300:P11300_ INSTRUMENT_ID:312277 (755) Vide artigos 471 e seguintes da CLT. Quando a execução do contrato é suspensa, tanto no tocante à prestação de trabalho quanto no que tange à contraprestação salarial, diz-se que há suspensão (ou suspensão total), e não interrupção do contrato. 278 – Augusto César Leite de Carvalho Ademais, as férias se configuram uma obrigação de não fazer imposta ao empregado e uma obri- gação de dar e de fazer atribuída ao empregador(756). Assim é porque o artigo 138 da CLT veda(757) ao empregado prestar serviço, durante as férias, a outro empregador, salvo se estiver compelido a fazê-lo em razão de contrato de trabalho regularmente mantido com este. Quanto ao empregador, deverá ele conceder as férias (obrigação de fazer) e as remunerar (obrigação de dar). C) Aquisição do direito ao gozo de férias Como regra, o empregado adquire o direito a férias ao final de cada ano do contrato de trabalho. Diferente do que ocorre ao servidor público federal regido pelo ainda vigente Estatuto (Lei n. 8.112/90), não importa o ano civil (01/jan/2013 a 31/dez/2013, v. g.). Para efeito de aquisição de férias, conta-se o ano contratual (06/abr/2013 a 05/abr/2014 ou, noutro exemplo, 14/maio/2010 a 13/maio/2011). Se a cada ano de seu contrato o empregado adquire férias, diz-se que os anos contratuais suces- sivos são períodos aquisitivos. Há, todavia, situações críticas do contrato de emprego que impedem a coincidência entre ano contratual e período aquisitivo, estando essas hipóteses enumeradas nos artigos 132 e 133 da CLT: • Quando o empregado deixa o emprego e não é readmitido dentro de sessenta dias subsequentes à sua saída. Essa hipótese de interrupção do período aquisitivo, prevista no artigo 133, I, da CLT, refere-se ao caso em que o empregado pede demissão e não é admitido, para novo contrato, até o sexagésimo dia seguinte(758); • Quando o empregado permanece em gozo de licença remunerada por mais de trinta dias (art. 133, II, da CLT). A licença remunerada de até trinta dias não exerce qualquer influência na contagem do período aquisitivo. De toda sorte, “a concessão pela empresa de licença remunerada de trinta e um dias ou mais implica apenas na perda do direito às férias do período correspondente e não do terço constitucional. Interpretação em sentido contrário levaria ao absurdo de que, com a simples licença remunerada de trinta e um dias, se livrasse o empregador do pagamento do terço constitucional previsto no art. 7o, XVII, da atual Carta Magna”(759); • Quando o empregado deixa de trabalhar, com percepção de salário, por mais de trinta dias, em virtude de paralisação parcial ou total dos serviços da empresa (art. 133, III, da CLT). Para se valer do permissivo legal, o empregador deverá comunicar a paralisação ao Ministério do Trabalho e ao sindicato da categoria profis- sional com antecedência mínima de quinze dias, afixando avisos no local de trabalho (art. 133, §3o, da CLT). Ao que percebemos, essa hipótese de interrupção do período aquisitivo não exonera o empregador, mais uma vez, de remunerar o tempo de afastamento do empregado com o acréscimo de 1/3 sobre o salário dos primeiros trinta dias sem trabalho, sob pena de se violar a proteção constitucional; • Quando a execução do trabalho é suspensa, com recebimento de auxílio-doença (em razão de enfermidade ou acidente de trabalho), por mais de seis meses, consecutivos ou não. Esse tempo de seis meses deve ser verificado em cada período aquisitivo e, não sendo ele excedido, o afastamento é computado como a cuidar de falta justificada (art. 131, III, da CLT), adquirindo-se o direito a férias normalmente ao final do ano contra- tual. Sobre essa regra – a de excluir do período aquisitivo o afastamento por mais de seis meses em razão de doença ou acidente de trabalho – deve-se observar que o art. 5, item 4, da Convenção 132 da OIT a contra- ria, pois não permite que as ausências por motivo estranho à vontade do empregado possam prejudicá-lo na aquisição de férias. A nosso entendimento, a ratificação pelo Brasil da Convenção 132 importa a derrogação do art. 133, IV, da CLT, de que ora tratamos. Mas a jurisprudência não é pacífica acerca do tema(760). (756) Cf. PINTO, Curso de Direito Individual do Trabalho, p. 371. (757) A norma é aparentemente proibitiva, mas a própria caracterização como norma é relativizada pelo fato de não haver sanção prevista contra o empregado que a descumprir, trabalhando para outro empregador em meio a suas férias. (758) Cf. MARTINS, Sergio Pinto. Comentários à CLT. São Paulo: Atlas, 2001. p. 165. (759) Trecho do precedente TRT, 2a Região, RO 02910158424, Ac. 2a Turma 02930226409, Rel. Juiz Ricardo César Alonso Hespanhol, DJ-SP 2/8/93, p. 348. Apud MARTINS, Sergio Pinto. Comentários à CLT. p. 166. Nesse mesmo sentido: EMBARGOS EM RECURSO DE REVISTA. PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO EMBARGADO ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 11.496/2007. ACRÉSCIMO DE UM TERÇO. CF, ARTIGO 7º, XVII. FÉRIAS NÃO USUFRUÍDAS ANTE A CONCESSÃO DE LICENÇA REMUNERADA POR MAIS DE TRINTA DIAS. PARALISAÇÃO DAS ATIVIDADES DA EMPRESA POR FORÇA DE INTERDIÇÃO JUDICIAL. A concessão de licença remunerada superior a trinta dias (CLT, artigo 133, inciso II) não elide o direito à percepção do adicional à remuneração das férias, consa- grado no artigo 7º, inciso XVII, da Carta Magna vigente, de, -pelo menos, um terço a mais do que o salário normal”, porque à época em que editado o Decreto-lei 1.535/77, que conferiu nova redação à aludida regra legal, era assegurado ao trabalhador o direito tão-somente às -férias anuais remuneradas- (CF/69, art. 165, VIII), sem a vantagem pecuniária prevista no citado artigo 7º, inciso XVII, da CF/88. Assim, não tem aquela norma consolidada o condão de retirar do trabalhador – notadamente no caso em que esse se viu impelido, por força de interdição judicial da empresa, a licenciar-se – o direito ao terço constitucional, principalmente se examinada a questão sob a perspectiva da ampliação do rol de direitos fundamentais dos trabalhadores, instituída pela Carta Política vigente. Precedentes desta SDI-1/TST e da Suprema Corte. Recurso de embargos conhecido e provido” (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR – 42700- 67.2002.5.02.0251 , Relatora Ministra Rosa Maria Weber, Data de Julgamento: 24/05/2012, Data de Publicação: 28/09/2012). (760) Em sentido contrário: “I – AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA – AFASTAMENTO DO TRABALHO POR MAIS DE SEIS MESES. DIREITO A FÉRIAS. Constatada possível violação do art. 133, IV, da CLT, merece provimento o Agravo de Instru- Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 279 • Quando o empregado se afasta para prestar o serviço militar obrigatório, desde que ele compareça ao esta- belecimento do empregador dentro de noventa dias da data em que se verificar a baixa (art. 132 da CLT). Para ter direito à manutenção do emprego, o empregado deve notificar a empresa dessa intenção em trinta dias a partir da baixa (não engajamento), conforme preceitua o artigo 472, §1o, da CLT. Como quer que seja, o empregado que comparece ao estabelecimento do empregador dentro de noventa dias, a partir da baixa, e obtém – porque retornou à empresa no trintídio previsto no artigo 472, §1o, da CLT ou em virtude de tolerância do empregador – a continuidade do seu contrato de emprego, poderá computar a fração de ano contratual interrompida quando do afastamento, para a prestação de serviço militar obrigatório, na contagem de seu período aquisitivo(761). Na última hipótese – afastamento para o serviço militar obrigatório –, o período aquisitivo é apenas suspenso, voltando a correr ao retorno do empregado. Nas demais, o período aquisitivo é interrompido e se reinicia quando o empregado volta a trabalhar, tal como prescreve o artigo 133, §2o, da Consoli- dação das Leis do Trabalho. Não custa lembrar, entretanto, que referidas situações são extraordinárias, pois, regra geral, cada ano contratual corresponde a um período aquisitivo. E se o período aquisitivo é interrompido com a dissolução definitiva do contrato, veremos, logo adiante, que o empregado terá ou não direito de rece- ber uma indenização de valor equivalente aos meses do período aquisitivo já transcorridos, a título de férias proporcionais. D) Período concessivo das férias. Poder patronal de datar a fruição das férias. Fraciona- mento. Aviso-prévio e registros pertinentes O ano contratual que segue o período aquisitivo é compreendido como período concessivo e assim se repete ano após ano. Reza o artigo 134 da Consolidação das Leis do Trabalho que “as férias serão concedidas por ato do empregador, em um só período, nos 12 (doze) meses subsequentes à data em que o empregado tiver adquirido o direito”. Portanto, o primeiro ano contratual é o primeiro período aquisitivo e não mais que isso. A partir do segundo ano contratual, seguem-se anos contratuais que são, cada um deles e a um só tempo, período concessivo das férias adquiridas no ano contratual antecedente e período aquisitivo das férias a serem gozadas no ano contratual que segue. A sequência apenas se modifica nos casos, antevistos, de suspensão ou interrupção do período aquisitivo, previstos nos artigos 132 e 133 da Consolidação das Leis do Trabalho. Ainda assim, a modificação se dá, apenas, no tocante à data de término do período aquisitivo, suspenso ou interrompido, pois se renovará, daí por diante e como acima representado, a sequência de períodos aquisitivos e concessivos. Há três importantes observações a serem destacadas neste momento, em que se introduz o estudo sobre o período concessivo. A primeira delas é relativa ao poder, de que está investido o empregador, de definir os exatos dias de férias em meio a cada período concessivo. A se aplicar o que preceitua o art. 136 da CLT (veremos que a Convenção 132 da OIT prevê a indicação pelo empregado do período de descanso que lhe é preferível), durante o ano contratual que corresponde ao período concessivo, “a época da concessão das férias será a que melhor consulte os interesses do empregador”. A regra tem, porém, duas exceções legais(762), vale dizer, são duas as situações em que o empre- gador não pode consultar apenas o próprio interesse ao fixar os dias de fruição das férias: a) os membros de uma família, que trabalhem no mesmo estabelecimento, ou empresa, terão direito a gozar férias no mesmo período, se assim o desejarem e se disso não resultar prejuízo para o serviço; b) o empregado estudante, menor de dezoito anos, terá direito a fazer coincidir suas férias com as férias mento para determinar o processamento do Recurso de Revista. II – RECURSO DE REVISTA. AFASTAMENTO DO TRABALHO POR MAIS DE SEIS MESES. DIREITO A FÉRIAS. Por força do Decreto n. 3.197/99 a Convenção 132 da OIT passou a integrar o ordenamento jurídico pátrio. Ocorre que referida norma não derrogou o art. 133, IV, da CLT, porquanto a sua aplicação depende, no ponto em comento, de condições a serem determinadas pela autoridade competente ou pelo órgão apropriado de cada país, conforme estabelecido na sua cláu- sula quarta. Recurso de revista conhecido e provido (TST, 8ª Turma, RR 153940-68.2005.5.05.0511, Relator Ministro Márcio Eurico Vitral Amaro, Data de Julgamento: 02/02/2011, Data de Publicação: 04/02/2011). (761) Por exemplo: Início do período aquisitivo em 05/maio/2011; início da prestação do serviço militar em 05/set/2011. Ao receber a baixa, o empregado terá direito a contar esses quatro meses em seu período aquisitivo, que voltará a fluir a partir do retorno do empregado à empresa, desde que tal retorno se dê em até noventa dias a partir da baixa no serviço militar. (762) Artigo 136, §§ 1º e 2º, da CLT. 280 – Augusto César Leite de Carvalho escolares. Valentin Carrion(763) observa que as férias familiais estão condicionadas a requisitos ambí- guos e isso impediria a sua execução, o mesmo não acontecendo com as férias do estudante. A segunda observação é pertinente à possibilidade de o tempo de fruição de férias ser fracionado, frente a antevista dicção do artigo 134 da CLT, caput, que autoriza o empregador a concedê-las “em um só período”. O §1o do dispositivo reporta-se, contudo, à concessão das férias em dois períodos, prescrevendo, para tanto, duas exigências: o fracionamento de férias se dará, somente, em casos excepcionais, que Amaro Barreto(764) diz serem as mesmas que autorizam a jornada extraordinária (artigo 61 da CLT); partidas as férias do empregado, um dos dois períodos não poderá ser inferior a dez dias. O artigo 134, §2o, da CLT refere, todavia, a exceção da exceção, ou seja, a hipótese em que o fracionamento das férias é ilícito, ao estatuir: Aos menores de 18 (dezoito) anos e aos maiores de 50 (cinquenta) anos de idade, as férias serão sempre conce- didas de uma só vez. De toda sorte, a jurisprudência tem enfatizado que a partição não justificada de férias individuais ou a divisão em períodos menores que o de dez dias invalida a concessão de férias, como se pode extrair do precedente seguinte: RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. FÉRIAS. FRACIONAMENTO. PERÍODO SUPE- RIOR A DEZ DIAS. Conforme os termos do art. 134, § 1º, da CLT, as férias devem ser concedidas em um só perí- odo, e somente em situações excepcionais é possível o seu parcelamento, limitado a dois períodos, um dos quais não poderá ser inferior a 10 dias corridos. Portanto, o parcelamento irregular das ferias enseja o pagamento em dobro sempre que o respectivo período concessivo já se tiver exaurido, por não atingir o objetivo assegurado pela lei, qual seja, proporcionar descanso ao trabalhador de modo que se permita a reposição de sua energia física e mental após longo período de prestação de serviços. Assim, e reconsiderando posicionamento anterior exarado em atenção a precedente turmário, entende-se que as férias foram parceladas em situação irregular, pois sem a demonstração de ocorrência de caso excepcional, dando ensejo ao seu pagamento em dobro, por não ter sido atingido o intuito precípuo assegurado por norma cogente de política de saúde e segurança do trabalho. Recurso de embargos conhecido e não provido (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 6500- 92.2008.5.04.0381, Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 31/05/2012, Data de Publicação: 08/06/2012). Ainda quanto ao fracionamento do período de gozo das férias, cabe ressaltar que os marítimos podem ter, a seu pedido e em conformidade com o artigo 150 da CLT, as suas férias parceladas. A exceção à regra geral se justifica, ante a peculiaridade das condições de trabalho no mar. A terceira e última observação é alusiva à exigência de o empregado ser avisado do tempo de gozo de suas férias com antecedência de trinta dias, por escrito e mediante recibo, devendo apre- sentar a sua CTPS(765) para que nesta e também em sua ficha-registro (ou livro de registro, sendo o caso(766)) se anotem os períodos de aquisição e concessão das férias a serem gozadas. O artigo 135 da CLT o impõe, cabendo lembrar que a anotação na CTPS gera presunção relativa em proveito do empregador, como prevê o artigo 40, I, da CLT e recomenda a Súmula 12 do TST(767). Quanto à hipótese de o empregador não pré-avisar o empregado da concessão de suas férias, a orientação jurisprudencial n. 386 da SBDI-1 é taxativa: FÉRIAS. GOZO NA ÉPOCA PRÓPRIA. PAGAMENTO FORA DO PRAZO. DOBRA DEVIDA. ARTS. 137 E 145 DA CLT. É devido o pagamento em dobro da remuneração de férias, incluído o terço constitucional, com base no art. 137 da CLT, quando, ainda que gozadas na época própria, o empregador tenha descumprido o prazo previsto no art. 145 do mesmo diploma legal.(768) D–1) Período legal de fruição em meio ao período concessivo O tempo de fruição das férias adquiridas é maior na razão inversa das faltas injustificadas do empregado. Mas o artigo 130, §1o, da CLT impede que o empregador desconte os dias de falta do período de férias. Em vez disso, a (763) Op. cit. p. 145. Valentin Carrion sustenta, a nosso sentir com razão, a possibilidade de se aplicarem sanções genéricas, inclusive as do artigo 483 da CLT (justa causa do empregador), na hipótese de o empregador violar o preceito alusivo à coincidência entre as férias do empregado menor e as suas férias escolares. (764) Apud Valentin Carrion, op. cit., p. 144. (765)Carteira de Trabalho e Previdência Social. (766) Vide artigo 41 da CLT. (767) Súmula 12 do TST: “As anotações apostas pelo empregador na carteira profissional do empregado não geram presunção juris et de jure, mas apenas juris tantum”. (768) Sérgio Pinto Martins (MARTINS, Comentários à CLT, p. 169) defende o contrário, ou seja, que a desobediência do empregador não acarreta a nulidade das férias se o empregado as gozar efetivamente, mesmo sem ter sido delas avisado, com a antecedência legal. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 281 proporção entre faltas injustificadas e extensão das férias deve ser, para o empregado que presta jornada inteira, aquela que está prevista na cabeça do mesmo artigo 130 e seus quatro incisos: Até 5 faltas => 30 dias 6 a 14 faltas => 24 dias 15 a 23 faltas => 18 dias 24 a 32 faltas => 12 dias É fácil memorizar os números postos, respectivamente, nessas colunas de faltas não justificadas e dias de férias, pois o número de faltas se eleva em oito unidades a cada linha da tabela, enquanto os dias de férias decrescem em seis unidades. Também se pode perceber que o empregado que teve até cinco faltas durante o período aquisitivo não sofre prejuízo quanto ao tempo de fruição de suas férias, malgrado as faltas tenham sido descon- tadas (rectius: não tenham sido remuneradas). Se o empregado faltar injustificadamente em mais de trinta e dois dias, durante o período de aquisição das férias, perde o direito de gozá-las. Deverá aguar- dar o início de novo período aquisitivo e todo o seu transcurso, para obter férias. Sobre as faltas que se justificam, não interferindo, por sua vez, no tempo de fruição das férias, o artigo 131 da CLT as enumera ou lhes faz remissão, ali incluindo os poucos dias de interrupção contratual para efeito de luto, doação de sangue, prestação de exame vestibular, licença-maternidade, licença por aborto, as faltas abonadas mediante pagamento dos dias correspondentes etc. Todavia, a proporção entre faltas e férias, acima referida, não se aplica aos trabalhadores em tempo parcial (ou part time). Inseriu-se na ordem trabalhista do Brasil, a pretexto de intensificar os níveis de emprego, a expressa alusão aos contratos part time, que em outros países têm ocupado, durante certas estações do ano, adolescentes e mulheres com dupla jornada, por exemplo. Nada impedia, porém, que, antes do advento da primeira medida provisória que regulou os contratos em tempo parcial, houvesse a contratação dessas pessoas por apenas um turno, pagando-se salário proporcional. A mudança, para eles, deu-se somente quanto às férias. Em última análise, a distinção que restou foi a de os trabalhadores em tempo parcial, assim compreendidos quando não prestam a um só empregador mais de vinte e cinco horas de trabalho por semana, terem um período de férias que foge aos parâmetros sobreditos. É que as suas férias se reduzem na proporção direta em que é menor a sua carga horária semanal de trabalho, sendo de no mínimo dez dias e de no máximo dezoito dias de férias. Dispõe, nesse sentido, o artigo 130-A da CLT. O parágrafo único do mesmo artigo estatui que se o empregado, contratado sob o regime de tempo parcial, contar mais de sete faltas injustificadas no período aquisitivo correspondente, terá ele o seu período de férias reduzido à metade. E) Possibilidade de conversão em pecúnia O empregado, e apenas ele, pode converter 1/3 (um terço) de suas férias em abono pecuniário. Se tiver a pretensão, deverá o trabalhador manifestá-la até quinze dias antes de se concluir o período aquisitivo. Essa é a regra do artigo 143 e §1o, da CLT. Ao acrescentar à remuneração das férias um valor equivalente ao terço do salário, a Constituição de 1988 poderia ter inibido a prática de vender parte das férias, em prejuízo do tempo reservado ao lazer e ao convívio familiar. Mas não o fez. Os dois institutos (o abono de 1/3 das férias e o acréscimo de 1/3 sobre a remuneração das férias) atualmente não se excluem, pois o empregado converte em abono um terço de seu tempo de férias e, como reza o artigo 143 da CLT que a conversão se dá no valor da remuneração que lhe seria devida nos dias correspondentes, postula ele, com aparente razão, que o cálculo do abono pecuniário leve em conta o acréscimo de 1/3 sobre o salário. A SBDI-1 do TST procurou, todavia, emprestar aos dispositivos de lei uma exegese que harmoni- zasse a finalidade da remuneração acrescida de 1/3 com a do abono pecuniário, ao decidir que “[...] o art. 143 da CLT comporta interpretação – a um só tempo sistemática e histórica – na direção de não permi- tir que a vontade constitucional eleve, por via oblíqua, o valor do abono pecuniário, quando em verdade a inten- ção do constituinte fora a de evitar que o abono pecuniário fosse necessário para o empregado financiar o seu lazer em meio às férias. Acresceu à remuneração das férias o valor equivalente ao antigo abono, mas o abono subsistiu na ordem jurídica infraconstitucional. Prevalece, por conseguinte, o entendimento sufragado pelo acór- dão turmário, qual seja, o de que o abono pecuniário previsto no art. 143 da CLT deve equivaler à remuneração 282 – Augusto César Leite de Carvalho do trabalho nos dias a que ele corresponde, sem o acréscimo ou o reflexo de 1/3 que incide sobre a remuneração de todo o período de férias (inclusive sobre os dias de férias convertidos em pecúnia)”(769). Há, ainda, que a faculdade de converter parte das férias em abono pecuniário sofre exceção nos casos de trabalho em tempo parcial, uma vez que o empregado que presta serviço sob tal regime não pode requerer a conversão de 1/3 de suas férias em dinheiro. Veda-o o artigo 143, §3o, da CLT. Também o professor não pode, a princípio, converter o terço de suas férias em pecúnia, pois o período em que as goza é, regra geral, aquele em que há o recesso escolar, quase sempre o mês de julho de cada ano(770). F) Remuneração das férias – base de cálculo, prazo legal e sanção jurídica Conforme assinalamos, o artigo 7o, XVII, da Constituição assegura o gozo de férias anuais remu- neradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal. Por seu turno, a Consolidação das Leis do Trabalho estatui, no artigo 142, que o empregado perceberá, durante as férias, a remuneração que lhe for devida na data da sua concessão. Há, como se extrai dos parágrafos do mesmo dispositivo da CLT, a clara preocupação de garantir ao empregado, nas férias, a remuneração em vigor ao tempo em que as férias são concedidas (1), mas computando-se sempre, nos casos de salário por tarefa ou recebimento habitual de adicionais, a média salarial vencida nos doze meses do período aquisitivo correspondente (2). A regra de considerar o salário médio do período aquisitivo não é absoluta, porém. Cuidando-se de empregado que percebe salário fixado em percentagem, comissão ou por viagem, a média salarial a ser levada em conta é a dos doze meses que antecedem a concessão das férias, porque assim exige o artigo 142, §3o, da CLT. A remuneração das férias e, sendo o caso, o pagamento do abono pecuniário devem acontecer até dois dias antes de as férias se iniciarem(771), pois desse modo o empregado organiza e financia o seu descanso à sua conveniência. A propósito, a jurisprudência tem sido rigorosa quanto ao cumpri- mento desse prazo, conforme se extrai da Súmula 450 do TST: “É devido o pagamento em dobro da remuneração de férias, incluído o terço constitucional, com base no art. 137 da CLT, quando, ainda que gozadas na época própria, o empregador tenha descumprido o prazo previsto no art. 145 do mesmo diploma legal.” O recibo assinado pelo empregado serve, usualmente, como prova de que as férias foram regu- larmente concedidas e remuneradas. Mas pode o empregado produzir contraprova, persuadindo o juiz de que não teria gozado as férias referidas em citado documento. G) Férias não concedidas. Remuneração em dobro e outras sanções O empregador que negligencia o seu dever de conceder e remunerar as férias, em meio ao perí- odo concessivo, sofre as sanções previstas no artigo 137 da CLT, quais sejam: • A remuneração em dobro das férias. Se apenas parte das férias são gozadas após o correspondente período concessivo, remuneram-se esses dias excedentes em dobro(772). • O empregado poderá ajuizar reclamação trabalhista para que a Justiça do Trabalho fixe, por sentença e sob cominação de multa diária, a época de fruição das férias. (769) Na íntegra: RECURSO DE EMBARGOS INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI 11.496/2007. FÉRIAS. ACRÉSCIMO DE 1/3 SOBRE O ABONO PECUNIÁRIO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 143 DA CLT. A Colenda Turma decidiu que o abono pecuniário não deve sofrer o reflexo do terço constitucional, que compõe a remuneração das férias, pois há de equivaler à remuneração do trabalho nos dez dias a que de fato corresponde. Em rigor, o art. 143 da CLT comporta interpretação – a um só tempo sistemática e histórica – na direção de não permitir que a vontade constitucional eleve, por via oblíqua, o valor do abono pecuniário, quando em verdade a intenção do constituinte fora a de evitar que o abono pecuniário fosse necessário para o empregado financiar o seu lazer em meio às férias. Acresceu à remuneração das férias o valor equivalente ao antigo abono, mas o abono subsistiu na ordem jurídica infraconstitucional. Prevalece, por conseguinte, o entendimento sufragado pelo acórdão turmário, qual seja, o de que o abono pecuniário previsto no art. 143 da CLT deve equivaler à remu- neração do trabalho nos dias a que ele corresponde, sem o acréscimo ou o reflexo de 1/3 que incide sobre a remuneração de todo o período de férias (inclusive sobre os dias de férias convertidos em pecúnia). Embargos conhecidos e não providos (TST, SBDI-1, E-RR-585800- 56.2007.5.12.0026 , Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 16/02/2012, Data de Publicação: 02/03/2012). (770) Cf. CARRION, Valentin. Op. cit. p. 224. (771) Vide artigo 145 da CLT. (772) Vide Súmula 81 do TST: “Os dias de férias, gozadas após o período legal de concessão, deverão ser remunerados em dobro”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 283 • Aplicação de multa administrativa, para tanto devendo ser informado o Ministério do Trabalho do transcurso do período concessivo sem a concessão das férias. H) Férias coletivas Especialmente nos períodos de crise no mercado, é comum ocorrer ao empregador a ideia de conceder férias a todos os seus empregados ou àqueles que operam no estabelecimento ou setor crítico, com o claro objetivo de cessar o custo da produção enquanto o mercado está reprimido. A iniciativa patronal é, então, lícita, prescrevendo o artigo 139 da CLT que “poderão ser concedi- das férias coletivas a todos os empregados de uma empresa ou de determinados estabelecimentos ou setores da empresa”. A concessão de férias coletivas observará, todavia, algumas regras específicas. Sob o ponto de vista formal(773), as regras são as seguintes: • Necessidade de comunicação, pelo empregador, ao Ministério do Trabalho, com antecedência de pelo menos quinze dias, sobre datas de início e término das férias coletivas, bem assim sobre estabelecimentos ou seto- res atingidos. • Envio de cópia da referida comunicação ao sindicato representativo da categoria profissional. • Afixação de aviso nos locais de trabalho. • A possibilidade, na hipótese de serem concedidas férias a mais de trezentos empregados, de o empregador anotar, mediante carimbo aprovado pelo Ministério do Trabalho, o período de gozo de férias coletivas na CTPS dos empregados, dispensada a anotação dos correspondentes períodos aquisitivos individuais. Sobre os aspectos substanciais, o que caracteriza as férias coletivas são as seguintes regras: • O fracionamento das férias em dois períodos é possível, desde que ambos os períodos sejam de, no mínimo, dez dias (artigo 139, §1º, da CLT). Vimos que a partição das férias individuais impede que um dos períodos (e não os dois) seja inferior a dez dias corridos. • A conversão em abono pecuniário de 1/3 (um terço) das férias coletivas é possível, mas independe de reque- rimento do empregado e somente pode ser ajustado mediante acordo coletivo de trabalho (artigo 143, §2º, da CLT). • Os empregados que ainda não houverem adquirido férias deverão gozar, quando atingidos pela concessão de férias coletivas, férias proporcionais à fração do período aquisitivo já transcorrida, iniciando-se novo período aquisitivo (artigo 140 da CLT). A regra é de difícil aplicação, pois não há tarefas que possam ser cometidas ao empregado quando cessam as suas férias proporcionais e todos os outros empregados continuam em gozo de férias coletivas. Melhor é converter o tempo excedente, de lege ferenda, em licença remunerada, ou mesmo permitir, nesse caso excepcional, e se tal não fugir aos limites da razoabilidade, o gozo antecipado de férias (coletivas) ainda não adquiridas. I) Efeitos da cessação do contrato. Férias vencidas e proporcionais Findo o contrato de emprego, as férias adquiridas devem ser sempre indenizadas, não impor- tando saber se foi do empregado ou do empregador a iniciativa do desate contratual, nem mesmo se o vínculo se dissolveu com ou sem justa causa. Assim impõe o artigo 146 da CLT, interessando dizer que a indenização será devida em dobro quanto às férias cujo período concessivo já se tenha exaurido. Mas algum período aquisitivo normalmente está em curso quando há a cessação do contrato e, então, surge a dúvida sobre serem ou não devidas as férias proporcionais, que vêm a ser a indeniza- ção de valor correspondente a tantos duodécimos (1/12) quantos sejam os meses (ou período superior a quatorze dias) transcorridos do período aquisitivo interrompido pelo fim do contrato. A CLT diferenciou empregados com menos de um ano daqueles outros com mais de um ano de emprego. Para os empregados com menos de um ano, a lei assegura férias proporcionais somente nas hipóteses de ele ser dispensado sem justa causa (1) ou quando o seu contrato for por tempo determi- nado e se extinguir normalmente (2). Embora essa interpretação fizesse concluir que em todos os outros casos as férias proporcionais não seriam devidas para os empregados que não houvessem completado um ano de emprego (só o sendo, segundo o preceito legal, nas dispensas sem justa causa e na extinção dos contratos a termo), é certo que a Súmula 171 do TST veicula, há algum tempo, outra orientação: Salvo na hipótese de dispensa do empregado por justa causa, a extinção do contrato de trabalho sujeita o empre- gador ao pagamento da remuneração das férias proporcionais, ainda que incompleto o período aquisitivo de 12 (doze) meses (art. 147 da CLT). (773) Vide artigo 139, §§2º e 3º, da CLT e, quanto ao carimbo, artigo 141. 284 – Augusto César Leite de Carvalho Sobreveio, ademais, a ratificação da Convenção 132 da OIT(774) que, mais abrangente, estabe- lece o direito a férias proporcionais sem restrição em virtude do modo como se põe fim ao contrato. Embora a jurisprudência continue firme ao negar férias proporcionais nos casos em que o empregado é dispensado por justa causa(775), a influência da citada norma internacional já se fez sentir, por exem- plo, quando o TST atualizou a sua Súmula 261 para dar-lhe o seguinte teor: “O empregado que se demite antes de completar 12 (doze) meses de serviço tem direito a férias proporcionais” (antes, o verbete preconizava o inverso – “não tem direito” – com base no preceito, faz pouco citado, da CLT). De todo modo, o debate somente guarda pertinência com os empregados que não completaram o primeiro ano contratual, tendendo a jurisprudência, ao que parece e com equidade, a só lhes negar direito a férias proporcionais quando despedidos por justa causa. Para os empregados que superaram o primeiro ano de emprego, a regra é sempre inclusiva, pois somente não terão direito às férias propor- cionais os empregados que, a partir do segundo ano do contrato, forem dispensados por justa causa. Assim estatui o artigo 146, parágrafo único, da CLT. J) Férias remuneradas mas não gozadas E quando o empregador remunera férias não gozadas, convertendo-as integralmente em dinheiro? A jurisprudência tem afirmado a ilicitude dessa prática empresarial, porquanto absolutamente indispo- nível o direito à fruição de férias. Contudo, são várias as decisões judiciais que mandam pagar apenas a dobra das férias não gozadas, e ainda assim quando o respectivo período concessivo se houver esgotado antes do desate contratual. O fundamento para tal decisão seria evitar o enriquecimento sem causa do empregado. Enquanto age assim, a Justiça do Trabalho legitima, involuntariamente, a conversão em pecúnia de todo o período de férias, pois em última análise atribui a essa conduta algum efeito jurídico. O que dizer do empregado cujo contrato ainda está em curso, mas vem trabalhando, anos segui- dos, em períodos nos quais, segundo os recibos de férias, seriam de fruição destas? No caso de o empregado vir recebendo a remuneração de tais férias (não gozadas), independentemente do salário relativo ao trabalho nesses períodos, poderia o empregado postular a fixação, pelo juízo trabalhista, da época de gozo das férias por ele adquiridas (artigo 137, §1o, da CLT)? Se o fizesse (como nos parece justo e jurídico), estaria ele na contingência de gozar férias sem a remuneração correspondente, pois que já a teria recebido? Parece-nos que essas questões conduzirão o nosso interlocutor à perple- xidade se resistir ele à percepção de que a conversão irregular de férias não tem efeito liberatório, estando destituída de qualquer respaldo jurídico. Em boa hora, notam-se decisões, inclusive no âmbito da SBDI-1 do TST(776), enveredando pelo caminho mais justo, o de não permitir que a compra de férias do empregado possa repercutir na inde- nização de valor correspondente às férias não gozadas. Se a conversão ilegal do período de férias, em meio à relação laboral, distingue-se da indenização devida na cessação do contrato, conclui-se que o empregador deve indenizar em sua integralidade as férias não gozadas, não importando o valor que pagou pelo silêncio do empregado. Não é devida apenas a dobra das férias (porque então se consideraria o valor adiantado pelo empregador para comprar as férias), mas indenizam-se as férias inteiramente – na forma simples ou dobrada, a depender de já se ter esgotado o período concessivo na cessação do contrato. O ato ilícito, deliberadamente ilícito, não deve surtir qualquer efeito jurídico. K) As férias do empregado doméstico A Consolidação das Leis do Trabalho não se aplica ao empregado doméstico, dada a restrição contida em seu artigo 7o, a. O direito está atualmente regido pelo art. 17 da Lei n. Complementar n. 150, de 2015, no tocante ao empregado doméstico com jornada integral, reduzindo-se o tempo de férias em favor do doméstico contratado a tempo parcial na proporção do art. 3º, §3º, da mesma lei(777). (774) A Súmula 261 do TST ganhou nova redação a pretexto de a Convenção 132 da OIT prescrever férias proporcionais incondicio- nalmente. Ao analisarmos a Convenção 132, ainda neste capítulo, consignaremos nossa divergência a esse entendimento. Ver também: CARVALHO, Augusto César Leite de. “Férias na CLT e na Convenção 132 da OIT: Normas Parcialmente Antinômicas”. In: Curso de Direito Internacional Contemporâneo: estudos em homenagem ao Prof. Dr. Luís Ivani de Amorim Araújo. Coordenador Florisbal de Souza Del’Olmo. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 107-124. (775) TST, SBDI-1, E-RR 14700-41.2002.5.12.0037, Rel. Min. Rosa Maria Weber, DEJT 18/02/2011. (776) Nesse sentido: TST, SBDI-1, E-RR 1007356-10.2003.5.04.0900, Rel. Min. João Batista Brito Pereira, Data de Julgamento: 25/02/2010, Data de Publicação: 05/03/2010. (777) Prevê o art. 3º, §3º da LC 150/2015: “Na modalidade do regime de tempo parcial, após cada período de 12 (doze) meses de vigência Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 285 Para os que prestam jornada integral, ou seja, trabalham vinte e cinco horas ou mais por semana para determinado empregador (art. 3º da LC n. 150), é assegurado o direito a férias anuais remuneradas de trinta dias com acréscimo de, pelo menos, um terço do salário normal(778). O legislador mostrou-se sensível à carência de moradia que tantas vezes assiste ao empregado doméstico quando previu ser “lícito ao empregado que reside no local de trabalho nele permanecer durante as férias” (art. 17, §5º, da LC n. 150). Ao empregado doméstico foi definitivamente estendido o direito às férias proporcionais, vale dizer: “na cessação do contrato de trabalho, o empregado, desde que não tenha sido demitido por justa causa, terá direito à remuneração relativa ao período incompleto de férias, na proporção de um doze avos por mês de serviço ou fração superior a 14 (quatorze) dias”. Sequer se aplica ao doméstico a discussão acerca de lhe serem, ou não, asseguradas férias proporcionais em outros casos de disso- lução contratual (morte, aposentadoria, pedido de demissão etc.), pois a lei esclarece que somente a dispensa por justa causa exclui o direito a férias proporcionais. Houve avanço significativo, portanto, em relação ao estágio legal e jurisprudencial anterior(779). Quanto à conversão em abono pecuniário de até um terço das férias, residualmente prevista na CLT para os trabalhadores em geral, o art. 17, §3º, da LC n. 150 a faculta ao empregado doméstico, do contrato de trabalho, o empregado terá direito a férias, na seguinte proporção: I – 18 (dezoito) dias, para a duração do trabalho semanal superior a 22 (vinte e duas) horas, até 25 (vinte e cinco) horas; II – 16 (dezesseis) dias, para a duração do trabalho semanal superior a 20 (vinte) horas, até 22 (vinte e duas) horas; III – 14 (quatorze) dias, para a duração do trabalho semanal superior a 15 (quinze) horas, até 20 (vinte) horas; IV – 12 (doze) dias, para a duração do trabalho semanal superior a 10 (dez) horas, até 15 (quinze) horas; V – 10 (dez) dias, para a duração do trabalho semanal superior a 5 (cinco) horas, até 10 (dez) horas; VI – 8 (oito) dias, para a duração do trabalho semanal igual ou inferior a 5 (cinco) horas.”  (778) A partir de quando teve a sua redação alterada pela Lei n. 11.324/2006, o artigo 3o da Lei n. 5.859, de 1972, já assegurava ao empre- gado doméstico “férias anuais remuneradas de 30 (trinta) dias com, pelo menos, 1/3 (um terço) a mais que o salário normal, após cada período de 12 (doze) meses de trabalho, prestado à mesma pessoa ou família”. A Lei n. 5.859/72 não faz referência a férias proporcionais nem à remuneração ou indenização dobrada de férias cuja concessão seja negligenciada pelo empregador, bastando isso para que uma forte corrente jurisprudencial se tenha desenvolvido no sentido de não caberem, em favor do doméstico, férias proporcionais ou a dobra das férias não concedidas. A jurisprudência anterior à LC 150/2015, havia decisões contrárias ao direito do doméstico a férias proporcionais: “EMPREGADO DOMÉSTICO. FÉRIAS PROPORCIONAIS. Indevido o pagamento das férias proporcionais aos domésticos, bem como a Constituição Federal não lhe asseguram tal vantagem. Embargos providos” (TST, SBDI I, ERR 324225/96, Red. Min. Vantuil Abdala, j. 27/03/2000, DJ 26/05/2000, p. 339). Contra o direito também às férias em dobro: TST, 5a Turma, RR 374902/97, Rel. Juiz Convocado Guedes de Amorim, j. 21/02/2001, DJ 16/03/2001, p. 870. (779) Antes da LC 150/2015, numa aparente contradição, o artigo 2o do Decreto 71.885, de 1973, ao regulamentar a Lei n. 5.859, de 1972, prescrevia que, “excetuando o Capítulo referente a férias, não se aplicam aos empregados domésticos as demais disposições da CLT”. Em outras palavras, o decreto estaria a atribuir aos domésticos, no tocante a férias, a regência pela CLT, que a própria CLT havia negado. Não raro, a citada antinomia entre normas era solucionada com base no critério da hierarquia, sendo inválida a norma regulamentadora (Decreto n. 71.885/73) que estaria afrontando a Consolidação das Leis do Trabalho. A matéria era essencialmente jurídica e, em rigor, não estava pacificada. À orientação majoritária oferecia-se argumento contrário e persuasivo, que se baseava em premissa histórica relevante: o Decreto 71.885 dispôs sobre a aplicação, em favor do doméstico, do capítulo relativo a férias, pela singela razão de, no ano de sua edição (1973), haver a clara intenção de o legislador estender ao doméstico, no tocante a férias, os mesmos direitos assegurados aos demais empre- gados pela CLT. Havia, assim, perfeita simetria entre o tratamento dado às férias do doméstico e aquele dispensado aos demais empregados. Também a CLT estabelecia, até 1977, férias de vinte dias úteis, do mesmo modo como previa a lei regente do emprego doméstico até a edição da Lei n. 11.324, de 2006. O Decreto-lei n. 1.535, de 1977, ao alterar o capítulo pertinente da Consolidação das Leis do Trabalho, rompeu essa isonomia, pois escalonou o período de férias e o fixou em dias corridos (não mais em dias úteis) para todos os trabalhadores. Mas pareceu esquecido o legislador de que a nova regra seria inaplicável ao empregado doméstico, dada a vedação do artigo 7o, a, da CLT. A nosso ver, a posição minoritária se baseava em fundamento persuasivo que remetia ao artigo 7o da Constituição para sustentar que o preceito maior teria restabelecido o tratamento isonômico, porquanto estendeu ao doméstico, sem peias, o mesmo direito a férias anuais remuneradas que assegurou a todos os trabalhadores urbanos e rurais (artigo 7o, parágrafo único, da Constituição). Ademais, a Convenção 132 da OIT não discrimina os empregados domésticos, posto exclua de sua proteção apenas os marítimos. Ter-se-ia resgatado a igualdade de direitos que, em 1972 e consoante sobrevisto, foi querida pelos que redigiram a Lei n. 5.859 e a regulamentaram, todos cônscios de que não havia por que discriminar, no que tange a férias, a categoria sempre aviltada dos empregados domésticos. Há, nesse sentido, precedente emblemá- tico: EMBARGOS. EMPREGADO DOMÉSTICO. FÉRIAS PROPORCIONAIS. DEVIDAS. 1. A Constituição da República, por força do disposto no parágrafo único do artigo 7º, estendeu aos empregados domésticos a garantia ao gozo de férias anuais remuneradas previsto no inciso XVII do indigitado dispositivo constitucional. Tal garantia abrange, por óbvio, tanto o direito à percepção do valor correspondente ao período integral de férias quanto o proporcional. 2. Frise-se que, nos termos da Convenção n. 132 da Organização Internacional do Traba- lho, ratificada pelo Brasil e incorporada à ordem jurídica interna por meio do Decreto n. 3.197 de 5.10.1999, o direito às férias remuneradas é assegurado a todas as categorias de empregados não excepcionadas pela própria norma (marítimos) ou por declaração expressa produzida no ato de ratificação. O Brasil ratificou o instrumento declarando o aplicável aos empregados urbanos e rurais, sem consignar qualquer exce- ção. Tal convenção assegura, no seu artigo 4.º, § 1.º, o direito à percepção do valor correspondente às férias, proporcionalmente ao período trabalhado. 3. Recurso de Embargos conhecido e não provido (TST, SBDI-1, E-RR 187700-13.2002.5.02.0441, Rel. Min. Lelio Bentes Corrêa, Data de Julgamento: 11/02/2008, Data de Publicação: 22/02/2008). 286 – Augusto César Leite de Carvalho mas eleva para trinta dias (antes de terminar o período aquisitivo correspondente) o prazo para o traba- lhador postulá-la (§4º). Os empregados regidos pela CLT têm prazo de até quinze dias antes do final do período aquisitivo para exercerem o direito ao abono (art. 143, §1º, da CLT). Novidade se instalou, a bem dizer, no que concerne ao fracionamento das férias. Enquanto esse direito está condicionado a motivo extraordinário para os trabalhadores em geral, o art. 17, §2º, da Lei n. Complementar n. 150/2015 franqueia esse direito de fracionamento ao empregador, que poderá exercê-lo livremente, desde que fatie as férias em no máximo dois períodos e um desses períodos seja de no mínimo quatorze dias. Questão vexatória permanecerá sendo a de o empregado doméstico ter direito à remuneração ou indenização em dobro das férias não concedidas nos doze meses que correspondem ao perí- odo concessivo. Pensamos seja relevante o fato de precedentes do Tribunal Superior do Trabalho conterem o reconhecimento de que são extensíveis aos domésticos, mesmo antes de sobrevir a LC n.150/2015, as regras da CLT relativas à dobra das férias não gozadas(780). L) Prescrição das férias Em se tratando de prescrição, o princípio assente é o da actio nata, ou seja, o prazo prescricional flui a partir do nascimento do direito de ação, vale dizer, da exigibilidade da pretensão. Logo, o prazo de prescrição que corre contra a pretensão de férias deve ter início quando se esgota o período conces- sivo e nasce então, para o trabalhador, o direito de exigir a fixação, pela Justiça do Trabalho, do seu período de fruição de férias. Poder-se-ia argumentar que um mês antes do período de gozo de férias o empregador deve avisar o empregado sobre a data de início das férias, isso importando dizer que a infração patronal antecederia o dia de término do período concessivo. O legislador abstraiu, contudo, dessa discussão e, conforme sobrevisto, fixou o início do prazo prescricional, no tocante às férias, no final do prazo concessivo, pura e simplesmente. Dispõe, em mencionado sentido, o artigo 149 da Consolidação das Leis do Trabalho. Um exemplo é elucidativo. As férias adquiridas em maio de 2010 estarão alcançadas pela prescri- ção trabalhista, que é de cinco anos a partir da lesão, em maio de 2016, pois se contarão cinco anos a partir do término do período concessivo (maio/2011). Se o contrato de emprego cessou antes de maio de 2011, contar-se-á também o biênio prescritivo que flui a partir da cessação do contrato, operando-se a prescrição em maio de 2016 ou ao final dos dois anos, o que se completar antes(781). Mas recordemos que a prescrição trabalhista é de direito patrimonial, não se a pronunciando se não for ela suscitada pelo empregador. M) A Convenção 132 da OIT Discussão interessante pode ser travada desde a ratificação, pelo Brasil, em 1999, da Convenção n. 132 da Organização Internacional do Trabalho. Trata-se de norma de direito internacional que cuida de férias remuneradas e teve a sua validade reconhecida pelo ordenamento pátrio, na esteira do artigo 5o, §2o, da CLT, integrando-se, desse modo, em nossa ordem trabalhista. A questão é, porém, delicada, ante a aparente antinomia entre os vários dispositivos da Convenção n. 132 da OIT e os artigos da CLT que regulam a mesma matéria. Ante tal conflito, afirmamos por longo tempo que ao agente do direito do trabalho caberia, simplesmente, preferir a norma mais favorável, (780) RECURSO DE EMBARGOS INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI N.º 11.496/2007. ACÓRDÃO TURMÁRIO COMPLEMEN- TAR PUBLICADO EM 06/06/2008. EMPREGO DOMÉSTICO. FÉRIAS. DOBRA LEGAL DEVIDA. PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA PROTEÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. APLICABILIDADE. 1. A mais moderna jurisprudência desta SDI-1 tem o firme entendimento de que é mera decorrência do princípio da igualdade e da proteção à dignidade da pessoa humana, erigidos como pilares do ideário da República Federativa do Brasil, o reconhecimento de que os empregados domésticos têm o direito à dobra legal pela concessão das férias após o prazo. Precedentes: (TST-E-RR-1877/2002-441-02-00.5, Rel. Min. Lelio Bentes Corrêa, DJ de 22/02/2008; TST-E-RR-733/1994-302-01-00.5, Re. Min. Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DJ de 06/06/2008; E-RR-1053/2003-052-15-00, Min. Rel. HORÁCIO SENNA PIRES, DJ – 29/08/2008). 2. Desse entendimento não discrepou o acórdão turmário. 3. Recurso de Embargos conhe- cido e desprovido (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 737500-65.2001.5.12.0034, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, Data de Julgamento: 22/09/2008, Data de Publicação: 26/09/2008). (781) Quanto à prescrição, é sempre prático observar se há dois anos entre a cessação do contrato e o ajuizamento da ação. Se há, todo o contrato está prescrito, inclusive no tocante às férias. Se não há, consulta-se apenas a prescrição quinquenal, esquecendo-se a bienal. Artigo 7º XXIX, da Constituição. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 287 embora atento à técnica do conglobamento, tudo como vimos ao estudo do princípio da proteção. Por conseguinte, buscar-se-ia a norma que, em seu conjunto, mais favorecesse o empregado, cabendo inclusive perceber alguma inquietação doutrinária acerca de a Convenção n. 132 significar avanço significativo quando comparada à proteção já antes garantida pela CLT(782). Sobreveio, em contraponto, de o Supremo Tribunal Federal afirmar a supralegalidade das normas de direito internacional, em especial daquelas que veiculam direitos humanos (as férias, sendo direito social, enquadram-se no rol dos direitos humanos de segunda dimensão(783)), mesmo quando não atendem ao quórum previsto no art. 5º, §3º, da Constituição para alçá-las, se atingido, ao nível de emenda constitucional. Esse argumento – que conduziria à prevalência incondicional da Convenção 132 – tem sua força mitigada, é bem verdade, em virtude de as convenções da OIT, visando viabilizar as ratificações, permitirem a sobrevigência de normas internas compatíveis com os seus preceitos. Além disso, a norma trabalhista de hierarquia superior normalmente estabelece direito trabalhista como direito mínimo e ressalva, por isso mesmo, a eficácia da norma inferior mais benéfica. Os dispositi- vos da Convenção 132 preservam a força normativa da lei nacional, quando mais favorável ao trabalhador. De tudo se extrai que a Convenção 132 é norma hierarquicamente superior e cronologicamente posterior à CLT(784), mas o seu conteúdo é fluido à sobrevigência de norma nacional mais favorável ou compatível com as suas disposições. Portanto, os preceitos da Convenção 132 se internalizaram em nosso ordenamento jurídico, mas não derrogaram as regras previstas na CLT que se coadunam com as suas diretrizes, sobretudo com o propósito de garantir uma existência digna para os trabalhadores. Nos assuntos não regidos pela CLT, a Convenção 132 pôde imiscuir-se em nossa ordem jurídica sem maior recato. Embora seja escassa a jurisprudência a propósito, entendemos que um avanço expressivo, promovido pela citada norma internacional, terá sido a regra segundo a qual não se compu- tam, como dias de férias, aqueles nos quais o empregado está incapacitado por motivo de doença ou acidente (art. 6.2 da Convenção 132 da OIT). Não se trata de acrescer às férias os dias, a elas inter- correntes, de uma enfermidade qualquer, mas sim de lhes acrescer os dias, em seu decurso, de inca- pacidade. Quem está incapacitado para trabalhar também é incapaz de exercer, pela mesma razão, o seu direito fundamental ao lazer, ao repouso restaurador, ao convívio social ou familiar. A Convenção 132 contém regras diferentes, mas não incompatíveis, com as da CLT. Exempli gratia, a norma convencional prevê o ano civil como parâmetro para a aquisição e o gozo de férias, enquanto a norma consolidada usa como critério o ano contratual. A observância do ano contratual já se consolidou entre nós, não se justificando a adoção de critério diverso, apenas recomendado (não imposto) pela Convenção(785). A influência da Convenção 132 pôde ser sentida, todavia, quando o TST ajustou o enunciado da Súmula 261 para esclarecer, com base na Convenção 132 e em detrimento de regra mais gravosa da CLT, que as férias proporcionais são devidas mesmo quando o empregado se demite antes de comple- tar o primeiro ano de emprego. Assim agiu o TST porque a prevalência da Convenção 132, nesse caso, não se incompatibiliza com qualquer outro direito cuja regência seja atribuída à CLT. A nosso pensamento, igual raciocínio pode ser desenvolvido quanto ao afastamento por doença ou acidente de trabalho que se estenda por mais de seis meses. Embora a CLT preveja que tal evento implicará o reinício do período aquisitivo, entendemos aplicável a Convenção 132 da OIT que impõe seja considerado esse tempo para efeito de aquisição de férias, sem ruptura do período aquisitivo(786). (782) Anota Mauricio Godinho Delgado: “[...] a Convenção chega a apresentar maior número de regras menos favoráveis, o que cria a dúvida sobre se sua recente adoção não terá vindo essencialmente somar-se ao caminho flexibilizatório de normas justrabalhistas perfilado oficialmente na década de 1990 no país” (DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2013. p. 994). (783) Assim se posiciona (quanto à convenção internacional sobre férias versar sobre direitos humanos), por exemplo, Carlos Henrique Bezerra Leite: LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 459. (784) Salvo alguns dispositivos relativos às férias dos trabalhadores que trabalham em tempo parcial, acrescidos à CLT em 2001, os demais dispositivos remontam a um tempo anterior à ratificação da Convenção 132, ocorrida em 1999. (785) O art. 4.2 da Convenção 132 prevê: “Para os fins deste artigo o termo ‘ano’ significa ano civil ou qualquer outro período de igual dura- ção fixado pela autoridade ou órgão apropriado do país interessado”. (786) Art. 5.4 da Convenção 132 – “Nas condições a serem determinadas pela autoridade competente ou pelo órgão apropriado de cada país, as faltas ao trabalho por motivos independentes da vontade individual da pessoa empregada interessada, tais como faltas devidas a doenças, a acidente, ou a licença para gestante, não poderão ser computadas como parte das férias remuneradas anuais mínimas previstas no parágrafo 3 do art. 3 da presente Convenção”. 288 – Augusto César Leite de Carvalho O direito assim garantido pela Convenção 132 não se mostra incompatível com qualquer outro regido pela CLT, salvo, evidentemente, com o artigo especificamente preterido. Diferente seria a hipótese de se pretender a prevalência da Convenção 132 no tocante ao acrés- cimo, ao período de férias, dos dias correspondentes aos feriados intercorrentes ao período de sua fruição. Haveria, nesse caso, clara incompatibilidade com o período mais extenso de gozo de férias, previsto na CLT, e afinal é de tempo de gozo de férias que se estaria a tratar. Se o tempo de fruição assegurado na CLT (até trinta dias para o empregado com até cinco faltas injustificadas) é mais bené- fico que o da Convenção 132 da OIT (três semanas, mais feriados intercorrentes), prevalece a regra da CLT(787). Até por derivação, o mesmo ocorre com a pretensão de aplicar-se a regra da Convenção 132 da OIT que prevê a fruição de férias proporcional ao ano civil que não se teria completado porque o empregado haveria ingressado na empresa após o mês de janeiro – tal proposição seria inconciliável com a adoção, pela CLT, do ano contratual (não do ano civil) como parâmetro para aquisição de férias. A CLT, no tópico e em seu conjunto, é norma mais benéfica ao trabalhador. Em resumo, as diferenças podem ser assim enumeradas: • O período mínimo de férias, previsto na Convenção n. 132 da OIT, é de três semanas por ano de serviço (artigo 3, item 3). Não se contam, nesse período de gozo de férias, os feriados oficiais ou estabelecidos pelo costume (artigo 6, item 1). No Brasil, para o empregado com jornada integral – full time –, regido pelo artigo 130 da CLT, mais de quatorze faltas injustificadas o farão ter 18 ou até 12 dias (se o empregado tiver entre 24 e 32 faltas) de férias, menos que o previsto na citada Convenção. Em contrapartida, o mesmo empregado, se assíduo – refiro-me ao que tem até cinco faltas injustificadas durante o período aquisitivo – goza férias por período superior ao que se estenderia, segundo a Convenção 132, por três semanas, mais os dias que correspondessem aos feriados intercorrentes. A nosso ver, a CLT oferece um conjunto normativo mais bené- fico ao trabalhador, neste tópico. • Segundo o artigo 4, item 1, da Convenção 132 da OIT, o trabalhador tem direito ao gozo de férias proporcio- nais, se o seu período de trabalho, em algum ano (preferencialmente ano civil, conforme artigo 4, item 2), for inferior ao exigido para que ele tenha direito a férias integrais. Cabe esclarecer que pode ser exigido um perí- odo de trabalho não superior a seis meses para que o empregado possa ter direito a férias (artigo 5, itens 1 e 2). No Brasil, o sistema celetista prefere o ano contratual ao ano civil e, por isso, as férias não são gozadas proporcionalmente no ano civil não completado. Pelas razões antevistas, a CLT deve predominar neste tema. • A CLT é omissa quanto a serem ou não considerados, nas férias, os dias em que o empregado está impos- sibilitado de descansar ou usufruir atividades de lazer em razão de doença. O artigo 6.2 da Convenção 132 prevê, como regra, que “os períodos de incapacidade para o trabalho resultantes de doença ou de aciden- tes não poderão ser computados como parte do período mínimo de férias anuais remuneradas previsto no parágrafo 3, do artigo 3 da presente Convenção”. Estando livre para dispor sobre a matéria (porque omissa a CLT), a Convenção 132 não permite que os dias em que o empregado está incapacitado em razão de enfermidade ou acidente sejam considerados dias de gozo de férias. • No artigo 11, a Convenção 132 prevê férias proporcionais (indenização) no ano da cessação do contrato, desde que completado o período mínimo (não superior a seis meses), acaso exigido pela legislação pátria. No Brasil, são devidas férias proporcionais (rectius: indenização de férias proporcional ao período aquisitivo interrompido) em circunstâncias regulamentadas em consonância com o parâmetro nacional (ano contratual, em vez de ano civil) e com as restrições dos artigos 146, parágrafo único, e 147 da CLT. O TST já iniciou a adaptação da norma jurídica aos preceitos mais benéficos da Convenção 132, como se pôde notar ao exame da Súmula 261. • As férias devem ser remuneradas em valor equivalente à remuneração mensal, apurando-se a remuneração média nas hipóteses de ser ela variável. O pagamento deve acontecer antes do início da fruição das férias, salvo acordo entre empregado e empregador, assim em conformidade com o artigo 7 da Convenção 132. No Brasil, a CLT impõe o pagamento da remuneração das férias até dois dias antes do início do período de fruição e a remuneração é acrescida de 1/3 sobre o salário (artigo 7º, XVII, da Constituição). Uma vez mais, a CLT se apresenta como a norma que, em seu conjunto, atende ao desígnio da Convenção 132 e ao seu preceito acresce vantagem pecuniária (1/3), fazendo-se mais favorável aos empregados. • O fracionamento das férias é possível, segundo o artigo 8 da Convenção 132 da OIT, mas uma das frações das férias deve corresponder a período não inferior a duas semanas, salvo se período menor ou maior tiver sido ajustado entre empregado e empregador. No Brasil, o fracionamento das férias individuais não é direito disponível, pois só pode acontecer em casos excepcionais e, na forma do artigo 134, §1º, da CLT, um dos períodos (uma das frações) não poderá ser inferior a dez dias corridos – nos casos de férias coletivas (artigo (787) Inclusive porque o art. 3.3 ressalva a norma nacional mais favorável, ao prever: “A duração das férias não deverá em caso algum ser inferior a 3 (três) semanas de trabalho, por 1 (um) ano de serviço”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 289 139, §1º, da CLT), o empregador tem liberdade de fracionar o período de gozo e ambas as frações devem ser de pelo menos dez dias. Os dispositivos da CLT se mostram mais harmoniosos e interessantes para o trabalhador, a nosso sentir. • Quanto à determinação do período de gozo de férias, em meio ao período concessivo, o artigo 10 da Conven- ção n. 132 a reserva ao empregador, mas preconiza uma prévia consulta ao empregado ou seus represen- tantes (sindicais ou na empresa), recomendando que se tenham em conta as exigências de trabalho e as oportunidades de descanso e distração de que possa dispor o empregado. No Brasil, o artigo 136 da CLT prescreve que a época da concessão das férias deve ser a que melhor consulte os interesses do empre- gador, com restrições apenas nos casos de membros de uma família e de empregado estudante menor de dezoito anos. Nesta matéria, a Convenção 132 da OIT poderia prevalecer, mas por ora não se cogita alguma sanção para a hipótese de o empregador negligenciar a consulta ao empregado sobre o seu período prefe- rido de férias. • Segundo dispõe o artigo 5, item 4, da Convenção n. 132 da OIT, o período de trabalho, que assegura o direito a férias, incorpora, como tempo trabalhado, as ausências ao serviço por motivos estranhos à vontade do empregado, em especial a enfermidade, o acidente de trabalho ou a maternidade. No Brasil, o artigo 131, III, da CLT não permite que se considere falta não justificada, na apuração do período de gozo das férias, aquela que ocorrer por maternidade ou aborto (artigo 131, II, da CLT), ou ainda por acidente de trabalho ou enfermidade, mas o artigo 133, IV e §2º, da mesma CLT, limita esse direito, ao ressalvar que se inicia novo período aquisitivo quando o empregado recebe auxílio-doença por mais de seis meses, contínuos ou não. Conforme antevisto, parece-nos que a Convenção 132 deve prevalecer quanto a considerar-se o tempo de afastamento, por enfermidade ou acidente de trabalho, no período aquisitivo de férias, pois de indiscutível perversidade a regra em sentido contrário, prevista na CLT. CAPÍTULO XI PERSPECTIVA EXISTENCIAL DA RELAÇÃO DE EMPREGO 11.1 A tradicional vertente patrimonialista do direito laboral O direito do trabalho, tradicionalmente, sempre se associou a prestações pecuniárias que se tornavam – como ainda se tornam – exigíveis como contrapartida pela energia de trabalho posta à disposição da empresa, pouco importando se o modo, o tempo, o lugar ou a destinação do serviço eram ofensivos à moral, aos direitos de liberdade, à condição humana ou à dignidade enfim do traba- lhador. Por vezes, a prestação laboral se realizava em detrimento da própria ordem jurídica e o vetusto direito do trabalho se mostrava apto apenas a predizer qual a sanção em pecúnia compatível com a ilicitude patronal assim cometida. Se o empregador exigia trabalho além do limite legal, e além do limite fisiológico do empregado, sem conceder-lhe sequer as horas ou dias de repouso que lhe permitiriam descansar, conviver em família e na sociedade, o direito do trabalho incidia para assegurar, tão só, a remuneração condizente com a ilicitude patronal, tanto por quanto. Se o empregador disponibilizava um ambiente insalubre ou de risco à integridade física, o direito do trabalho comprazia-se em cominar adicionais remunerató- rios que supostamente compensariam o adoecimento ou a morte precoce a que resignadamente se submetia o empregado. A monetização dos direitos sociais, e do direito do trabalho em particular, sofreu ingente abalo a partir de quando se sucederam as constituições dos estados de direito democrático, as quais inseriram as expectativas positivas de saúde, educação, existência digna e trabalho decente, que a tudo provia, entre os direitos humanos cuja constitucionalização os fazia convertidos em direitos fundamentais. A democracia, como conceito até então formal ou atrelado aos direitos de liberdade e participação, ganhou um significado novo e rico em conteúdo moral ou substancial, pois seria democrático apenas o estado que garantisse a prestação de direitos sociais e ambientais indispensáveis à consecução do projeto humanitário. A Constituição de 1988(788), fazendo coro ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), resgatou das sombras do antigo regime autoritário o postulado da dignidade da pessoa humana(789) e, ao transformá-lo em fundamento da República (art. 1º, IV), estabeleceu uma ordem econômica que somente se legitimaria enquanto fundada na existência digna e na valoriza- ção do trabalho humano, com vistas à realização da justiça social (art. 170). Sobreveio, em seguida e coerentemente, um novo Código Civil a prescrever, por meio de cláusulas abertas à construção hermenêutica, o caráter intransmissível, irrenunciável e indisponível de todos os direitos inerentes à personalidade (artigos 11 a 21 do CC). (788) Conforme assinala Herminia Oliveira (OLIVEIRA, Herminia Pfeilsticker Gonçalves de. “Recurso de Revista por Violação Consti- tucional”. In: Direito Constitucional do Trabalho: princípios e jurisdição constitucional do TST. Coordenação de Gabriela Neves Delgado et alii. São Paulo: LTr, 2013. p. 317): “o direito do trabalho antes da Constituição de 1988 fundava-se, basicamente, em normas de natu- reza infraconstitucional, autônomas e heterônomas, inclusive em relação àquelas originárias do poder normativo da Justiça do Trabalho, enquanto a nível constitucional contava com exígua proteção normativa. Estava-se sob o império da lei. Foi a partir da Constituição Federal de 1988 que se verificou no campo trabalhista o fenômeno neoconstitucional. A normatização trabalhista assumiu posição constitucional, de caráter aberto, pulverizada nos valores fundamentalizados em toda a Constituição brasileira. O direito do trabalho foi diretamente influenciado por essa guinada normativa, o que reforçou a jurisdição constitucional do TST”. (789) Anota Bezerra Leite: “A bem ver, a atual Constituição brasileira encontra-se em perfeita sintonia com o Pacto Internacional dos Direi- tos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovado na XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em New York, em 19 de dezembro de 1966, o qual passou a fazer parte do Direito Positivo brasileiro, a partir de 24 de abril de 1992. Esse tratado internacional considera, em linhas gerais, que os direitos sociais, culturais e econômicos são inerentes à dignidade da pessoa humana e que o ideal do ser humano livre, liberto do temor e da miséria, só pode ser concretizado à medida em que se criem condições que permitam a cada um gozar de seus direitos econômicos, sociais e culturais, assim como de seus direitos civis e políticos” (LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Os Direitos da Persona- lidade na Perspectiva dos Direitos Humanos e do Direito Constitucional do Trabalho. Disponível em: http://www.fdv.br/publicacoes/ periodicos/revistadepoimentos/n9/3.pdf. Acesso em: 28.dez.2015). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 291 Para dar efetividade ao art. 12 do Código Civil – que protege os direitos da personalidade contra a ameaça de lesão – faltava um conjunto de normas processuais que aparelhasse a tutela judicial em face do ato ilícito ainda não convertido em dano, pois era forte, no sistema processual anterior, a concepção de que a vontade do ofensor, sendo intangível (também nessa fase em que o ilícito ainda não havia provocado o dano), não poderia ser imposta pelo credor ou pelo Poder Judiciário, resolven- do-se as lesões quase invariavelmente em perdas e danos (nemo praecise potest cogi ad factum). Um novo ordenamento de direito processual veio então a lume, de início por meio do art. 461 do CPC de 1973 e adiante com o art. 497 do CPC de 2015, ambos a prestigiarem a tutela específica das pres- tações de fazer ou não fazer e este último a dispor, em seu parágrafo único, que “para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo”. Faltava, porém, um elo no caminho de atualização harmônica do processo judicial: porque os conflitos envolvendo o trabalho não digno são normalmente conflitos de massa, o direito processual atualizou-se para ofertar um microssistema normativo – encimado pelas Leis ns. 7.347/1985(790) e 8.078/1990(791) – que permite aos entes coletivos, em especial às associações sindicais e ao Ministério Público, o ajuizamento de ações nas quais o trabalhador não tem seu nome e vulnerabilidade iden- tificados. Propõem-se tais ações judiciais à resolução das lides enquanto o interesse de promover o equilíbrio no ambiente laboral ainda existe in natura, pois não transformado em delito consumado ou mera expressão pecuniária. Nesses processos coletivos, as decisões têm efeito in utilibus – ou seja, só vinculam o trabalhador quando o juiz afirma a procedência do pedido(792) – e, ao reger a proteção do interesse transindividual, o art. 83 da Lei n. 8.078//1990 é expresso: Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. Nenhuma de tantas mutações normativas está apta, entretanto, para surtir efeito se não estão atentos os atores sociais e processuais às reflexões de Uriarte, fundadas nas lições de Eduardo Couture: “O momento supremo do Direito não é o momento do grande tratado doutrinário”. Isso é muito importante. Sem isso, não podemos aplicar o Direito. É importante, mas não é o momento supremo do Direito. Acrescentava ele (Couture): “O momento supremo do Direito tampouco é o momento do grande código, a grande codificação, essa grande catedral do Direito, que é o Código Civil, o Código Penal, a Consolidação das Leis do Trabalho”. Isso é muito importante, mas não é o essencial. Tampouco o momento supremo do Direito é o momento da grande constituição. Claro que é fundamental. Estamos advogando pela sua aplicação correta pelos juízes. É fundamental, é importante, mas não é o momento supremo do Direito. “O momento supremo do Direito” – diz Couture – “é aquele no qual ele, essas obras monumentais, faraônicas, essas catedrais aterrissam na realidade”. E esse momento está nas mãos do juiz. “O momento supremo do Direito é aquele no qual um desconhecido juiz de província de uma perdida cidade do interior, sozinho, frente à sua consciência, assina uma sentença reconhecendo ou não um direito a um cidadão, fundado”, disse Couture – “no Preâmbulo da Constituição, aplicando um princípio constitucional”. Está nas mãos dos juízes fazer com que os grandes discursos, que as grandes fantasias jurídicas, sejam ou não reali- dade. Evidentemente, os juízes não estão sozinhos, não podem estar sozinhos. Para isso, é necessário que a doutrina desenvolva realmente um pensamento fundado nos direitos e lhes forneça um corpo conceitual que permita a aventura de aplicar corretamente a Constituição, a norma internacional, etc. É também necessário o apoio dos advogados. Os juízes não vão sentenciar nesse sentido, se não houver um advogado que opine na demanda e que a fundamente apropriadamente.(793) (790) Lei n. da Ação Civil Pública. (791) Código de Defesa do Consumidor, que se aplica em verdade à generalidade dos processos coletivos destinados à tutela de interesses metaindividuais. (792) Ver art. 103 da Lei n. 8.078, de 1990. (793) URIARTE, Ermida. Aplicação Judicial das Normas Constitucionais e Internacionais sobre Direitos Humanos Trabalhistas. Confe- rência proferida em 2004 no “Fórum Internacional sobre Direitos Humanos e Direitos Sociais”, evento promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho, e reproduzida na Revista TST, Brasília, vol. 77, n. 2, abr/jun 2011. Disponível também em: http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/ bitstream/handle/1939/25360/011_uriarte.pdf?sequence=4. Acesso em: 02.jan.2016. 292 – Augusto César Leite de Carvalho Ilustremos, então, quais consequências práticas e jurídicas se notam, no universo do direito do trabalho, a partir de quando se prioriza a perspectiva existencial desse ramo do Direito em detrimento do seu teor puramente patrimonial e, ademais, manejam-se as ações coletivas com tal desiderato. Embora seja amplo o horizonte que se abre nessa nova dimensão do direito laboral, propomo-nos a identificar aspectos relacionados ao direito ao meio ambiente de trabalho ecologicamente equilibrado, inclusive no tocante aos limites da duração do trabalho compatíveis com o direito fundamental à saúde do trabalhador e com o direito à coexistência, bem assim aspectos que guardam relação com direitos da liberdade e com direitos gerais e típicos da personalidade ambientados na relação laboral, sempre sob a premissa de ser o postulado da igualdade substancial um pressuposto lógico dos demais direitos fundamentais. 11.2 O direito fundamental à saúde do trabalhador no âmbito do direito ambiental – o trabalho sob a incidência transversal do direito ambiental O direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado remete à Declaração de Estocolmo, de 1972, pois nela se estabeleceu, como princípio primeiro, que “o homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras”. Os direitos de liberdade e os direitos sociais se combinam, assim, com aqueles direitos, novos ou emergentes, que “apresentam uma funcionalidade distinta, consistente na garantia de seguridade e saúde de pessoas indiferenciadas [...] e da própria subsistência ou conservação dos demais seres vivos do planeta”(794). Sinala Villagrasa Alcaide: [...] o meio ambiente se há erigido como um bem juridicamente protegido desde os direitos humanos denominados de terceira geração. Após um primeiro conjunto de direitos reconheci- dos, os direitos civis e políticos das pessoas, baseados no princípio fundamental de liberdade; e uma segunda série de direitos, os direitos econômicos e sociais, assentados no princípio de igualdade; surge um conjunto de direitos, criados para garantir uma convivência pacífica em um mundo sustentável, entre os quais se destaca a proteção ao meio ambiente.(795) As constituições seguintes incorporaram a ideia e o preceito da Declaração de Estocolmo, seja no que toca à titularidade ampla do direito ambiental, bem seja quanto à responsabilidade de toda a socie- dade, não apenas dos poderes públicos, pela defesa do meio ambiente atual e das futuras gerações. Por exemplo, o art. 45 da Constituição espanhola de 1978 estabelece que “todos têm direito a desfrutar de um meio ambiente adequado ao desenvolvimento da pessoa, bem assim o dever de conservá-lo”, e que “os poderes públicos velarão pela utilização de todos os recursos naturais, com o fim de proteger e melhorar a qualidade de vida e defender e restaurar o meio ambiente, apoiando-se na indispensável solidariedade coletiva”. A Constituição brasileira, quando assegura o direito fundamental à saúde, inclui a proteção do meio ambiente do trabalho (art. 200, VIII), o que significa a tutela, no âmbito ubíquo do direito ambien- tal, de todos os direitos que concorrem para preservar a saúde do homem em qualquer ambiente de trabalho. Direitos tais que abarcam as condições de tempo e de modo do trabalho, bem assim a imuni- dade contra agentes insalubres ou qualquer outro risco do lugar de onde provêm tanto a produção econômica quanto os meios de subsistência do trabalhador, promovendo assim o necessário equilíbrio entre o ecossistema laboral e a biosfera(796). Em seu momento culminante, o art. 225 da Constituição brasileira de 1988 dispõe, por sua vez, que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de (794) MONEREO PÉREZ, Jose Luis; RIVAS VALLEJO, Pilar. Prevención de Riesgos Laborales y Medio Ambiente. Granada: Editorial Comares, 2010. p. 17. (795) VILLAGRASA ALCAIDE, C. “Responsabilidad General”. In: La Prevención de riesgos medioambientales en el ámbito de las rela- ciones de trabajo. Coordenação de Monereo Pérez, J. L. y Rivas Vallejo, P. Madri: Editorial Comares, 2011. p. 601. (796) BARROS, C. M. Saúde e Segurança do Trabalhador – Meio Ambiente de Trabalho. Disponível em: http://www. mesquitabarros.com.br/index.php?option=com_content&view=art icle&id=31%3Asaude-e-seguranca-do-trabalha- dor-meio-ambiente-de-trabalho&catid=7%3Aartigos&Itemid=3&lang=pt. Acesso em: 30.10.2011. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 293 defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. A combinação dos preceitos constitu- cionais sobreleva a prescrição de um ambiente de trabalho harmonioso, indispensável à qualidade de vida dos que nele se ativam e dos que fora de seus domínios sofrem a radiação do que nele se produz, cometendo-se a toda a sociedade e ao Estado a responsabilidade de proteger o ecossistema laboral para o seu uso sustentável pela atual e futuras gerações. Atenta a essa dimensão holística e transcendente do interesse trabalhista, os sindicatos e o Minis- tério Público têm atuado de modo a deduzir pretensões individuais ou coletivas que buscam prevenir a lesão ao habitat laboral ou reparar a lesão já consumada. São inúmeras as ações civis públicas, ou ações coletivas, nas quais se visa à vedação de trabalho extraordinário, à provisão de equipamentos de segurança que protejam a integridade física de trabalhadores(797), à proibição de trabalho em condições insalubres, ou de trabalho penoso, forçado ou degradante(798). A Justiça do Trabalho, por sua vez, tem reconhecido a legitimidade ativa dos mencionados atores sociais e a pertinência de tais pretensões(799), avançando progressivamente para moldar sua jurisprudência a esse novo panorama normativo(800). 11.2.1 Incidência dos princípios regentes do direito ambiental nos biomas laborais A ecologia laboral é ciência que se dedica à relação entre o homem e seu ambiente de trabalho, e entre o ambiente de trabalho e seus reflexos no entorno social, podendo ser demonstrada essa inte- ração ecológica em pelo menos três momentos significativos, abordados em seguida. No primeiro momento, o trabalho serve à transformação – por meio físico, químico ou biológico – dos bens da natureza em recursos indispensáveis à sobrevivência do homem, o que significa uma necessária interação entre o homem e suas ferramentas ou máquinas, também com os insumos da produção e seus fornecedores, no meio funcional em que o homem trabalhador se insere. Também há ecologia, ou interação sistêmica, no fato relevante de os trabalhadores vivenciarem as mesmas realidades e eventuais angústias: era assim no antigo chão da fábrica e, apesar de Alain Supiot lembrar que a proximidade física dos trabalhadores, nos estabelecimentos de hoje, não importa a interlocução entre eles, sequer uma unidade de ação, os trabalhadores continuam compartilhando as mesmas vivências nos estabelecimentos virtuais das empresas em rede relativamente comuns em nossos dias. Terceiro, e não menos importante, tratamos de uma relação ecológica quando recordamos que o direito do trabalho historicamente se justifica como um instrumento – menos compensatório e mais civilizatório – que visa assegurar um equilíbrio mais justo ou equânime entre os que contribuem para o (797) Vide TST, SBDI-1, ED-RR 405137-26.1997.5.17.5555, Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, DJ 08/06/2007. (798) Vide TST, SBDI-1, E-RR 586341-58.1999.5.18.0001, Redator Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT 16/10/2009; TST, 2ª Turma, RR – 58500-83.2002.5.16.0013 , Rel. Min. Renato de Lacerda Paiva, Publicação: 03/05/2013; TST, 7ª Turma, RR 95-02.2012.5.09.0562, Rel. Min. Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Publicação: 27/09/2013. (799) Vide TST, SBDI-1, E-RR 691531-47.2000.5.17.5555, Rel. Min. Carlos Alberto Reis de Paula, DJ 06/10/2006; TST, SBDI-1, E-ED-RR 224700-55.2009.5.15.0048, Redator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 08/05/2015. (800) A nosso ver, um ponto de inflexão na linha ascendente de afirmação dos direitos fundamentais, incluído o direito a um meio ambiente de trabalho ecologicamente equilibrado, verificou-se no processo em que se discutiu a possibilidade de uma indústria de cigarros manter, sem embargo do direito fundamental à saúde e de expressa proibição contida na Lei n. Antifumo (adiante transcrita na fração de interesse), uma divisão interna na qual trabalhadores fumantes faziam a prova de gosto e aroma de produtos cancerígenos do tabaco. A SBDI-1 do TST decidiu que “o labor prestado em condições adversas ou gravosas à saúde não justifica, contudo, a proibição de atividade profissional. Tanto a Constituição Federal quanto o próprio Direito do Trabalho não vedam o labor em condições de risco à saúde ou à integridade física do empregado”. Em sintonia, segundo a nossa compreensão, com a antiga lógica da monetização do direito laboral, a Corte arrematou na mesma decisão: “Em que pese a licitude em si do ofício de -provador de cigarros-, desenvolvido em favor de atividade econômica também lícita, é manifestamente perniciosa e lesiva à saúde dos empregados a referida atividade, em -Painel de Avaliação Sensorial-, ainda que voluntariamente desempenhada. O desenvolvimento de tal atividade acarreta lesão a direitos personalíssimos fundamentais (saúde e vida). Conquanto não se possa proibi-la judicialmente, da conduta patronal emerge inequivocamente responsabilidade civil, pela prática de ato ilícito, com a correlata obrigação de indenizar os danos morais perpetrados à coletividade indeterminada de empregados potencialmente sujeitos à atividade de experimentação de cigarros. Responsabilidade civil que se reconhece mediante a fixação de indenização por danos morais coletivos, também em caráter pedagógico, com o escopo de desestimular o prosseguimento de atividade prejudicial à saúde humana” (TST, SBDI-1, E-ED-RR 120300-89.2003.5.01.0015, Redator Ministro João Oreste Dalazen, DEJT 13/09/2013). Como relator original, o Ministro Augusto César Leite de Carvalho juntou voto vencido. Lê-se na Lei n. 9.294/1996 (Lei n. Antifumo): “Art. 2º – É proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo fechado, privado ou público. § 1º Incluem-se nas disposições deste artigo as repartições públicas, os hospitais e postos de saúde, as salas de aula, as bibliotecas, os recintos de trabalho coletivo e as salas de teatro e cinema.” 294 – Augusto César Leite de Carvalho produto do trabalho (e aqui temos uma clara interação entre empregado e empregador, ou seja, entre os sujeitos da relação laboral). Então, podemos dizer que há interação – promovida pelo trabalho – entre o homem e os meios de produção, dos trabalhadores entre si e entre os trabalhadores e os provedores do capital. O trabalho, tal como se apresenta em nossa faixa de interesse (trabalho humano, alienado e subordinado), nunca é uma experiência egoísta ou puramente individual. O trabalho é, por definição, uma experiência coexistencial. Para que o ambiente de trabalho abandone, ao menos no plano da idealidade, o estigma de ser um locus de sacrifício, expiação ou enfado e se transforme em experiência que enleve o espírito e permita a inserção intelectual, familiar e social do homem e da mulher que laboram, revela-se imprescindível a aproximação com o direito ambiental e, sob sua transversal influência, a submissão a princípios que, regendo todas as relações ecológicas, remetem ao desenvolvimento sustentável, aos princípios da participação, da proteção e da precaução, ao princípio do poluidor-pagador. Vejamos como pode influir cada um desses postulados no mundo do trabalho. 11.2.1.1 Princípio da sustentabilidade O postulado do desenvolvimento sustentável consagra uma expressão usada por grupo de pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT) em documento enviado ao Clube de Roma nos idos de 1974. Mas seu significado já vinha revelado, por exemplo, no princípio 13 da Declaração de Estocolmo (1972): “Com o fim de se conseguir um ordenamento mais racional dos recursos e melhorar assim as condições ambientais, os Estados deveriam adotar um enfoque inte- grado e coordenado de planejamento de seu desenvolvimento, de modo a que fique assegurada a compatibilidade entre o desenvolvimento e a necessidade de proteger e melhorar o meio ambiente humano em benefício de sua população”(801). Segundo Monereo e Rivas: [...] o Direito Ambiental expressa esse giro na política do Direito do Estado Social, obedecendo a um desígnio intervencionista, de regulação e controle, para a tutela do meio ambiente. A intervenção se dirige às organizações econômicas – privadas e públicas – que possam atuar como agentes concomitantes. O Direito Ambiental trata de proteger a qualidade de vida, entendida em sentido amplo, de tal maneira que possa compreender a conservação da Natu- reza e a defesa do bem-estar físico, psíquico e material de toda a sociedade humana(802). No que concerne às relações laborais, o desenvolvimento sustentável é, em rigor, uma ideia elementar que se associa sobremaneira à convicção, sob as luzes vetoriais da dignidade da pessoa humana, de que não interessa ao atual padrão civilizatório o fomento incondicionado do emprego, senão que se devem proibir as condições de trabalho degradantes, aquelas que não considerem a preeminência do homem em qualquer processo produtivo. Como defende Villagrasa: O denominado desenvolvimento sustentável pretende compaginar e racionalizar o equilíbrio entre os objetivos econômicos da produção industrial e a manutenção dos recursos naturais do planeta, em perspectiva de presente e de futuro, paliando as consequências negativas que os danos ambientais provocam sobre a biodiversidade ecológica(803). O desenvolvimento comporta, em verdade, graus de sustentabilidade: quando a atividade econô- mica é imprescindível e o risco à saúde ou integridade física do trabalhador é tolerável, o sistema (801) GRANZIERA, M. L. M. Direito Ambiental. São Paulo: Atlas, 2009. p. 53. (802) Op. cit., p. 21. Os autores acrescem (op. cit., p. 79): “La idea de desarrollo sostenible comporta en sí la exigencia de redefinir el concepto de progreso. Existe una ruptura radical con la ideología del progreso lineal y con el paradigma tecnológico y económico de la civilización industrial moderna tal como ha venido formulándose. Se apunta la necesidad de evitar el que se ha dado en llamar ‘progreso destructivo’. El peligro procede de las desmesuradas proporciones de la civilización científico-técnica industrial. De lo que se trata es de conciliar la racionalidad científica con la democracia y la conservación de las personas y del medio ambiente”. (803) Op. cit., p. 601. Em igual direção, assinala Raimundo Simão de Melo: “O desenvolvimento econômico é aspiração de todos os povos, mas não se pode conceber um desenvolvimento predatório, sendo necessária a busca de um ponto de equilíbrio entre este e os demais interes- ses da sociedade, porque a preservação ambiental em todos os seus aspectos é outro precioso valor de que dependem as gerações presentes e futuras para sua coexistência digna. Não há campo mais fértil para a aplicação desse princípio do que no meio ambiente de trabalho, porque, enquanto o caput do art. 225 da Constituição Federal assegura a todos um meio ambiente equilibrado, o art. 1º da Lei n. Maior estabelece como fundamentos da República Federativa e do Estado Democrático de Direito, entre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho” (MELO, Raimundo Simão de. Direito Ambiental do Trabalho e a Saúde do Trabalhador. São Paulo: LTr, 2013. p. 61). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 295 jurídico promove a mera monetização do dano potencial à condição humana e assegura, assim, o pagamento de adicionais de insalubridade ou periculosidade que servem de estímulo à adoção de meios que neutralizem ou eliminem a adversidade; quando o risco à higidez física do trabalhador sobeja níveis razoáveis de tolerância, inibe-se a atividade econômica(804), ou se a interdita(805), pois mais forte que o valor do trabalho humano é o valor humano no trabalho. Não em vão, o art. 170 da Constituição brasileira preceitua que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, em conformidade com os ditames da justiça social. Não consente, como se nota, que se cogite de liberdade de empresa sem responsabilidade social. 11.2.1.2 Princípio da participação O princípio da participação corresponde ao dever de que todos, não somente o Estado, colaborem na defesa e preservação do meio ambiente. No Brasil, o art. 2º da Lei n. 10.650/2003 impõe aos órgãos e entidades da administração pública a obrigação de permitir o acesso de todos a documentos, expe- dientes e processos administrativos que tratem de matéria ambiental e igualmente de prover todas as informações ambientais que tenham sob a sua guarda. O princípio da participação se encontra ainda mais alvissareiro na realidade laboral, dado que atrai a responsabilidade dos titulares da empresa e dos entes coletivos, inclusive de sindicatos e associações profissionais, quanto à defesa da saúde e segurança do trabalhador. Aponta Amparo Garrigues Giménez que “os sistemas mais avançados de gestão de organizações (e, por conseguinte, de gestão empresarial) operam sob a premissa da qualidade total de produtos e processos, através de sistemas de gestão integral e integrada dos distintos vetores estratégicos: qualidade, meio ambiente, saúde laboral, responsabilidade social corporativa [...], segurança da informação, gestão da inovação ou gestão do conhecimento”(806). Após citar alguns sistemas de normatização e certificação(807), a professora Amparo Garrigues observa: E eis que a atuação política e normativa, tanto europeia como interna, vêm configurando a prevenção de riscos laborais, enquanto dever empresarial, como atividade (sucessão e conjunção de obrigações tendentes à realização dessa ‘proteção eficaz’ devida ao trabalha- dor) e sobretudo, e cada vez com maior intensidade, como atitude empresarial. Com efeito, a prevenção de riscos laborais, em sua dimensão atitudinal, supõe a interiorização por parte da empresa da necessidade de conceber, traçar, implantar e implementar um processo produ- tivo seguro, o que não é possível senão desde a integração a esse processo das exigências de segurança e saúde [...](808). Por outro lado, o Livro Verde da Comissão Europeia inclui, no tópico relativo ao fomento de um marco europeu para a responsabilidade social das empresas em sua dimensão interna, a saúde e segurança do local de trabalho. Conforme Monereo e Rivas, “trata-se de incentivar ações voluntárias com caráter complementar da normativa legal, e não com caráter substitutivo”(809). Quanto à participação dos sindicatos na regulamentação de medidas que protejam a incolumidade e a saúde do trabalhador, parece interessante observar como as duas entidades mais representati- vas dos trabalhadores espanhóis (UGT e CCOO-Comissões Obreiras) convergem acerca da própria inapetência. Luis Ezquerra Escudero, coordenador técnico do Gabinete Jurídico da UGT Cataluña e doutor em Direito, anota que tanto a normativa comunitária(810) quanto a nacional(811) preveem o direito (804) Art. 160 da CLT. (805) Art. 161 da CLT. (806) GARRIGUES GIMÉNEZ, A. “La gestión de la prevención de riesgos laborales: organización de la prevención”. Em: La Prevención de riesgos medioambientales en el ámbito de las relaciones de trabajo. Coordenação de Monereo Pérez, J. L. y Rivas Vallejo, P. Madri: Editorial Comares, 2011. p. 381. (807) ISO 9001:2008, ISSO 14001:2004, ISSO 27001 e outros. (808) Idem, ibidem. (809) Op. cit., p. 30. (810) O articulista se refere ao Sexto Programa de Acción Comunitario en Materia de Medio Ambiente. Decisão 1600/2002/CEE, de 16 de julho. (811) Refere-se o autor à Estrategia Española de Desarrollo Sostenible, ano 2007, que em seu capítulo de Actuaciones contempla, entre outros, o fomento do diálogo social, apoiando expressamente o associacionismo empresarial e sindical. 296 – Augusto César Leite de Carvalho à informação, participação e acesso à Justiça como direitos ambientais de todos os cidadãos e organi- zações que os representam, mas, na sequência, afirma Escudero que não há a devida participação no processo produtivo das empresas porque “o Direito Laboral não contempla de forma expressa, quer seja o direito a alguma informação específica sobre meio ambiente na relação com a empresa, quer sejam alguns conteúdos mínimos na negociação coletiva sobre essa matéria”(812). Também Manuel Garí Ramos, diretor da Área de Meio Ambiente do Instituto Sindical de Trabalho, Ambiente e Saúde (ISTAS) das Comissões Obreiras, lamenta o fato de que “o movimento obreiro e os sindicatos não foram conscientes até tempos muito recentes do problema ambiental [...]. Hoje esta- mos ante um problema ecológico muito maior, mas ainda é possível inverter a direção dos ventos. Para isso é necessário reconstruir e enriquecer o discurso sindical”(813). Em sentido diverso, mas parecendo situar-se no plano estritamente programático, Monereo e Rivas assinalam a propósito da mesma experiência espanhola: [...] a mesma ideia de autorregulação social voluntária através da responsabilidade social da empresa tem penetrado na negociação coletiva em todos os níveis. Assim, é disso expoente a regulação contida no capítulo VIII (‘Responsabilidade Social das Empresas’) do Acordo Interconfederal para a negociação coletiva 2007. Em termos de declaração de objetivos a perseguir se indica o seguinte: a introdução de práticas de responsabilidade social nas empresas constitui para as organizações empresariais e sindicais um sério compromisso e esforço complexo que há de contar com o maior grau de implicação e de consenso. Os compromissos e as práticas que aconteçam sob a rubrica da responsabilidade social devem contribuir para modernizar, favorecer e melhorar a eficiência e a competitividade de nosso tecido produtivo sem questionar a função da empresa de criar riqueza e emprego.(814) Caso se considerem apenas as cláusulas concernentes à saúde e à segurança do trabalhador (não obstante o ambiente de trabalho abarque outros direitos, inclusive de conteúdo pecuniário, que concorrem para a harmonia do habitat laboral), no Brasil o problema da omissão sindical se repete, pois as convenções e acordos coletivos referem-se, não raro, apenas a vantagens puramente econômicas. Sem embargo, a Norma Regulamentadora 7 do Ministério do Trabalho e Emprego, quando impõe o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional, permite que os parâmetros e diretrizes que visam à promoção e à preservação da saúde do conjunto dos trabalhadores sejam ampliados por negociação coletiva(815). A Norma Regulamentadora 9 do MTE fixa, a seu turno, a obrigação de a empresa instituir o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais e, além de também abrir a amplia- ção do PPRA por meio de normas coletivas(816), regula a participação dos trabalhadores na elaboração, implantação e execução do mencionado programa(817). 11.2.1.3 Princípio da prevenção Como se reiterará adiante, a prevenção atua quando os riscos são conhecidos e, pelo fato de serem previsíveis, devem ser evitados. Distingue-se da precaução, que incide nas hipóteses de igno- rância ou incerteza acerca dos riscos ambientais. E deve ser assim sobretudo porque os danos ambientais são comumente irreversíveis e irrepará- veis, ou não inteiramente reparáveis. Celso Fiorillo propõe que nos perguntemos: como recuperar uma espécie extinta? Como erradicar os efeitos de Chernobyl? De que forma se restitui uma floresta mile- nar que se tenha devastado e abrigava milhares de ecossistemas diferentes, cada qual com um papel (812) EZQUERRA ESCUDERO, L. “La importancia de los riesgos ambientales y la salud laboral en las empresas. Visión sindical”. Em: La Prevención de riesgos medioambientales en el ámbito de las relaciones de trabajo.Coordenação de Monereo Pérez, J. L. y Rivas Vallejo, P. Tradução live. Madri: Editorial Comares, 2011. p. 142. (813) GARÍ RAMOS, M. “Acción sindical en materia de medio ambiente: CCOO”. In: La Prevención de riesgos medioambientales en el ámbito de las relaciones de trabajo. Coordenação de Monereo Pérez, J. L. y Rivas Vallejo, P.. Tradução livre. Madri: Editorial Comares, 2011. p. 151. (814) Op. cit., p. 30. (815) Item 7.1.2 da NR 7. (816) Item 9.1.4 da NR 9. (817) Itens 9.1.2 e 9.4.2 da NR 9. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 297 essencial na biosfera?(818) No ambiente de trabalho, à semelhança do que há sucedido na Espanha(819), a prevenção dos riscos laborais se acha tradicionalmente regulada por normas distintas daquelas que mais recentemente inauguraram o direito ambiental como uma disciplina autônoma e quiçá ubíqua, por compreender todas as disciplinas jurídicas preexistentes. As normas de prevenção de riscos laborais remontam quase à era em que desvelado o direito social, pois não por acaso as primeiras convenções da Organização Internacional do Trabalho se dedicaram à questão sempre candente dos acidentes de trabalho. Luis Enrique de la Villa Gil ressalta que, criada em 1919, a OIT estabeleceu prontamente garantias para o seguro contra a enfermidade na indústria, comércio e serviço doméstico (Convenção 24 de 1927), na agricultura (Convenção 25 de 1927), além de outras(820) que se destinam à proteção dos acidentes de trabalho e doenças ocupacionais(821). No Brasil, o Capítulo V da CLT estabelece regras de proteção e prevenção de riscos laborais e o Ministério do Trabalho e Emprego tem a atribuição suplementar de regulamentar as normas de saúde e segurança(822). A Portaria 3.214, de 1978(823), especifica as medidas de proteção individuais e cole- tivas que devem ser adotadas pelos empresários com vistas a prevenir os acidentes e enfermidades laborais, além de detalhar os limites de tolerância que podem ser suportados pelos trabalhadores e os adicionais de remuneração devidos sempre que esses limites são excedidos. O Superintendente Regional, que é a autoridade com delegação do Ministério do Trabalho e Emprego em cada unidade da Federação, tem o poder de interromper o manejo de máquinas ou inter- ditar atividades em estabelecimentos empresariais nos quais encontre riscos graves e iminentes ao trabalhador. A interdição pode ser inclusive promovida por auditores fiscais, segundo a jurisprudência que se formou no âmbito do Superior Tribunal de Justiça(824). Por sua vez, o Ministério Público do Trabalho tem promovido ações coletivas com o objetivo de obrigar as empresas à implantação de medidas de prevenção não previstas em normas estatais. Por exemplo, a Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho decidiu que era válida lei estadual que impunha às instituições bancárias um sistema de segurança que compreendia a instalação de portas giratórias eletrônicas, vidros laminados e circuitos internos de televisão nas suas agências(825). Noutra decisão emblemática, a Segunda Turma do TST ordenou que se assegurasse a carvoeiros equipa- mentos de proteção individual e também equipamentos que proporcionam dignidade às condições laborais (cama, colchões, água potável e instalações sanitárias)(826). Aspecto relevante da prevenção é o que se extrai da Súmula 289 do TST, segundo o qual “o simples fornecimento do aparelho de proteção pelo empregador não o exime do pagamento do adicional de (818) Op.cit., p. 111. (819) Vid. Monereo y Rivas, op. cit., p. 22. Os autores observam: “[…] el derecho medioambiental se ha limitado a regular el medioam- biente ‘externo’, excluyendo todo el campo de la prevención de riesgos laborales en el interior de la empresa. Pero no sólo estamos ante dos disciplinas diferenciadas –lo cual tiene comprensible y atendible lógica histórica y funcional, dado el carácter diferenciado de su objeto y de los bienes jurídicos objeto de tutela o tutelados–, sino ante dos ramificaciones del ordenamiento jurídico que en gran medida han tendido a ignorarse mutuamente, rehusando un necesaria coordinación en el marco de una serie de principios y reglas mínimas compartidas. Ello ha supuesto el efecto, no poco paradójico, de que el Derecho medioambiental no incida –al menos directamente– en el campo de las relaciones de producción, y, por consiguiente, de las relaciones laborales. […] Cuestión distinta es que la regulación medioambiental general incida, como lo hace efectivamente, en el campo de la producción misma, toda vez que la mayor parte de los factores de riesgo contaminantes del medio ambiente ‘externo’ a la propia empresa se localizan precisamente dentro de la organización productiva. La protección medioam- biental en la dimensión interna acabará, significativamente, incidiendo también en una mejora de las condiciones de seguridad y salud del ambiente de trabajo, y […] la mejora del ambiente de trabajo redundará en una mejora del ambiente externo a la empresa”. […] Se ha de imponer una coordinación internormativa dentro de un ordenamiento jurídico que debe basarse en la unidad, coherencia y eficiencia de las políticas de Derecho encaminadas a proteger el medio ambiente general y el ambiente de trabajo en particular.” (820) Convenção 17 de 1925, Convenção 42 de 1934, Convenção 56 de 1936, Convenção 70 de 1946, Convenção 115 de 1960, Conven- ção 148 de 1977 etc. Sebastião Geraldo de Oliveira enumera, como convenções da OIT que tratam direta ou indiretamente da saúde do trabalhador, as seguintes: a) ratificadas pelo Brasil: as Convenções 103, 115, 127, 134, 136, 139, 148, 152, 155, 159, 161, 162, 163, 167, 170, 171, 174, 176 e 182; b) não ratificadas pelo Brasil: as Convenções 121, 184 e 187 (OLIVEIRA, Sebastião Geraldo. Proteção Jurídica à Saúde do Trabalhador. São Paulo: LTr, 2011. p. 87). (821) DE LA VILLA GIL, L. E. “El Derecho a la Salud, Universal e Inaprensible”. In: Las Transformaciones del Derecho del Trabajo en el Marco de la Constitución Española. Coordenação de Casas Baamonde, M.E., Durán López, F., Cruz Villalón, J. Tradução livre. Madri: La Ley, 2006. p. 971. (822) Art. 200 da CLT. (823) Disponível em: http://www3.dataprev.gov.br/sislex/paginas/63/mte/1978/3214.htm (824) STJ, 2ª Turma, REsp 916334/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 31/08/2009. (825) TST, 3ª Turma, RR 186700-23.2001.5.03.0008, Rel. Min. Carlos Alberto Reis de Paula, DJ 21/10/2005. (826) TST, 2ª Turma, RR 148840-63.2005.5.03.0067, Rel. Min. Renato de Lacerda Paiva, DJ 16/06/2010. 298 – Augusto César Leite de Carvalho insalubridade. Cabe-lhe tomar as medidas que conduzam à diminuição ou eliminação da nocividade, entre as quais as relativas ao uso efetivo do equipamento pelo empregado”. Sem a real utilização dos equipamentos o empregador não se desonera da obrigação de pagar o adicional de insalubridade. 11.2.1.4 Princípio da precaução A melhor expressão do princípio da precaução talvez seja o art. 15 da Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 7 de maio de 1992): “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Esta- dos, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. Observam Monereo e Rivas: O princípio da precaução em matéria ambiental e preventiva se diferencia do princípio da prevenção porque o primeiro exige adotar medidas que reduzam a possibilidade de sofrer um dano ambiental grave apesar de que se ignore a probabilidade precisa de que ele ocorra, enquanto o princípio da prevenção obriga a tomar medidas dado que se conhece o dano ambiental que se pode produzir.(827) A relação entre as medidas preventivas e aquelas mais propriamente de precaução, longe de ser excludente, mostra-se integrativa ou complementar. No ambiente laboral, as medidas de prevenção se manifestam sempre que a ciência evidencia a causalidade entre determinadas condições de trabalho e certas enfermidades – em lugar de prevalecer a lógica econômica, convertendo-se a expectativa de morbidez em um custo monetário, prefere-se prevenir o dano mediante a implementação de medidas que, se encarecem a produção, têm o ingente desiderato de preservar a saúde ou, por fortuna, a vida do trabalhador. Um debate que ilustra o avanço desde a prevenção até a precaução, a propósito de matéria que envolve também interesse laboral, encontra-se nos processos judiciais acerca do uso do amianto ou asbesto no Brasil. A saber, asbesto é o nome adotado para seis materiais fibrosos (grunerita, criso- tila, riebeckita, tremolita, bisolita e antofilita) que se acham na natureza e apresentam interessantes propriedades com baixo custo de extração. Tem-se utilizado o amianto para incontáveis aplicações industriais ou na composição de inúmeros produtos manufaturados, inclusive como material de construção (telhas, azulejos, cimento), em insu- mos da indústria automobilística (embreagem, freio, componentes de transmissão) e da indústria têxtil (seu efeito isolante e sua resistência ao calor e a chamas o fazem útil na indumentária dos bombeiros e em equipamentos de proteção individual), em embalagens e revestimentos, tintas, talco etc. À exce- ção da crisotila, todas as formas de amianto são muito resistentes aos ácidos e aos álcalis e todas se decompõem a altas temperaturas (800/1000 ºC), daí por que usadas para a proteção ignífuga de estruturas metálicas, trajes de bombeiros etc.(828). Na Europa, a Directiva 1999/77 da União Europeia, “considerando que ainda não foi identificado o nível mínimo de exposição abaixo do qual o crisótilo de amianto não produz riscos cancerígenos”(829), proibiu todas as formas de amianto, inclusive a crisotila, a partir de 2005. Mesmo antes de essa proibi- ção vigorar, a Espanha proscreveu a comercialização e utilização de todas as variedades do amianto desde dezembro de 2001(830). Também se anteciparam à citada directiva, banindo logo todas as formas de amianto, a Alemanha, a Áustria, a Bélgica, a Dinamarca, a Finlândia, a França, a Grã-Bretanha, a Itália, a Noruega, a Polônia, os Países Baixos, a República Tcheca, a Suécia e a Suíça. Tal banimento igualmente se deu na Arábia Saudita, na Argentina, no Chile, nos Emirados Árabes, na Eslovênia e na Nova Zelândia. Estados Unidos encetam gradualmente a proibição do amianto, desde 1989, e o Canadá foi um dos primeiros países a proibir o amianto branco, apesar de ser um dos seus principais exportadores (junto com Zimbábue, China, Rússia e Brasil) para países em desenvolvimento(831). (827) Op. cit., p. 23. Ver também sobre o tema: Raimundo Simão de Melo, op. cit., p. 55. (828) Informações disponíveis em http://es.wikipedia.org/wiki/Asbesto. Accedido el 30/10/2011. (829) Vide http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:31999L0077:PT:HTML (830) A proibição se deu mediante Ordem de 7 de dezembro de 2001, a qual modificou o anexo I do Real Decreto 1406/1989, de 10 de novembro, conforme publicação no BOE número 299 de 14 de dezembro. (831) Dados disponíveis em René Mendes, op. cit., e em: http://es.wikipedia.org/wiki/Asbesto, acesso em 25.9.2012. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 299 A questão é mais candente no que toca à crisotila, ou amianto branco, que é a fibra de amianto de maior utilização e representa 94% da produção mundial. A indústria do fibrocimento é o principal usuário da crisotila, o que equivale a 85% do uso total(832). O Brasil ratificou em 1991 a Convenção 162 da OIT(833), que impõe a obrigação de incluir na legis- lação nacional medidas de prevenção e controle dos riscos à saúde devidos à exposição profissional ao asbesto, e logo se editou entre nós a Lei n. 9.055, de 1995, que proibiu a utilização industrial e a comercialização de algumas variedades do amianto pertencentes ao grupo das anfibólicas(834), mas autorizou a extração e utilização do tipo crisotila, ou amianto branco. A transigência do Brasil em relação a essa espécie certamente resultou de estudos desenvolvidos ao início da década de 90 por pesquisadores canadenses que concluíram ser menos nocivo o amianto branco, dado que as inves- tigações informavam os tipos anfibólicos – entre os quais não se inclui o crisotila – como os mais presentes em cânceres de pulmão. Todavia, antigas e novas pesquisas comprovariam a presença exclusiva ou predominante da fibra do amianto branco, a crisotila, em pessoas que adoeceram com placa pleural ou mesotelioma(835). A autorização para que se produza e comercialize o amianto branco no Brasil causou a imediata reação de algumas entidades da Federação (Mato Grosso do Sul, São Paulo e Pernambuco), as quais pros- creveram igualmente o amianto crisotila no âmbito de seus territórios, por meio de leis estaduais cuja validade foi impugnada no âmbito do Supremo Tribunal Federal. A reação dos atores sociais e da comunidade jurídica bem diz sobre o desassossego que a maté- ria em todos provoca: por um lado, a Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística inten- tou arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 234) contra o Governador do Estado de São Paulo, porque obstaculizado o transporte dos produtos do amianto na região geográfica corres- pondente ao estado paulista; também a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria propôs ação direta de inconstitucionalidade (ADI 3937), visando impugnar a eficácia da lei paulista vedadora do comércio do amianto, e o Governador do Estado de Goiás ajuizou ações diretas de inconstitucio- nalidade contra a mesma lei paulista (ADI 2656/SP) e contra a lei sul-mato-grossense (ADI 2396/MS), logrando êxito em sua tentativa de obter a ineficácia de leis que, embora emanadas em outros estados, repercutiam na economia de Goiás. A ementa que corresponde à primeira dessas ações é elucidativa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI PAULISTA. PROIBIÇÃO DE IMPORTAÇÃO, EXTRAÇÃO, BENEFICIAMENTO, COMERCIALIZAÇÃO, FABRICAÇÃO E INSTALAÇÃO DE PRODUTOS CONTENDO QUALQUER TIPO DE AMIANTO. GOVERNADOR DO ESTADO DE GOIÁS. LEGITIMIDADE ATIVA. INVASÃO DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO. 1. Lei n. editada pelo Governo do Estado de São Paulo. Ação direta de inconsti- tucionalidade proposta pelo Governador do Estado de Goiás. Amianto crisotila. Restrições à sua comercialização imposta pela legislação paulista, com evidentes reflexos na economia de Goiás, Estado onde está localizada a maior reserva natural do minério. Legitimidade ativa do Governador de Goiás para iniciar o processo de controle concentrado de constitucionalidade e pertinência temática. 2. Comercialização e extração de amianto. Veda- ção prevista na legislação do Estado de São Paulo. Comércio exterior, minas e recursos minerais. Legislação. Matéria de competência da União (CF, artigo 22, VIII e XIII). Invasão de competência legislativa pelo Estado- -membro. Inconstitucionalidade. 3. Produção e consumo de produtos que utilizam amianto crisotila. Competência concorrente dos entes federados. Existência de norma federal em vigor a regulamentar o tema (Lei n. 9055/95). Consequência. Vício formal da lei paulista, por ser apenas de natureza supletiva (CF, artigo 24, §§ 1º e 4º) a competência estadual para editar normas gerais sobre a matéria. 4. Proteção e defesa da saúde pública e meio ambiente. Questão de interesse nacional. Legitimidade da regulamentação geral fixada no âmbito federal. Ausência de justificativa para tratamento particular e diferenciado pelo Estado de São Paulo. 5. Rotulagem com informações preventivas a respeito dos produtos que contenham amianto. Competência da União para legislar sobre comércio interestadual (CF, artigo 22, VIII). Extrapolação da competência concorrente prevista no inciso V do artigo 24 da Carta da República, por haver norma federal regulando a questão.(836) (832) MENDES, R. Efeitos da Inalação de Fibras de Asbesto (Amianto) Sobre a Saúde Humana: estado atual do conhecimento e funda- mentação científica para uma política de priorização da defesa da vida, da saúde e do meio-ambiente. Disponível em: http://pt.scribd.com/ doc/59314623/efeitos-saude-amianto-1. Acesso em: 25.9.2012. (833) Ratificação da Convenção 162 da OIT pelo Decreto Executivo 126, publicado no DOU de 23.5.1991. (834) Art. 1º da Lei n. 9.055, de 1 de junho de 1995: É vedada em todo o território nacional: I – a extração, produção, industrialização, utili- zação e comercialização da actinolita, amosita (asbesto marrom), antofilita, crocidolita (amianto azul) e da tremolita, variedades minerais pertencentes ao grupo dos anfibólios, bem como dos produtos que contenham estas substâncias minerais; II – a pulverização (spray) de todos os tipos de fibras, tanto de asbesto/amianto da variedade crisotila como daquelas naturais e artificiais referidas no art. 2º desta Lei; III – a venda a granel de fibras em pó, tanto de asbesto/amianto da variedade crisotila como daquelas naturais e artificiais referidas no art. 2º desta Lei. (835) MENDES, R. Asbesto (amianto) e doença: revisão do conhecimento científico e fundamentação para uma urgente mudança da atual política brasileira sobre a questão. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v17n1/4057.pdf. Acesso em: 25.9.2012. (836) STF, ADI 2656, Relator Min. Mauricio Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 08/05/2003, DJ 01-08-2003. 300 – Augusto César Leite de Carvalho Por lado outro, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho e a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho propuseram ação direita de inconstitucionalidade (ADI 4066) em que pedem a revogação do art. 2º da Lei n. 9.055/1995, que permite a exploração comercial e industrial do amianto branco (crisotila)(837). As entidades associativas sustentam que a lesividade da crisotila à saúde humana, mesmo em parâmetros controlados, é notoriamente constatada por estudos científicos. Ao fim de agosto de 2012, por designação do Ministro Marco Aurélio, o Supremo Tribunal Federal desig- nou audiência pública para ouvir depoimentos contrários ou favoráveis à produção e comercialização do amianto branco. Hoje em dia, não se reconhece uma quantidade mínima de asbesto abaixo da qual a exposi- ção possa considerar-se segura, como observou o Comitê Científico de Toxicidade, Ecotoxicidade e Ambiente(838), em parecer decisivo para a edição da Directiva 1999/77/CE, no âmbito da União Euro- peia. Vale dizer, inexiste certeza de que as fibras microscópicas do amianto branco não se despren- dam e, sem dissolver-se ou evaporar porque a sua natureza o impede, ingressem no pulmão por meio de uma simples aspiração em ambiente contaminado. A incidência do princípio da precaução – haja vista a ignorância ou incerteza acerca da causalidade – desafia os postulados ascéticos da economia e contempla a prevalência dos valores humanitários. A produ- ção e a circulação de riqueza não devem ser obscurecidas na ponderação de valores que caberá à corte constitucional, parecendo truísmo dizer sobre os reflexos normalmente positivos que a atividade produtiva gera no bem-estar dos grupos humanos que nela se envolvem, ou dela se beneficiam materialmente. Contudo, e noutra perspectiva, a preeminência de mencionado princípio do direito ambiental, o princípio da precaução, conspira irresistivelmente para o alinhamento da ordem jurídica nacional com as referências empíricas, axiológicas e dogmáticas do direito comparado, além de promover a concre- tização do princípio constitucional da dignidade humana, segundo a digressão conceitual de Kant: as coisas têm preço e por isso são meio; os homens têm dignidade e são o fim de todas as medidas, de todas as coisas. O Supremo Tribunal Federal terá, no Brasil, a última palavra. 11.2.1.5 Princípio do poluidor-pagador. A responsabilidade objetiva pelo dano ao ambiente de trabalho e ao trabalhador. Dano moral coletivo e dano social A compreensão de ter o dano à saúde do trabalhador a característica de normalmente resultar de ação empresarial com alcance coletivo ou difuso, que gera prejuízo igual, ou de igual natureza, à generalidade dos empregados que mourejam no mesmo habitat laboral atrairia, a bem ver, a incidência do modelo hermenêutico segundo o qual a vulneração do direito fundamental ao meio ambiente ecolo- gicamente equilibrado implica, como regra, a responsabilidade objetiva e integral do ofensor. A responsabilidade objetiva, ou sem a necessária análise da culpa porquanto fundada apenas na existência de evento danoso e nexo de causalidade, e a responsabilidade integral, que o é por congregar as obrigações de fazer, não fazer e indenizar o dano em todas as suas dimensões, estão contempladas em copiosa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça(839). Assim sucede porque o art. 225, §3º da Constituição prevê que “as condutas e atividades conside- radas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados” e, no plano infra- constitucional, o art. 14, §1º da Lei n. 6.938/1981 preceitua: “sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”(840). (837) Petição inicial e movimento processual disponíveis em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=A- DIN&s1=4066&processo=4066, acesso em: 25/9/2012. (838) Informações constantes dos consideranda da Directiva 1999/77 e disponíveis em: http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ. do?uri=CELEX:31999L0077:PT:HTML, acesso em: 23/9/2012. (839) No julgamento do REsp 1307938/GO (DJe 16/09/2014), o Ministro Relator Benedito Gonçalves cita, como precedentes da atribui- ção de responsabilidade objetiva: AgRg no AREsp 165.201/MT, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 22/06/2012; REsp 570.194/RS, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, DJ 12/11/2007. E como precedentes alusivos à responsabilidade integral: REsp 1.227.139/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 13/04/2012; REsp 1.115.555/MG, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 23/02/2011. (840) Sobre o tema: Raimundo Simão de Melo, op. cit., p. 62. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 301 O meio ambiente laboral é um espaço em que interagem os atores sociais dedicados à atividade econômica e à utilização da força de trabalho, relacionando-se entre si e com os provedores dos demais fatores de produção, bem assim com a sociedade atingida pelos efeitos nocivos ou benéficos do método usado na atividade produtiva, pelo resíduo eventualmente tóxico de seus produtos e pela utilidade que eles proporcionam. Apesar de essa sintaxe ecológica conspirar em favor da responsabili- dade objetiva pelos danos causados ao ambiente de trabalho, a doutrina e a jurisprudência ainda são incipientes quanto ao tema. Em verdade, a responsabilidade subjetiva – aquela em que se verifica a existência de culpa do ofensor – é adotada como regra quando o trabalhador pede a reparação por danos que, não obstante pareçam consequentes de ação lesiva direcionada à coletividade de trabalhadores, aparecem no processo judicial como se houvessem provocado um conflito individual, intersubjetivo, sem conotação ambiental. Nesses casos, tem-se aplicado a responsabilidade objetiva em caráter excepcional. Contribui para que não se estenda a responsabilidade objetiva a todos os casos de dano ao ambiente de trabalho, não se a adotando especialmente em processos individuais, o aspecto de o art. 7º, XXVIII, da Constituição incluir, entre os direitos sociais dos trabalhadores urbanos ou rurais, “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”. Em uma fase inicial, entendeu-se até mesmo que a indenização assegurada seria somente aquela que resultasse de dolo ou culpa do empregador, segregando-se o empregado como a única categoria jurídica a quem se negaria o direito à reparação com base na teoria do risco. Vale dizer: ainda que norma infraconstitucional previsse, como preconiza essa vertente teórica, a responsabilidade objetiva de quem desenvolve atividade que exponha outras a risco continuado, defendia-se a inevitável aplicação da responsabilidade subjetiva quanto a danos suportados por trabalhadores. Sobreveio, contudo, o Código Civil de 2002 e, nele, o art. 927 e seu parágrafo único, este a consa- grar: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. Os tribunais trabalhistas tiveram que se posicionar e então firmaram, com apoio em autorizada doutrina(841), jurisprudência no sentido de o art. 7º, XXVIII, da Constituição estabelecer apenas um mínimo de proteção que, na forma prevista no caput desse mesmo dispositivo constitucional, poderia ser alargada pela normativa infraconstitucional(842). Nesses casos que se relacionam com o dano material ou extrapatrimonial causado ao trabalhador individual (sem enfrentamento necessariamente da perspectiva ambiental), a jurisprudência se conso- lidou na direção de os danos sofridos em razão do risco inerente à atividade econômica, ou do risco inerente ao serviço que se presta em seu âmbito, gerarem a responsabilidade objetiva do empregador, pois assim assegurado, de forma supletiva, pelo art. 927, parágrafo único, do Código Civil. Um parêntese se faz relevante: a interpretação literal do art. 927, parágrafo único, do Código Civil levaria à conclusão de que a responsabilidade objetiva só deveria ser adotada quando a atividade empresarial fosse de risco per se, independentemente de o serviço do trabalhador acidentado carac- terizar-se, ou não, como arriscado. Logo se percebeu, porém e exempli gratia, que tão injusto quanto responsabilizar, sem averiguação de culpa, a usina provedora de energia nuclear (atividade de risco) por acidente que houvesse vitimado a secretária de seu escritório situado longe da área de radiação seria, noutra hipótese, não responsabilizar a entidade de ensino (atividade sem aparente risco) pelo acidente sofrido por vigilante que, a seu serviço, fosse alvejado ao cumprir a rotineira e perigosa obri- gação de transportar o dinheiro dessa empresa até instituição bancária. Tem-se entendido, por isso, que o art. 927, parágrafo único, do Código Civil comporta exegese afinada com a proposta constitucional de reduzir os riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII, da CRFB): a responsabilidade objetiva deve ser aplicada em razão do risco a que se sujeita o empregado, na realização de seu trabalho típico, em vez de se a associar ao risco da atividade empresarial(843). (841) Sobre o tema: OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por Acidente do Trabalho ou Doença Ocupacional. São Paulo: LTr, 2014. p. 119 e DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Responsabilidade Civil no Direito do Trabalho. São Paulo, LTr, 2014. p. 103. (842) No sentido de aplicar a responsabilidade objetiva com base no art. 927, parágrafo único, do Código Civil: TST, SBDI-1, E-RR 10191- 31.2013.5.03.0167, Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, DEJT 06/11/2015; TST, SBDI-1, E-RR 28900-66.2006.5.17.0007, Rel. Min. Luiz Phili- ppe Vieira de Mello Filho, DEJT 07/10/2011; TST, SBDI-1, E-ED-RR 64440-93.2007.5.02.0255, Rel. Min. Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 22/05/2015. (843) Sobre o tema: BRANDÃO, Cláudio. Acidente de Trabalho e Responsabilidade Civil do Empregador. São Paulo: LTr, 2015. p. 251. 302 – Augusto César Leite de Carvalho Voltemos, então, à análise do direito à reparação por dano causado ao meio ambiente de trabalho, debatida em demandas coletivas normalmente ajuizadas por entidades sindicais ou pelo Ministério Público. Importa correlacionar esse estudo com as construções doutrinárias e jurisprudenciais que cogitam do dano moral coletivo e do dano social. Em ambos os casos, vislumbra-se evento danoso cuja lesividade extrapola a dimensão individual e alcança os interesses de uma coletividade deter- minada, ou determinável, na hipótese de dano moral coletivo; ou o dano difuso à sociedade, se esti- vermos a cuidar de dano social. Uma e outra espécies de dano exigem indenização que não atenda somente ao propósito de compensar o prejuízo, patrimonial ou extrapatrimonial, suportado por tal ou qual empregado. Se há dano social ou dano moral coletivo – e diversamente do que acabamos de ver acerca do dano tolerado isoladamente pelo trabalhador (sem conotação metaindividual) –, assinala Xisto Tiago de Medeiros Neto ser impertinente buscar a presença do elemento culpa na conduta do ofensor que é danosa a toda uma coletividade – dir-se-ia: a todo o meio ambiente laboral. Argumenta o autor: Ora, no plano da realidade, não se há de conceber, por exemplo, que, para a responsabili- dade civil, demonstre-se a culpa do causador do dano ao meio ambiente ou ao patrimônio público e cultural, diante da violação verificada, pois ela, por si, reflete a antijuridicidade da conduta e, pois, o dever correspondente de reparar. Ressalvam-se, por lógico, apenas as circunstâncias excepcionais que configurariam hipóteses excludentes de responsabilidade, como o caso fortuito ou de força maior, a legítima defesa, o exercício regular de um direito e o estado de necessidade [...]. Tenha-se presente que o dever de responder pelos danos coletivos, como consequência dessas condutas antijurídicas, incide de maneira inexorável, ainda que o agente não preten- desse tais resultados lesivos, ou não haja participado de forma ativa do evento, ou não soubesse das suas consequências, ou até mesmo ignorasse a possibilidade ou o risco de sua ocorrência.(844) A configuração do dano moral coletivo é assim explicada por Carlos Alberto Bittar Filho: Assim como cada indivíduo tem sua carga de valores, também a comunidade, por ser um conjunto de indivíduos, tem uma dimensão ética. [...] Por isso mesmo, instaura-se entre os destinos dos interessados tão firme união, que a satisfação de um só implica de modo neces- sário a satisfação de todos; e, reciprocamente, a lesão de um só constitui, ipso facto, lesão da inteira coletividade” [...]. Dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial. Tal como se dá na seara do dano moral individual, aqui também não há que se cogitar de prova da culpa, devendo-se responsabilizar o agente pelo simples fato da violação (damnum in re ipsa). (845) O significado de dano social está atrelado, por sua vez, às lesões que atingem a sociedade “no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segu- rança – quanto por diminuição na qualidade de vida”(846). Diferentemente do dano moral coletivo, o dano social pode revestir-se da característica de dano material, por ter extensibilidade e expressão pecuniária. É o caso, por exemplo, de omissão do empregador quanto à instalação de equipamentos de proteção coletiva quando tal omissão resulta em explosão e destruição do ambiente de trabalho e também na contaminação das residências adjacentes à unidade produtiva – nesse caso, haveria o direito à repara- ção por danos material e extrapatrimonial sofridos pelos empregados e pelos moradores próximos ao estabelecimento. Sendo dano socialmente reprovável, a provocar prejuízo também material a pessoas sem vínculo empregatício com a ofensora, haveria dano social de conteúdo patrimonial (sem embargo de configurar-se também o dano moral coletivo na perspectiva dos empregados atingidos). (844) MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano Moral Coletivo. São Paulo: LTr, 2014. p. 181. (845) Bittar Filho, apud MARQUES, Marcelino Pereira. Dano Moral Coletivo. Disponível em: http://www.revistadir.mcampos.br/ PRODUCAOCIENTIFICA/artigos/marcelinopereiramarquesdanomoralcoletivo.pdf.. Acesso em: 02/jan/2016. (846) Apud SILVA, Flávio Murilo Tartuce. Reflexões sobre o dano social. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XI, n. 59, nov 2008. Disponível em: . Acesso em: 26/jan/2016. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 303 É certo, porém, que o conceito de dano moral coletivo se aproxima do conceito de dano social quando se considera, neste, apenas a dimensão extrapatrimonial. Distinguem-se, por outro lado, se atentamos para o fato de o dano moral coletivo atingir uma coletividade de trabalhadores que se revela titular de interesse coletivo stricto sensu ou de interesse individual homogêneo, enquanto o dano social é potencialmente lesivo a toda a sociedade. Ilustrativamente, pode-se dizer que causa dano moral coletivo a empresa de transporte de passageiros que exige jornada excessiva dos motoristas que labo- ram a seu serviço, pois o mal que ela faz a esses trabalhadores causa repulsa em toda a sociedade (não atingida diretamente pelo ato assim lesivo); mas pode-se considerar que essa mesma conduta patronal pode ocasionar também dano social se tivermos em conta que a ausência de reflexos e de atenção dos motoristas, exauridos por horas demasiadas de trabalho, faz inseguras as ruas e rodovias por onde eles estariam a trafegar. Em consonância com o art. 13 da Lei n. 7.347/1985, a reparação em dinheiro por dano moral cole- tivo deve ser revertida em favor de fundo gerido por Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados. A mesma solução pode ser adotada para a reparação de danos sociais. 11.2.2 O tempo sem trabalho e sua correlação com o direito à coexistência Há uma correlação inexorável entre tempo de trabalho e tempo de descanso, como a tratar de categorias opostas que sempre se completam. Foi o que percebeu, por exemplo, o Papa Leão XIII em trecho atemporal da Encíclica Rerum Novarum: Não é justo nem humano que se exija do homem tanto trabalho a ponto de fazê-lo, por excesso de fadiga, embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo. A atividade do homem, limi- tada como a sua natureza, tem limites que não se podem superar. O exercício e o uso a aper- feiçoam, mas é preciso, de vez em quando, que se a suspenda para dar lugar ao repouso. A sociedade e suas leis evoluíram para expectar, como o faz o art. 4º da CLT, que a jornada tem, em princípio, a dimensão contraposta à dimensão do tempo dedicado à liberdade. O dispositivo é claro: “Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empre- gador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada”. Ainda a propósito da extensão da jornada de trabalho, a Consolidação das Leis do Trabalho esta- belece em seu art. 58, §2º: O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de trans- porte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução. Logo, e a contrario sensu, mede-se a jornada pelo tempo de trabalho efetivo ou à disposição, no estabelecimento empresarial ou em deslocamento, integrando-se o tempo de trajeto sempre que o local de trabalho é de difícil acesso ou não servido por transporte regular público e é o empregado transportado por condução fornecida pelo empregador. O citado art. 58, §2º da CLT se inspirou na Súmula 90 do TST, que o precedeu e tem fundamento de equidade que pode ser extraído, exempli gratia, do seu precedente RR 4378/77, o qual corresponde a acórdão da Terceira Turma lavrado pelo Ministro Coqueijo Costa em 28/fev/1978, no qual pondera S. Exa.: Tempo em que o empregado está à disposição do empregador é de serviço, para todos os efeitos legais (CLT, art. 4). É dessa natureza aquele gasto no transporte fornecido pela empresa, para o local de trabalho, no interesse mais dela do que dos trabalhadores. Se o servidor (rectius: serviço) é prestado longe do centro urbano, em local não servido por linhas regulares de transporte, empenha-se a empresa em arrebanhar o seu pessoal até o lugar da prestação, onde se efetua o corte de mato e o plantio e que, por isso mesmo, varia sempre como horas extra- ordinárias, as do tempo despendido na condução dos reclamantes, conforme se apurar em execução. Os fundamentos da Súmula 90 do TST, precursora e fonte de inspiração do citado art. 58, §2º da CLT, também pode ser perscrutada no precedente RR 1492/76, consistente em acórdão da 2ª Turma lavrado pelo Ministro Renato Machado em 30/set/1976: A jornada começa e termina na sede da empresa. Isto, a rigor. No caso, os Reclamantes apanham a condução da empresa em local determinado, porque o de trabalho só é acessível pelo transporte fornecido, pela empresa. Essa situação decorre da atividade da empresa. É inerente às 304 – Augusto César Leite de Carvalho suas operações, e os seus empregados estão à disposição da Reclamada, a partir do momento em que tomam o veículo, que os conduz, na ida e na volta. É fato que o deslocamento casa-trabalho, neste país de dimensões continentais, revela-se problemático mesmo em centros urbanos servidos por transporte público, como se pode perceber, ilustrativamente, à vista de jornais e notícias televisivas(847). Ainda assim, a jurisprudência sempre se pautou pela parcimônia de não considerar todo o tempo de deslocamento entre a residência e o local de trabalho como parte da jornada de trabalho, assim o considerando somente quando esse traslado é fornecido pelo empregador como um modo de tornar possível a prestação laboral. Vale dizer, o tempo in itinere só compõe a jornada quando atende à necessidade da empresa, sendo, nas palavras do Ministro Renato Machado, “inerente às suas operações”. E o tempo dedi- cado ao trabalho, nessa dimensão da necessidade, é o tempo que se subtrai do descanso, do lazer, do convívio familiar e social, da atividade acadêmica, religiosa ou esportiva, da existência voltada à liberdade de expressão e à expressão da liberdade. Como ensinou Arnaldo Sussekind, a limitação do tempo de trabalho, para propiciar o tempo sem trabalho, possui fundamentos de natureza biológica, de caráter social e de índole econômica(848). O tempo que corresponde à jornada laboral tem, por conseguinte, projeção bifronte na vida rela- cional do empregado: tanto promove a inserção social e a emancipação do trabalhador quanto se revela, sobretudo se excede o necessário a esse primeiro propósito, um tempo invariavelmente subtra- ído pela atividade econômica, que aproveita ao empregador, do descanso e do possível otium do empregado, como se lhe tirasse um naco de dignidade – da dignidade que é sua, é de toda pessoa humana, e impede, com o apanágio de ser fundamento da República (art. 1º, IV, da Constituição), a instrumentalização do homem em proveito do lucro(849). Quando dizemos que o tempo dedicado ao trabalho é, regra geral, aquele que se furta ao ócio, não atribuímos à palavra “ócio” o significado coloquial de tempo livre, mas sim a acepção humanista de Luigi Bagolini(850) que apreende o otium “como um deixar que a consciência se expanda através de certos comportamentos artísticos, filosóficos, religiosos, desinteressadamente culturais, simpático no convívio com os outros etc., de per si não exclusivamente redutíveis a termos de trabalho e em relação aos quais o trabalho poderá ser apenas um meio”. Não por acaso o art. 43.3 da Constituição Espa- nhola, ao tempo em que consagrou o direito fundamental à proteção da saúde, impôs aos poderes públicos facilitar a adequada utilização do ócio. A justificativa para as horas excedentes da jornada legal – devotadas que sejam à realização ou à viabilização do trabalho – fazerem-se devidas com adicional de no mínimo 50% não se esgota, portanto, na louvável tentativa de evitar a fadiga do empregado, mas se impõe sobremodo como projeto de reinserção social do trabalhador, apto a distinguir-lhe com a existência digna prometida pelo art. 170 da Constituição, cujo verbo é eloquente: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]. Explica-se, também assim, a firme posição da jurisprudência quanto à absoluta indisponibili- dade(851) do direito à remuneração, com o adicional mínimo de 50% e integração ao salário, das horas (847) Ver, a propósito, odia.ig.com.br/noticia/riosemfronteiras – edição de 20/07/2014 e Jornal Nacional – g1.globo.com/jornalnacional/ noticia – edição do dia 8/09/2015. (848) SÜSSEKIND, Arnaldo et alii. Instituições de Direito do Trabalho. Atualização de Arnaldo Sussekind e Lima Teixeira. Vol. 2. São Paulo: LTr, 2005. p. 803. (849) Sobre o tema: SILVA, José Antônio Ribeiro Oliveira de. “Limitação do Tempo de Trabalho e Proteção à Saúde dos Trabalhadores – uma análise dos sistemas jurídicos brasileiro e espanhol”. In: Revista LTr 76/10/1189, p. 1191. (850) BAGOLINI, Luigi. Filosofia do Trabalho. São Paulo: LTr, 1997. p. 55. Mais adiante (p. 59), Bagolini arremata: “Todos podem ter tempo livre, mas nem todos podem gozar do otium. Ao tempo livre corresponde uma ideia realizável de democracia. O otium não é sempre plenamente realizável e por isso é um ideal, não apenas uma ideia; é um ideal no qual se exprime aquilo que está mais profundamente e qualitativamente implícito na natureza e na condição humana, que, portanto, não pode ser exclusivamente reduzido a termos quantitativos, mensuráveis e calculáveis, de uma sucessão temporal de eventos concebida como objetivada no espaço ou em um pseudo-espaço”. (851) Nesse sentido, a tratar como norma de ordem pública a que assegura a remuneração da jornada, incluído o tempo de trajeto casa-tra- balho: EMBARGOS REGIDOS PELA LEI N. 11.496/2007. HORAS IN ITINERE. SUPRESSÃO TOTAL DO PAGAMENTO DAS HORAS DE PERCURSO POR MEIO DE NORMA COLETIVA. INVALIDADE. As normas coletivas de trabalho devem ser resultado de concessões recíprocas entre as partes convenentes, mas não podem ser utilizadas para estabelecer condições menos favoráveis aos empregados do que aquelas previstas em texto de lei, pois o inciso XXVI do artigo 7º da Constituição da República, que estabelece como direito fundamental - Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 305 subtraídas, pelo trabalho, à vida comunitária, gregária ou coexistencial garantida pelo ordenamento jurí- dico. Não raro, os precedentes jurisprudenciais enfatizam o aspecto de as longas jornadas de trabalho (incluído o tempo à disposição e o de deslocamento casa-trabalho) importarem dano existencial, vale dizer, dano ao projeto de vida e à vida de relações assegurado pelo sistema jurídico. É o que enfatiza o Ministro Mauricio Godinho Delgado em ementa paradigmática, aqui transcrita em sua fração de interesse: [...] uma gestão empregatícia que submeta o indivíduo a reiterada e contínua jornada exte- nuante, muito acima dos limites legais, por doze horas diárias, em dias sequenciais, agride [...] princípios constitucionais [...] e a própria noção estruturante de Estado Democrático de Direito. Se não bastasse, reduz acentuadamente e de modo injustificável, por longo perí- odo, o direito à razoável disponibilidade temporal inerente a todo indivíduo, disponibilidade pessoal que é assegurada pelos princípios mencionados e pelas regras constitucionais e legais regentes da jornada de trabalho. Semelhante gestão empregatícia deflagra, assim, o dano existencial, que consiste em lesão ao tempo razoável e proporcional, assegurado pela ordem jurídica, à pessoa humana do trabalhador, para que possa se dedicar às ativi- dades individuais, familiares e sociais inerentes a todos os indivíduos, sem a sobrecarga horária desproporcional, desarrazoada e ilegal, de intensidade repetida e contínua, em vista do contrato de trabalho mantido com o empregador. Configurada essa situação no caso dos autos, mantém-se a indenização por dano existencial reconhecida pela Instância Ordinária. [...](852). Por isso se explicam, também, as ações civis públicas em que, atento às perspectivas existencial e coexistencial do direito do trabalho, o Ministério Público não pede, simplesmente, a remuneração de horas extras resultantes do excesso no tempo de trabalho efetivo ou do tempo in itinere, mas sim a definitiva limitação desse tempo que excede a jornada legal e impossibilita a fruição de outros direitos fundamentais, como o direito ao descanso semanal e anual, ao lazer, à moradia e, nesta, à convivência com a família, ao repouso entre as jornadas, à higiene, à alimentação etc. Os direitos fundamentais reclamam, sempre e harmoniosamente, máxima efetividade. 11.2.3 Direitos relacionados à duração do trabalho afetam o direito fundamental à saúde Em estudo publicado na coletânea “Patologia do Trabalho”, sob a coordenação de René Mendes, os médicos Andréa Maria Silveira e Sérgio Roberto de Lucca elucidam como se deve desenvolver o dos trabalhadores o “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”, deve ser interpretado e aplicado em consonância com o caput daquele mesmo preceito constitucional, que determina, claramente, que seus 34 (trinta e quatro) incisos somente se aplicam para firmar um patamar mínimo de diretos sociais, “além de outros que visem à melhoria de sua condição social”. Embora seja predominante, no Tribunal Superior do Trabalho, o entendimento de que é válida a prefixação, por norma coletiva de trabalho, de um tempo uniforme diário in itinere a ser pago aos empregados por ela abrangidos, quando observado o princípio da razoabilidade, essa hipótese não se assemelha à situação delineada no caso ora em apreço, em que a negociação coletiva estabeleceu que as horas in itinere diárias, pura e simplesmente, não deverão ser pagas, em direta afronta ao princípio da razoabilidade, diante da renúncia dos salários correspondentes a esse tempo à disposição do empregador. Na hipótese, é inválida a convenção coletiva, que transacionou o direito laboral às horas in itinere, assegurado pelo § 2º do artigo 58 da CLT, que, por se tratar de norma de ordem pública, não pode ser objeto de renúncia, seja pela via individual, seja pela via coletiva. Embargos conhecidos e desprovidos (TST, SBDI-1, E-ED-RR 1363-69.2010.5.03.0064, Relator Ministro José Roberto Freire Pimenta, DEJT 08/05/2015) (852) Trecho da ementa do TST, 3ª Turma, RR 1152-12.2012.5.04.0007, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, DEJT 11/12/2015. No mesmo sentido, de vislumbrar dano existencial como consequência da existência de jornadas extenuantes: TST, 2ª Turma, RR 870-87.2011.5.04.0013, Rel. Min. Delaíde Miranda Arantes, DEJT 18/12/2015; TST, 5ª Turma, AIRR 3824-12.2013.5.03.0063, Rel. Des. Conv. Tarcísio Régis Valente, DEJT 18/12/2015. No sentido de exigir a prova de que a jornada excessiva teria gerado reflexo na vida rela- cional do empregado: RECURSO DE REVISTA. APELO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI N.º 13.015/2014. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. PRIVAÇÃO DE LAZER. EXCESSO DE TRABALHO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA CONDUTA ILÍCITA DO EMPREGADOR QUE IMPLICASSE NO DEVER DE INDENIZAR O OBREIRO PARA ALÉM DA ESFERA PURAMENTE PATRIMO- NIAL. NÃO PROVIMENTO. O dano existencial é espécie de dano imaterial, e ocorre quando o trabalhador sofre dano/limitações em relação à sua vida fora do ambiente de trabalho, em razão de condutas ilícitas praticadas pelo empregador, impossibilitando-o de estabelecer a prática de um conjunto de atividades culturais, sociais, recreativas, esportivas, afetivas, familiares, etc., ou de desenvolver seus projetos de vida nos âmbitos profissional, social e pessoal. Mas não é qualquer conduta isolada e de curta duração, por parte do empregador, que pode ser considerada como um dano existencial. Para isso, a conduta deve se perdurar no tempo, sendo capaz de alterar o objetivo de vida do trabalhador, trazendo prejuízo à sua dignidade humana ou à sua personalidade, no âmbito de suas relações sociais. No caso, não ficou comprovada a conduta ilícita por parte da empresa que implicasse o dever de indenizar o Obreiro para além da esfera puramente patrimo- nial. Assim, não preenchidos os requisitos necessários à responsabilidade civil do empregador, no caso os elementos caracterizadores do prejuízo moral, não há de se falar em indenização por dano moral. Nesse sentido, precedente desta 4.ª Turma. Recurso de Revista conhecido, no particular, e não provido (TST, 4ª Turma, RR 10067-81.2013.5.03.0156, Relatora Ministra Maria de Assis Calsing, DEJT 20/11/2015). 306 – Augusto César Leite de Carvalho processo investigativo que haverá sempre de considerar os riscos ergonômicos e psicossociais para a anamnese ocupacional, riscos que são versados como elementos que compõem a organização do trabalho e assim são descritos: “[...] Imprescindíveis a esta investigação, (os citados riscos) aludem a questões referentes à duração da jornada, à realização de horas extras, à duração de pausas, a folgas, ao gozo regular de férias etc. A duração do trabalho constitui um poderoso indicador, não apenas do tempo de exposição aos demais riscos presentes no ambiente de trabalho e da possibilidade de fadiga, mas, também, do impacto que o trabalho exerce sob(re) as demais dimensões da vida, como participação em atividades familiares e comunitárias, possibilidade de atividades de lazer, realização de atividade física regular, estudo etc. [...] Cabe-nos aqui lembrar que as epidemias ‘modernas’ de doenças relacionadas ao trabalho, como transtornos mentais e distúrbios osteomusculares, parecem relacio- nar-se, fortemente, às formas contemporâneas de organizar o trabalho [...]”(853) O interesse empresarial – sempre latente e justificável em um sistema econômico regido pelos mercados – de alargar o tempo de atividade industrial provoca usualmente o debate acerca do custo de produção, projetando-se o custo do trabalho humano com base apenas no preço das horas de labor, sejam ordinárias, extraordinárias, noturnas ou de revezamento. Despreza-se, à vista desse hori- zonte mais restrito, o ônus que a atribuição de trabalho noturno, excessivo ou em desacordo com o ritmo biológico faz incidir sobre a seguridade social e especialmente sobre a promessa constitucional, ou anseio social, de vida saudável: Já está bem estabelecido na literatura que a exposição ao turno noturno de trabalho, longa duração da jornada, horas extras, trabalho em turno rotativo e vigília prolongada são fatores contribuintes para sonolência excessiva, redução do alerta e do desempenho no trabalho, assim como para erros e acidentes ocupacionais. É descrito em alguns estudos que a maio- ria dos trabalhadores em turno, especialmente dos turnos rotativos, irregulares e do turno noturno, dormem pouco e não apresentam sono restaurador. Sabe-se que a maioria deles [...] finaliza a jornada de trabalho com mais de dezesseis horas de vigília prolongada. [...] Estudos demonstraram que indivíduos com tempo de vigília acima de dezesseis horas apre- sentam baixo desempenho psicomotor e podem ser comparados a indivíduos que apresen- tam altos níveis de álcool no sangue.(854) Observam Montoya Melgar e Pizá Granados que “a instituição jurídica da limitação do tempo de trabalho tem um induvidoso componente de proteção à saúde do trabalhador (como se encarregam de racionalizar, desde suas origens, as leis laborais sobre jornada máxima e sobre descansos diários, semanais e anual)”. Os autores advertem, em seguida, que “essa forte impregnação tuitiva das normas sobre tempo de trabalho não tem impedido que, tradicionalmente, não se as venham considerando como específicas de segurança e saúde no trabalho, senão como disposições genéricas de Direito do Trabalho”(855). Os autores anotam, em seguida, que o tempo de trabalho, na Comunidade Europeia, é tratado como tema intrínseco à segurança e saúde do trabalhador, citando a Directiva 93/104/CEE como a norma que teria levado a efeito, radicalmente, essa operação integradora. No Brasil, não custa recordar que o art. 200, VIII, da Constituição igualmente prevê que o direito fundamental à saúde, e sua promoção pelo Sistema Único de Saúde, remetem à proteção do meio ambiente de trabalho, assim concebido o habitat onde o trabalhador se põe à disposição da atividade empresarial, seja ao abrigo do sol no interior da unidade produtiva, seja ao relento ou à chuva nas ruas em que presta serviço ou é conduzido pelo empregador porque de outro modo não o poderá prestar. Em rigor, o tema concernente ao tempo dedicado ao trabalho e ao ócio entrelaça-se, simulta- neamente, com o direito constitucional à existência digna e com o direito fundamental à saúde. Ao divisar-se o fim social das normas relativas aos limites da jornada de trabalho, percebe-se com nitidez que o interesse há pouco visto de proporcionar uma vida relacional ao trabalhador, com a fruição de outros direitos igualmente fundamentais (educação, inclusive profissional, lazer, moradia, liberdade (853) SILVEIRA, Andréa Maria; DE LUCCA, Sérgio Roberto. “Estabelecimento de Nexo Causal entre Adoecimento e Trabalho: a Perspec- tiva Clínica e Individual”. In: Patologia do Trabalho. Coordenação de René Mendes. São Paulo: Atheneu, 2013. p. 193. (854) MELLO, Marco Túlio de NARCISO, Fernanda V. MELLO, Andressa S. de. RUIZ, Francieli S. “Transtornos do Sono e Segurança do Trabalho. In: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região/Escola Judicial do TRT – 15ª Região; n. 46, jan/jun 2015, p. 85. (855) MONTOYA MELGAR, Alfredo; PIZÁ GRANADOS, Jaime. Curso de Seguridad y Salud en el Trabajo. Tradução livre para o portu- guês. Madrid: Ciencias Jurídicas, 2000. p. 111. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 307 de opinião e crença etc.), e de propiciar-lhe ainda a realização de um projeto de vida para além do trabalho, agrega-se ao interesse de promover a saúde do trabalhador para formar um plexo de novos valores jurídicos, com força normativa, que se descola da expectativa tradicional de distribuir justiça comutativa, ou distribuí-la apenas, nos conflitos judiciais que envolvem a duração do trabalho. É o que acentua Tereza Asta Gemignani: A reiterada prestação de jornadas extenuantes mina a saúde do trabalhador, e o afasta de casa por longos períodos. Mesmo que tal redunde no recebimento de um salário maior, no final do mês, há custos e encargos que não podem ser desconsiderados, e que não são suportados só por ele, mas por toda a sociedade. Assim, no período de médio/longo prazo, as vantagens se diluem. Este trabalhador apre- sentará muito mais problemas de saúde, maior risco de sofrer acidente de trabalho, e assim inchar o número dos que permanecem afastados, recebendo benefícios previdenciários. Além disso, com a precarização da saúde, suas chances de empregabilidade diminuem, há um inequívoco e concreto risco de redução de seu nível salarial quando entra na fase de alta rotatividade nos empregos, culminando pela perda definitiva do posto de trabalho quando atinge a meia-idade, via de regra época em que as despesas da família mais aumentam. Não teve tempo para se dedicar aos filhos quando pequenos e acaba por oferecer-lhes um exem- plo pouco edificante quando estes atingem a adolescência, de modo que não é incomum a desagregação familiar e o alcoolismo que vai levar a novas doenças, violência doméstica e abandono, ampliando o leque das necessidades exigidas pela atuação estatal.(856) De tudo se conclui que as medidas administrativas ou judiciais que visem compatibilizar os lindes da jornada de trabalho efetivo, ou de tempo destinado exclusivamente ao trabalho, com os limites fisio- lógicos do ser humano não se revestem somente de conteúdo patrimonial (quando asseguram a remu- neração de horas extras, por exemplo), pois têm, antes, suporte no direito fundamental à saúde. Por essa singela razão, mais relevantes que as autuações ou decisões judiciais voltadas à remuneração de horas extraordinárias com o devido adicional são, por certo, as intervenções que inibem a jornada extenuante ou de algum modo dissociada do propósito de assegurar vida saudável ao trabalhador. 11.3 Igualdade substancial e tratamento desigual Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Assim preconiza o art. 5º da Constituição que, logo em seu primeiro inciso, diz em reforço: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. A igualdade formal é desse modo consagrada na ordem jurídica interna, como antes já o fora nas declarações de direitos humanos e em vários tratados internacionais. Mas tratar igualmente não significa negar a existência de diferenças entre os seres humanos, incluídos os trabalhadores. À igualdade formal, concebida para o tratamento perante a lei, agrega-se fortemente a ideia da igualdade substancial, ou seja, aquela que implica o tratamento desigual na medida em que as pessoas se desigualam. E então desigualar não significa aviltar, humilhar, reforçando alguma injustiça que historicamente se houver imposto a um segmento socioeconômico, étnico, etário ou de gênero, por exemplo. A desigualdade de tratamento, que a lei consente, é aquela apta a promover a igualdade material que é imanente à condição humana e em algum momento fora conspurcada. Conforme esclarece o segundo artigo da Convenção n. 111 da Organização Internacional do Trabalho, “as distinções, exclusões ou preferências fundadas em qualificações exigidas para um deter- minado emprego não são consideradas como discriminação”. De modo mais minucioso, o art. 25º.2 do Código do Trabalho português esclarece: “não constitui discriminação o comportamento baseado em fator de discriminação que constitua um requisito justificável e determinante para o exercício da atividade profissional, em virtude da natureza da atividade em causa ou do contexto da sua execução, devendo o objetivo ser legítimo e o requisito proporcional.” Cabe, a propósito, a anotação de Pedro Romano Martinez: “nada impede que uma empresa pretenda contratar uma modelo com menos de vinte e cinco anos, uma bailarina ou um jogador de (856) GEMIGNANI, Tereza Aparecida Asta. Direitos Fundamentais e Sua Aplicação no Mundo do Trabalho: questões controversas. São Paulo: LTr, 2010. p. 39. 308 – Augusto César Leite de Carvalho futebol”(857). Contratam-se trabalhadoras para a limpeza de banheiros para mulheres, desfilar roupas femininas ou cuidar de meninas e de idosas, justificando-se igualmente a contratação de homens se os destinatários desses mesmos serviços são do sexo masculino. O Estatuto do Idoso(858), no Brasil, veda a discriminação e a fixação de limite máximo de idade para a admissão em qualquer emprego privado ou público, mas ressalva “os casos em que a natureza do cargo o exigir”. A existência de um motivo para a distinção e a sua razoabilidade autorizam, portanto, o tratamento desigual, na linha de ponderação preconizada por Martinez: A igualdade de tratamento nunca pode ser total; principalmente no direito privado deve ser deixada uma margem para a autonomia contratual. O problema reside na compatibilidade entre os princípios constitucionais, internacionais e comunitários, que apontam para a igual- dade, por um lado, e a autonomia privada, por outro. A referida compatibilidade parece poder encontrar-se no seguinte ponto de equilíbrio: as diferenciações determinadas pela liberdade contratual, desde que assentes em critérios objetivos, não colidem com o princípio da igual- dade de tratamento. O princípio da igualdade obsta a que a escolha seja determinada por critérios arbitrários e perversos.(859) Se motivo não houver, ou não for ele razoável à vista dos valores humanitários que impregnam o orde- namento jurídico, incidem as normas que coíbem o trato discriminatório. Entre nós, a Lei n. 9.029, de 1995, proíbe “a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7o da Constituição Federal”. O empregado injustamente discriminado pode exigir a reintegração no emprego ou o pagamento em dobro dos salários intercorrentes ao período em que o obrigaram a afastar-se da empresa (art. 4º da Lei n. 9.029/1995). 11.3.1 Ações afirmativas no âmbito do trabalho – pessoas com deficiência e aprendizes Há casos, porém, em que a própria ordem jurídica impõe o tratamento desigual, quer pela condição adversa de trabalho, quer para atingir o desígnio constitucional de igualdade substancial mediante a impo- sição de cotas de emprego. Na primeira hipótese, as normas de direito do trabalho exigem que o empre- gado a serviço extraordinário, noturno, insalubre ou perigoso, por exemplo, receba um salário-adicional mínimo que compense a adversidade ou o risco inerente ao seu labor, inexistente porventura para outros trabalhadores. Na segunda hipótese, a norma jurídica prescreve ações afirmativas em favor de grupos culturalmente vulnerabilizados, como as pessoas com deficiência e mesmo os trabalhadores aprendizes. As ações afirmativas, que o mais das vezes se revelam por meio de cotas estabelecidas em favor de segmentos sociais desfavorecidos, justificam-se como medidas compensatórias e de promoção da diversidade. É como dizer: as cotas percentuais compensam a segregação imposta historicamente a determinadas coletividades e consubstanciam o anseio de promover a inclusão no mundo do trabalho de pessoas com características que não as fazem inaptas à prestação laboral, mas dificultam o reco- nhecimento e a realização de seus talentos. Se a propriedade, o contrato e a empresa têm função social, pois assim afirma o direito posto, o ambiente laboral – que resulta da conjugação desses três importantes institutos jurídicos – deve ser um espaço interativo que retrate, tanto quanto possível, a sociedade plural e pretensamente engajada em projetos humanitários que o rodeiam e permitem a sua existência. (857) ROMANO MARTINEZ, Pedro. Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2015, p. 381. Michael Gold se reporta a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos acerca de objeção das companhias aéreas à contratação de pessoas com mais de sessenta anos para trabalharem como engenheiros de voo, pretendendo elas estender a essa função a regra que já estaria estabelecida em relação a pilotos e copilotos. A Suprema Corte fixou então duas premissas que as companhias aéreas poderiam alternativamente invocar para discriminar tais candida- tos sexagenários: a) a prova de que todos ou quase todos os empregados acima dessa idade são inábeis para executar as tarefas essenciais do cargo de modo seguro e eficiente; ou b) a prova de que alguns empregados acima dessa idade possuem uma característica física que os impede de atuar com segurança e eficiência, e que essa característica não pode ser detectada com base em análise individual (GOLD, Michael Evan. An Introduction to the Law of Employment Discrimination. Coleção ILR Bulletin n. 68 – Cornell University. Nova York: ILR Press, 2001, p. 50. (858) Lei n. 10.741 de 01 de outubro de 2003. Alude-se no texto ao art. 27. (859) Op. cit., p. 384. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 309 Em um primeiro estágio do programa constitucional, o art. 7º, XXXI, da Constituição brasileira proíbe “qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”, o suficiente para obstar que a deficiência seja adotada como fator de discriminação. Mas reconhece o legislador ordinário que o ato discriminatório é normalmente dissimulado e, por isso, acresce à vedação de discriminar o dever de empregar, nos termos da lei, pessoas com deficiência. Para tal efeito, o art. 93 da Lei n. 8.213/1991 dispõe que as empresas com mais de cem empre- gados estão obrigadas a preencher de dois a cinco por cento(860) de seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência e, para garantir a efetividade dessa norma, o §1º do citado dispositivo prescreve: “A dispensa de pessoa com deficiência ou de beneficiário reabilitado da Previdência Social ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias e a dispensa imotivada em contrato por prazo indeterminado somente poderão ocorrer após a contratação de outro trabalhador com deficiência ou beneficiário reabilitado da Previdência Social”. A Justiça do Trabalho tem afirmado a eficácia das cotas de empregabilidade asseguradas às pessoas com deficiência tanto ao exigir que a oferta de vagas não se dê apenas com o cumprimento formal ou puramente cênico da exigência legal, sem o real compromisso de provê-las de modo a aten- der à expectativa de promover a isonomia substancial, quanto no rigor de não consentir a dispensa de empregado com deficiência em prejuízo – mesmo episódico ou temporário – da cota, ou seja, sem que outra pessoa, com igual ou outra(861) deficiência, seja admitida. Ao ordenar a reintegração do empre- gado com deficiência que foi despedido nessa circunstância (sem a contratação de outro trabalhador com deficiência que atenda à cota), a jurisprudência não pressupõe estabilidade no emprego, mas sim uma garantia social afinada com a necessidade de viabilizar a concretização do princípio isonômico(862). Quanto aos aprendizes, o art. 429 da CLT prescreve que os estabelecimentos de qualquer natu- reza devem contratar aprendizes em número equivalente a cinco por cento, no mínimo, e quinze por cento, no máximo, do seu quadro de empregados. Os aprendizes devem ter entre quatorze e vinte e quatro anos e ser contratados pelo tempo máximo de dois anos, salvo se portadores de deficiência – quando então poderão contratar por mais de dois anos e ter mais de vinte e quatro anos. A norma promove a inserção da juventude em postos de trabalho e estimula a sua capacitação com o propósito de debelar, sobretudo, as altas taxas de desocupação entre os jovens(863). O empre- gador resulta tolhido em sua vontade de deliberar sobre os empregados que pretenda contratar, dado que a lei lhe impõe incluir, entre os que lhe prestam serviço, certa quantidade de trabalhadores que se iniciam em ofício ou profissão e demandam qualificação técnica para tanto. A intromissão no âmbito volitivo, isto é, na vontade de contratar, remete à concepção de um Estado que se desgarrara da ideologia puramente libertária para assegurar prestações que serviriam ao projeto de igualdade material, como explicam Mauricio Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado: No Estado Social de Direito, o valor preponderante passou a ser o da igualdade, correspon- dente não apenas à igualdade formal, mas, sobretudo, à igualdade material, ou seja, as leis deveriam reconhecer materialmente as diferenças, propondo alternativas jurídicas em face da diversidade apresentada.(864) Não apenas a condição de aprendiz autoriza o trabalho de adolescentes. Por vezes, o trabalho é um meio de promover a formação do menor em outros aspectos da existência que não se exaurem na lógica do capital, escapando ao interesse mercadológico de usufruto simplesmente da energia (860) 2% por empresas com até 200 empregados; 3% de 201 a 500 empregados; 4% de 501 a 1.000 empregados e 5% de 1.001 empregados em diante. (861) Antiga celeuma jurisprudencial acerca de o empregado a ser contratado, em substituição àquele que compunha a cota das pessoas com deficiência, dever ter a mesma deficiência desse empregado sucedido parece dissipar-se com a alteração do §1º pela Lei n. 13.146/2015, pois antes se exigia “a contratação de substituto de condição semelhante” e agora, como se nota no texto acima transcrito, exige-se “a contratação de outro trabalhador com deficiência ou beneficiário reabilitado da Previdência Social”. (862) Nesse sentido: TST, 1ª Turma, AIRR 381-64.2011.5.15.0071, Rel. Min. Lelio Bentes Corrêa, DEJT 30/05/2014; TST, 4ª Turma, RR 48700-19.2005.5.12.0019, Rel. Min. Maria de Assis Calsing, DEJT 06/05/2011; TST, 5ª Turma, RR 193600-77.2008.5.02.0372, Rel. Min. Guilherme Caputo Bastos, DEJT 30/05/2014. (863) Os dados do IBGE sobre taxa de desocupação são acessíveis em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Mensal_de_ Emprego/fasciculo_indicadores_ibge/2015/ (864) DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. Constituição da República e Direitos Fundamentais: dignidade da pessoa humana, justiça social e direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2012. p. 25. 310 – Augusto César Leite de Carvalho humana. Tem lugar, nessa hipótese, o “trabalho educativo” que o art. 68, §2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente define como “a atividade laboral em que as exigências pedagógicas relativas ao desenvolvimento pessoal e social do educando prevalecem sobre o aspecto produtivo”. Desde que assegure ao adolescente “condições de capacitação para o exercício de atividade regular remunerada” (art. 68, caput, do ECA), o trabalho educativo tem também chancela legal. A proteção dada à criança e ao adolescente não se esgota, porém, na adoção de ações afirmativas que os incluem no mundo do trabalho, pois tão ou mais relevantes são os preceitos constitucionais e de lei que impedem os menores de dezesseis anos de trabalhar, salvo na condição de aprendiz. Nesse ponto, o sistema jurídico não é contraditório, como poderia parecer. O princípio reitor é o da proteção integral dos menores, consubstanciando-se essa proteção em dois vértices: o da vedação do trabalho que impede a existência pueril ou compromete a formação do menor em todas as suas possíveis dimen- sões (formação moral, físico-psíquica, intelectual, cultural etc.) e, doutro lado, a promoção de trabalho qualificado, com a capacitação adequada, para o menor que pode ingressar no mercado de trabalho sem prejuízo das experiências e conhecimentos que só a infância e a adolescência podem oferecer. 11.3.1 A proteção do menor à luz da igualdade material Pelas razões vistas, o art. 7º, XXXIII, da Constituição proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insa- lubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos. O dispositivo está em sintonia com o art. 2º da Convenção n. 138 da Organização Internacional do Trabalho, este a recomendar que a idade mínima, nos estados- -membros que ratifiquem essa que é uma das convenções fundamentais da OIT, não seja inferior à idade de conclusão de escolaridade compulsória ou, em qualquer hipótese, não inferior a quinze anos. A preocupação tem origem nos fatos. Não obstante os esforços já empreendidos com o escopo de erradicar o trabalho infantil e destinar o de adolescentes para projetos de capacitação ou aprendizagem, dados da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD), colhidos em 2007, revelam, por exemplo, que 4,8 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalham no Brasil, o que representa 7,5% da população existente nessa faixa etária. A pesquisa demonstrou que o trabalho infantil se percebe sobretudo no trabalho familiar e nas atividades informais urbanas, além do trabalho infantil doméstico executado por 8% das crianças e adolescentes trabalhadores(865). O art. 8º da mencionada Convenção n. 138 da OIT contém preceito que, a bem da verdade, relativiza a proteção que se pretende integral, porquanto admite que autoridade competente permita “exceções para a proibição de emprego ou trabalho provida no art. 2º desta Convenção, para finali- dades como a participação em representações artísticas”. Na esteira desse permissivo, não somente a sociedade tem satisfeita a vontade de avistar crianças no elenco de filmes, séries, comerciais e novelas de televisão, independentemente do mal que a prática pode virtualmente proporcionar ao desenvolvimento dos atores-mirins, como outras autorizações têm surgido a pretexto de que a alusão ao trabalho artístico seria meramente enunciativa. O princípio da proteção integral deve ser invocado, por outro ângulo, como óbice à exploração do trabalho infantil e, para obstar que assim se dê, a Convenção n. 182 da OIT, igualmente convenção fundamental e também ratificada pelo Brasil, proíbe terminantemente as piores formas de trabalho infantil, identificadas na Lista TIP (Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil(866)) e exemplificadas no art. 4º do Decreto n. 6.481, de 2008: I - todas as formas de escravidão ou práticas análogas, tais como venda ou tráfico, cativeiro ou sujeição por dívida, servidão, trabalho forçado ou obrigatório; II - a utilização, demanda, oferta, tráfico ou aliciamento para fins de exploração sexual comercial, produção de pornografia ou atuações pornográficas; III - a utilização, recrutamento e oferta de adolescente para outras atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas; e (865)Ver em Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS); Organização Internacional do Traba- lho (OIT). Boas práticas: combate ao trabalho infantil no mundo / organizadores: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Ministério do Trabalho e Emprego; Ministério das Relações Exteriores. Brasília: MDS;OIT; MTE; MRE, 2015. Disponível em: file:///D:/Users/c047876/Downloads/wcms_398908.pdf. Acesso em: 4/fev/2016. (866) Acesso à Lista TIP: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/d6481.htm Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 311 IV - o recrutamento forçado ou compulsório de adolescente para ser utilizado em conflitos armados. Mesmo quando consente o trabalho de adolescentes, a lei o previne contra condições de trabalho inadequadas à sua constituição física ou à necessidade de conciliar o labor com atividades de natu- reza diversa inerentes à juventude e ao propósito de sua mais completa formação educacional. Nesse panorama, o art. 134, §2º, da CLT prescreve que aos menores de dezoito anos as férias devem ser concedidas de uma só vez, sem fracionamento, e se também for estudante o empregado tem direito a fazer coincidir suas férias com as férias escolares (art. 136, §2º). O menor de dezoito anos não pode ser escalado para prestação de horas excedentes da jornada legal, salvo se o for mediante compensação de jornada prevista em convenção ou acordo coletivo. E a exemplo do que sucede às mulheres, o menor de dezoito anos tem direito a um intervalo adicional, de quinze minutos, antes de se iniciar essa prorrogação de sua jornada normal. 11.3.2 A proteção da mulher à luz da igualdade material Sob a regência da Constituição de 1988, o ordenamento jurídico precisou adaptar-se ao postulado da não discriminação, mas o caminho foi pedregoso e teve que enfrentar adversários inusitados, espe- cialmente o Código Civil de 1916 e a CLT de 1943 que, editada a nova ordem constitucional, tratavam a mulher de modo discriminatório. Observa Leila Linhares Barsted, citada por Flávia Piovesan(867), acerca do Código Civil de 1916: A família descrita no Código era organizada de forma hierárquica, tendo o homem como chefe e a mulher em situ- ação de inferioridade legal. O texto de 1916 privilegiou o ramo paterno em detrimento do materno; exigiu a mono- gamia; aceitou a anulação do casamento face à não virgindade da mulher; afastou da herança a filha mulher de comportamento “desonesto”. O Código também não reconheceu os filhos nascidos fora do casamento. Por esse Código, com o casamento, a mulher perdia sua capacidade civil plena, ou seja, não poderia mais praticar, sem o consentimento do marido, inúmeros atos que praticaria sendo maior de idade e solteira. Deixava de ser civil- mente capaz para se tornar “relativamente incapaz”. Enfim, esse Código Civil regulava e legitimava a hierarquia de gênero e o lugar subalterno da mulher dentro do casamento civil. Na mesma linha de subalternidade, a mulher casada somente poderia laborar, segundo a regra legal posta até outubro de 1989, se contasse com a aquiescência expressa ou tácita de seu marido. Era o que se extraía do texto – então vigente – do art. 446 da CLT(868). Vê-se, portanto, que é relativa- mente novo, no Brasil, o paradigma normativo afinado com a não discriminação da mulher, inclusive da mulher trabalhadora. Contribuiu para esse avanço, no plano internacional, a Convenção sobre a Eliminação da Discri- minação contra a Mulher, de 1979, a Declaração e o Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, de 1993, o Plano de Ação da Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento do Cairo, de 1994, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 1994 e a Declaração e a Plataforma de Ação da Conferência Mundial sobre a Mulher de Pequim, de 1995(869). Em âmbito interno, foram decisivas a ratificação pelo Brasil, em 1984, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher(870) e, com ênfase, a superveniência (867) PIOVESAN, Flávia. Igualdade de Gênero na Constituição Federal: os direitos civis e políticos das mulheres no Brasil. Disponível em: http://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/outras-publicacoes/volume-i-constituicao-de-1988/ principios-e-direitos-fundamentais-igualdade-de-genero-na-constituicao-federal-os-direitos-civis-e-politicos-das-mulheres-do-brasil/ view. Acesso em: 3/fev/2016. (868) Art. 446 – Presume-se autorizado o trabalho da mulher casada e do menor de 21 anos e maior de 18. Em caso de oposição conjugal ou paterna, poderá a mulher ou o menor recorrer ao suprimento da autoridade judiciária competente. (Revogado pela Lei n. 7.855, de 24.10.1989)Parágrafo único. Ao marido ou pai é facultado pleitear a recisão do contrato de trabalho, quando a sua continuação for suscetível de acarretar ameaça aos vínculos da família, perigo manifesto às condições peculiares da mulher ou prejuízo de ordem física ou moral para o menor. (Revogado pela Lei n. 7.855, de 24.10.1989) (869) Anota Flávia Piovesan (op. cit., p. 4) que “esses instrumentos internacionais inspiraram e orientaram o movimento de mulheres a exigir, no plano local, a implementação de avanços obtidos na esfera internacional”. (870) Flávia Piovesan (op. cit., p. 14) registra que ao ratificar a Convenção, o Estado brasileiro apresentou reservas ao art. 15, § 4º e ao art. 16, § 1º (a), (c), (g), e (h) da Convenção, com fundamento no Código Civil brasileiro. O art. 15 assegura a homens e mulheres o direito de, livremente, escolher seu domicílio e residência. Já o art. 16 estabelece a igualdade de direitos entre homens e mulheres, no âmbito do casa- mento e das relações familiares. Em 20 de dezembro de 1994, o Governo brasileiro notificou o Secretário Geral das Nações Unidas acerca da eliminação das aludidas reservas. 312 – Augusto César Leite de Carvalho da Constituição Federal de 1988 que, em seu art. 7º, XXX, proíbe a diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo. Conforme tantas vezes referido, a Lei n. 9.029, de 1995, arrematou a vedação a qualquer forma de discriminação, aí incluída a de gênero. Com foco em um novo horizonte normativo, as leis trabalhistas foram modificadas ou passaram a ser interpretadas de modo a assegurar igualdade de gênero e, ao mesmo tempo, reconhecer a diferença porventura desafiadora de tratamento desigual à mulher que, por sê-lo, tem constituição fisiológica e responsabilidades exigentes de atenção do legislador ou do hermeneuta. Relegaram-se definitivamente ao esquecimento, ao menos à ineficácia, os dispositivos legais que residualmente regiam o trabalho feminino em condição de inferioridade ou sujeição. A Constituição, além de garantir licença à gestante (art. 7º, XVIII) e a estabilidade até o quinto mês após o parto (art. 10, II, b, do ADCT), prediz o seu endosso a ações afirmativas quando normaliza a “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”. No patamar infraconstitucional, o art. 384 da CLT prevê intervalo adicional de quinze minutos antes do início da sobrejornada da mulher e teve a sua constitucionalidade afirmada pelo TST. Ao rela- tar o tema, em incidente de inconstitucionalidade, o Ministro Ives Gandra Martins Filho enunciou que “a igualdade jurídica e intelectual entre homens e mulheres não afasta a natural diferenciação fisiológica e psicológica dos sexos”, que “a própria diferenciação temporal da licença-maternidade e paternidade [...] deixa claro que o desgaste físico efetivo é da maternidade” e que “as mulheres que trabalham fora do lar estão sujeitas a dupla jornada de trabalho”(871). Igual decisão se prenuncia no processo que trata do tema, com repercussão geral já reconhecida, no STF(872). Por sua vez, o art. 386 da CLT prescreve que, havendo trabalho aos domingos, a escala de reve- zamento a que então se sujeitará a mulher deverá ser quinzenal e favorecer o repouso aos domingos, tendo o TST, quando enfrentou o tema, decidido que o dispositivo é constitucional pelas mesmas razões que conduzem à constitucionalidade do há pouco mencionado art. 384. A contratação de empregada deve, ademais, considerar a necessidade de o ambiente de traba- lho adequar-se às necessidades inerentes à presença feminina, dispondo o art. 389 da CLT que toda empresa é obrigada: I – a prover os estabelecimentos de medidas concernentes à higienização dos métodos e locais de trabalho, tais como ventilação e iluminação e outros que se fizerem necessários à segurança e ao conforto das mulheres, a critério da autoridade competente; II – a instalar bebedouros, lavatórios, aparelhos sanitários; dispor de cadeiras ou bancos, em número suficiente, que permitam às mulheres trabalhar sem grande esgotamento físico; III – a instalar vestiários com armários individuais privativos das mulheres, exceto os estabelecimentos comer- ciais, escritórios, bancos e atividades afins, em que não seja exigida a troca de roupa e outros, a critério da autoridade competente [...]; IV – a fornecer, gratuitamente, a juízo da autoridade competente, os recursos de proteção individual, tais como óculos, máscaras, luvas e roupas especiais, para a defesa dos olhos, do aparelho respiratório e da pele, de acordo com a natureza do trabalho. Digno de enlevo é ainda o art. 389, §1º, da CLT, ao estabelecer que os estabelecimentos nos quais trabalhem pelo menos trinta mulheres com mais de dezesseis anos deverão ter local apropriado para que as empregadas guardem sob vigilância e assistência os seus filhos no período de amamen- tação. Em decisão importante sobre a situação de centenas de mulheres que trabalham em shopping centers, que normalmente não disponibilizam local reservado para amamentação a pretexto de não haver trinta empregadas em cada uma das dezenas, não raro centenas, de unidades comerciais ali instaladas, a 6ª Turma do TST confirmou acórdão do TRT da 9ª Região (Paraná) acerca de recair sobre a administração do shopping a responsabilidade de reservar espaço para a lactação. Os fundamentos do precedente judicial invocam o fato de caber à administração dos shopping centers prover espaços comuns, os quais ela dimensiona, confere destinação e administra, devendo reservá-los em parte para o cumprimento, pela generalidade das lojas, do art. 389, §1º, da CLT, pois somente assim será efetivado o direito de proteção à mulher, em especial à gestante e lactante, previsto na Constituição Federal e na Convenção 103 da OIT(873). (871) TST-IIN-RR-1540/2005-046-12-00, Tribunal Pleno, Relator Ministro Ives Gandra Martins Filho, DJ 13/2/2009). (872) Trata-se do RE 658312/SC, Rel. Min. Dias Toffoli. (873) TST, 6ª Turma, AIRR 127-80.2013.5.09.0009, Rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho, DEJT 13/03/2015. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 313 É de relevância, como se pode notar nestes tópicos que tratam da igualdade substancial, a existên- cia de uma ordem jurídica que resgatou a pessoa humana como valor preponderante e alçou sua digni- dade a fundamento do Estado Democrático de Direito. Daí se há sempre de reconhecer que a ideia de igualdade e a busca de sua consecução na ordem dos fatos são pressupostos de todas as liberdades e da concretização dos direitos da personalidade. Não é plenamente livre, nem está apto a agir com auto- nomia nos atos da vida civil, aquele que se mantém em estado de inferioridade e sujeição. 11.4 Direitos de liberdade no ambiente de trabalho A liberdade, que o Direito consagra como direito humano e fundamental, não corresponde à ausência de obstáculos para o indivíduo fazer o que quiser, pois nesse caso faltaria ao Direito a função de exercer controle social, ou seja, a liberdade seria um direito que negaria, para as demais pessoas, a existência de quaisquer outros direitos. Como se extrai das elucubrações kantianas, a liberdade juri- dicamente albergada não se propõe a tornar o homem feliz, mas sim distingui-lo como homem bom(874). Qual seria, então, o significado de liberdade? Adotando-se a sequência esquemática que Sandel(875) enxerga nas digressões de Kant, podemos compreendê-la assim: a) somos merecedores de respeito, como humanos, não por sermos donos de nós mesmos, mas por sermos racionais (capa- zes de pensar) e por sermos autônomos (capazes de agir e escolher livremente); b) age com autono- mia o homem que o faz de acordo com a lei que impõe a si mesmo, ou seja, não age de acordo com as leis da natureza (soltar uma bola de bilhar para que ela se choque com o chão não é um ato livre, pois regido pela lei natural da gravidade) ou com as convenções sociais (determinações exteriores que provocam interesses, vontades, desejos e preferências variáveis e contingentes); c) agir livremente (ou agir com autonomia) não é escolher a melhor forma de atingir um fim, mas sim escolher o fim em si (o homem deixa assim de ser um instrumento de desígnios externos). A liberdade se afasta, segundo esse conceito, da concepção utilitarista(876) do Direito e se associa definitivamente à dignidade, pois a capacidade de agir livremente confere ao homem a aptidão para ser tratado como fim em si mesmo, distinguindo-o das coisas que são meio ou instrumento para reali- zação de fins(877). O homem não se destaca por ser útil, mas por ser substancialmente digno. (874) Pondera Kant: “[...] por desgraça, o conceito da felicidade é conceito tão indeterminado que, não obstante o desejo de todo homem de ser feliz, ninguém todavia consegue dizer em termos precisos e coerentes o que verdadeiramente deseja e quer. A razão disso é que os elemen- tos, que integram o conceito da felicidade, são todos quantos empíricos, isto é, devem ser extraídos da experiência, e, não obstante, a ideia da felicidade implica a ideia de um todo absoluto, um máximo de bem-estar no meu estado presente e em toda minha condição futura. Ora, é impossível que um ser, embora imensamente perspicaz e, ao mesmo tempo, potentíssimo, mas finito, faça uma ideia determinada daquilo que verdadeiramente quer. Quer ele riqueza? Que de preocupações, invejas, ciladas não vai atrair sobre si! Quer maior soma de conhecimentos e de ilustração? Talvez isso lhe aumente o poder de penetração e a perspicácia do olhar, lhe revele de maneira ainda mais terrível os males que por ora lhe estão ocultos e que não podem ser evitados ou incremente a exigência de seus desejos que muito a custo consegue satisfazer. Quer vida longa? E quem lhe afiança que ela não se converteria em longo sofrimento? Quer, ao menos, a saúde? Mas quantas vezes a indisposição do corpo impediu excessos, em que uma perfeita saúde o teria feito cair! E assim por diante. Em suma, ele é incapaz de determinar com plena certeza segundo qualquer princípio, o que o tornará verdadeiramente feliz, pois para tal precisaria de ser onisciente. Portanto, para ser feliz, não é possí- vel agir segundo princípios determinados, mas apenas segundo conselhos empíricos, que recomendam, por exemplo, um regime dietético, a economia, a delicadeza, a reserva, etc., coisas estas que, de acordo com os ensinamentos da experiência, contribuem, em tese, grandemente, para o bem-estar.” (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Companhia Editora Nacional. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_kant_metafisica_costumes.pdf. Acesso em: 26/dez/2015). (875) SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 135. (876) Conforme Ives Gandra Martins Filho, “a ética utilitarista ou ética do prazer seria a ética dos animais, que não se pautam pela razão, mas exclusivamente pelos instintos, buscando satisfazê-los. É a ética das crianças, conforme repetidas vezes se expressa Aristóteles, ao comparar a criança ao animal, por se pautar apenas pelo gosto e atração instintiva de momento. O homem maduro não se concentra com um nível tão baixo. Aspira a mais.” (MARTINS FILHO, Ives Gandra. Ética e Ficção. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 5). (877) Di-lo Kant: “o homem, e em geral todo ser racional, existe como fim em si, não apenas como meio, do qual esta ou aquela vontade possa dispor a seu talento; mas, em todos os seus atos, tanto nos que se referem a ele próprio, como nos que se referem a outros seres racionais, ele deve sempre ser considerado ao mesmo tempo como fim. Todos os objetos das inclinações têm somente valor condicional, pois que, se as incli- nações, e as necessidades que delas derivam, não existissem, o objeto delas seria destituído de valor. Mas as próprias inclinações, como fontes das necessidades, possuem tão reduzido valor absoluto que as torne desejáveis por si mesmas, que o desejo universal de todos os seres racionais deveria consistir, antes, em se poderem libertar completamente delas. Pelo que é sempre condicional o valor dos objetos que podemos conse- guir por nossa atividade. Os seres, cuja existência não depende precisamente de nossa vontade, mas da natureza, quando são seres desprovidos de razão, só possuem valor relativo, valor de meios e por isso se chamam coisas. Ao invés, os seres racionais são chamados pessoas, porque a natureza deles os designa já como fins em si mesmos, isto é, como alguma coisa que não pode ser usada unicamente como meio, alguma coisa que, consequentemente, põe um limite, em certo sentido, a todo livre arbítrio (e que é objeto de respeito)” (idem, ibidem). 314 – Augusto César Leite de Carvalho Na evolução dos direitos humanos, a pioneira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) enumerava, como direitos naturais, apenas a liberdade, a propriedade, a segurança e a resis- tência à opressão (art. 2º). O Estado Liberal precedeu, portanto e cronologicamente, a afirmação dos direitos sociais, vale dizer: a percepção de que para ser plenamente livre seria necessário mais que a outorga formal e solene de liberdade, porquanto indispensáveis, antes, as condições materiais de vida, saúde, educação, moradia, alimentação e trabalho digno. Sem o suporte dos direitos sociais, a visão libertária dava azo a aforismos inclementes, como aquele eternizado por Lacordaire: “Entre fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta”. A proclamação dos direitos sociais ou prestacionais, nas constituições que se seguiram às de Querétaro (México) e de Weimar (Alemanha), significou o reconhecimento de que existiam relações entre pessoas em condição de desigualdade. Porém, e curiosamente, surgiu com o advento do Estado Social uma primeira impressão de que nessas relações assimétricas, pelo fato de o serem, os antigos direitos de liberdade não se ambientavam em plenitude. É como se estivessem a defender: nos espa- ços privados onde se realizam os direitos sociais haverão de ser mitigados, para os titulares de tais direitos, os direitos de liberdade! Nada mais sectário que essa proposição, como se pode notar. Não tardou para que o Estado Democrático de Direito, sob cuja regência se estabelecem as rela- ções sociais de nossos tempos, resgatasse, progressivamente, a importância dos direitos de liberdade em todos os espaços públicos e privados, inclusive no ambiente de empresa, pois todos são recantos de cidadania que compõem indistintamente a esfera de atuação dos direitos fundamentais, como nota com acuidade Oscar Ermida Uriarte: O trabalhador não deixa de ser pessoa humana, nem pode ver vulnerados esses direitos que enquanto ser humano lhe correspondem, pela celebração de um contrato (de trabalho) nem por sua incorporação a uma organização privada (a empresa). O trabalhador segue sendo titular desses direitos humanos inespecíficos, como a dignidade, a honra, a preservação da intimidade, o direito de reunião, a liberdade de culto, a liberdade de expressão etc., cujo exercício faz surgir o conceito de exercício da cidadania na empresa(878). Importa verificar, em seguida, como se tem posicionado a jurisprudência acerca das várias expres- sões da liberdade, notadamente a liberdade de locomoção, a liberdade de pensamento e consciência, bem como a liberdade sexual no ambiente de trabalho. 11.4.1 Liberdade de locomoção A liberdade de ir e vir, no mundo do trabalho, revela-se mais importante quando associada à veda- ção ao trabalho forçado, ao regime de sobreaviso e ao direito de migração. Vamos por partes. 11.4.1.1 Vedação ao trabalho forçado A escravidão é decerto uma chaga na história da humanidade, sem que o atual estágio civiliza- tório a tenha eliminado por inteiro. No plano normativo, ainda reclama eficácia o art. 4º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), a preconizar: “Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos”. Por seu turno, as Convenções 29 e 105 da OIT preveem a abolição de todas as formas de trabalho forçado. Sendo convenções fundamentais da Organização Internacional do Trabalho, pressupõem o compromisso por todos os estados-membros de cumpri-las, independentemente de as ratificarem. Segundo dados apresentados pela OIT(879), em 2005 eram estimados no mundo cerca de 12,3 milhões de pessoas vítimas de trabalhos forçados, sendo 9,8 milhões explorados por pessoas físicas ou empresas privadas, 2,4 milhões trabalhando em face do tráfico humano e 2,5 milhões forçados a trabalhar pelo Estado ou por grupos militantes rebeldes. Calcula-se que em torno de 40% a 50% dos trabalhadores sejam menores de 18 anos e que o comércio de exploração sexual seja absolutamente dominado por mulheres e crianças, atingindo 56% dos trabalhadores explorados. (878) ERMIDA URIARTE, Oscar. “Caracteres, tendencias y perspectivas del derecho del trabajo en América Latina y en Europa”. In: Revista de Derecho Social – Latinoamérica (RDS-L) número 1 – 2006. Tradução livre. Buenos Aires: Ediciones Bomarzo Latinoamericana, p. 16. (879) Disponível em: http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/---relconf/documents/meetingdocument/wcms_089201.pdf. Acesso em: 26/dez/2015. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 315 Acresce a OIT que o maior índice de trabalhos forçados encontra-se na Ásia e na Região do Pacífico (77% que representam aproximadamente 9.490.000 pessoas). A América Latina e o Caribe alcançam o percentual de 11% (cerca de 1.320.000 pessoas) e os países industrializados, Europa e EUA, com seus 3% atingem algo em torno de 360.000 pessoas. Na Constituição brasileira de 1988, destacam-se em seu art. 5º os incisos III (“ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”) e LXVIII (“conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liber- dade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”). A primeira sanção a qualificar essas normas é de mesmo grau hierárquico: o art. 184 da Constituição autoriza à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social. O art. 149 do Código Penal pune com reclusão e multa aquele que “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitan- do-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Não obstante tais prescrições, o seu efeito dissuasório ainda não satisfaz, dado que, no Brasil, a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho e Emprego acusa o resgate, entre 1995 e 2013, de 46.478 trabalhadores em condições análogas às de escravo(880), o que gerou R$ 86.320.330,00 em indeniza- ções com forte respaldo jurisprudencial: PENAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO. ESCRAVIDÃO MODERNA. DESNECESSIDADE DE COAÇÃO DIRETA CONTRA A LIBERDADE DE IR E VIR. DENÚNCIA RECEBIDA. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva” ou “a condições degradantes de trabalho”, condutas alternativas previstas no tipo penal. A “escravidão moderna” é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”. Não é qualquer viola- ção dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais (STF, Tribunal Pleno, Inq 3412, Relator Min. Marco Aurélio, Relatora p/ Acórdão Min. Rosa Weber, DJe-222 divulg 09-11-2012 public 12-11-2012). A Norma Regulamentadora n. 31 do Ministério do Trabalho e Emprego tem por objetivo esta- belecer os preceitos a serem observados na organização e no ambiente de trabalho, de forma a tornar compatível o planejamento e o desenvolvimento das atividades da agricultura, pecuária, silvi- cultura, exploração florestal e aquicultura com a segurança e saúde no meio ambiente do trabalho. Sem embargo de ser conhecido o traço cultural do homem rude ou campesino, que demora para acostumar-se com as condições sanitárias e ambientais compatíveis com a dimensão humana, isso a pressupor treinamento e conscientização, é certo que a auditoria fiscal tem exigido o cumprimento de mencionada norma regulamentadora e a Justiça do Trabalho endossa tal exigência, além de ordenar a reparação por danos morais sempre que o empregador negligencia a observância das condições de saúde e segurança assim estabelecidas. Verbis: INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL – AUSÊNCIA DE INSTALAÇÕES SANITÁRIAS E DE REFEITÓRIOS ADEQUADOS – DESCUMPRIMENTO DA NR N. 31 DO MTE – CONDIÇÕES DE TRABALHO DEGRADAN- TES. Ao deixar de atender às condições sanitárias e de fornecer condições para refeição mínimas exigidas pela Norma Regulamentar n. 31 do Ministério do Trabalho e Emprego, proporcionando verdadeira degradação dos trabalhadores de cuja força de trabalho se beneficia, a segunda-reclamada, com seu comportamento negligente, efetivamente ofende a honra e a integridade física do autor, dando ensejo à condenação ao pagamento de danos morais. O caráter rústico do trabalho agrícola em nada justifica o descumprimento de condições sanitárias bási- cas, uma vez que a própria normatização do Ministério do Trabalho e Emprego considera as condições peculiares de cada ambiente de trabalho e autoriza que, no caso de frentes de trabalho, que se instalam em cada local de colheita de forma provisória, o empregador lance mão de aparelhos sanitários móveis e de pouca complexidade (880) Disponível em: http://acesso.mte.gov.br/data/files/8A7C816A45B26698014625BF23BA0208/Quadro%20resumo%20opera%C3%A7%- C3%B5es%20T.E.%201995%20-%202013.%20Internet.pdf. Acesso em: 26/dez/2015. 316 – Augusto César Leite de Carvalho na sua instalação. O mesmo se aplica ao estabelecimento de refeitórios em condições adequadas à realização das refeições pelos trabalhadores, para que possam se alimentar sentados, protegidos das intempéries e com acesso a água em quantidade, qualidade e temperatura aptas ao consumo humano. Portanto, porque amparada na ordem jurídica constitucional que afirma a centralidade da pessoa humana e dos seus direitos fundamen- tais, a decisão regional não comporta reparos. Recurso de revista conhecido e desprovido (TST, 7ª Turma, RR 95-02.2012.5.09.0562, Rel. Min. Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Publicação: 27/09/2013) O trabalho degradante, forçado ou análogo ao de escravo é um fato residual que ainda está a exigir uma postura enérgica e efetiva dos entes responsáveis pela sua fiscalização e erradicação. Ao violar a liberdade de deslocamento no ambiente de trabalho, ou em razão dele, reclama firme atuação dos órgãos responsáveis pela eficácia dos direitos humanos e fundamentais no ecossistema laboral. 11.4.1.2 Libertação do trabalho e regime de sobreaviso O trabalho não pode tolher o empregado quanto ao seu direito de deslocar-se livremente, ao menos pelo tempo não relacionado à prestação laboral. E se é necessário que haja tempo sem rela- ção com o trabalho, o regime de sobreaviso vem a debate, apropriadamente, no capítulo destinado à liberdade de locomoção. O regime de sobreaviso é tema explorado no capítulo deste livro dedicado à duração do trabalho, na parte em que tratamos dos critérios especiais de fixação da jornada laboral. Está visto, portanto, que por muito longo período a jurisprudência tolerou a atribuição ao empregado, sem qualquer contra- partida, da prestação de fazer-se disponível, por meio de aparelho móvel de telefonia (celular), durante certo tempo do dia que sobejava a sua jornada normal de trabalho. Mais adiante, e para atender ao caráter comutativo do contrato, o Tribunal Superior do Trabalho reviu essa orientação e então editou a sua Súmula 428, verbis: SOBREAVISO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO ART. 244, § 2º DA CLT I – O uso de instrumentos telemáticos ou informatizados fornecidos pela empresa ao empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso. II – Considera-se em sobreaviso o empregado que, a distância e submetido a controle patronal por instrumen- tos telemáticos ou informatizados, permanecer em regime de plantão ou equivalente, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço durante o período de descanso. A aplicação do art. 244, §2º, da CLT – mencionada na epígrafe da súmula – implica a remunera- ção do tempo de sobreaviso na proporção de 1/3 do valor da hora normal de trabalho. Essa a contra- prestação salarial: cada hora de sobreaviso custa, para o empregador, o equivalente ao terço do que pagaria se o empregado estivesse propriamente à sua disposição. Explicando melhor: se o trabalhador estivesse cumprindo jornada, porque a trabalhar ou à disposição do empregador, sem poder realizar qualquer outra atividade pessoal ou profissional, tal empregado receberia o salário previsto para a sua hora normal de trabalho; se está livre, entretanto, para realizar outras atividades, inclusive de lazer, mas tem a obrigação de permanecer com o telefone celular ou algum outro equipamento telemático ligado a aguardar eventual chamado do empregador, resulta configurado o regime de sobreaviso e o direito, nesse caso, de receber remuneração correspondente ao terço da remuneração prevista para o tempo normal de jornada. Até aqui, considera-se apenas o caráter comutativo, ou sinalagmático, do contrato de emprego: à prestação ajustada deve corresponder sempre alguma contraprestação. O regime de sobreaviso cons- pira, contudo e por outro lado, para que não se dê a libertação do trabalho. Nessa outra perspectiva, o direito laboral deve estar apto a não permitir que, a pretexto de se remunerar o tempo de sobreaviso, comprometa o empregado todos os seus dias e noites com os interesses da empresa, sem tempo livre para desapegar-se dos assuntos relacionados ao trabalho e, deslocando-se até onde bem entender, dar curso a um projeto de vida e a uma vida relacional que não se vincule, necessariamente, ao seu labor ou profissão. Como vimos em subitem acima, dedicado à correlação entre o tempo de trabalho e o direito à coexistência, a remuneração do tempo de trabalho, de deslocamento e de sobreaviso não se explica apenas pelo conteúdo contratual do vínculo empregatício, mas também pela prudência de se compre- ender que o trabalho não deve subtrair do empregado o tempo necessário ao otium, assim entendido o tempo imprescindível ao exercício de outros direitos fundamentais como o descanso, o lazer, o Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 317 usufruto pleno da moradia, a atividade literária e a religiosa, com a convivência social e familiar a tudo imanente. Uma nota importante: o direito do trabalho no Brasil evoluiu mais que o de outros países no tocante à normalização do regime de sobreaviso. Apesar de o tema (tiempo en espera ou on call) estar em debate na Comissão Europeia(881), a decisão do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia a que se reportam os doutrinadores europeus ainda é o case Sindicato de Médicos de la Asistencia Pública (SIMAP) versus Consellería de Sanidad y Consumo de la Generalidad Valenciana (C-303-98), a respeito da interpretação da Directiva 93/104 (questão prejudicial apresentada pelo TSJ Comunidad Valenciana). Nesse julgamento, o TJCE decidiu, em 3/out/2000, que o tempo em espera dos médicos despen- dido no ambiente de trabalho deve ser remunerado em sua totalidade, inclusive e quando for o caso, como horas extraordinárias. O TJCE não deixou claro se o tempo em espera fora do ambiente de trabalho deveria ser computado na jornada, mas a doutrina, mesmo quando sustenta essa tese, admite que o precedente não embasa essa exigência de remuneração, senão das horas de sobreaviso no local de trabalho(882). 11.4.1.3 Direito de o trabalhador migrar A Declaração Universal de Direitos do Homem, de 1948, afirma que toda pessoa tem capacidade para gozar direitos e liberdades sem distinção de qualquer espécie, inclusive de origem nacional. Por sua vez, o art. 5º, XV, da Constituição brasileira contém dispositivo afinado com a universalidade do direito à migração: “é livre a locomoção no território nacional em tempos de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. A migração de africanos e asiáticos – especialmente de sírios, eritreus, afegãos, nigerianos e kosovares – para o continente europeu, fugindo de guerras ou em busca de melhores condições de vida e trabalho, ganhou proporções inimagináveis em 2015, quando as Nações Unidas e a Frontex (agência que controla as fronteiras externas da União Europeia) admitiram que mais de trezentos mil deles haviam tentado atravessar o Mediterrâneo e, destes, cerca de 2,5 mil morreram afogados(883). As regras de imigração na União Europeia não disfarçavam, até sobrevir esse holocausto, a tenta- tiva de conter o fluxo de imigrantes. Em princípio, o art. 48.2 do Tratado de Roma permitia a livre circulação “entre trabalhadores dos estados-membros”. Paralelamente, e a partir de 1985, o Acordo de Schengen foi assinado paulatinamente pelos países da Europa continental e hoje conta com a subscri- ção de trinta países – os da União Europeia, exceto Irlanda e Reino Unido, além de Islândia, Noruega e Suíça – que, em resumo, comprometeram-se a implementar uma política de abertura de fronteiras e livre circulação de pessoas. Ajustou-se, em outro tratado (a Convenção de Dublin), que a responsabilidade de examinar a solicitação de visto ou asilo seria do primeiro país do espaço Schengen por onde o imigrante houvesse ingressado. O Acordo de Schengen passou a integrar o quadro institucional e jurídico da União Euro- peia por obra do Tratado de Amsterdã em 1997 e, em 2007, o Tratado de Lisboa assumiu o viés comu- nitário do espaço Schengen, mencionando-o como um “espaço de liberdade, segurança e justiça”. O problema, bem se nota, não é circular pelo espaço Schengen, mas nele ingressar como um entre centenas de milhares de refugiados e obter o sonhado asilo. Alguns países europeus abriram, em 2015, seus territórios para um número maior de imigrantes, com o objetivo de aliviar a pressão sobre os países mediterrâneos mais acessíveis à migração e assumir postura mais condizente com o programa humanitário das narrativas internacionais. Não é de agora, porém, a ponderação do profes- sor Alarcón Caracuel: [...] profundo desconcerto que o tema da imigração produz na opinião pública espanhola com a qual, lógico, a classe política tem que contar. Desconcerto que é perfeitamente explicável (881) Conforme notícia divulgada em: http://www.iaapa.org/safety-and-advocacy/europe/es/relaciones-gubernamentales/Regulaci%C3%B- 3n-del-tiempo-de-trabajo. Acesso em: 26/dez/2015. (882) Ver FERRANDO GARCÍA, Francisca M. Régimen jurídico del tiempo de trabajo en Gran Bretaña. Colección Trabajo y Seguridad Social. Granada: Editorial Comares, 2003, p. 87. A autora se refere também à doutrina de BARNARD, C. “The working time regulations 1998”. In: Industrial Law Journal, vol. 29, num. 2, June 2000. (883) Ver notícia na BBC Brasil disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150829_entenda_migracao_ab. Acesso em: 26/dez/2015. 318 – Augusto César Leite de Carvalho se repararmos o caráter contraditório das mensagens que os cidadãos recebem sobre o fenômeno da imigração. Com efeito, um dia os imigrantes vêm subtrair os postos de trabalho aos milhões de espanhóis desempregados; mas, no dia seguinte, os imigrantes são vistos como imprescindíveis para cobrir uma série de postos de trabalho que os espanhóis não pretendem ocupar. Tão logo os imigrantes supõem uma pesada carga para nosso sistema de proteção social sustenta-se exatamente o contrário: graças a eles aumentam espeta- cularmente os contribuintes e nosso sistema de Seguridade Social poderá afrontar melhor os problemas de nossa população. Ora se insiste na necessidade de que os imigrantes assumam nosso acervo cultural e nossas pautas democráticas, ora se põe o acento sobre o necessário respeito a suas tradições culturais, incluindo algumas – especialmente no que concerne à mulher – sobre cujo caráter democrático cabe guardar algo mais que sérias reservas. [...] A esquizofrenia que atazana nossa sociedade em relação à imigração conduz a dar contínuos passos de cego em lugar de articular uma resposta jurídica coerente a tão importante fenômeno. Por essa razão dita normativa não pode ser “eficiente” uma vez que, como é sabido, a eficiência da norma consiste em sua adequação ao fim social pretendido: todavia, não está claro o que nossa sociedade pretende fazer nessa matéria.(884) A migração de trabalhadores e suas famílias não é, certamente, uma questão exclusivamente europeia. Na América do Norte, o princípio n. 11 do Anexo 1 do NAALC (North American Agreement on Labor Cooperation) preconiza a “promoção do trabalhador migrante no território do estado-membro com a mesma proteção legal dispensada aos trabalhadores nacionais no tocante às condições de trabalho”. A carência de normas trabalhistas nos países mais ricos que integram o Nafta (North Ameri- can Free Trade Agreement) induz, todavia, a insuficiência dessa proteção nacional quanto aos migran- tes mexicanos que, protegidos por leis trabalhistas de maior densidade, sonham ganhar os salários pagos nos Estados Unidos e no Canadá. Em rigor, não é outra a constatação de estudos desenvolvidos, com o apoio da OIT, por Jeffrey Sack, Emma Phillips e Hugo Leal-Neri. Notam eles que o Canadá aceitou em 2008 quase 200.000 trabalhadores temporários estrangeiros, o que fez o governo canadense alterar em outubro de 2009 a Immigration and Refugee Protection Act para punir empregadores que exploravam o trabalho de migrantes e evitar assim que aqueles que reiteradamente violassem as leis laborais pudessem promo- ver a imigração de novos trabalhadores estrangeiros (sem outras punições). Mas a discriminação do trabalhador estrangeiro ainda assim se fez sentir. Enquanto o trabalhador canadense tem garantida a freedom of mobility pelo art. 6 da Canadian Charter of Rights and Freedom, os trabalhadores sazonais só podem trabalhar para o empregador com quem assinaram contrato e na ocupação especificada em tal contrato, podendo ser prematuramente repatriados pela não obser- vância do ajuste, pela recusa de trabalho ou por any other sufficient reason (cf. Seasonal Agricutural Workers Programme – SAWP, n. 36). Além disso, o direito de o estrangeiro sindicalizar-se tem sofrido forte resistência dos empregadores canadenses, havendo algum dissenso jurisprudencial, nas cortes judiciais do Canadá, sobre a correção dessa conduta patronal(885). O Estado brasileiro, por seu lado, tem atuação distinta. Embora a quantidade de trabalhadores estrangeiros no Brasil seja significativamente menor que aquela a exigir uma política mais inclusiva dos países de economia central(886), a política de migração tem traços conotativos de maior solidariedade e respeito à universalidade dos direitos humanos relacionados à liberdade de locomoção. A Constituição brasileira, como visto, tem preceito (art. 5º, XV) afinado com uma política de inclusão laboral e a ONU considera o Brasil um país de referência para o reassentamento(887). (884) ALARCÓN CARACUEL, Manuel Ramón. “El derecho a inmigrar”. In: Las transformaciones del Derecho del Trabajo en el marco de la Constitución Española. Coordenação de María Emilia Casas Baamonde, Frederico Durán López e Jesús Cruz Villalón. Madrid: La Ley, 2006. p. 519. (885) SACK, Jeffrey; PHILLIPS, Emma; LEAL-NERI, Hugo. “Protecting workers in a changing workworld: the growth of precarious employment in Canada, the United States and Mexico”. In: The employment relationship: a comparative overview. Coordenação de Giuseppe Casale. Toronto: UTP Distribution, 2011. p. 233. (886) Alexandre Agra Belmonte refere estatísticas que revelam 0,3% de trabalhadores brasileiros de origem estrangeira, sendo 15,9% os trabalhadores estrangeiros nos EUA, 13,2% na Espanha, 48,8% em Luxemburgo, 11,2% na Áustria, 9,8% na Itália, 10,5% na França, 16,2% no Canadá, 17,2% na Suíça, 20% na Austrália e 9% na Alemanha (BELMONTE, Alexandre Agra. A tutela das liberdades nas relações de trabalho: limites e reparação das ofensas às liberdades de consciência, manifestação do pensamento, expressão, locomoção, circulação, informação, sindical e sexual do trabalhador. São Paulo: LTr, 2013). (887) Conforme dados obtidos em: http://www.onu.org.br/onu-no-brasil/acnur/. Acesso em: 26/dez/2015. Consta, inclusive, que, numa postura humanitária, o Brasil aprovou, em 2007, a recepção de 108 refugiados palestinos vindos do Iraque que viviam por quatro anos em um campo na Jordânia. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 319 A atuação casuística também tem sido inclusiva. Em setembro de 2013, percebendo o drama dos haitianos que tentavam migrar para o Brasil, o governo federal acabou com o limite de vistos perma- nentes em caráter humanitário para os migrantes provenientes do Haiti. O objetivo da mudança foi diminuir a entrada irregular de haitianos para evitar que os imigrantes utilizem coiotes (que fazem o tráfico de pessoas nas fronteiras)(888). Ao fim de 2014, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados celebrou o fato de o Brasil ter 4.500 refugiados de mais de 70 países diferentes, todos com direito, além da proteção legal, a documentos e ao acesso às políticas públicas nacionais(889). A medir pela possibilidade de o trabalhador estrangeiro que vem ao Brasil sob regime de contrato de trabalho(890) obter visto definitivo, o art. 16 da Lei n. 6.815/1980 prevê que “o visto permanente poderá ser concedido ao estrangeiro que pretenda se fixar definitivamente no Brasil”, esclarecendo o parágrafo único desse dispositivo qual o princípio jurídico a nortear a acolhida ao migrante nesses casos: “A imigração objetivará, primordialmente, propiciar mão de obra especializada aos vários setores da economia nacio- nal, visando à Política Nacional de Desenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao aumento da produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de recursos para setores específicos”. 11.4.2 Liberdade de pensamento Anota Fernando Valdés que no universo dos direitos fundamentais o “direito à liberdade de pensa- mento, de consciência e de religião ou, mais simplesmente, liberdade de pensamento ou liberdade ideológica constitui um dos direitos primários ou básicos, pois na origem mesmo desses se encontra o reconhecimento da liberdade de pensamento como um direito essencial da pessoa humana”. O autor, magistrado que presidiu o Tribunal Constitucional da Espanha, aduz que a liberdade de pensamento é a liberdade fundante das demais liberdades e assim agita outros tantos direitos funda- mentais – como a liberdade de expressão, a proibição de não discriminação, o respeito à vida privada e familiar ou a liberdade de reunião e associação –, revelando-se, por isso, como “um dos eixos de qualquer sociedade democrática”(891). Se pudéssemos traçar uma linha cronológica, diríamos, ainda com apoio nas lições de Valdés, que a liberdade de pensamento (conjunto de ideias, conceitos e opiniões que a pessoa, no uso de sua razão, tem das distintas realidades do mundo) precede, qual pressuposto lógico, a liberdade de consciência (a qual garante o âmbito da racionalidade, referindo-se ao juízo moral sobre as próprias ações)(892). O art. 10 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) prescreve que “ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida em lei”. O primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) enuncia que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. Nos dois casos, e a um só tempo, proclama-se o preceito e o critério de ponderação, para viabilizar a convivência com outras liberdades. A narrativa de 1948 é ainda generosa de significados, como se enxerga nos artigos que empres- tam sentido às chamadas liberdades ideológicas e de crença: Art. XVIII – Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular. (888) A decisão foi publicada no DOU 29/4/2013. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/04/governo-acaba-com-limi- te-de-vistos-concedidos-aos-haitianos.html. (889) Conforme dados obtidos em: http://www.onu.org.br/onu-no-brasil/acnur/. Acesso em: 26/dez/2015. (890) Na forma do art. 13 da Lei n. 6.815/1980. (891) VALDÉS DAL-RÉ, Fernando. “Libertad religiosa y contrato de trabajo”. In: Las transformaciones del Derecho del Trabajo en el marco de la Constitución Española: estudios en homenaje al profesor Miguel Rodríguez-Piñero y Bravo-Ferrer. Coordenação de María Emilia Casas Baamonde, Frederico Durán López e Jesús Cruz Villalón. Tradução livre. Madrid: La Ley, 2006. p. 565. (892) O autor adverte (op. cit., p. 584), após fazer a distinção entre liberdade de pensamento, de consciência e de religião: “No obstante ello, las fronteras que delimitan estas libertades, sobre todo las de conciencia y de religión, distan de poder trazarse mediante cortes secos. De un lado, por cuanto la libertad de conciencia se aplica indistintamente, tal y como ha señalado en reiteradas ocasiones el Comité de derechos del hombre de Naciones Unidas, a las convicciones tanto teístas como no teístas. De outro, por cuanto, con arreglo a una opinión doctrinal y jurisprudencial bastante dominante, el objeto de la libertad religiosa no sólo es la fe; también es la ausencia de fe”. 320 – Augusto César Leite de Carvalho Art. XIX – Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e inde- pendentemente de fronteiras. As mesmas dimensões da liberdade foram prestigiadas pela Constituição brasileira de 1988. Em um primeiro instante, porque elevou a fundamentos da República a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político (art. 1º), postulados sem os quais não se há cogitar de liberdade de pensamento. E adiante, em seu art. 5º, ao dispor que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (inciso IV) e que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias” (inciso VI). Também é expressivo o art. 5º, IX, da Constituição quando assegura que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Agra Belmonte(893) explica que, sob tal regência, é: a) vedado ao empregador impedir criação ou invento não relacionados ao trabalho, salvo no ambiente de trabalho; b) vedado ao empregador modificar a produção autoral de seu empregado; c) vedado ao empregador interferir no conteúdo acadêmico, salvo quando colidente com o projeto pedagógico da escola. Vale a pena perceber como se posiciona a jurisprudência sobre aspectos mais sensíveis da liber- dade de pensamento e consciência que dizem sobre a liberdade de opinião, a liberdade de crença e de religião, e finalmente sobre a liberdade de expressão e informação no ambiente de trabalho. 11.4.2.1 Liberdade de opinião política A liberdade de opinião política se encerra na liberdade de pensamento. No mundo dos fatos, o empregador não tem aptidão para imiscuir-se na idealização de mundo que habita a alma do empre- gado, mas pode tentar induzir o trabalhador a colaborar para o sucesso ou fracasso de uma campanha ideológica ou política, tolhendo-lhe a expressão de suas convicções ou impondo-lhe, por exemplo, a participação em debates, comícios, passeatas etc. A ordem jurídica embasa tutelas inibitórias ou mesmo reparatórias pela vulneração da liberdade de opinião política titularizada pelos empregados, como emanação de sua cidadania, cabendo lembrar passagem antológica da jurisprudência que remete, inclusive, à guarda dessa dimensão da liberdade de pensamento e consciência pela Constituição de 1967. Naquele tempo, uma empresa estatal despe- diu trabalhador que havia emitido opinião avessa ao regime político então hegemônico e, a pretexto de as leis autorizarem a dispensa injustificada de empregado não estável, o tribunal regional rejeitou a pretensão de reintegração no emprego deduzida pelo empregado. Seguiram-se, porém e na instância extraordinária, precedentes judiciais que dignificam a tutela jurisdicional constitucional, iniciando-se por decisão proferida pelo Pleno do Tribunal Superior do Trabalho, na qual o Ministro Marco Aurélio, como relator, estabeleceu como premissas: O direito potestativo de despedir não pode ser potencializado a ponto de colocar-se, em plano secundário, o próprio texto constitucional, como se a ordem jurídica agasalhasse, no campo patrimonial, direito absoluto. Se de um lado, reconhece-se o direito do empregador de fazer cessar o contrato a qualquer momento, sem que esteja obrigado a justificar a conduta, de outro não se pode olvidar que o exercício respectivo há que ocorrer sob a égide legal e esta não o contempla como via oblíqua para se punir aqueles que, possuidores de sentimento democrático e certos da convivência em sociedade, ousaram posicionar-se politicamente, só que o fazendo de forma contrária aos interesses do co-partícipe da força de produção. Não, a este ponto não pode ser guindado o direito de despedir. O exercício respectivo deve observar, até mesmo, a ética primária, o que se dirá quanto às garantias do cidadão relativas às convicções políticas, à liberdade de consciência, à manifestação de convicção política (§§ 1º, 5º e 8º do art. 153 da Constituição Federal de 1967). É sabença geral que contra a Constituição não existe direito, ainda que ligado à potestividade. A matéria foi então submetida ao Supremo Tribunal Federal que, sob a lavra do relator Ministro Ilmar Galvão, endossou a orientação que provinha do TST: [...] uma coisa é a despedida imotivada do empregado, que a lei não veda. Coisa diversa é a despedida por razões de convicção político-partidária, que contraria princípio constitucional. Conquanto se trate de atos jurídicos da mesma natureza, o segundo ressente-se de ilicitude em seu objeto. Não pode produzir os efeitos visados(894). (893) Belmonte, op. cit., p. 99. (894) STF, RE 130206-PA, Rel. Min. Ilmar Galvão, publicado em 14/08/1992. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 321 A relevância da decisão se avulta quando se percebe que, sob a garantia da liberdade de pensa- mento displicentemente incrustrada em ordem jurídica de inclinação autoritária (a Constituição de 1967/1969), o Poder Judiciário abstraiu da tendência de monetizar os direitos imateriais, até então preponderante, e afirmou que a dignidade do trabalhador não dependia de cláusula de estabilidade no emprego, garantindo a preservação do vínculo que provia a subsistência do empregado e fora desa- tado por causa ilícita, porquanto afeta ao exercício de um direito fundamental. 11.4.2.2 Liberdade de crença e religião Novamente sob o escólio de Valdés(895), sustenta-se que a liberdade de crença e de religião importa: a) a liberdade interna de professar ou não uma fé; b) a liberdade externa de praticar a crença professada. São vários os conflitos que podem surgir no panorama das crenças religiosas: o trabalhador crente pode atuar em empresa confessional(896) que promove a crença por ele professada, mas pode atuar em empresa que promove outra crença religiosa; o trabalhador ateu(897), agnóstico(898) ou indiferente pode atuar em empresa confessional e o trabalhador crente pode atuar em empresa neutra. Seriam, portanto e pelo menos, quatro as situações de virtual conflito, remissivas à liberdade de crença e religião. Mas essa conflituosidade se potencializa quando imaginamos o trabalhador que não é apenas crente, mas é arauto de sua crença e das profissões de fé que a ela correspondem, adepto de atos e gestos que proclamam a sua opção religiosa em todos os lugares – ou seja, se o empregado é daqueles a quem parte da doutrina chama de “trabalhadores ideológicos”. O problema se aguça porque, nessa hipótese, ao direito de simplesmente crer, assistindo passivamente aos atos que reve- lam descrença ou outra crença, adiciona-se o direito de tentar profetizar os fundamentos da própria religião e fazer-se intermediário eloquente da palavra divina. Dir-se-ia que o conflito poderia ser evitado se empregado e empregador soubessem, desde o início do liame laboral, qual a tendência religiosa, um do outro. Mas aí nasce um problema de outra natureza: as normas atinentes, sobretudo no direito comparado, tratam a exigência de informações acerca da religiosidade como um modo de discriminar o empregado. É o que se nota, por exemplo, no texto da Directiva 2000/78/CE da União Europeia e na prescrição do art. L.121-6 do Código do Traba- lho francês, este a dispor que as informações solicitadas ao trabalhador não podem ter outra finalidade que a de apreciar a capacidade ou a aptidão profissional. A liberdade de empresa e a liberdade religiosa, quando se entrelaçam, reclamam decisão ponde- rada e casuística. No direito comparado, dois casos podem ser ilustrativamente citados(899). O primeiro deles é o caso EEOC versus Townley Engineering and Manufacturing Corp, julgado por Corte Federal de Apelação nos Estados Unidos, em 1988, cabendo o seguinte relato: a empresa Townley foi criada por um casal religioso para produzir máquinas voltadas à atividade de mineração; quando contratou o Sr. Pelvas, apresentou-lhe um folheto com as normas internas da companhia, entre as quais se incluía assistir a um serviço religioso; a aceitação das normas era condição para o emprego e sua violação importaria causa de dispensa. O Sr. Pelvas assistiu inicialmente ao ofício religioso, mas, após um tempo, pediu fosse liberado alegando ser agnóstico. Ante a negativa patronal, Sr. Pelvas deixou o emprego e argumentou que, a bem da verdade, haviam-lhe despedido implicitamente por razões reli- giosas. A Corte Federal acolheu essa alegação, afirmando que os direitos reconhecidos no Título VII da Civil Rights Act são irrenunciáveis para os trabalhadores. Fernando Valdés(900) esclarece que nos EUA, em 1964, aprovou-se a Civil Rights Act (CRA) que criou uma agência especializada (Equal Employment Opportunity Commission (EEOC) com a atri- buição de assegurar a efetividade dos direitos civis reconhecidos na CRA e inclusive ditar regras no âmbito da discriminação por motivos religiosos. Segundo a jurisprudência que daí emergiu, o traba- lhador que quiser demandar contra a empresa por discriminação religiosa deve apresentar indícios (895) Fernando Valdés, op. cit., p. 582-591. (896) Empresa confessional é a empresa que promove uma crença religiosa. (897) No sentido de descrente e também de herege, que renega a fé. (898) No sentido de quem defende ser incognoscível, para o engenho humano, a compreensão de problemas metafísicos ou de religião. (899) Pesquisa de Fernando Valdés Dal-ré, op. cit., p. 590. (900) Op. cit., p. 600. 322 – Augusto César Leite de Carvalho que demonstrem: a) que ele tem uma crença de boa-fé e que essa crença entra em conflito com as obrigações decorrentes do contrato de trabalho; b) que informou ao empresário sobre dita crença; c) que foi punido por se negar a cumprir as obrigações do contrato. Apresentados esses indícios, ao empresário cabe demonstrar que não é possível uma reasonable accomodation sem que ele incorra em uma undue hardship (dificuldade indevida). Outro precedente valioso, extraído do direito comparado, é a sentença STC 101/2004 do Tribunal Constitucional da Espanha, relativa a caso no qual um oficial do Corpo Nacional de Polícia solicitou fosse liberado de participar de ato religioso alegando que a sua presença importaria vulneração de sua liberdade de crença e religião. O pedido foi negado pela corporação policial. O oficial foi então à cerimônia, mas propôs ação judicial contra a ordem assim cumprida, sem obter sucesso nas instâncias inferiores. Recorreu, todavia, ao Tribunal Constitucional, que outorgou o amparo por entender que se a cerimônia era católica, a recusa de participar do culto por quem não professava tal confissão religiosa era legítima. Na jurisprudência de nossos tribunais, três de muitos casos interessantes merecem especial menção, pois revelam o esforço de não permitir a exclusão social ou profissional por razões religiosas. O primeiro precedente faz expressa referência ao direito de usar símbolo religioso em ambiente laboral neutro ou de tendência diversa: RECURSO DE REVISTA. VENDEDORA. DESRESPEITO À OPÇÃO RELIGIOSA. ASSÉDIO E DANO MORAL. USO DE VÉU. CONVERSÃO AO ISLAMISMO. O uso do véu é um mandato corânico cuja função é mostrar correspondência entre o aspecto exterior e a crença interior; é uma forma de identificar e proteger a mulher muçulmana. A conduta, nas relações de trabalho, deve se dar levando em consideração o ambiente de trabalho, que se caracteriza pelo respeito às diferenças culturais e religiosas. Logo, a adoção de postura desrespeitosa, piadista em relação à fé da autora, demonstra culpa e descuido da empresa com o ambiente de trabalho, confi- gurando verdadeira ofensa a opção religiosa da reclamante, ainda mais diante do significado solene do uso do véu islâmico. Recurso de revista conhecido e provido (TST, 6ª Turma, RR 37200-77.2006.5.02.0025, Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, Publicação: 13/09/2013) Noutro caso, o TST se viu às voltas com a antinomia entre a construção jurisprudencial que proscreve a terceirização de serviços em atividade-fim da empresa, em razão da precarização que é apanágio de tal prática, e a exigência presente em algumas religiões de que os alimentos se proces- sem segundo ritual diferenciado, que os mantenha ou os faça purificados. Assim se decidiu: RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. TUTELA ANTECIPADA CONCEDIDA EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SERVIÇO ESPECIALIZADO DE ABATE DE FRANGOS, PELO MÉTODO HALAL. TERCEIRIZAÇÃO DE MÃO DE OBRA. Antecipação da tutela¹, deferida em ação civil pública, com a determinação de que a impe- trante se abstivesse de intermediar, arregimentar, e fornecer mão de obra para a consecução dos serviços ligados ao abate de frangos no estabelecimento industrial da Sadia S.A. na cidade de Dois Vizinhos. A própria autoridade coatora reconheceu que os serviços de abate pelo método Halal, prestados pela impetrante, segundo o ritual mulçumano, representam um serviço que se reveste de procedimentos e exigências especiais. Assim, a fraude na terceirização dos serviços é questão cuja verossimilhança não pode ser imediatamente aferida, por ser passível de apreciação apenas em demanda de cognição ampla da controvérsia, e não em sede de cognição sumária, como na antecipação de tutela concedida na ação civil pública. Ademais, não há elementos que eviden- ciem que a continuidade na intermediação dos serviços especializados de abate de frangos possa causar danos ou prejuízos irreparáveis aos empregados da impetrante, em especial se considerado que os direitos trabalhistas dos trabalhadores nessa situação se encontram resguardados. Recurso ordinário a que se dá provimento (TST, SbDI II, RO 578-40.2010.5.09.0000, Rel. Min. Pedro Paulo Manus, Publicação: 17/06/2011). Um terceiro precedente é alusivo ao tema embaraçoso das folgas semanais, dado que as leis ocidentais, inclusive a brasileira, mostram-se claramente influenciadas pela vertente católica da fé cristã, que preconiza a guarda dos domingos, em detrimento de preceitos de outras confissões religio- sas que recomendam a guarda, por exemplo, do sábado (caso dos judeus e dos adventistas) ou das sextas-feiras (caso dos muçulmanos). O critério sempre presente haverá de ser a ponderação entre a liberdade de empresa e a liberdade de crença, como se observa no precedente seguinte: RECURSO DE REVISTA. PRETENSÃO DO RECLAMANTE DE NÃO TRABALHAR AOS SÁBADOS EM RAZÃO DE PROFESSAR A RELIGIÃO ADVENTISTA. 1. O e. TRT da 21ª Região manteve a condenação da Reclamada a “fixar o repouso semanal remunerado do Reclamante das 17:30 horas da sexta-feira às 17:30 horas do sábado, com anotação na CTPS”, tendo em vista que o Reclamante é adventista. 2. A Reclamada aponta inúmeras inconstitucionalidades em tal decisão, basicamente por não haver lei que ampare a pretensão e porque seu eventual acolhimento prejudicaria a organização de escala de plantões de eletricistas nos finais de semana. 3. Realmente, conforme doutrina de Hermenêutica hoje majoritariamente aceita, o conflito aparente entre princípios constitucionais (diferentemente do que se dá entre meras regras do ordenamento) resolve-se por meio da busca Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 323 ponderada de um núcleo essencial de cada um deles, destinada a assegurar que nenhum seja inteiramente excluído daquela determinada relação jurídica. 4. Ora, no presente caso, mesmo que por absurdo se considere que o poder diretivo do empregador seja não uma simples contrapartida ontológica e procedimental da assunção dos riscos da atividade econômica pelo empregador, mas sim um desdobramento do princípio da livre iniciativa com o mesmo status constitucional que a cláusula pétrea da liberdade de crença religiosa, ainda assim não haveria como reformar-se o v. acórdão recorrido. 5. Isso porque a pretensão deduzida pelo Reclamante de não trabalhar aos sábados é perfeitamente compatível com a faceta organizacional do poder diretivo da Reclamada: afinal, o e. TRT da 21ª Região chegou até mesmo a registrar a localidade em que o Reclamante poderia fazer os plantões de finais de semana (a saber, escala entre as 17:30h de sábado e as 17:30h do domingo, no Posto de Atendimento de Caicó-RN), sendo certo que contra esse fundamento a Reclamada nada alega na revista ora sub judice. 6. Tem-se, portanto, que, conforme brilhantemente destacado pelo i. Juízo a quo, a procedência da pretensão permite a aplicação ponderada de ambos os princípios em conflito aparente. 7. Já a improcedência da pretensão levaria ao resultado oposto: redundaria não apenas na impossibilidade de o Reclamante continuar a prestar serviços à Reclamada – posto que as faltas ocorridas em todos os sábados desde 2008 certamente implicariam alguma das condutas tipificadas no artigo 482 da CLT – e na consequente privação de direitos por motivo de crença religiosa de que trata a parte inicial do artigo 5º, VIII, da Constituição Federal de 1988; como também, de quebra, na afronta também à parte final daquele mesmo dispositivo, já que a obrigação a todos imposta pelos artigos 7º, XV, da Constituição e 1º da Lei n. 605/49 é apenas de trabalhar no máximo seis dias por semana, e não de trabalhar aos sábados. 8. Por outro lado, para ser considerada verdadeira, a extraordinária alegação de que a vedação de trabalho do Reclamante aos sábados poderia vir a colocar em xeque o forneci- mento de energia elétrica no Estado do Rio Grande do Norte demandaria prova robusta, que não foi produzida – ou pelo menos sobre ela não se manifestou o i. Juízo a quo, o que dá na mesma, tendo em vista a Súmula n. 126 do TST. 9. Incólumes, portanto, os artigos 468 da CLT, 1º, IV, in fine, 5º, II, VI e XXII, 7º, XV, 170, IV, e 175 da Constituição Federal de 1988. Recurso de revista não conhecido (TST, 1ª Turma, RR 51400-80.2009.5.21.0017, Relator Ministro Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 30/06/2015). Bem se percebe a distância entre assuntos dessa ordem e a índole de monetização de direitos que corresponde à perspectiva patrimonial, fundada apenas na teoria dos contratos, antes predomi- nante no direito do trabalho. 11.4.3 Liberdade de expressão e de informação no ambiente de trabalho – a exigência de boa-fé na negociação coletiva e a proteção à testemunha no processo judicial Conforme Arion Sayão Romita, cabe distinguir entre liberdade de expressão e direito à informa- ção. A primeira se conceitua como possibilidade assegurada pelo ordenamento jurídico de exteriorizar pensamentos, crenças, ideias, opiniões, juízos de valor. O direito à informação compreende o direito de transmitir informações, o de colher informações e o de ser mantido informado”(901). A Constituição brasileira, inspirada no escopo de superar um tempo no qual a informação era um instrumento de controle autoritário, privilegiado e por vezes violento do Estado, consagrou, normativamente, que “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional” (art. 5º, XIV). A mesma Constituição, em seu art. 5º, LXXII, enleva o direito de ter acesso à informação e acresce o de obter a retificação da informação que afeta a identidade da pessoa sobre quem se informa, oferecendo o remédio processual do habeas data, seja para “para assegurar o conhecimento de infor- mações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público”, seja para “a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo”. O habeas data pressupõe, como se pode notar, a publicidade da informação dada, ou a ser retificada, pois após sofrer pelos instrumentos de repressão, inclusive a tortura e a prisão arbitrária, a vítima poderia querer pública a informação verdadeira que resgatava sua honra, caráter e dignidade. O ambiente de trabalho é piramidal, dado que pressupõe hierarquia e subordinação. A existência, assim, de poder social reclama a adoção, nesse meio, dos mecanismos democráticos concebidos para a relação entre o particular e o Estado, dando azo àquilo que parte expressiva da doutrina constitucio- nal denomina de horizontalidade dos direitos fundamentais(902). Pouco importa se a palavra “horizontal” (901) Apud Belmonte, op. cit., p. 83. (902) Sobre a eficácia dos direitos fundamentais entre particulares, o STF, no Brasil, ao julgar o RE 201819/RJ, assentou: “As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados”. Em Portugal, a 324 – Augusto César Leite de Carvalho parece inapropriada, pois a relação de poder entre entes privados é por definição uma relação vertical. O que interessa, a pretexto da chamada horizontalidade, é que assim se garante a extensão às rela- ções privadas dos direitos pensados em um tempo de protagonismo estatal, para refrear a opressão que provinha do Estado. No habitat laboral, o direito à informação se revela, por exemplo, no direito de a representação sindical obter dados verdadeiros sobre a empresa e de informá-los aos trabalhadores; no direito de o trabalhador informar sobre a rotina empresarial na qualidade de testemunha sem o risco da retalia- ção; no direito de o trabalhador obter informação sobre o sindicato e, quanto ao aspecto funcional, no direito de o sindicato obter informação sobre dados cadastrais relacionados ao trabalhador integrante da categoria por ele representada. O direito de informação sobre dados da empresa reflete-se sobretudo na condução da negocia- ção coletiva de trabalho, estando atrelado ao princípio da boa-fé objetiva, ou princípio da lealdade. A empresa tem função social e, por não atender exclusivamente aos interesses do empregador, não lhe é dado omitir informações – que interessam à coletividade dos trabalhadores envolvidos na atividade econômica – na ocasião em que os desígnios de ambos, empresário e corpo de empregados, deman- dam um ajuste normativo justo e equilibrado. O direito de informar na condição de testemunha remete também ao princípio da igualdade, ou mais especificamente ao princípio da não discriminação, porquanto não haverá de ser discriminado o trabalhador que depuser em inquérito ou processo judicial que investigue ações do empregador. Em outro livro (“Garantia de Indenidade no Brasil”(903)), observamos ter a Comissão de Peritos da OIT exigido, mediante documento datado de 1988, que se instituíssem garantias protetoras de toda pessoa que apresentasse uma reclamação ante as autoridades competentes ou que iniciasse uma ação judi- cial em defesa de seus direitos, ou que houvesse dela participado na qualidade, por exemplo, de testemunha. A Comissão de Peritos indicou que a represália contra uma pessoa que foi discriminada e que faça uso de seu direito à igualdade terá efeitos perniciosos até quando se puserem em prática as disposições antidiscriminatórias, por levar as pessoas discriminadas, mesmo após a intervenção judicial, a desconfiar dos procedimentos legais(904). A proteção à testemunha remete enfim ao direito fundamental de ação, ou seja, ao direito de provocar o Poder Judiciário acerca de lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, da Constituição). Em outra passagem do mesmo livro sobre a garantia de indenidade, anotamos como a incolumidade da testemunha ganhou relevo na jurisprudência do Tribunal Constitucional da Espanha, pois forte a premissa de que não bastaria proteger o trabalhador que exercesse o seu direito de ação se os meios de prova não fossem igualmente imunizados ante a ameaça sempre latente de interferência patronal. Especialmente a declaração testemunhal, que é a prova mais comum e acessível aos trabalhadores, há de quedar-se invulnerável para que eles possam exercitar, com o máximo de eficácia, seu direito à tutela judicial(905). Ademais, a Convenção 158 da OIT, ratificada pela Espanha e com denúncia pelo governo brasi- leiro sob exame de constitucionalidade no âmbito do STF, protege, no que atine à despedida em repre- sália, o trabalhador que participa de um procedimento contra o empregador, o que inclui tanto o próprio exercício da ação judicial quanto a mera declaração testemunhal, aponta Álvarez Alonso(906). Havia um problema, porém, a ser resolvido pela jurisprudência espanhola: a eventual retaliação, sofrida pelo trabalhador em razão de seu depoimento como testemunha, desfavorável aos interesses Constituição é enfática em seu art. 18º, 1: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”. (903) CARVALHO, Augusto César Leite de. Garantia de Indenidade no Brasil: o livre exercício do direito fundamental de ação sem o temor de represália patronal. São Paulo: LTr, 2013. (904) RODRÍGUEZ-PIÑERO BRAVO-FERRER, M. Tutela Judicial Efectiva, Garantía de Indemnidad y Represalias Empresariales. In: Derecho Vivo del Trabajo y Constitución: estudios en homenaje al Profesor Doctor Fernando Suárez González. Madrid: La Ley, 2004, p. 638-639. O autor cita o documento nomeado Estudio General, 1988, parágrafo 226, também referido por Rodríguez-Piñero, op. cit., p. 640. (905) Como observou Igartua Miró (IGARTUA MIRÓ, M. T. La Garantía de Indemnidad en la Doctrina Social del Tribunal Constitucio- nal. Colección Estudios, número 204. CES-Consejo Económico y Social, Madrid, 2008, p. 92), “en la mayoría de los casos, los intentos del trabajador de recabar la tutela judicial pueden verse hueros de contenido ante la imposibilidad de contar con quien testifique y apoye su argumentación”. (906) Op. cit., p. 83. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 325 do empresário, não seria consequência do exercício de uma ação sua frente ao empregador, senão uma declaração testemunhal prestada em um processo no qual não foi parte. O direito de ação estaria vulnerado? Em que pese existissem outras sugestões doutrinárias(907), o Tribunal Constitucional espa- nhol optou por afirmar, na STC 197/1998, que: [...] uma medida de represália empresarial motivada pela declaração testemunhal do trabalhador em um procedimento havido em instâncias de outros trabalhadores contra o empresário não lesionaria seu direito à tutela judicial efetiva, toda vez que o trabalhador despedido não houvesse exercitado alguma ação judicial contra o empresário(908). Mas a mesma Corte deu um passo adiante para assentar que a prestação de depoimento na qualidade de testemunha, que constitui um dever sujeito à exigência de veracidade, está integrada e protegida pelo direito a comunicar informação veraz reconhecido no art. 20.1.d da Constituição da Espanha(909), a exemplo do que sucede na Constituição do Brasil(910). A afirmação de um direito fundamental quase sempre exige um esforço ingente de ponderação com outros direitos e princípios constitucionais. Tem surgido, por exemplo, alguma crítica a essa posi- ção do Tribunal Constitucional da Espanha pois se argumenta, em oposição, que a liberdade de infor- mação operaria exclusivamente “em um contexto relativo a meios de difusão informativa (imprensa, radio, televisão etc.) e que, para que entre em jogo tal direito fundamental, é preciso que as informa- ções transmitidas sejam de caráter noticiável ou de interesse público, o que não ocorria no caso de testemunho prestado em juízo pelo trabalhador”(911). Ao inverso, e dizendo basear-se em entendimento que também é de Tascón López, rebate Álvarez Alonso: Mesmo se admitindo que a doutrina a que se está fazendo referência suscita alguma dúvida, esta última opinião não se pode compartilhar, e não somente porque se estime a proteção da testemunha como algo socialmente necessário [...], senão também porque os argumentos de fundo que se esgrimem se baseiam em uma concepção ‘elitista’ da liberdade informativa absolutamente reducionista que viria a circunscrever a virtualidade de dito direito fundamen- tal ao campo da informação jornalística e da mass media. Contudo, o direito a comunicar livremente informação veraz, reconhecido por nós, não é um privilégio exclusivo do mundo dos meios de comunicação social, como há destacado em alguma ocasião o TC (SSTC 6/1981, fj. 4; e 6/1998, fj. 5), nem está exclusivamente a serviço das ‘questões de Estado’ ou de interesse político-social para o conjunto da cidadania [...](912). O autor pondera, todavia, que “ao encontrar seu fundamento na liberdade de informação do art. 20.1.d CE, a indenidade da testemunha está submetida à exigência de veracidade, limite intrínseco da liberdade de informação, algo que, obviamente, não ocorre no caso da garantia vinculada ao art. 24.1 (907) Igartua Miró (op. cit., p. 93) sugere: “[...] lo correcto sería incardinarla en el ámbito de actuación de otros derechos fundamentales, acudiendo, además de al empleado por el TC y pese a las críticas recibidas, el de no discriminación – no ser discriminado por participar como testigo en un juicio”. (908) Em espanhol: “una medida de represalia empresarial motivada por la declaración testifical del trabajador en un procedimiento seguido a instancias de otros trabajadores contra el empresario no lesionaría su derecho a la tutela judicial efectiva, toda vez que el traba- jador despedido no habría ejercitado ninguna acción judicial contra el empresario”. (909) Art. 20.1 CE – Se reconocen y protegen los derechos: a) A expresar y difundir libremente los pensamientos, ideas y opiniones mediante la palabra, el escrito o cualquier otro medio de reproducción. b) A la producción y creación literaria, artística, científica y técnica. c) A la libertad de cátedra. d) A comunicar o recibir libremente información veraz por cualquier medio de difusión. La ley regulará el derecho a la cláusula de conciencia y al secreto profesional en el ejercicio de estas libertades. (910) O direito à informação está igualmente consagrado na Constituição do Brasil, podendo ser lembrados o art. 5º, XIV (“é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”); o art. 93, IX (“todos os julga- mentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”) e especialmente o art. 220 (“A manifestação do pensa- mento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. § 2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”). (911) Cfr. Montoya Melgar, apud ÁLVAREZ ALONSO, D. La Garantía de Indemnidad del Trabajador Frente a Represalias Empresa- riales. Albacete: Bomarzo, 2005. p. 14, p. 85. (912) Op. cit., p. 85, nota 210. Em igual sentido: VALLE MUÑOZ, F. A. La Garantía de Indemnidad del Trabajador por el Ejercitar Accio- nes Judiciales contra el Empresario. Revista Relaciones Laborales, n. 9, año XXI, mayo 2005, p. 11, Madrid, Ed. La Ley, p. 28. 326 – Augusto César Leite de Carvalho CE”(913), dispositivo que assegura o direito de ação. Vale dizer: a testemunha haverá de ser convincente para que suas declarações sejam admitidas como verdadeiras e esteja assim imune à vindita patronal. Entretanto, tal não significa afirmar que a testemunha depende do sucesso de seu depoimento para não ser reprimido pelo seu empregador. A veracidade da informação não implica sua aceitação como uma informação verdadeira pelo juízo. Na mencionada STC 197/1998, o Tribunal Constitucional espanhol concedeu o amparo sobre a base do direito a comunicar informação veraz ante a circuns- tância de não haver prova de que o testemunho fosse inveraz(914). Portanto, ao empresário incumbe provar, no processo instaurado pela testemunha, que a declaração testemunhal não correspondera à verdade, independentemente do resultado que se há alcançado no processo em que se colheu o depoimento. No precedente STC 6/1998, a mesma Corte foi ainda mais precisa: Quando a Constituição requer que a informação seja veraz não está tanto privando de proteção as informações que possam resultar errôneas – ou simplesmente não provadas em juízo – mas estabelecendo um específico dever de diligência sobre o informador, a quem se pode e deve exigir que o que transmita como ‘fatos’ haja sido objeto de prévio contraste com dados objetivos, privando-se, assim, da garantia constitucional a quem, subtraindo o direito de todos à informação, atue com menosprezo da veracidade ou falsidade do que comunica. O ordenamento não empresta sua tutela a tal conduta negligente, nem à de quem comunique como fatos simples rumores ou, pior ainda, meras invenções ou insinuações insidiosas, mas sim ampara, em seu conjunto, a infor- mação retamente obtida e difundida, ainda quando sua total exatidão seja controvertida. Definitivamente, as afirmações errôneas são inevitáveis em um debate livre, de tal forma que, a impor-se a verdade como condição para o reconhecimento do direito, a única garantia da segurança jurídica seria o silêncio(915). A remissão ao direito constitucional de comunicar informação veraz serve, em última análise, à imunização do depoente, à sua indenidade. Por outro lado, e ainda que não ocorra a perfeita conexão objetiva entre o emprego da ação judicial e a hostilidade empresarial em razão de testemunhos dados pelo autor da ação em processo alheio, a máxima efetividade do direito à tutela judicial reclamaria um reforço do direito a comunicar informação útil e veraz ao órgão responsável pela prestação jurisdi- cional. Por que estimular a produção de prova oral? Sem a obtenção de informações verazes não se alcança uma decisão justa e efetiva. 11.4.4 Liberdade sexual no ambiente de trabalho – assédio sexual A relação de emprego não é uma relação entre iguais, é uma relação de poder. A vulnerabilidade do trabalhador se revela em sua sujeição a condições de trabalho que entende injustas ou ilegais e se confirma quando se submete a cláusulas contratuais que restringem sua liberdade de locomoção, expressão, opinião, informação etc. (913) Idem, ibidem. Em igual sentido: Santiago Redondo em SANTIAGO REDONDO, K.M. Garantia de Indemnidad o Inejecución Anti- cipada de Sentencias. Despido contra Cesión Ilegal en Locutorios Telefónicos (comentarios a las SSTC 196, 197 y 199/2000). Relaciones Laborales. Madrid: La Ley, p. 695 e também Igartua Miró, op. cit., p. 91 e Rodríguez-Piñero, op. cit., p. 652, que acrescenta: “El tema y su tratamiento recuerdan la doctrina norteamericana sobre los derechos del denunciante (Whistleblower Rights). [...] No es un principio constitucional ni una regla generalizada sino que deriva del establecimiento en ciertas legislaciones estatales o federales, para asegurar su eficacia, de mecanismos de protección de los whistleblower ‘creíbles’ contra represalias de sus empresarios mediante despidos o sanciones, por considerarse que silenciar a esos trabajadores sería contrario a los intereses ‘americanos’ y a eficacia de una publice policy. Esa protec- ción, que puede ser civil o administrativa, se extiende en algunas leyes a la actuación como jurado, como testigo, o a ciertas denuncias o reclamaciones en defensa de derechos o intereses propios”. (914) Cfr. Rodríguez-Piñero, op. cit., p. 650. (915) Em espanhol: “Cuando la Constitución requiere que la información sea «veraz» no está tanto privando de protección a las informa- ciones que puedan resultar erróneas -o sencillamente no probadas en juicio- cuanto estableciendo un específico deber de diligencia sobre el informador, a quien se le puede y debe exigir que lo que transmita como «hechos» haya sido objeto de previo contraste con datos objeti- vos, privándose, así, de la garantía constitucional a quien, defraudando el derecho de todos a la información, actúe con menosprecio de la veracidad o falsedad de lo comunicado. El ordenamiento no presta su tutela a tal conducta negligente, ni menos a la de quien comunique como hechos simples rumores o, peor aún, meras invenciones o insinuaciones insidiosas, pero sí ampara, en su conjunto, la información rectamente obtenida y difundida, aun cuando su total exactitud sea controvertible. En definitiva, las afirmaciones erróneas son inevitables en un debate libre, de tal forma que, de imponerse «la verdad» como condición para el reconocimiento del derecho, la única garantía de la seguridad jurídica sería el silencio.” Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 327 Em regra, a necessidade de garantir a subsistência própria e da família é o que faz susceptível o empregado ao comando do empregador. Mas nem por isso o trabalhador se sente inteira e necessa- riamente alienado no ambiente de empresa. A postura do trabalhador pode, aliás, ser a de mais puro e autêntico engajamento. É que também pode ser seu – e não raro o é – o interesse de contribuir para o sucesso empresarial, quer pela satisfação de beneficiar-se com o horizonte mais estável oferecido por empresas bem situadas no mercado, quer pela afinidade de propósitos que sente ter com o empresá- rio, quer enfim pelo prazer de realizar um trabalho sintonizado com sua vocação profissional ou com o ideal de um mundo melhor. Se não existe, porém, esse bem-estar no ambiente laboral, retoma-se a dicotomia entre neces- sidade de trabalhar para sobreviver e liberdade que é subtraída pelo trabalho. A mais perversa mani- festação de supressão da liberdade talvez esteja associada à cultura machista de nosso tempo e é aquela em que a trabalhadora se sente constrangida a entregar seu corpo aos favores sexuais de seu patrão, oferecendo-se a uma prática que pretendia combinar com a afeição, o amor, o mais puro de seus sentimentos. É certo, todavia, que a cultural submissão da mulher não é sequer uma elementar do delito sexual, pois a vítima pode ser também o homem a quem se vexa em busca de satisfazer-se o impulso sexual feminino. O assédio sexual remete normalmente a uma relação de poder que apenas se intensifica, potencializando-se ainda mais, quando à debilidade contratual da empregada se adicionam os defeitos de nossa sociedade patriarcal e sexista. É preciso dizer, em acréscimo, que mesmo a relação de poder pode virtualmente se inverter, o que ocorre, por exemplo, quando o empregado tem acesso a segredo pessoal do empresário, ou a segredo institucional da empresa, cuja revelação cause eventual constrangimento. É mais raro, mas decerto o assédio sexual acontece, nessa hipótese, em uma perspectiva oposta àquela que se imagina comum a uma relação de emprego. Haveria então de se perguntar: o assédio sexual pode suceder entre pessoas que não guardam, entre si, uma relação de poder? Sim. A conduta inconveniente de um trabalhador ou trabalhadora insi- nuar-se reiteradamente para colega de outro ou igual gênero, com o objetivo de minar a resistência ao ato sexual, não se transmuda em assédio moral, simplesmente, pela circunstância de dar-se entre iguais. Continua sendo uma conduta denotativa de assédio sexual. A doutrina distingue, por essas razões, o assédio sexual por chantagem do assédio sexual por intimidação. Do assédio sexual por chantagem trata, no campo do direito criminal, o art. 216-A do Código Penal brasileiro, ao descrever assim a conduta típica correspondente: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. Como se pode notar, o assédio sexual por chantagem reclama uma relação de poder e, nela, o fato de o superior hierárquico condicionar a permanência, a tranquilidade ou a progressão funcional do trabalhador ou trabalhadora, expressa ou disfarçadamente, ao almejado ato sexual. De outra parte, o assédio sexual por intimidação aproxima-se do assédio moral horizontal, quali- ficando-se porém pela motivação sexual. Se a conduta insistente do assediador reveste-se de caráter sexual e, à expressão do art. 29 do Código de Trabalho português, tem o objetivo ou o efeito(916) de pertur- bar ou constranger a pessoa assediada, afetar-lhe a dignidade ou criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador, tem-se caracterizado o assédio sexual – que se revelará um assédio por chantagem caso o assediador se tenha valido de sua superioridade hierárquica ou um assédio por intimidação, na hipótese de a hierarquia entre agente e vítima ser um dado irrelevante. (916) Art. 29.1 do Código de Trabalho de Portugal: “Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego, ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”. Conforme Guilherme Dray, “o conceito é francamente amplo, abrangendo não apenas as hipóteses em que se vislumbra na esfera jurídica do empregador o objetivo de afetar a dignidade do visado, mas também aquelas em que, ainda que se não reconheça tal desiderato, ocorra o efeito a que se refere a parte final do n. 2. O legislador, na esteira das diretrizes comunitárias, aborda as duas hipóteses em termos alternativos e não cumulativos. Em todo o caso, julga-se que a prática de assédio não intencional afigura-se, no mínimo, uma hipótese remota, para não dizer juridicamente insustentável”. ROMANO MARTINEZ, Pedro et alii. Código do Trabalho Anotado. Coim- bra: Almedina, 2013. p. 185. 328 – Augusto César Leite de Carvalho Interessante perceber que a mencionada lei portuguesa se inspira nas Directivas 76/207/CEE e 2202/73/CEE da União Europeia e relaciona o assédio – tanto o assédio moral quanto o sexual – ao princípio da não discriminação, porque, segundo Guilherme Dray, “o legislador assume que o assé- dio, máxime o assédio sexual, constitui uma forma de discriminação intolerável, seja no acesso ao emprego, seja na execução do contrato de trabalho. O assédio constitui um conjunto concatenado de comportamentos que tem por objetivo ou efeito criar um ambiente de tal forma hostil, que o trabalhador se vê na contingência de, ele próprio, por se sentir marginalizado, pretender desvincular-se perante o empregador, pondo termo à relação laboral”(917). Em suma, o assédio sexual se configura quando há conduta abusiva e reiterada com motivação sexual. A vítima do assédio sexual há de ter repelido a investida do assediador, pois não se coaduna com a proteção jurídica, nem com o senso comum, o assédio compartilhado ou consentido. Havendo o assédio sexual, a vítima poderá recusar-se à ordem de serviço nele contextualizada, postular a resolução do contrato com as indenizações daí consequentes, além de exigir tutela judicial inibitória e igualmente reparatória. 11.5 Direitos da personalidade no ambiente de trabalho Ao início do Código Civil brasileiro a personalidade é tratada como aptidão da pessoa natural para realizar os atos da vida civil, personalidade essa que “começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” (art. 2º). Parece-nos pouco consequente, na atual quadra da evolução do direito civil, o vetusto debate sobre a personalidade ser um direito em si mesmo (que se irradia do fato jurídico da personalidade, como sustentava Pontes de Miranda) ou se a personalidade seria, não um direito, mas sim um objeto de direito (“primeiro bem da pessoa, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens”, como teria sustentado Goffredo Telles Junior)(918). Em princípio, os direitos da personalidade foram compreendidos como aqueles imprescindíveis à inserção da pessoa nas relações jurídicas, permitindo-se ao intérprete avançar somente até o ponto de discutir quanto a tipificá-los segundo as correntes monista ou pluralista. Explica César Fiuza: Segundo os monistas, o direito da personalidade, assim como o direito de propriedade, é uno. Assim, não haveria direitos da personalidade, mas um direito geral da personalidade, com vários desdobramentos, estes regulados em lei (Código Civil, Penal, Constituição etc.). Quando se fala em direito à vida, à honra, à saúde, não se está referindo a vários direitos distintos da personalidade, mas a desdobramentos de um único direito geral. Isto se dá porque a pessoa humana é una. Seus interesses acham-se todos interligados, sendo facetas de um mesmo prisma. De acordo com os pluralistas, os direitos da personalidade são vários, correspondendo cada um a uma necessidade ou exigência distinta. Assim, embora a pessoa seja una, suas necessi- dades são diversas. A necessidade de viver é diferente da necessidade de viver com honra; a necessidade de um nome é diferente da necessidade de viver com saúde e assim por diante. Assim, diante das diversas necessidades, temos diversos bens para satisfazê-las. Daí os dife- rentes direitos da personalidade, considerados bens jurídicos, de natureza incorpórea.(919) Conforme arremata Fiuza, tanto a teoria monista – adotada pelo legislador brasileiro, que optou por não especificar os direitos da personalidade de modo taxativo – quanto a teoria pluralista padece- riam, em princípio, do mesmo defeito, qual seja, o de se enquadrarem na moldura tradicional dos direi- tos subjetivos de caráter patrimonial: “disso decorre que se preocupam quase que exclusivamente em conferir à pessoa uma tutela de caráter ressarcitório e de tipo dominical”(920). A perspectiva existencial (917) Idem, ibidem. (918) Debate reproduzido em NICOLODI, Márcia. Os Direitos da Personalidade. Disponível em: http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/ files/anexos/31513-35766-1-PB.pdf. Acesso em: 28/dez/2015. (919) FIUZA, César. Direitos da Personalidade. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitu- ra&artigo_id=7340&revista_caderno=7#_ftnref9. Acesso em 28/dez/2015. (920) Aduz, didaticamente e na sequência, o autor: “Em outras palavras, os direitos da personalidade, mesmo considerados direitos subje- tivos, não podem ser comparados aos modelos clássicos de direitos subjetivos pessoais ou reais. Tampouco se deve moldurá-los em situa- Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 329 torna-se presente apenas quando se analisa o tema sob os preceitos da Constituição que emprestam suporte à cláusula geral de tutela da personalidade. Para distinguir o direito geral de personalidade, concebido na teoria monista clássica e já reco- nhecido como um avanço na compreensão dos direitos da personalidade, diferenciando-o da cláu- sula geral de tutela da personalidade, faz-se necessário, assim, recorrer à matriz constitucional, como defende César Fiuza: A escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada a objetivos maiores, tais como a erradicação da pobreza e outros, configura uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo para a interpretação de todo o ordenamento. A diferença entre o tratamento monista e uma cláusula geral de tutela da personalidade é fundamental. A teoria monista considera a personalidade como fonte de um direito geral e originário de personalidade. Quando este direito for violado em alguma situação existencial, como, por exemplo, um contrato desequilibrado, ou uma prisão injusta, o ordenamento jurí- dico socorre o prejudicado. Para os adeptos da cláusula geral de tutela da personalidade, a personalidade seria um valor, ou o valor supremo de uma sociedade democrática, do qual decorreria não só a proteção à dignidade humana, mas também a promoção do ser humano. Assim, o ordenamento jurídico, com base na cláusula geral de tutela da personalidade, não só daria ensejo à reparação dos atentados aos direitos da personalidade como induziria a atuação do intérprete ao molde axiológico dessa cláusula, qual seja, a pessoa humana. Por este prisma, por exemplo, a legitimidade de um contrato ou de um ato de cobrança de dívida, pouco importa se se trata ou não de relação de consumo, estará condicionada a esses valo- res constitucionalmente eleitos, quais sejam, a dignidade e a promoção do ser humano. Ao contrário da teoria monista, a cláusula geral de tutela da personalidade não se resume ao tratamento dos casos patológicos, casos em que se atenta contra os direitos fundamentais da pessoa. Preocupa-se, acima de tudo, com sua promoção.(921) Na mesma linha de argumentação, Gustavo Tepedino: Procedendo-se, em definitivo, a uma conexão axiológica do tímido elenco de hipóteses-tipo previsto no Código Civil de 2002 ao Texto Constitucional, parece lícito considerar a persona- lidade não como um novo reduto de poder do indivíduo, no âmbito do qual seria exercida a sua titularidade, mas como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de legitimidade. Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, asso- ciada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, bem como de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, ainda que não expressos, mas decorrentes dos princípios adotados pelo Texto Maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento. Tal perspectiva, porém, não se confunde com a construção de um único direito geral de perso- nalidade, significando, ao contrário, o ocaso da concepção de proteção da pessoa humana associada exclusivamente à atribuição de titularidades e à possibilidade de obtenção de ressar- cimento. Cabe ao intérprete ler o novelo de direitos introduzidos pelos arts. 11 a 23 do Código Civil à luz da tutela constitucional emancipatória, na certeza de que tais diretrizes hermenêu- ticas, longe de apenas estabelecerem parâmetros para o legislador ordinário e para os pode- res públicos, protegendo o indivíduo contra a ação do Estado, alcançam também a atividade econômica privada, informando as relações contratuais. Não há negócio jurídico ou espaço de liberdade privada que não tenha seu conteúdo redesenhado pelo texto constitucional.(922) ções-tipo, reprimindo apenas sua violação. Também será inconsistente a técnica de agrupá-los em um único direito geral da personalidade, se o objetivo for o de superar o paradigma clássico, baseado no binômio lesão–sanção). Há de se estabelecer uma cláusula geral de tutela da personalidade, que eleja a dignidade e a promoção da pessoa humana como valores máximos do ordenamento, orientando toda a atividade hermenêutica.” (921) Idem, ibidem. (922) TEPEDINO, Gustavo. Cidadania e Direitos da Personalidade. Disponível em: http://www.amdjus.com.br/doutrina/civil/113.htm. Acesso em: 28/dez/2015. 330 – Augusto César Leite de Carvalho Não por outra razão, a doutrina de direito civil enfatiza a necessidade de esforçar-se o intérprete para dimensionar a tutela dos direitos da personalidade de modo inclusivo e com base no postulado da dignidade humana, porquanto dele deriva a normalização da matéria pelos artigos 11 a 21 do Código Civil. Sobre esses dispositivos, assinala Tartuce que “na realidade, não se trata bem de uma novidade, tendo em vista a Constituição Federal trazer uma proteção até mais abrangente, principalmente no seu art. 5º, caput, que consagra alguns dos direitos fundamentais da pessoa natural”(923). Qual a relevância dos direitos da personalidade no mundo do trabalho? Por que demorou (tanto!) para que o direito do trabalho despertasse acerca dos direitos não patrimoniais, indisponíveis, intrans- missíveis e irrenunciáveis que, afetando a dignidade humana, ambientavam-se confortavelmente na relação entre trabalhador e empresa? Estaria alheio o direito laboral à importância da vida e da inte- gridade física, psíquica e intelectual do trabalhador? E à preeminência da proteção in natura desses interesses, sobretudo antes de eles se resolverem em perdas e danos? A parcimônia, ou silêncio, do Código Civil de 1916 acerca da proteção dos direitos da persona- lidade e a omissão, nessa matéria, da Consolidação das Leis do Trabalho contribuíram, por longo tempo, para que não se tratasse, no âmbito da Justiça do Trabalho, de assuntos relacionados aos direitos da personalidade titularizados pelo empregado e vinculados ao ambiente de empresa. Nota Mallet que tal se deve à [...] visão reducionista do legislador, que tratou da relação de emprego como se nela as obri- gações das partes se restringissem à prestação de trabalho pelo empregado, de um lado, e ao pagamento da remuneração pelo empregador, de outro lado. Tudo ficou limitado ao plano meramente patrimonial, o que se mostra tanto mais injustificável quanto é certo que, sendo o empregado, sempre e necessariamente, pessoa física (art. 3º da CLT), os direitos da perso- nalidade encontram-se inevitavelmente em causa em todo e qualquer contrato de trabalho(924). Secundando Mallet, acresce Bezerra Leite que a lacuna do texto da CLT foi convenientemente colmatada pela ordem jurídica que se encontra em vigor, desde o pináculo constitucional: Sem embargo da autorização do parágrafo único do art. 8º da CLT para a aplicação subsi- diária do Código Civil 2002, o certo é que a própria Constituição Federal de 1988, por ser a fonte primária de todo o ordenamento jurídico brasileiro, já é condição suficiente para sanar a lacuna do texto consolidado. Aliás, o trabalhador é antes uma pessoa humana e como tal também possui atributos essen- ciais decorrentes de sua dignidade. A bem ver, na relação empregatícia, o empregador exerce poderes como corolário do direito de propriedade, ficando o trabalhador num estado de subordinação jurídica e, não raro, de dependência econômica. É exatamente em função desse conflito entre os poderes do empregador e a subordinação do trabalhador que surgem as lesões aos direitos da persona- lidade do trabalhador.(925) A abertura da ordem jurídica à tutela dos direitos da personalidade, inclusive no ambiente de trabalho e em seus desdobramentos, repercutiu evidentemente na postura dos juízes e tribunais do trabalho, como se nota nos subitens seguintes. 11.5.1 A tutela do direito à vida e à integridade física. As dimensões do problema e os meios de interdição A expressão mais eloquente da dignidade humana é decerto o direito à existência digna, o que implica a tutela da vida como bem em si mesmo e também como vida condizente com os atributos da personalidade, imanentes à pessoa humana. Quando se abre a ordem jurídica aos horizontes do direito ambiental, percebe-se que a proteção da vida humana não se descola, em um meio ambiente (923) TARTUCE, Flávio. Os Direitos da Personalidade no Novo Código Civil. Disponível em: www.flaviotartuce.adv.br/artigos/Tartuce_ personalidade.doc. Acesso em: 28/dez/2015. (924) MALLET, Estêvão. Direito, Trabalho e Processo em Transformação. São Paulo: LTr, 2005, p. 18. (925) BEZERRA LEITE, Os Direitos da Personalidade na Perspectiva dos Direitos Humanos e do Direito Constitucional do Trabalho, p. 62. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 331 ecologicamente equilibrado, da proteção da vida “em todas as suas formas” (art. 3º da Lei n. 6.938/1981), dado que todas as formas de vida, não apenas a vida humana, interagem na formação de nossos biomas. Desde antes de as grandes narrativas ambientais surgirem ao início da década de setenta, o direito do trabalho convivia, como ainda convive, com convenções da OIT que preconizam a neces- sidade de preservar a incolumidade física de trabalhadores envolvidos em atividades econômicas específicas: a Convenção n. 120 (1964) cuida da higiene em estabelecimentos comerciais e em ofici- nas; a Convenção n. 152 (1979), da segurança e higiene em trabalho portuário; a Convenção n. 167 (1988), da segurança e saúde na construção civil; a Convenção n. 176 (1995), da segurança e saúde nas minas e a Convenção n. 184, da segurança e saúde na agricultura – todas, menos esta última (a Convenção n. 184), ratificadas pelo Brasil. A OIT editou, ainda, convenções que visam à prevenção contra riscos igualmente específicos: a Convenção n. 115 (1960) sobre a proteção contra as radiações ionizantes; a Convenção n. 139 (1974) sobre a exposição a agentes cancerígenos no ambiente de trabalho; a Convenção n. 148 (1977) sobre a cominação do ar, ruído e vibrações; a Convenção n. 162 (1986) sobre a exposição ao asbesto e a Convenção n. 170 (1990) sobre a exposição a produtos químicos, todas ratificadas pelo Brasil. Agindo pontualmente, ou por demanda, a OIT fez-se e se faz presente na tentativa de conter os acidentes de trabalho por meio de medidas protetivas ou preventivas recomendáveis em cada setor da economia ou frente a riscos identificáveis, em alguns casos arrolando os limites físicos ou temporais de tolerância aos riscos, noutros concitando estados e empresas à definição desses limites. Embora as normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho atendam, no Brasil, a esse desiderato de definir os limites de tolerância ao risco, é certo que os avanços por elas obtidos na prevenção do acidente de trabalho são igualmente setorizados, sem associação com uma tutela holística do ambiente de trabalho que o enxergue como uma entre tantas causas do adoecimento físico ou psíquico, nem concorram para a promoção do trabalho como instrumento de inclusão social, familiar, cultural enfim do trabalhador. Como regra, nota-se, à leitura de tantos tratados internacionais, o convite a que os estados nacionais instituam as suas políticas de segurança e saúde no trabalho, ponderando, nessa tarefa, entre a relevância de se permitir a atividade de risco que gera emprego e renda e, por outro lado, o limite de risco que se deve suportar em benefício da pujança empresarial. A ponderação entre esses interesses, um de viés econômico e outro de matiz humanitário, prepondera em referidas normas de direito internacional. A base para tais políticas nacionais, cujo objetivo deve alinhar-se com o objetivo de “prevenir os acidentes e os danos à saúde que forem consequência do trabalho ou tenham relação com a atividade de trabalho, ou se apresentarem durante o trabalho, reduzindo ao mínimo, na medida que for razoável e possível, as causas dos riscos inerentes ao meio-ambiente de trabalho” (art. 4.2 da Convenção 155 da OIT), haverá sempre de ser o catálogo de princípios fundamentais sobre segurança e saúde no trabalho insculpido em três Convenções: a de n. 155 (1981), a de n. 151 (1985) e a de n. 187 (2006), as duas primeiras ratificadas pelo Brasil. Importante notar que nenhuma das três convenções gerais sobre segurança e saúde no trabalho (as Convenções n. 155, 161 e 187) forma entre as oito convenções fundamentais da OIT, acerca das quais há o compromisso de observância pelos estados-membros independentemente da ratificação. Mas, mesmo sem que a última delas (a Convenção n. 187, de 2006) tenha obtido ratificação pelo Brasil (ao início de 2016), a verdade é que os textos das três mencionadas Convenções internacionais se completam e o art. 5.2 da Convenção n. 187 enumera os escopos a serem atingidos pelos programas nacionais, a cuja instituição se obrigam os estados-membros no bojo das políticas de segurança e saúde no trabalho impostas igualmente pelas Convenções ns. 155 e 161. Segundo citado dispositivo, os programas nacionais devem: • promover o desenvolvimento de uma cultura nacional de prevenção em saúde e segurança; • contribuir para a proteção dos trabalhadores, eliminando os perigos e os riscos do seu traba- lho ou minimizar, na medida em que for razoavelmente possível, em conformidade com a legislação e as práticas nacionais, a fim de impedir lesões, doenças e mortes causadas pelo trabalho e promover a segurança e a saúde no local de trabalho; 332 – Augusto César Leite de Carvalho elaborar e reexaminar a base de uma análise da situação nacional em saúde e segurança no trabalho, que inclua uma análise do sistema nacional de saúde e segurança no trabalho; • incluir objetivos, metas e indicadores de resultados, • sempre que possível, ser apoiadas por outros programas e planos nacionais de complementa- ridade que contribuam para a realização progressiva do objetivo de um ambiente de trabalho seguro e saudável. É perceptível que as normas internacionais se aproximam paulatinamente da compreensão de saúde como “sadia qualidade de vida”(926), ou seja, com a concepção de saúde que transcende o seu significado antes associado à “ausência de doença” e, aderindo à orientação que emana da Organiza- ção Mundial da Saúde (OMS), a associa a “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”(927). Seria suficiente esse quadro normativo para proteger a vida e a saúde do trabalhador? A bem dizer, as convenções da OIT e as normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho, bem assim as normas insertas no capítulo da CLT que alude à medicina e segurança no trabalho (capítulo V da CLT), seguem a característica, comum também ao direito civil mais ortodoxo, de tipificar os ilícitos perpetrá- veis no interior dos estabelecimentos empresariais e estabelecer as sanções (não raro interdição ou multa) correspondentes. Vale dizer: malgrado seja indispensável para evitar a barbárie no mundo do trabalho, o mencionado conjunto normativo não basta para promover a tutela emancipatória referida quando conjecturamos, faz pouco, acerca da epistemologia dos direitos da personalidade. Explicando melhor: embora tratem de questões ambientais – o ambiente interno da empresa, como visto no subitem em que cuidamos do trabalho sob a incidência transversal do direito ambiental, interage com o ambiente externo –, as normas de segurança e saúde afetas aos estabelecimentos empresariais mantêm o predicado de se limitarem à proteção do trabalho quanto ao efeito virtualmente nocivo dos insumos e instalações físicas úteis a cada atividade produtiva, o mesmo predicado que já as caracterizava antes do despertar para a causa ecológica e, afinal, o predicado que conspira para não permitir o embarque definitivo das controvérsias atinentes ao ecossistema do trabalho humano no universo ubíquo e civilizatório dos princípios regentes do direito ambiental. Ocorre que a inserção da proteção ao trabalho humano no contexto ambientalista é inexoravelmente imposta pelos atributos de unidade e coerência próprios ao ordenamento jurídico. Em rigor, essa linha de ação dos órgãos responsáveis pela prevenção e precaução contra as mortes, mutilações e doenças relacionadas ao trabalho resulta mais da adoção de um critério metodo- lógico do que propriamente da ausência de interesse em debelar, sob o prisma da sustentabilidade, o problema concernente aos acidentes laborais. Ao publicar, em 2014, documento(928) sobre as normas internacionais do trabalho, a OIT admitiu: Segundo as estimativas da OIT, a cada ano morrem 2,02 milhões de trabalhadores em razão de enfermidades vinculadas ao trabalho, enquanto 321.000 trabalhadores morrem no local de trabalho, equivalente a um trabalhador a cada quinze segundos. Os trabalhadores sofrem aproximadamente 317 milhões de acidentes laborais não letais por ano e 160 milhões de enfermidades relacionadas com o trabalho por ano. As mortes e as lesões representam índi- ces particularmente altos nos países em desenvolvimento, onde uma parte importante da população trabalha em atividades perigosas, como construção, pesca, mineração e agricul- tura. Cerca de 170.000 trabalhadores agrícolas morrem por ano no local de trabalho. A realidade no Brasil é igualmente preocupante. Dados oficiais do Ministério da Previdência Social acusam 717.911 acidentes de trabalho em 2013, número que historicamente tem sofrido variações pouco significativas (720.629 em 2011; 713.984 em 2012). Da mesma fonte(929) se extrai que a quantidade de (926) A propósito, o art. 225 da Constituição acerca do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”. (927) Vide http://www.alternativamedicina.com/medicina-tropical/conceito-saude. Acesso em: 7/jan/2016. (928) OIT. Las reglas del juego: una breve introducción a las normas internacionales del trabajo / Oficina Internacional del Trabajo. Gene- bra: OIT, tercera edición revisada 2014. p. 71. (929) Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/dados-abertos/aeps-2013-anuario-estatistico-da-previdencia-social-2013/aeps-2013-se- cao-iv-acidentes-do-trabalho/aeps-2013-secao-iv-acidentes-do-trabalho-tabelas/. Acesso em: 30/dez/2015. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 333 óbitos elevou-se em 2011 para 2.884 mortes em razão do trabalho e os acidentes típicos passaram de 417.167 em 2010 para 423.167 em 2011. Ou seja, há um quadro endêmico de acidentes de traba- lho, com causas tantas vezes conhecidas, que adoece, mutila e mata em proporções avassaladoras. A vida e a integridade física não têm, na ordem jurídica, a proteção efetiva, ao menos nos ambientes dedicados ao trabalho humano. Quando nos referimos ao acidente de trabalho, tratamos do acidente típico – e. g. queda, eletro- cussão ou esmagamento que cause efeito instantâneo de ordem física, estética, funcional ou emocio- nal – e ao acidente atípico, que corresponde às doenças relacionadas ao trabalho. Tais doenças são classificadas como doenças profissionais (assim entendidas aquelas produzidas ou desencadeadas pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elabo- rada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social, conforme art. 20, I, da Lei n. 8.213/1991) ou doenças do trabalho (adquiridas ou desencadeadas em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, desde que não se confunda com doença degenerativa, inerente a grupo etário, que não produza incapacidade laborativa ou doença endêmica não relacionada com as condições de trabalho, conforme art. 20, II e §1º, da Lei n. 8.213/1991). Ainda que não se enquadre no quadro de nosologias funcionais, a doença pode ser assim consi- derada se for constatada a correlação entre a atividade da empresa (catalogada pelo código CNAE – Classificação Nacional de Atividades Empresariais) e a Classificação Internacional de Doenças (CID), consoante se infere do art. 21-A da Lei n. 8.213/1991. É o que se denomina “nexo técnico epidemio- lógico”. Há, entre muitos, precedente jurisprudencial que trata do tema e é elucidativo no trecho de interesse: [...] No caso, o quadro fático registrado pelo Tribunal Regional revela que a autora é portadora das seguintes moléstias: cervicobraquialgia bilateral; hipoestesia de C5 a T2; síndrome do desfiladeiro torácico; tendinopatia do cabo longo do bíceps ou tendinite calcificante do ombro; e epicondilite medial, tendo sido diagnosticada com a síndrome miofascial, achado clínico altamente compatível com doenças ocupacionais provenientes de LER/ DORT. Com efeito, consta que a reclamada encontra-se registrada no Cadastro Nacional de Atividades Econô- micas (CNAE) sob o código 1012-1 e que, em tais atividades, é reconhecido pelo órgão previdenciário o nexo técnico epidemiológico em razão de as atividades desenvolvidas estarem incluídas como passíveis de desen- volver doenças ocupacionais enquadradas na CID-10. Resultou evidenciada, ainda, a culpa da ré, considerando que “conforme ressalta o laudo pericial, para a realização dos trabalhos, havia a necessidade de realização de movimentos rápidos, repetidos, cujo ritmo era imposto pela própria máquina, e ainda sob imposição de cumpri- mento de metas, sem rodízio de atividade, começando e terminando a jornada numa mesma atribuição. Trata- va-se, destarte, de forma intenso e com ritmo penoso, sem que se possa constatar, a partir da documentação juntada pela ré (Análise ergonômica de fls. 232 e seguintes) tenham sido adotadas medidas preventivas ao aparecimento de doenças”. Evidenciado o dano, assim como a conduta culposa da empregadora e o nexo causal entre ambos, deve ser mantido o acórdão regional que condenou a ré a indenizá-lo. [...] (TST, 7ª Turma, AIRR 1392-61.2012.5.12.0012, Relator Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, DEJT 09/10/2015). A responsabilidade do empregador não decorre necessariamente de ser o trabalho a causa única da enfermidade, sendo ele responsável na possível proporção em que o trabalho tenha agido como concausa (art. 21,I, da Lei n. 8.213), ou seja, na proporção em que o trabalho tenha contribuído para agravar uma doença inata, degenerativa ou inerente a grupo etário. Cabe ao empregador imunizar o empregado dos riscos inerentes ao seu empreendimento, inclusive daqueles que potencializam enfer- midades inicialmente não relacionadas com o trabalho. Se o empregado perde capacidade de trabalho, aplica-se o art. 950 do Código Civil(930) para afian- çar-se a esse trabalhador, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da conva- lescença, pensão que corresponda ao salário pago pelo trabalho para o qual se inabilitou. Não se leva em conta a capacidade para qualquer trabalho, mas sim o grau de perda de capacidade laborativa para o trabalho e função que até então eram exercidos, como se extrai de iterativa jurisprudência(931). (930) Art. 950 do Código Civil – Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu. Parágrafo único. O prejudicado, se preferir, poderá exigir que a indenização seja arbitrada e paga de uma só vez. (931) RECURSO DE EMBARGOS INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI N. 11.496/2007. DANOS MATERIAIS. ACIDENTE DO TRABA- LHO. PENSÃO MENSAL. ARTIGO 950 DO CÓDIGO CIVIL. 1. Nos termos do disposto no artigo 950 do Código Civil se, do ato ilícito praticado pelo empregador, resultar lesão ao empregado que o impeça de “exercer o seu ofício ou profissão”, a indenização por danos mate- riais, paga na forma de pensionamento mensal, corresponderá “à importância do trabalho para que se inabilitou”. 2. Extrai-se, do referido preceito legal, que a intenção do legislador, ao vincular o valor da indenização por danos materiais “à importância do trabalho para que se 334 – Augusto César Leite de Carvalho Se morre o empregado em consequência do risco inerente ao trabalho, seus herdeiros o suce- dem quanto ao direito de reparação pela lesão sofrida (direito puramente sucessório) e, ademais, têm direito próprio pelo sentimento de perda (dano extrapatrimonial) e porque ausente, dali por diante, a renda que o trabalho em vida garantiria à família do empregado falecido (dano material assegurado pelo art. 948, II, do Código Civil para o caso análogo de homicídio). O sentido de perda – porque afinal perderam-se a vida de ente querido e todas as projeções de afeto que essa vida proporcionava – encerra dano extrapatrimonial que pode ser suscitado, para efeito de reparação, não somente pelos herdeiros que formam na linha sucessória de direito civil, mas por tantos quantos compartilhem, seria- mente, tal sentimento. É o que se usa chamar dano moral indireto, ou dano em ricochete, com forte suporte jurisprudencial(932). inabilitou”, teve como objetivo tutelar as consequências jurídicas e fáticas decorrentes do ato ilícito praticado pela empresa, que conduziu à incapacidade da empregada para “exercer o seu ofício ou profissão”. Tal conclusão revela-se consentânea com o disposto no artigo 944 do Código Civil, por meio do qual se estatui que o valor da indenização “mede-se pela extensão do dano”. 3. A extensão do dano, na hipótese de perda ou redução da capacidade para o trabalho, deve ser aferida a partir da profissão ou ofício para o qual a empregada ficou inabilitada, não devendo ser adotado, como parâmetro para fixação do dano, a extensão da lesão em relação à capacidade para o trabalho considerada em sentido amplo, porquanto inaplicável, em tais circunstâncias, a regra geral prevista no artigo 944 do Código Civil, em razão da existência de norma regendo de forma específica tal situação (artigo 950 do Código Civil). 4. Tal raciocínio, longe de conduzir ao enriquecimento indevido do empregado, assegura o cumprimento da finalidade teleológica da lei, ao sancionar a conduta ilícita do empregador que, ao deixar de observar os deveres que resultam do contrato de emprego, deixa de propiciar a seus empregados um meio-ambiente de trabalho sadio, desatendendo à função social da empresa e da propriedade privada. 5. Cumpre ressaltar, ainda, que a fixação do valor da indenização, a partir da incapacidade para todo e qualquer trabalho, equipararia a indenização prevista no artigo 950 do Código Civil à reparação por lucros cessantes, indenizando apenas a redução da força física de trabalho e não a incapacidade para o desempenho de “ofício ou profissão”. Ressalte-se que o próprio artigo 950 do Código Civil distingue a indenização em forma de pensão da figura dos lucros cessantes, ao prever o pagamento de pensão “além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença”. 6. Na hipótese dos autos, a recla- mante, em razão da conduta ilícita do empregador, ficou totalmente incapacitada para o ofício que exercia na empresa reclamada e para o qual se capacitara profissionalmente, sendo-lhe devida, portanto, pensão mensal no valor de 100% de sua última remuneração. 7. Recurso de embargos conhecido e provido (TST, SBDI-1, E-RR 147300-11.2005.5.12.0008, Redator Ministro Lelio Bentes Corrêa, DEJT 21/08/2015). No mesmo sentido: RECURSO DE EMBARGOS EM RECURSO DE REVISTA DA RECLAMADA. INTERPOSIÇÃO SOB A ÉGIDE DA LEI 11.496/2007. ACIDENTE DE TRABALHO. PERFURAÇÃO DO OLHO ESQUERDO. MARCENEIRO. INCAPACIDADE TOTAL E PERMANENTE PARA A PROFISSÃO. INCAPACIDADE PARCIAL PARA O TRABALHO. PENSÃO MENSAL. VALOR INTEGRAL. 1. Acerca da atividade do reclamante e da capacidade laboral, o Tribunal regional consignou que “”Inconteste, ainda, que o reclamante exercia a função de marceneiro. Determinada a realização de perícia médica, a fim de apurar o grau de incapacidade, o expert nomeado concluiu pela incapacidade parcial e permanente do autor, bem como pela incapacidade total ‘ para atividades que requeiram função estereoscópica perfeita tais como trabalhos em níveis elevados, percepção correta de distâncias de objetos em movimento, maquinário pesado com possi- bilidade de trauma em decorrência de erro na noção de profundidade ou distância, trabalhos a uma curta distância do olho (a aproxima- damente um metro), a operação de veículos e trabalhos que exijam vigilância visual prolongada como no uso de ferramentas elétricas, a medição correta e o corte de materiais.’ (fl. 746). (...) Extrai-se dos termos do laudo pericial produzido pela oftalmologista (...) que a função de marceneiro, executada pelo reclamante, exige ‘ função estereoscópica perfeita’ , bem como que o autor não poderá ser reabilitado nessa função, ou, em outra que exija tal qualidade da visão”. Entretanto, a Turma não conheceu do recurso de revista, mantendo o valor da pensão considerando percentual de perda laboral de 35% (trinta e cinco por cento) e não de 100% (cem por cento como pretendeu o reclamante. 2. Nesse contexto descrito no acórdão da Turma, em que o reclamante ficou incapacitado de forma total e permanente para o exercício da função de marceneiro, que segundo o laudo, “exige ‘ função estereoscópica perfeita’ “, o valor a ser considerado no cálculo da indenização por danos materiais é aquele correspondente a 100% (cem por cento) de perda. 3. É que o grau de incapacidade – se total ou parcial – deve ser aferido à luz da profissão exercida pela vítima, entendimento que encontra respaldo no princípio da restitutio in integrum e nas disposi- ções contidas no art. 950 do CC [...]. 4. Tal conclusão não é alterado pelo fato de o trabalhador poder desempenhar atividades laborais distin- tas daquelas executadas em benefício da reclamada. A possibilidade de trabalho em outra função não anula a efetiva perda da capacidade para o exercício de “seu ofício ou profissão”, pressuposto legal apto a ensejar o pagamento de pensão mensal integral, nos moldes previstos no dispositivo transcrito e que restou demonstrado in casu. Precedentes. Recurso de embargos conhecido e provido (TST, SBDI-1, E-ED-RR 57685-09.2006.5.10.0015, Relator Ministro Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 18/12/2015). (932) AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. RECURSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014. ILEGITIMIDADE ATIVA DO ESPÓLIO. PRETENSÃO INDENIZATÓRIA DECORRENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO COM MORTE INSTANTÂNEA DO EMPREGADO. DANO MORAL INDIRETO. LEGITIMIDADE PRÓPRIA DOS HERDEIROS. Consoante se depreende do acórdão regio- nal, o pedido de indenização por dano moral veiculado na inicial decorre do sofrimento suportado pelos herdeiros em razão do falecimento do de cujus, ex-empregado da reclamada, em acidente de trabalho que resultou no seu óbito instantâneo. Nesse contexto, não se vislumbra ofensa aos arts. 943 e 1.784 do CC, porquanto a pretensão envolve direito próprio dos herdeiros (dano moral indireto) e não integra o patrimônio do de cujus, transmitido com a sucessão, como bem destacado pelo Tribunal de origem. Assim, com efeito, o espólio não é parte legítima para figurar no polo ativo da demanda que visa ao ressarcimento do dano moral indireto sofrido pelos sucessores, por se tratar de direito de terceiros. Agravo de instrumento conhecido e não provido (TST, 8ª Turma, AIRR 981-55.2013.5.06.0010, Relatora Ministra: Dora Maria da Costa, DEJT 03/11/2015). Em igual sentido: AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA EM FACE DE DECISÃO PUBLICADA ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N. 13.015/2014. DANO MORAL POR RICOCHETE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. A responsa- bilidade do empregador por eventual indenização decorrente de acidente de trabalho fatal não se restringe ao âmbito pessoal do ex-empregado, mas alcança também seus familiares e sucessores, que, em razão do óbito do ente querido, são legitimados a postular, em juízo, a reparação correspondente. Nesse contexto, insere-se no rol da competência da Justiça do Trabalho, em face da ampliação promovida pela Emenda Cons- titucional n. 45/2004, ação em que se postula indenização por dano moral reflexo, comumente denominado de dano “por ricochete”. Exegese Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 335 Há, em acréscimo, um aspecto muito relevante: a proteção jurídica não se deve esgotar na expec- tativa, sem dúvida importante, de o empregado ou seus sucessores serem indenizados caso aquele sofra lesão física ou emocional em decorrência do trabalho. A atitude preventiva, em se examinando a perspectiva existencial do direito do trabalho, remete-nos à aptidão que o Direito precisa ter de proteger e preservar a vida e a saúde do trabalhador antes de convertê-las em mera expressão pecuniária. Interes- sam, portanto e especialmente, os fragmentos da ordem jurídica por meio dos quais se impede a subsis- tência de atividade econômica ou prestação laboral que menoscabem a dignidade do trabalho humano. A elisão do ilícito patronal, ou a eliminação das condições de trabalho destoantes da expectativa constitucional de trabalho digno, têm sempre mais importância que a reparação, após a consumação do dano, pelo equivalente em dinheiro. Nesse sentido, importa menos o direito aos adicionais de insalubridade ou periculosidade que a possibilidade de a Justiça do Trabalho proceder à interdição da unidade produtiva ou do equipamento que priorize a atividade econômica em detrimento da vida ou da saúde do trabalhador. O art. 161 da CLT prevê que o Ministério do Trabalho, “à vista do laudo técnico do serviço competente que demonstre grave e iminente risco para o trabalhador, poderá interditar estabelecimento, setor de serviço, máquina ou equipamento, ou embargar obra, indicando na deci- são, tomada com a brevidade que a ocorrência exigir, as providências que deverão ser adotadas para prevenção de infortúnios de trabalho”. É certo que a interdição possível no âmbito do poder de polícia da administração pública é facultada, a fortiori, ao órgão judicial. Igual providência será sempre possível quando qualquer dos outros direitos da personalidade estiver ultrajado no ambiente de trabalho, não somente quando a vida ou a integridade física dos traba- lhadores se encontrarem ameaçadas. O art. 497 do CPC de 2015, à semelhança de como já previa o art. 461 do CPC de 1973, dá prioridade à tutela específica do direito, o que autoriza o manejo de ações judiciais enquanto ainda se comete o ilícito – configurado pelo desrespeito a algum direito da persona- lidade – para o fim de fazê-lo cessar e garantir-se, mediante o uso persuasivo de medidas coercitivas, que ele não volte a ocorrer. Continuemos, por isso e no item seguinte, a discorrer como se têm posicionado a doutrina e a jurispru- dência trabalhistas acerca da proteção de outros direitos da personalidade vigentes no ambiente laboral. 11.5.2 Direito à privacidade e à intimidade no ambiente de trabalho – câmeras de vídeo, monitoramento do teletrabalho, correio eletrônico, sigilo bancário, revista pessoal e de pertences, barreira sanitária coletiva, divulgação de salários, fardamento com propaganda O art. 5º, X, da Constituição dispõe serem “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. O trabalhador, por sê-lo, não se despoja do direito de proteger, da curiosidade alheia, os lugares que tenha reservado para preservar os seus pedaços de vida que só a ele interes- sam, querendo-os imunes à bisbilhotice de tantos. É-lhe dado, portanto, o direito à privacidade. E, por igual, é a ele assegurado o direito de não ter devassados, pelos sentidos de outras pessoas, os recin- tos também recônditos de sua intimidade, das partes de seu corpo, de seus sentimentos e de suas relações que não pretende expor ou compartilhar. Por seu turno, o empregador tem a obrigação de garantir a harmonia do ambiente de trabalho e reclama, para esse fim, o direito de informação acerca das relações que ali se estabelecem e se desenvolvem. Reclama o exercício pleno da propriedade sobre os meios de produção e também a do artigo 114, I e VI, da Constituição Federal. Agravo de instrumento a que se nega provimento. RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPRE- GADOR. ACIDENTE DE TRABALHO FATAL. ELETROCUTAMENTO. AUSÊNCIA DE ADOÇÃO DE MEDIDAS DE SEGURANÇA E PROTEÇÃO DO TRABALHADOR PELA EMPRESA. INDENIZAÇÃO À VIÚVA E À FILHA DO EMPREGADO FALECIDO. A respon- sabilidade civil do empregador pela reparação decorrente de danos causados aos familiares da vítima fatal de acidente de trabalho também se ampara na existência de três requisitos, quais sejam: a conduta (culposa, em regra), o dano propriamente dito (falecimento da vítima) e o nexo causal entre esses dois elementos. Na hipótese dos autos, conquanto se possa caracterizar, como de risco, a atividade desenvolvida em cabos de energia elétrica, a responsabilidade atribuída à empresa está fundamentada na sua conduta omissa, caracterizada pela negligência quanto às normas de segurança do trabalhador, na medida em que “deixou de adotar com rigor os procedimentos seguros”, registrando a Corte de origem que “não há prova, ainda, da existência de aterradores no caminhão”, indispensáveis ao aterramento temporário do trecho trabalhado. No mais, é incontroverso que o falecimento do empregado ocorreu quando atendia à demanda da empresa, referente a furtos de cabos, sendo que a experiência e o treinamento do trabalhador não foram suficientes a evitar o eletrocutamento, pelo energizamento acidental. Incólumes os dispositivos invocados. Agravo de instrumento a que se nega provimento. [...] (TST, 7ª Turma, AIRR – 185-44.2011.5.04.0122, Relator Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, DEJT 29/10/2015). 336 – Augusto César Leite de Carvalho necessidade de proteger o nome e a boa imagem da empresa, em benefício inclusive dos empregados que dependem da subsistência e competitividade da empresa no mercado, o que remeteria ao debate sobre as pessoas jurídicas serem titulares de direitos da personalidade. Quanto à titularidade de direitos da personalidade por pessoas jurídicas, o art. 52 do Código Civil diz que “se aplica às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade” e a Súmula 227 do Superior Tribunal de Justiça – por cujo teor se enuncia, simplesmente, que “a pessoa jurídica pode sofrer dano moral” – é normalmente mencionada como se fora o reconhecimento, pelo Poder Judi- ciário, de que não somente as pessoas naturais seriam titulares de direitos da personalidade. Ponderemos, contudo, que das três soluções exegéticas mais festejadas pela doutrina (conside- remos, como as duas primeiras, a que sustenta a extensão de todos os direitos da personalidade às pessoas jurídicas e aquela que os estende na medida de sua compatibilidade), a posição que parece mais consentânea com a correlação entre os direitos da personalidade e o postulado da dignidade humana é certamente a que extrai do art. 52 do Código Civil a extensão apenas da técnica de proteção dos direitos da pessoa natural, sem estender à pessoa jurídica direitos que são atributos viscerais da condição humana, como bem acentua Gustavo Tepedino: Não se discute ser a pessoa jurídica dotada de capacidade jurídica (e neste sentido invo- ca-se tradicionalmente sua personalidade jurídica), sendo efetivamente merecedoras de tutela as situações em que se verifica uma falsa semelhança com a tutela da personalidade humana. Isto ocorre, por exemplo, na proteção do sigilo industrial ou comercial, só aparen- temente assemelhado ao direito à privacidade; ou no tocante ao direito ao nome comercial, cuja natureza não coincide com a do direito ao nome. Todavia, a fundamentação constitucional dos direitos da personalidade, no âmbito dos direitos humanos, e a elevação da pessoa humana ao valor máximo do ordenamento não deixam dúvidas sobre a preponderância do interesse que a ela se refere, e sobre a distinta natureza dos direitos que têm por objeto bens que se irradiam da personalidade humana em relação aos direitos (em regra patrimoniais) da pessoa jurídica, no âmbito da atividade econômica privada. Assim é que o texto do art. 52 parece reconhecer que os direitos da personalidade constituem uma categoria voltada para a defesa e para a promoção da pessoa humana. Tanto assim que não assegura às pessoas jurídicas os direitos subjetivos da personalidade, admitindo, tão somente, a extensão da técnica dos direitos da personalidade para a proteção da pessoa jurídica. Qualquer outra interpretação, que pretendesse encontrar no art. 52 o fundamento para a admissão dos direitos da personalidade das pessoas jurídicas, contrariaria a dicção textual do dispositivo e se chocaria com a informação axiológica indispensável à concreção da aludida cláusula geral. A rigor, a lógica fundante dos direitos da personalidade é a tutela da dignidade da pessoa humana. Ainda assim, provavelmente por conveniência de ordem prática, o codificador pretendeu estendê-los às pessoas jurídicas, o que não poderá significar que a concepção dos direitos da personalidade seja uma categoria conceitual neutra, aplicável indistintamente às pessoas jurídicas e às pessoas humanas.(933) Sejam ou não direitos da personalidade – e está claro que não atribuímos às pessoas jurídicas a titularidade desses direitos, mas somente a possibilidade de defender os interesses jungidos ao nome comercial, imagem etc. com as técnicas preconizadas para a tutela dos direitos imanentes à pessoa humana –, é certo que a empresa, ou seu titular, protagonizam interesses e direitos albergados pela ordem jurídica. Acerca da convivência do direito à informação e à preservação da imagem empresarial com os direitos relacionados com a proteção à privacidade e intimidade do empregado, interessa verificar como se situa a jurisprudência em casos específicos, como faremos em seguida. O monitoramento por câmeras de vídeo “em áreas comuns da empresa e não em ambientes íntimos”, sobretudo quando não há divulgação das imagens, tem respaldo jurisprudencial(934), mas o (933) TEPEDINO, Cidadania e Direitos da Personalidade, artigo eletrônico já citado. (934) Vide TST, 3ª Turma, RR 91585-52.2003.5.12.0008, Rel. Min. Horácio Raymundo de Senna Pires, Publicação: 07/10/2011. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 337 mesmo não se dá quando o empregador monitora, por câmeras e não raro a pretexto de investigar a subtração de pertences, a movimentação em vestiários e banheiros masculinos(935) ou femininos(936). Por outro lado, o teletrabalho – trabalho em home office ou em domicílio mediante conexão via internet com o empregador – traz a debate a possibilidade de o empregador vigiar os serviços pres- tados na casa do empregado(937). Em Portugal, o art. 170 do Código do Trabalho regula a proteção à privacidade nos casos de teletrabalho, prenunciando um conflito que, se aqui ainda não existe, não tardará a surgir. Para que o empregado e sua família tenham sua residência preservada nos casos em que o labor ali se realiza, em meio às atividades cotidianas e tão particulares de um lar, duas regras básicas, que a nosso ver comportam aplicação subsidiária no Brasil, foram estabelecidas: 1 – O empregador deve respeitar a privacidade do trabalhador e os tempos de descanso e de repouso da família deste, bem como proporcionar-lhe boas condições de trabalho, tanto do ponto de vista físico como psíquico. 2 – Sempre que o teletrabalho seja realizado no domicílio do trabalhador, a visita ao local de trabalho só deve ter por objeto o controlo da atividade laboral, bem como dos instrumentos de trabalho e apenas pode ser efetuada entre as 9 e as 19 horas, com a assistência do trabalhador ou de pessoa por ele designada. A propósito do acesso, pelo empregador, de mensagens que tenham transitado pelo endereço eletrônico (e-mail) do empregado, o TST firmou entendimento de que o e-mail corporativo, disponibi- lizado somente para assuntos e matérias afetas ao serviço, pode ter o seu conteúdo verificado pelo empregador, pois em jogo o seu direito de propriedade e presente “também a responsabilidade do empregador, perante terceiros, pelos atos de seus empregados em serviço (Código Civil, art. 932, III), bem como que está em xeque o direito à imagem do empregador, igualmente merecedor de tutela constitucional”. Assim decidiu o TST no caso-líder(938), em cuja ementa há remate elucidativo: [...] Pode o empregador monitorar e rastrear a atividade do empregado no ambiente de trabalho, em -e-mail- corporativo, isto é, checar suas mensagens, tanto do ponto de vista formal quanto sob o ângulo material ou de conteúdo. Não é ilícita a prova assim obtida, visando a demonstrar justa causa para a despedida decorrente do envio de material pornográfico a colega de trabalho. Inexistência de afronta ao art. 5º, incisos X, XII e LVI, da Constituição Federal [...]. Outro debate aceso que tomou a pauta do TST foi o que concernia ao direito de as instituições financeiras vasculharem o movimento em conta bancária de seus empregados para investigar possí- veis desvios de conduta. De um lado, o direito ao sigilo que se afina com o direito à privacidade e, de outro, a gestão bancária em que nem sempre o acesso às contas correntes se dá como violação do sigilo – titularizado também por empregados em bancos – mas também, e às vezes, por determina- ção da autoridade monetária, com alcance genérico, não restrito a empregados. Ante a necessidade de ponderar tais interesses, o TST afirmou a intangibilidade do direito ao sigilo da movimentação financeira, havida nas contas-correntes dos bancários, mas ressalvou a hipótese na qual o acesso às contas decorre de expediente genérico e legalmente autorizado(939). (935) Vide TST, 1ª Turma, RR 402-94.2012.5.09.0322, Rel. Min. Hugo Carlos Scheuermann, Publicação: 14/02/2014. (936) Vide TST, 2ª Turma, AIRR 163300-44.2009.5.01.0302, Rel. Min. Guilherme Caputo Bastos, Data de Publicação: 30/11/2012. (937) A esse propósito, anota Adriane Reis de Araújo: “O desenvolvimento da microeletrônica e dos meios de comunicação agrava o quadro ao fazer desaparecer as fronteiras da fábrica e permitir o alcance do trabalhador em qualquer parte do mundo, inclusive em seu ambiente doméstico, e vice-versa. Esse tipo de modulação do espaço e do tempo exige uma nova modulação do engajamento subjetivo, uma vez que a liberdade do trabalhador pressupõe um forte compromisso com a empresa, ou seja, ‘ele deve por si mesmo se obrigar a fazê-lo’ . E ele o faz, ainda que seja por medo do fantasma do desemprego estrutural” (ARAÚJO, Adriane Reis de. Assédio Moral Organizacional. Disponível em: http://www.tst.jus.br/documents/1295387/1312860/9.+Ass%C3%A9dio+moral+organizacional. Acesso em: 27/jan/2016). (938) TST, 1ª Turma, RR 61300-23.2000.5.10.0013, Rel. Min. João Oreste Dalazen, Publicação: 10/06/2005. (939) Nesse sentido: RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. DANO MORAL. EMPREGADO DE INSTITUI- ÇÃO BANCÁRIA. ACESSO À MOVIMENTAÇÃO FINANCEIRA SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. PROCEDIMENTO INDISTINTO ADOTADO PARA TODOS OS CORRENTISTAS DA INSTITUIÇÃO. Para a aferição da ocorrência de dano moral a empregado corren- tista de instituição financeira decorrente de quebra de sigilo bancário é necessário distinguir duas situações fáticas diversas. Se o acesso ocorre de forma indistinta em relação a todos os correntistas, para cumprir determinação legal inserta na Lei n. 9.613/98, art. 11, inciso II e § 2º, não há ilicitude a viabilizar a existência de dano moral. Nesse caso, a instituição age por dever legal e não se denota conduta de caráter fiscalizador ou punitivo dirigida apenas aos empregados. Conta com amparo no art. 5º, caput, da Constituição Federal. Todavia, se o acesso dirige-se apenas aos correntistas empregados da instituição bancária (ainda que por sindicância interna, com ampla defesa e sem divulgação a terceiros) existe ilicitude a justificar o reconhecimento de dano moral. Nesse último caso, o acesso apenas poderia ocorrer mediante autori- zação judicial, sendo vedado ao empregador valer-se da sua condição de detentor legítimo dos dados para acessá-los. A questão está afeta ao direito fundamental à privacidade e intimidade e ao dever de sigilo da instituição bancária, nos termos dos arts. 5º, X e XII, da Constituição Federal e 1º, 3º e 10 da LC/105/2001. No caso concreto, a Turma consignou que a verificação da conta corrente do reclamante ocorreu por determinação do Banco Central, em procedimento geral adotado indistintamente em relação a todos os correntistas, e não só ao empregado, peculiaridade que enquadra o caso na primeira hipótese, regida pela Lei n. 9.613/98, não se constatando ilícito a justificar a ocorrência de 338 – Augusto César Leite de Carvalho Matéria vexatória, que igualmente parece ganhar delineamento na jurisprudência que emana do TST, é aquela que concerne à revista pessoal e de pertences, a que são submetidos trabalhadores de todos os gêneros em alguns setores da atividade industrial ou comercial. A nosso ver, mas sem o espe- rado endosso jurisprudencial, qualquer revista que se realize na proteção do direito de propriedade é ilegítima e discriminatória – seria ilegítima porquanto visto que o direito de propriedade não oferece fundamento jurídico para o poder empregatício ou de comando, e seria também discriminatória, pois os empregadores, em regra e por razões óbvias, não submetem os seus clientes e fornecedores que igualmente transitam pelas suas dependências ao mesmo vexame de terem seus corpos e pertences revistados. O órgão máximo da Justiça do Trabalho traçou, porém, uma clara diferença entre a revista de pertences, que entende lícita quando é impessoal e moderada(940), e a revista da pessoa do trabalha- dor, que afirma ilícita: [...] INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. REVISTA ÍNTIMA. REVISTA PESSOAL (ÍNTIMA OU NÃO). A revista pessoal – íntima ou não -, viola a dignidade da pessoa humana e a intimidade do trabalhador, direitos fundamen- tais de primeira geração que, numa ponderação de valores, têm maior intensidade sobre os direitos de proprie- dade e de autonomia da vontade empresarial. Além disso, é evidente a opção axiológica adotada pelo constituinte de 1988 da primazia do SER sobre o TER; da pessoa sobre o patrimônio; do homem sobre a coisa. Configurado o direito à indenização por dano moral, decorrente da realização de revista íntima. Agravo de instrumento a que se nega provimento. [...] (TST, 7ª Turma, Ag-AIRR 1145-59.2010.5.09.0004, Rel. Min. Cláudio Mascarenhas Bran- dão, Pub.: 11/10/2013). Em rigor, o art. 373-A, VI, da CLT, agora com o reforço da Lei n. 13.271/2016, proíbe a revista íntima de empregadas mulheres por empregadores ou seus prepostos e o TST tem afirmado que a intimidade dos trabalhadores homens está igualmente protegida, ao menos no que tange à vedação de revista pessoal, conforme preconizam os nossos precedentes: RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI N. 11.496/2007. REVISTA ÍNTIMA. DANO MORAL. CONFIGU- RAÇÃO. 1.1. A CLT consagra o poder diretivo do empregador (art. 2º), que se manifesta por meio do controle, vigilância e fiscalização dos seus empregados. Tal poder encontra limites também legalmente traçados. Ninguém pode tudo. Os poderes de qualquer indivíduo, de qualquer instituição, para além do que trace o ordenamento, estão limitados não só pelo que podem os outros indivíduos e instituições, mas, ainda, pelo que, legitimamente, podem exigir na defesa de seus patrimônios jurídicos. 1.2. A Constituição da República (arts. 1º, inciso III, e 5º, -caput- e incisos III e X) tutela a privacidade e a honra, coibindo práticas que ofendam a dignidade da pessoa humana e constituam tratamento degradante. O art. 373-A, inciso VI, da CLT, por seu turno, traz vedação expressa à revista íntima – embora dirigido às mulheres empregadas, é passível de aplicação aos empregados em geral, em face do princípio da igualdade também assegurado pelo Texto Maior. 1.3. Ao assumir os riscos de seu empre- endimento (CLT, art. 2º), o empregador toma a si a obrigação de adotar providências que garantam a segurança dano moral. Recurso de embargos conhecido e não provido (TST, SBDI-1, E-ED-RR 82600-37.2009.5.03.0137, Rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho, Publicação: 15/02/2013). (940) Nesse sentido: EMBARGOS. RECURSO DE REVISTA CONHECIDO E PROVIDO. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. REVISTA MODERADA EM BOLSAS E SACOLAS. INVIABILIDADE DA CONDENAÇÃO POR PRESUNÇÃO DE CONSTRANGI- MENTO. A C. Turma reformou o entendimento do eg. Tribunal Regional que havia caracterizado como passível de indenização por dano moral o procedimento da reclamada em revistar seus empregados ao final de cada expediente, com exceção dos médicos e dos diretores, que tinham acesso por outra portaria para adentrar ou sair do estabelecimento. A revista de bolsas e sacolas daqueles que adentram no recinto empresarial não constitui, por si só, motivo a denotar constrangimento nem violação da intimidade da pessoa. Retrata, na realidade, o exer- cício pela empresa de legítimo exercício regular do direito à proteção de seu patrimônio, se ausente abuso desse direito, quando procedida a revista moderadamente, não há se falar em constrangimento ou em revista íntima e vexatória, a atacar a imagem ou a dignidade do empre- gado. Decisão da C. Turma mantida. Embargos não conhecidos (TST, SBDI-1, E-RR – 615854/1999, Min. Rel. Aloysio Corrêa da Veiga, DJU de 19/10/2007). Em igual direção: RECURSO DE EMBARGOS. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL – REVISTA IMPESSOAL E INDISCRIMINADA DE BOLSAS DOS EMPREGADOS. Esta Corte tem entendido reiteradamente que a inspeção de bolsas, sacolas e outros pertences de empregados, desde que realizada de maneira generalizada, sem que reste configurado qualquer ato que denote abuso de seu direito de zelar pelo próprio patrimônio, não é ilícita, pois não importa ofensa à intimidade, vida privada, honra ou imagem daqueles. No caso em apreço, a fiscalização da recorrente, como descrita no acórdão regional, não configura ato ilícito, uma vez que não era dirigida somente à autora, nem implicava contato físico de qualquer natureza, não sendo possível presumir-se qualquer dano moral dela decorrente. Precedentes desta Corte. Recurso de embargos conhecido e desprovido (TST, SBDI-1, E-RR 623800-40.2008.5.09.0652, Rel. Min. Renato de Lacerda Paiva, DEJT 21/09/2012). Ou ainda: DANO MORAL. REVISTA A PERTENCES DO EMPREGADO. ESVAZIAMENTO DE BOLSAS E SACOLAS DIANTE DE CÂMERAS FILMADORAS. IMPESSOALIDADE. AUSÊNCIA DE INTERVENÇÃO HUMANA 1. A revista visual em bolsas, sacolas e demais pertences do empregado, desde que efetuada de maneira impessoal e respeitosa, não acarreta dano moral. Precedentes da SbDI-1 do TST. 2. Não faz jus à indenização a tal título o empregado que, a exemplo dos demais, submetia-se à revista de seus pertences na entrada e na saída da sede da empresa, mediante a abertura e o esvaziamento das respectivas bolsas e sacolas diante de câmeras filmadoras. Checagem impessoal, sem qualquer intervenção humana, levada a cabo unicamente por meio de mecanismo de filma- gem. 3. Embargos de que se conhece, por divergência jurisprudencial, e a que se dá provimento (TST, SBDI-1, E-RR 1489-73.2010.5.19.0000, Relator Ministro João Oreste Dalazen, DEJT 08/11/2013). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 339 de seu patrimônio, iniciativa que encontrará larga resposta por parte da tecnologia moderna. 1.4. Não há nada e nenhuma norma que autorize o empregador ou seus prepostos a obrigar empregados ao desnudamento para revistas. 1.5. Não há revista íntima razoável. O ato em si constitui abuso de direito e, diante do regramento cons- titucional, é ilícito. O direito de propriedade não se estende a ponto de permitir ao empregador dispor da intimi- dade de seus empregados, submetendo-os, cruelmente, a humilhações, às quais se curvam pela necessidade de conservação do emprego. Não é razoável tolerar-se a recusa a valor tão básico, cuja reiteração, por certo, redunda em rigorosa modificação do espírito e em irrecusável sofrimento para o trabalhador. 1.6. Pergunta-se como reagiriam empregador, seus prepostos e, ainda, aqueles que sustentam tal comportamento, acaso subme- tidos a diárias revistas íntimas. Não se crê que, então, sustentassem-nas com tal vigor. 1.7. São inapreensíveis por outrem os direitos pessoais à preservação da dignidade, intimidade, privacidade e honra. 1.8. Infligindo dano moral, obriga-se o empregador à indenização correspondente (CF, art. 5º, V). Recurso de embargos conhecido e desprovido (TST, SBDI-1, E-ED-RR 90340-49.2007.5.05.0464, Relator Ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, DEJT 01/03/2013).(941) Tema correlato ao das revistas íntimas é o da barreira sanitária a que algumas empresas de processamento de carne sujeitam os empregados responsáveis pelo tratamento do produto animal. As empresas não o fazem, como nas revistas de pessoas e pertences, para proteger o seu patrimônio, mas sim para atender a normas de saúde pública que são, como não poderiam deixar de ser, impostas pelo Ministério da Agricultura e órgãos responsáveis pelo controle sanitário de alimentos. Quanto aos fatos e interesses jurídicos sob proteção, a única distinção sensível (e visível) é o mencionado cuidado no beneficiamento de produtos alimentícios (diferenciando-se da proteção à propriedade). Mas a questão, daí resultante, é a de saber se a empresa deve suportar o encargo de implantar uma barreira sanitária individual, evidentemente mais onerosa, ou lhe é facultado instituir uma barreira coletiva, com a evidente diminuição de custos. Tais alternativas não remetem a funda- mentos jurídicos, mas puramente econômicos, porquanto a barreira sanitária exigida pelas normas estatais não precisam ser coletivas – até porque os órgãos de controle sanitário dos alimentos são indiferentes a esse aspecto. Quanto ao mais, a exposição dos trabalhadores a outros de igual sexo, em roupas íntimas ou sem roupa alguma, nas barreiras sanitárias coletivas, evidentemente vulnera o direito à preservação da intimidade, nos mesmos moldes da jurisprudência já consolidada no âmbito do TST acerca da proi- bição de revistas de pessoas. Sem embargo, a jurisprudência ainda se mostra oscilante acerca de as barreiras sanitárias coletivas afetarem, ou não, o direito à proteção da intimidade(942). (941) No mesmo sentido: DANO MORAL. REVISTA ÍNTIMA 1. Caracteriza revista pessoal de controle e, portanto, ofende o direito à inti- midade e à dignidade do empregado a conduta do empregador que, excedendo os limites do poder diretivo e fiscalizador, impõe a realização de vistoria íntima consistente no apalpamento de partes do corpo do empregado – “toques na cintura”. 2. Embargos do Reclamante de que se conhece, por divergência jurisprudencial, e a que se dá provimento (TST, SBDI-1, E-RR 22800-62.2013.5.13.0007, Relator Ministro João Oreste Dalazen, DEJT 13/11/2015); RECURSO DE REVISTA. DANO MORAL. REVISTAS ÍNTIMAS. CONFIGURAÇÃO. 1. No caso dos autos, ficou demonstrada a exposição do reclamante a revistas íntimas, em situação atentatória aos seus direitos da personalidade, nota- damente pelo fato de que, a teor da prova testemunhal, o empregado era obrigado, caso o detector de metais acusasse, a tirar os sapatos e levantar a camisa, expondo parte do seu corpo, para a aferição de eventual furto de produtos da empresa. 2. Nessa toada, resta justificado o deferimento de indenização por danos morais. Incólume, portanto, o artigo 5º, X, da Lei n. Maior. Aplicação das Súmulas 296 e 337/TST. Recurso de revista não conhecido, no tema. [...] (TST, 1ª Turma, RR 2848100-56.2007.5.09.0014, Rel. Min. Hugo Carlos Scheuermann, Pub.: 22/11/2013). (942) No sentido de violar o direito à intimidade: [...] RECURSO DE REVISTA. DANO MORAL. CONSTRANGIMENTO DURANTE TROCA DE UNIFORME. CIRCULAÇÃO EM TRAJES ÍNTIMOS NO LOCAL DE TRABALHO. CONFIGURAÇÃO. [...] No acórdão regional ficou consignado que a autora era obrigada a circular seminua de um ponto do local de trabalho até outro onde vestia o uniforme. Entendeu a Corte a quo que o procedimento se fazia necessário para a preservação da segurança dos alimentos produzidos pela Empresa Reclamada dentro das normas de higiene. A empresa deve valer-se de métodos que não violem a intimidade e a dignidade de seus emprega- dos, como, por exemplo, jalecos esterilizados ou até mesmo descartáveis capazes de atender as normas de higiene, sem violar a intimidade e a dignidade de seus empregados. Não é razoável imaginar que não existam outras maneiras de garantir as condições de higiene neces- sárias à sua atividade sem ter que causar constrangimento para aqueles que diariamente submetem-se à exposição do corpo no ambiente de trabalho. Fere a dignidade da pessoa humana, assegurando indenização por dano moral, a exposição do corpo da autora no local de trabalho. Recurso de revista conhecido por violação do art. 5º, X, da CF e provido (TST, RR 1106-42.2012.5.18.0101, Rel. Min. Alexandre de Souza Agra Belmonte, Publicação: 13/09/2013). Em sentido contrário: RECURSO DE REVISTA. 1.BARREIRA SANITÁRIA. TROCA DE VESTIMENTA. DANOS MORAIS. NÃO CONFIGURAÇÃO. [...]. No caso, constou do laudo pericial que -o trabalhador ingressa no vestiário, retira as roupas, permanecendo apenas com as roupas íntimas, deixa as demais peças de roupas em armários individuais no setor ‘sujo’ e, então, dirige-se ao setor ‘limpo’, onde veste o uniforme. Já no setor limpo, o trabalhador dirige-se a um armário individual (aberto por senha) no qual está guardado seu uniforme. (-)- Pelo quadro fático entregue pelo Tribunal Regional, não se observa qualquer tipo de constrangimento ou de violação à honra e à imagem da trabalhadora. No caso, restou evidente que o procedimento adotado pela reclamada derivou da necessidade em se manter o máximo rigor com a higiene do ambiente de trabalho, notadamente por se tratar de empresa do ramo alimentício. Também há que se destacar que as exigências sanitárias eram dirigidas de forma generalizada a todos os funcionários que trabalhavam no setor e que havia a possibilidade das trabalhadoras usarem -top e shorts- durante o percurso até a colocação dos uniformes, 340 – Augusto César Leite de Carvalho O direito à privacidade esteve, por outro viés, em acentuada discussão quando algumas empresas deram ampla publicidade à remuneração recebida por seus empregados com o objetivo de neutralizar campanhas salariais baseadas na disseminação, em meio à sociedade, de que estariam defasados os salários pagos naquele setor da economia. As empresas pretendiam dissuadir os trabalhadores insur- retos ao divulgar os seus salários. Em um primeiro momento, a Justiça do Trabalho entendeu que a conduta patronal invadia a esfera de privacidade assegurada aos trabalhadores, mas em seguida ponde- rou um aspecto intrigante: as empresas que assim agiram compunham a administração pública indireta e, nesse caso, a transparência (inclusive dos salários pagos aos empregados públicos) é um mecanismo de efetivação do princípio constitucional da publicidade, não se podendo cogitar de citados salários como um fragmento da realidade cujo conhecimento seja reservado apenas ao trabalhador assalariado(943). Outra quizila jurídica que tomou a pauta da Justiça do Trabalho teve a ver com o fato de empresas estarem obrigando seus empregados ao uso de fardamentos que continham várias logomarcas de seus fornecedores, ou o nome dos produtos em mercancia, transformando os trabalhadores, segundo eles próprios argumentaram muitas vezes, em outdoors ambulantes. A alguns juízes, inclusive a nós em um primeiro instante, pareceu que haveria um caso curioso no qual o uso não autorizado da imagem deveria ser vetado, quiçá por ações judiciais inibitórias que visassem impedir o uso da expres- são corporal dos trabalhadores sem sua prévia permissão, mas, conforme ponderávamos, a adversi- dade enfrentada pelos empregados não seria de monta a ponto de se cogitar um valor para reparar o dano moral(944). A SBDI-1 foi além e decidiu, em processos sob seu exame, que “cabe ao empregador [...] responsabilizar-se pelo ilícito praticado em face de direito personalíssimo dos empregados, daí defluindo a respectiva obrigação de reparar o dano moral causado pelo uso indevido da imagem”(945). conforme demostra a prova oral constante da r. sentença. Também, não trata o caso de “damnum in re ipsa“ [...] (TST, 5ª Turma, RR 2114- 51.2012.5.18.0102, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, Publicação: 19/12/2013). (943) Nesse sentido: RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. APPA. DIVULGAÇÃO NOMINAL DA REMUNE- RAÇÃO DOS EMPREGADOS. DANO MORAL. NÃO OCORRÊNCIA. Controvérsia acerca da configuração de dano moral diante da divulgação nominal da remuneração dos empregados pelo empregador público. De acordo com o entendimento do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles, vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado nem do conjunto da sociedade. 2. Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo ‘nessa qualidade’ (§6º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. 3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado. O ‘como’ se administra a coisa pública a preponderar sobre o ‘quem’ administra – falaria Norberto Bobbio -, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública- (SS 3902 AgR-segundo – SP, Relator: Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, publicação: DJe 189, de 3/10/2011). Diante desse contexto, rechaça-se a tese de ocorrência de dano moral. Revisão de posicionamento anteriormente adotado, em razão do entendimento da Corte Suprema e sobretudo pela densidade de seus fundamentos. E, ainda, pelo fato de que, em julgamentos precedentes, havia indícios de que a divulgação decorrera de ato de retaliação patronal. Recurso de embargos conhecido e não provido (TST, SBDI-1, E-RR 336000-02.2008.5.09.0411, Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, DEJT 05/04/2013). (944) [...] RECURSO DE REVISTA. UNIFORME COM LOGOTIPOS DE FORNECEDORES DO RECLAMADO. DANO À IMAGEM. AUSÊNCIA DE ATO ILÍCITO DO EMPREGADOR. Não está o empregador autorizado, na conta da subordinação, a usar, do empregado, o corpo ou sua projeção social – se o faz, expõe -se ao dever de reparação civil. Mas o dano moral resultante do uso indevido da imagem não é daqueles que se verificam in re ipsa, dado que a apresentação do corpo humano ou de suas possíveis manifestações no mundo sensível, a sua aparição em público ou mesmo midiática nem sempre se sujeitam a absoluto controle de quem circunstancialmente promove essa divul- gação. A utilização de indumentária com apelo ou fins comerciais, imposta pelo empregador ao empregado, pode ser vedada pelo Poder Judiciário mesmo quando essa conduta patronal não se mostrar lesiva à honra, à boa fama ou a respeitabilidade. Contudo, se tal lesividade se der, agrega-se ao interdito o direito à reparação. Com a cautela de estabelecer a premissa acerca de não se inserir no âmbito do poder diretivo a ação patronal de impor aos seus empregados a utilização de uniforme com propaganda de mercadorias comercializadas em seu estabelecimento, admite-se a ausência de lesividade da conduta examinada no caso concreto, exonerando-se o empregador da indenização que, por judiciosos fundamentos, foi-lhe imposta pela instância ordinária. Recurso de revista conhecido e provido (TST, 6ª Turma, RR 2353- 15.2010.5.01.0000 , Relator Ministro: Augusto César Leite de Carvalho, Publicação: 24/06/2011). (945) Vide TST, SBDI-1, E-RR 40540-81.2006.5.01.0049, Redator Min João Oreste Dalazen, Publicação: 26/04/2013 e TST, SBDI-1, E-RR 19-66.2012.5.03.0037, Rel. Min. Renato de Lacerda Paiva, Publicação: 18/10/2013. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 341 11.6 Assédio moral no ambiente de trabalho A CLT não conceitua o assédio moral, nem o regula expressamente. Mas são incontáveis os processos judiciais nos quais se proferem condenações, pela Justiça do Trabalho, envolvendo a tutela inibitória de conduta assim caracterizada, a resolução do contrato por culpa do empregador ou a repa- ração por dano moral, em decorrência de se acolher a alegação, normalmente de empregados, acerca de serem eles vítimas de assédio moral. Embora sejam muitas as possibilidades de o empregador causar a seus empregados dano sem repercussão econômica, ou dano extrapatrimonial, há uma prática empresarial que se distingue entre as tantas causas geradoras desse tipo de dano. Referimo-nos, como se pode notar, ao assédio moral, que em outros países é conhecido como harassment, mobbing, bullying, acoso moral, bossing, ijime etc. O art. 29º.1 do Código de Trabalho de Portugal assim o define: Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador. Não se trata de uma conduta grosseira mas particularizada, ou de um ato solitário de violência contra o empregado, ou mesmo da espoliação em dado momento da sua força de trabalho. Sem embargo de tais hostilidades gerarem igualmente danos extrapatrimoniais, na caracterização do assédio moral é dado relevante a inserção da conduta abusiva na rotina da empresa, vale dizer: o assédio moral é conduta abusiva, reiterada e insidiosa que contamina o bem-estar do ambiente laboral – ou melhor, a “saúde ambiental”(946). Não à toa parte da doutrina prefere denominá-lo “terror psicológico”, atenta ao aspecto de o assédio moral minar a resignação do assediado, submetendo-o à prova de quanto ele suporta além dos limites que seriam razoáveis no seio de uma relação assimétrica de trabalho. Marie-France Hirigoyen, citada por Adriane Reis de Araújo e por muitos como a psicóloga francesa que teria despertado os estudiosos do trabalho humano para o tema, assim descreve o assédio moral: [...] qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho(947). O que impressiona, no assédio moral, não é a natureza dos atos isolados que o compõem, inclu- sive porque tais atos podem ter, isoladamente, a aparência de serem atos inofensivos ou de menor lesividade. O que os diferencia é a nocividade do conjunto de ações semelhantes e repetidas com o propósito de contagiar as relações que se desenvolvem no âmbito da empresa, seja para tornar insustentável o vínculo de trabalho na perspectiva de trabalhadores dos quais o empregador pretende desvincular-se(948), seja para estimular vantagens comparativas entre empregados além do que media- namente se poderia exigir(949), seja enfim por qualquer outra razão desdenhosa da dignidade da pessoa (946) Após lembrar que o conceito de “saúde” não se coaduna mais com a “ausência de doença”, conforme diretrizes da OMS incorporadas pelo Sistema Único de Saúde no Brasil, Samantha Lemos Turte aponta o assédio moral como tema relacionado à “saúde ambiental”: “Ainda é difícil encontrar referências que tratem da promoção da saúde mental indo além dos transtornos mentais graves e incapacitantes. Tal fato impossibilita que a saúde mental no trabalho seja abordada de forma ampla, considerando não só a possibilidade de adoecer, mas também que a saúde psicológica compõe-se de satisfação, reconhecimento e apoio social em todos os âmbitos da vida, com destaque aqui para o trabalho” (TURTE, Samantha Lemos. Violência Psicológica e Assédio Moral no Trabalho: percepção e estratégias de enfrentamento de adolescentes trabalhadores. Dissertação apresentada em Mestrado em Saúde Pública na USP Faculdade de Saúde Pública. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6134/tde-29012012-170212/pt-br.php. Acesso em: 8/jan/2016). (947) HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. Tradução de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, p. 17. A autora é citada, entre muitos, por ARAÚJO, Adriane Reis. Marie-France Hirigoyen, invariavelmente citada como a psicóloga francesa que teria despertado os estudiosos do trabalho humano para o tema, assim descreve o assédio moral: (948) Fernanda de Carvalho Soares e Bento Herculano Duarte observam, com pertinência, que “o mobbing pode ocorrer, por exemplo, excluindo-se a vítima do grupo, passando a ser discriminada, hostilizada, inferiorizada, satirizada, ou ainda submetida a pequenos ataques, que, aos poucos, vão destruindo a autoestima, a dignidade e saúde do trabalhador. Há a intenção de maltratar, desprezar, humilhar, desqua- lificar a vítima, muitas vezes com o intuito de forçá-la a pedir demissão para “enxugar” o quadro de pessoal e diminuir os custos sem ter que pagar as respectivas verbas rescisórias. É uma conduta perversa, a qual desestabiliza a vítima, por meio de uma dominação psicológica por parte do coator, que age reiterada e intencionalmente” (SOARES, Fernanda de Carvalho; DUARTE, Bento Herculano. O Assédio Moral no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Disponível em: http://www.editoraforum.com.br/ef/wp-content/uploads/2014/06/O-assedio-moral-no- -ordenamento-juridico-brasileiro.pdf. Acesso em: 8/jan/2016). (949) Sobre o assédio moral estar relacionado à exigência de metas: SALVADOR, Luiz. Assédio Moral: ferramenta utilizada para o aumento da produtividade. Disponível em: http://ar.vlex.com/vid/assedio-ferramenta-utilizada-produtividade-80160565. Acesso em: 8/jan/2016. 342 – Augusto César Leite de Carvalho humana ou destoante do dever de lealdade que deve motivar os atores nos negócios jurídicos que virtualmente protagonizem. É o que explica Hirigoyen: O assédio nasce como algo inofensivo e propaga-se insidiosamente. Em um primeiro momento, as pessoas envolvidas não querem mostrar-se ofendidas e levam na brincadeira desavenças e maus-tratos. Em seguida esses ataques vão se multiplicando e a vítima é seguidamente acuada, posta em situação de inferioridade, submetida a manobras hostis e degradantes durante um período maior(950). Pode-se afirmar que o assédio moral, pela sua aptidão para deteriorar as relações de trabalho, tem raízes no regime escravocrata(951), porque remete a um tempo de descaso – inclusive da ordem jurídica – à dignidade da pessoa humana; por outro ângulo, o assédio moral exemplifica, no ambiente de trabalho, um fenômeno ilustrativo de conduta infringente do princípio da boa-fé objetiva. Logo, o assédio moral é ofensivo à ordem jurídica laboral em ambas as suas vertentes de inspiração: à primeira vista, viola o ordenamento no tocante aos valores existenciais e coexistenciais, relacionados à tutela emancipatória da pessoa humana e ao direito de trabalhar em ambiente harmonioso ou ecologi- camente equilibrado; ao mesmo tempo, vulnera, no âmbito das regras de índole puramente contratual, aquelas regras que exigem, no cumprimento dos negócios jurídicos, condutas afinadas com as causas típicas e lícitas dos atos bilaterais, sob pena de ferir-se o equilíbrio das prestações contrapostas – equi- líbrio contratual que é característico dos contratos comutativos e é conotativo de respeito ao postulado da lealdade e à função social dos contratos. Mas daí não se conclui que apenas o empregador pode praticar assédio moral. A doutrina identi- fica também o assédio moral horizontal, que é cometido por empregado, ou empregados, em relação a algum deles que estaria a ocupar nível hierárquico semelhante, assim se agindo com o objetivo de constranger, por qualquer motivo, o trabalhador assediado, ou discriminá-lo em razão de cor, opção sexual, crença etc. E mesmo o assédio vertical pode ser descendente ou ascendente, pois é possível que empregados se unam com o objetivo de desautorizar o superior hierárquico, seja para testar-lhe, por exemplo, a firmeza na condução dos negócios empresariais, seja para provocar, por qualquer razão, a mudança de chefia. A atitude concertada dos trabalhadores vulnera, por igual, o princípio da lealdade. Pune-se, nesse caso, tanto os trabalhadores que promoveram o assédio contra colega de trabalho quanto o emprega- dor que foi omisso em seu dever de prevenir a desarmonia no habitat laboral, negligenciando a obri- gação de fiscalizá-lo e admoestar ou aplicar sanções disciplinares contra empregados que assediam seus iguais, se inevitável mediante a segregação definitiva deles. Em suma, o assédio moral pressupõe a abusividade, a reiteração e a forma insidiosa da conduta patronal ou obreira. Se falta algum desses pressupostos, tem-se eventualmente uma conduta causa- dora de dano extrapatrimonial (ou, como às vezes se prefere, dano moral), mas não interessa ao Direito, nessa circunstância, classificar tal conduta como assédio moral. É que a configuração do assé- dio moral só ganha relevância na medida em que requalifica o comportamento lícito ou insignificante em sua ocorrência isolada, para o converter, ao relacioná-lo com outros atos semelhantes e coordena- dos, em comportamento denotativo de assédio moral. A conduta empresarial, cuja repetição com o propósito de perturbação do ambiente laboral denun- cia o assédio, é de grande variedade. Repercutindo a rica experiência jurídica que promana da juris- prudência regional, o Tribunal Superior do Trabalho tem diagnosticado assédio moral, por exemplo, em casos nos quais o empregado é tratado seguidas vezes de forma desrespeitosa(952), quando há a cobrança de metas por meio depreciativo ou vexatório(953), quando o não atingimento das metas esta- belecidas é punido mediante a ridicularização do empregado frente aos seus colegas e superiores(954), quando o professor sofre consecutivas reduções salariais sem clara justificativa para a redução de sua (950) Apud Silva e Neto, em artigo eletrônico citado. (951) À herança escravagista se reportam, por exemplo: AGUIAR, Maria Rita Manzarra Garcia de. Assédio Moral: problema antigo, inte- resse recente. Disponível em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/23981/public/23981-23983-1-PB.pdf. Acesso em: 8/jan/2016 e Manoel Jorge e Silva Neto, em artigo eletrônico citado. (952) Vide TST, 3ª Turma, RR 453400-46.2008.5.09.0020, Rel. Min. Alberto Bresciani de Fontan Pereira, DEJT 08/04/2011. (953) Vide TST, 6ª Turma, AIRR 141240-20.2006.5.15.0132, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, DEJT 06/05/2011. (954) Vide TST, RR 88440-91.2006.5.08.0008, Rel. Min. Horácio Raymundo de Senna Pires, DEJT 15/10/2010. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 343 carga horária(955), também quando se verifica a revista íntima e pessoal, inclusive com apalpação, de empregado(956). Noutros processos(957), a Justiça do Trabalho detectou a existência de assédio moral organizacio- nal ou institucional, quando então as ações aviltantes são adotadas pelo empregador como método de gestão empresarial. Nessa modalidade de assédio moral, sequer é exigível, para a sua configura- ção, que o agente tenha a intenção de degradar o ambiente de trabalho ou constranger determinado trabalhador, pois “se pauta na escolha da instituição em utilizá-lo, explícita ou implicitamente, como estratégia de gestão, com vistas à redução de custos, ao estímulo à produtividade, ao controle dos empregados, bem como à exclusão de trabalhadores que a empresa não deseja manter em seus quadros, como acidentados, lesionados e gestantes”(958). Havendo o assédio moral, cada um dos trabalhadores assediados pode pleitear a resolução do contrato por justa causa e a reparação pelo dano extrapatrimonial que estaria a sofrer, mas é reco- mendável que a intervenção judicial não siga apenas esse viés de monetização do ato lesivo já consu- mado, sendo provocado o juízo para, antes disso, prestar tutela jurisdicional que implique a cessação da ilicitude e a adoção de medidas que inibam sua continuação. 11.7 Reparação pelo dano extrapatrimonial ambientado no lugar de trabalho – funções de ressarcimento, dissuasão e punição – critérios de valoração O dano extrapatrimonial – ou, como tantos preferem, o dano moral – é aquele que não atinge o patrimônio material do ofendido, posto o perturbe gravemente quanto a interesses ou valores sem conteúdo econômico, afetos aos direitos imanentes à condição humana ou indispensáveis ao desen- volvimento de sua personalidade. O dano extrapatrimonial não seria a dor, a angústia ou a vexação, embora nesses sentimentos se revele – é como a doença que não se confunde com os seus sintomas, ou a efeméride que também se distingue da alegria que ela proporciona. O empregado sempre pôde, ao menos desde quando a ordem jurídica passou a tutelar com maior ênfase os direitos da personalidade, pedir a indenização por danos morais sem indicar, desde logo, o valor que bastaria à reparação. Deixava-o, quase invariavelmente, à discricionariedade do juiz. É certo, porém, que o Código de Processo Civil editado em 2015, por meio de seu art. 292,V, inclui entre os requi- sitos da petição inicial a exigência de que o autor indique o valor pretendido por meio da ação reparatória. Ao arbitrar o valor (limitado, ou não, pela petição inicial), o juiz deve considerar a extensão do dano, segundo o disposto no art. 944 do Código Civil. Muitas laudas se têm escrito para sustentar-se que tal dispositivo impede se possam vislumbrar efeitos punitivos ou dissuasórios na atribuição judicial de valor para o dano a ser ressarcido, pois a lei teria, como visto, fixado um critério objetivo (a extensão do dano) como parâmetro exclusivo e excludente de quaisquer outros. Temos respeitosa ressalva à doutrina assim restritiva. A primeira razão de nossa ressalva é a impropriedade de se pretender dimensionar o dano extrapatrimonial, dado que têm extensibilidade apenas os danos materiais ou revestidos de conte- údo econômico, em relação aos quais é possível aferir o tamanho do prejuízo suportado pela vítima. A dor, o constrangimento, o horror, a saudade incontida ou a aflição são consectários de um dano que não se expressa em latitude, ou profundidade, e ainda assim gera, como é cediço, o direito à reparação. O que dizer, a propósito, do dano moral coletivo, que em ações metaindividuais é assegurado porque “também a comunidade, por ser um conjunto de indivíduos, tem uma dimensão ética”, ou seja, porque a conduta do ofensor causa repulsa social, dispersa entre pessoas que não se medem pela quantidade, senão pelo caráter? É evidente que a extensibilidade longe está de ser uma característica dos danos morais individuais ou coletivos. (955) Vide TST, AIRR 4897-73.2010.5.01.000, Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, DEJT 19/04/2011. (956) Vide TST, AIRR 4106-66.2010.5.06.0000, Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, DEJT 08/04/2011. (957) Vide TST, 4ª Turma, RR 215400-03.2009.5.15.0070, Rel. Min. Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT 26/10/2012. (958) DIAS, Valéria de Oliveira. “O Conteúdo Essencial do Direito Fundamental à Integridade Psíquica no Meio Ambiente de Trabalho na Perspectiva do Assédio Moral Organizacional”. In: Direito Constitucional do Trabalho: princípios e jurisdição constitucional do TST. Coor- denação de Gabriela Neves Delgado et alii. São Paulo: LTr, 2013. p. 193. Também sobre assédio moral organizacional, ver artigo (op. cit.) de Adriane Reis de Araújo. 344 – Augusto César Leite de Carvalho Uma segunda razão para recusar a construção exegética que limita à compensação econômica, tal por qual, o direito à reparação por danos extrapatrimoniais é a insensatez de se prevenir o empre- sário, virtual ofensor, anunciando-lhe o exato valor a onerá-lo na hipótese de ele vulnerar um direito inerente à personalidade do empregado que está sob seu jugo. É certo que uma solução hermenêutica de tal ordem teria aptidão para converter a ofensa moral em uma relação custo-benefício. Dissertando sobre a visão utilitarista que grassa em outras plagas, Michael Sandel(959) rememora o case Ford Pinto, envolvendo um veículo que nos anos setenta explodia quando surpreendido por colisão em sua traseira, gerando indenizações por morte (180 por ano, a 200 mil dólares per capita) e queimaduras (mais 180 por ano, 67 mil dólares por queimado) as quais somavam quantia menor que a estimada para corrigir, ao custo de (apenas!) 11 dólares por carro, o defeito abrasador previsto para ocorrer em 12,5 milhões de veículos a serem produzidos. Em dado momento, um júri responsável por tal julga- mento elevou significativamente a indenização, dando vez à compreensão, comum entre as cortes judiciais estadunidenses, de que o valor assim arbitrado deve dissuadir e punir (punitive damages), pois do contrário o dano gerará lucro para quem o causa. A terceira razão para não prestigiar o modelo interpretativo que extrai do art. 944 do Código Civil a possibilidade de adotar-se somente critério objetivo (a extensão do dano) na atribuição de valor ao dano extrapatrimonial é a ululante dificuldade de conciliar esse critério com a prescrição contida no parágrafo único do mesmo dispositivo: “Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização”. Também o art. 945 do Código Civil estatui que “se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano”. Quisesse o legislador abstrair por completo de critérios subjetivos e não atrelaria o valor do dano moral à contri- buição do ofensor, ao grau de sua diligência ou incúria, bem assim à culpa concorrente da vítima, no método de arbitramento. A culpa do ofensor ou da vítima não guarda relação com a extensão do dano, ainda que extensível fosse o dano extrapatrimonial. Por derradeiro, a abertura do sistema normativo a elementos não mensuráveis com régua e compasso, como se pretendeu demonstrar (insiste-se, aqui, na ideia da não extensibilidade do dano extrapatrimonial), autoriza a aplicação supletiva de outros ordenamentos jurídicos que consagram, entre povos imbuídos do mesmo intuito civilizatório, os efeitos dissuasório e punitivo para a indeniza- ção por dano moral. A menos que se queira neutralizar ou esvaziar a sanção, que integra a norma e a qualifica como norma jurídica. O art. 8º da CLT é expresso ao internalizar, como fontes secundárias do direito do trabalho, as prescrições do direito comparado. A bem dizer, a parte deve estar atenta ao aspecto de a atribuição de valor para o dano extrapa- trimonial exigir um raciocínio transitivo de proporcionalidade, ou seja, a quantia a ser fixada haverá de ser proporcional a algo (à intensidade da dor ou do constrangimento que resultaram do evento danoso, à previsível nocividade ou mesmo letalidade da condição laboral que o causou, à possível ausência de sustentabilidade no ambiente de trabalho, à culpa da empresa e virtualmente da vítima, à transcendência do sofrimento em relação à família e ao corpo social etc.). Por sua vez, o juiz, ao arbitrar a quantia correspondente ao dano extrapatrimonial, deve valer-se da equidade, atentando para a necessidade de compatibilizá-la com as condições econômicas do empregador (referimo-nos sobremodo ao interesse coletivo de que a empresa subsista, em sua atua- ção saudável, após a condenação judicial) e, especialmente, com os propósitos profilático e repressor de sua atuação jurisdicional. Não é tarefa fácil, nem está o juiz brasileiro acostumado a decidir sem um padrão legal ou aritmético preestabelecido, que lhe aquiete o espírito e o intelecto. (959) SANDEL, Michael J. Justiça – O Que é Fazer a Coisa Certa. Tradução de Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 45. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 345 CAPÍTULO XII PERSPECTIVA CONTRATUAL DA RELAÇÃO DE EMPREGO 12.1 A índole (também) patrimonialista da regência laboral No capítulo anterior, ressaltamos a contribuição da Constituição brasileira de 1988 e da ordem jurídica que a ela sobreveio quanto ao propósito de conferir à relação de emprego um conteúdo mais afinado com o catálogo de direitos fundamentais e de direitos da personalidade exigíveis em todos os ambientes de convivência humana, natural e juridicamente vocacionados a configurar-se como biomas ecologicamente equilibrados. Por sua vez, o contrato é a categoria jurídica que permite, a partir de um ajuste entre interesses e vontades de pessoas ou entes diferentes, a permuta entre bens da vida revestidos de conteúdo patrimo- nial. Regra geral, o contrato não serve ao intercâmbio entre direitos desvestidos de conteúdo econômico como a identidade, a honra, a imagem, a liberdade, a vida. A relação de emprego não se descola inteiramente de sua origem contratual, assim sucedendo ao menos por três razões: a) a teoria dos contratos oferece conceitos e regras, historicamente construí- dos, que são vinculativos de efeitos jurídicos relevantes; b) a regência dos contratos sofreu igualmente a influência dos postulados da eticidade e da socialidade de modo a sintonizá-la com as expectativas de boa-fé e de função social próprias a uma visão humanitária das relações interpessoais ou coletivas; c) o núcleo contratual, ao revelar a ascética troca entre trabalho e salário, apresenta um nicho de interesses contrapostos cujas projeções econômicas devem manter-se em constante equilíbrio (ou em justo grau de assimetria)(960), independentemente da incidência de direitos imateriais. Essas são razões suficientes, ao que nos parece, para que não descuidemos da perspectiva contratual do liame empregatício. Dela cuidaremos nos subitens seguintes. 12.2 Natureza jurídica da relação de emprego No âmbito do direito civil, as fontes de relação jurídica(961), ou seja, da obrigação, são a lei, os atos jurídicos – unilaterais ou bilaterais – e o ato ilícito. Há autores que acrescentam a essas fontes o risco profissional, que obrigaria o empregador, com ou sem culpa, a ressarcir os danos padecidos pelo empregado, por ocasião do trabalho. Arnoldo Wald(962) redarguia, faz algum tempo, essa orientação, ao argumento de “que se trata de obrigação estabelecida pela lei, em que o risco profissional é apenas o fundamento sociológico da obrigação”.(963) (960) Nesse sentido: SANTOS FERNÁNDEZ, Maria Dolores. El Contrato de Trabajo como Límite al Poder del Empresario. Tradução livre. Albacete: Editorial Bomarzo, 2005. p. 73. (961) Com a intenção de conceituar relação jurídica, Orlando Gomes observa que pode ser ela encarada em dois aspectos: como o vínculo entre dois ou mais sujeitos de direito que obriga um deles, ou os dois, a ter certo comportamento, ou, simplesmente, o poder direto de uma pessoa sobre uma determinada coisa; ou como o conjunto dos efeitos jurídicos que nascem de sua constituição, consistentes em direitos e deveres – com estes, entretanto, não se confundindo. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 81. (962) WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979. p. 48. (963) A bem da verdade, esse dilema vivenciado pelos civilistas, no momento em que devem classificar uma relação jurídica segundo a sua fonte, é tanto de matiz sociológico quanto afeto a aporias da linguagem. A preocupação inicial da sociologia jurídica é, quase sempre, a de identificar as relações sociais como a causa do direito, ao suposto de que ao descrever aquelas indica a origem deste. Não raro, escapa aos sociólogos que eles, num paradoxo, descrevem as relações sociais usando o discurso do direito. O sociólogo, como o jurista, trata das relações mercantis e a elas se refere como obrigações originadas em contratos. O termo “contrato” veicula a ideia de “ajuste de vontades” e a impressão de que o mundo exterior não comporta relações sociais de outra natureza. Nesse sentido: CORREAS, Oscar. Crítica da ideo- logia jurídica: ensaio sóciosemiológico. Tradução de Roberto Bueno. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1995. p. 223. Correas diz isso e completa: “A Sociologia mais plausível postula que seu objeto de estudo é a ação com sentido (Weber, notoriamente), ou que é a exposição das relações sociais que não aparecem (Marx, notoriamente). Em ambos os casos, estamos ante pretensões científicas que tentam ir além dessa vulgaridade que, às vezes, é confundida com o melhor positivismo. A Sociologia que tem por tarefa construir, em discursos plausí- veis, a descrição do substratum chamado ‘relações sociais’ é uma sociologia que vale a pena praticar. Mas isto significa, ao mesmo tempo, a desconstrução do discurso vulgar ou cotidiano que descreve a aparência das relações sociais. O que aparece no direito como descrição apenas diz respeito a esta forma de aparecer das relações sociais à consciência comum, que se fosse verdadeira tornaria desnecessária a ciên- 346 – Augusto César Leite de Carvalho 12.2.1 As teorias anticontratualistas Seria o ajuste de vontades o motor inicial do vínculo de emprego? Já vimos a dificuldade de se conceber o momento em que empregado e empregador combinariam as condições do contrato, tanto pela debilidade daquele quanto pela despersonalização deste. São duas as principais manifestações do pensamento anticontratualista: a teoria da relação de trabalho e o institucionalismo. 12.2.1.1 A teoria da relação de trabalho Conforme Mascaro Nascimento(964), aos relacionistas se integram todos os teóricos do direito do trabalho que negam a importância da vontade na constituição e no desenvolvimento da relação laboral, preferindo “entender que a prática de atos de emprego verificada no mundo físico e real é a fonte da qual resultam todos os efeitos previstos na ordem jurídica e que recairão imperativamente sobre os sujeitos empregados. Daí substituírem a ideia de convenção ou acordo pela de inserção, engajamento ou ocupação de trabalhador pela empresa, querendo com isso expressar que não existe ato volitivo criador de direitos e obrigações, mas sim um fato objetivo e independente de qualquer manifestação subjetiva, na constituição da relação jurídica trabalhista”. Entre os relacionistas enumerados por Amauri Mascaro Nascimento(965) está Mario de la Cueva, cuja teoria do contrato-realidade será analisada à parte, dada a sua influência na evolução do direito do trabalho no Brasil. Segundo Nascimento, essa parcial conversão ao contratualismo do laboralista mexicano teria acontecido após ele admitir que “a ocorrência da vontade do trabalhador é necessária para a relação de trabalho, porque ninguém poderá ser obrigado a prestar trabalhos pessoais sem o seu pleno consentimento”. 12.2.1.2 A teoria institucionalista Enquanto a teoria da relação de trabalho grassava mais fortemente entre os italianos e alemães, o institucionalismo se desenvolvia na França. Afirma Mascaro Nascimento, com apoio em Maurice Harriou, que a instituição é “uma ideia de obra ou de empreendimento que se realiza e dura juridica- mente em um grupo social. Para a realização dessa ideia, um poder se organiza. De outro lado, entre os membros do grupo social interessado na realização dessa ideia, têm lugar manifestações de comu- nhão dirigidas pelos órgãos do poder e reguladas por um procedimento”. O mestre paulista se reporta à observação do jusnaturalista George Renard de que existem ativi- dades jurídicas irredutíveis às manifestações de direito individual, ao contrato e aos mandatos do Estado: as instituições e as fundações. Enfim, esclarece Mascaro Nascimento de que modo o institu- cionalismo pressupõe a adesão a um grupo social, caracterizado por hierarquia (autoridade, em vez da igualdade inerente aos contratos) e estatuto próprios, como a fonte da obrigação trabalhista. Assim, aplicado ao direito do trabalho, o institucionalismo procura dar explicação à empresa como instituição, uma ideia-ação reunindo, por uma razão imanente ao grupo, empregado e empregador. O pressuposto dessa união não está na autonomia da vontade contratual, porque à obra a que se propõe a empresa, perpetuada e durável, aderem os membros desse organismo social, surgindo uma relação entre o indivíduo e um estado social objetivo no qual o indivíduo está incluído. O empregado, à luz do institucionalismo, submete-se a uma situação fundamentalmente esta- tutária, sujeitando-se às condições de trabalho previamente estabelecidas por um complexo norma- tivo constituído pelas convenções coletivas, pelos regulamentos das empresas etc. Ao ingressar na empresa, nada cria ou constitui, apenas se sujeita. cia. Contudo, a Sociologia não pode prescindir do discurso descritivo da aparência porque este discurso é a descrição das relações sociais tal qual estas aparecem. Esta é a forma de aparição do substratum. O sociólogo, portanto, não pode falar de relações mercantis sem partir da forma como elas aparecem, isto é, juridicamente, como contratos. Não é possível identificar uma ação qualificável de intercâmbio sem referir-se a uma conduta que se denomina contrato”. (964) NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 351. (965) Op. cit. p. 351-353. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 347 12.2.2 As teorias contratualistas É certo, porém, que o direito contemporâneo não exige a interferência direta de ambos os polos da relação jurídica na definição do conteúdo das cláusulas obrigacionais para só então classificar tal relação como contratual. A ordem jurídica prevê a existência de contratos de adesão, nos quais uma das partes aquiesce às condições preordenadas pela outra, e há inclusive quem sustente que mesmo em contratos de compra e venda, supostamente paritários, a autonomia da vontade não é suficiente para que os contraentes preestabeleçam o valor das prestações(966). Além disso, observa Amauri Mascaro Nascimento: Gradativamente, a determinação das condições de trabalho, que no liberalismo resultava unicamente da vontade das partes, passou a subordinar-se às convenções coletivas, às leis e aos regulamentos. Para fazer justiça nos casos concretos, surgiu a necessidade de pronunciamentos jurisdicionais considerando a validez do contrato como desnecessária em alguns casos para a aplicação das leis operárias, como nos casos de incapacidade e de nuli- dade. A vontade [...] nem sempre foi reconhecida como necessária e, mais ainda, existente, na constituição da relação jurídica entre empregado e empregador, bastando a prática, no mundo físico e real, de atos de emprego de alguém em benefício de outrem para que todas as responsabilidades previstas nas normas jurídicas passassem a recair sobre este último e todos os direitos assegurados ao primeiro(967). Os teóricos do direito logo perceberam que a tentativa de classificar a fonte da obrigação traba- lhista não poderia redundar em esforço intelectual que concluísse ter a relação de emprego origem em lei ou ato ilícito. Seguindo a classificação civilista, a natureza da relação de trabalho, a ser desvendada, seria, pois, contratual. Teve início, porém, intensa tertúlia a propósito de qual o tipo de contrato, entre os contratos conhecidos, no qual se poderia enquadrar o contrato de emprego. De La Cueva(968) refez a estrada trilhada pelos teóricos do direito civil, que tentaram subsumir o contrato de emprego – suponha-se, logo e para efeito de argumentação, a natureza contratual da relação de trabalho – nos escaninhos do contrato de arrendamento ou de locação, em seguida o clas- sificando como compra e venda, contrato de sociedade e mandato. 12.2.2.1 Teoria do contrato de locação Defendeu Marcel Planiol que o contrato de emprego era, tal como sugeria o direito romano e o Código Civil outorgado por Napoleão, um contrato de locação, ao argumento de que “a coisa arrendada é a força de trabalho que reside em cada pessoa e que pode ser utilizada por outra como a de uma máquina ou a de um cavalo; dita força pode ser dada em arrendamento e é precisamente o que ocorre quanto a remuneração do trabalho por meio do salário é proporcional ao tempo, da mesma maneira que passa no arrendamento de coisas”. O autor não teve como relevante o aspecto de a coisa locada voltar ao seu dono, ao fim do contrato, o que era e é inconcebível em se cuidando da força de trabalho. 12.2.2.2 Teoria do contrato de compra e venda A teoria do contrato de locação foi combatida por Philipp Lotmar, na Alemanha, e Francesco Carne- lutti, na Itália, aquele a sustentar que a força de trabalho não integrava o patrimônio do empregado e este (966) Óscar Correas ironiza a existência de regras que invalidam, por vício de consentimento, o contrato de compra e venda em que se pratica valor estranho ao mercado, quase sempre a tornar sem efeito o intercâmbio de mercadorias que não observa o valor de troca (conceito adotado por Marx), não estimado pelos contraentes. É como se o Código Civil elevasse o consentimento a requisito do contrato, mas por meio de normas cujo sentido ideológico pudesse ser associado ao modelo marxista. Com base no modelo marxista de intercâm- bio entre mercadorias, Óscar Correas (op. cit. p. 249) anota que “na superfície da sociedade mercantil existe a vontade, se vê a vontade. Contudo, isto é apenas a aparência. Em realidade, a relação social mercantil, que não se vê, é uma relação entre mercadorias que necessitam destes porta-vozes que são os indivíduos que fazem aparecer, no mercado, o valor que as mercadorias já têm. O aparente, então, é a vontade, ou, dito de outro modo, a vontade é a aparência, a maneira através da qual o valor das mercadorias aparece no mercado. Não há outro modo de fazê-lo aparecer [...]” (967) Op, cit. p. 350. No mesmo sentido: RODRIGUES, Silvio. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 19. (968) DE LA CUEVA, Mario. Derecho mexicano del trabajo. México: Editorial Porrua S/A, 1961. p. 447. São pinçadas desta mesma obra os excertos ainda transcritos, sobre a natureza do liame empregatício. 348 – Augusto César Leite de Carvalho a dizer que a energia ou força de trabalho devia ser objeto de contrato de compra e venda, tal como ocorria com a energia que emana de outras fontes: “Responder que o trabalhador conserva sua força de trabalho e que somente concede o seu gozo é confundir a energia com sua fonte; o que resta ao trabalhador é a fonte de sua energia, isto é, seu corpo mesmo; a energia, porém, sai dele e não entra mais”. Contudo, De La Cueva observava: Considerando-se a hipótese de a relação individual de trabalho ser um contrato e estar regido pelo direito civil, Carnelutti se havia aproximado da verdade; parece-nos, ademais, que sua doutrina é o esforço máximo e o melhor realizado pelos professores de direito civil para reduzir a relação de trabalho a uma das figuras tradicionais do direito civil. Mas o mestre italiano teve que aceitar uma conclusão audaz, a de que a energia humana de trabalho deve ser considerada como uma coisa. Sustentar que o direito coisificava a energia de trabalho, sempre que esta se tornava objeto de uma relação de emprego, era empreendimento, porém, que não podia vingar. 12.2.2.3 Teoria do contrato de sociedade Em outro sentido, Chatelain, autor francês também citado por De La Cueva, propunha que o contrato de trabalho fosse assimilado a um contrato de sociedade, à suposição de que teria lugar na grande indústria, sendo o estabelecimento industrial algo complexo, que se configuraria uma unidade econômica: “um grupo de homens e seu funcionamento é uma combinação de atos que tendem a um fim comum, a produção de objetos [...]”. Assim concebida a empresa, seria ela a obra comum de várias pessoas, cada qual a contribuir com algo ou dividir com todos alguma coisa: “Uma contribuiria com o seu espírito de iniciativa, o seu conhecimento de clientela, seu talento organizador, sua atividade intelectual, em uma palavra, sua indústria e também seu capital; outros não contribuem senão com a sua força, sua habilidade profis- sional, seu trabalho, sua indústria”. E que benefícios auferem os empregados, já que é indiscutível a sua contribuição? Chatelain defendeu, em resposta a essa indagação: Na palavra ‘benefício’ é necessário distinguir os benefícios da indústria e os benefícios do empregador; o benefício a dividir e que é efetivamente dividido entre empregador e traba- lhadores é o que resulta se se considera a situação de uma pessoa que acumula as funções de empresário e trabalhador, bastando-lhe, para obtê-lo, deduzir da venda dos produtos os gastos de arrendamento de local do estabelecimento e de instrumentos, impostos etc., assim como os gastos com a aquisição de matéria-prima; os benefícios do empresário, por sua vez, se obtêm deduzindo, daquele benefício, o salário pago aos trabalhadores. Criticado porque o empregado não suportava, como o empregador, o risco do negócio e, também, porque apenas o empregador aparecia como o proprietário dos meios de produção e do produto fabri- cado, cabendo ao empregado somente o salário, fixo e pago pelo empregador antes de este negociar o bem manufaturado, Chatelain rebateu que essas objeções eram resultado de análise superficial, rematando não ser exato que os empregados não corressem risco algum, pois nada recebiam eles em todos os casos de suspensão do contrato. Quanto à outra objeção, argumentou: [...] o que ocorre é que os trabalhadores vendem ao patrão, desde que se inicia o processo de produção, a parte que lhes cabe na propriedade dos produtos elaborados, pacto este que em nada se opõe à ideia de sociedade. [...] Pela mesma razão, a parte dos trabalhadores é, regra geral, fixa e se paga adiantada; pode, porém, pactuar-se que, além dessa parte fixa, corresponda-lhes o que se denomina participación en las utilidades. A doutrina de Chatelain foi objeto de outras críticas, a ela se opondo De La Cueva(969), entre outras razões, porque “mais que uma explicação jurídica, era uma explicação econômica do fenômeno da produção”. De la Cueva esclarece: Entre o contrato de trabalho e o contrato de sociedade existem importantes diferenças; no primeiro, há uma troca de prestações por trabalho subordinado, enquanto no segundo há um (969) Op. cit. p. 451. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 349 trabalho em comum; o contrato de trabalho, se é uma relação contratual, supõe uma relação de credor e devedor entre o patrão e os trabalhadores, enquanto no contrato de sociedade as relações existem entre a sociedade e cada um dos sócios. É certo, contudo, que a doutrina de Chatelain apresenta a virtude de ter servido de base para movimento que deu origem a vantagens obreiras atualmente conhecidas como participação em lucros, em resultados ou na gestão da empresa(970). 12.2.2.4 Teoria do contrato de mandato Malgrado obtivesse, em um primeiro momento, grande repercussão a tentativa de enquadrar o contrato de trabalho como contrato de mandato, é certo que essa orientação perdeu força na medida em que as normas jurídicas passaram a estatuir que o objeto do mandato era a execução de ato jurí- dico, essencialmente. A rotina de trabalho em uma empresa comportaria, predominantemente, a reali- zação, pelo empregado, de atos materiais, que desserviriam, em princípio, à constituição, modificação ou extinção de obrigações. 12.2.2.5 Teoria do contrato-realidade A inserção dos direitos sociais – com índole trabalhista – no rol de direitos fundamentais, em cartas constitucionais promulgadas ou outorgadas em meio ou ao fim do primeiro conflito mundial, fez notar a impropriedade de se estudar o direito trabalhista a partir das teorias que descreviam o direito civil, não faltando autores que apregoassem estar apartado o direito laboral do elenco de direitos privados ou, pelo menos, que restava debilitada a distinção entre estes e o direito público. De La Cueva se filia, então, a vertente teórica que, com influência de autores alemães(971), propôs-se a estudar a relação de trabalho em sua realidade. Talvez assim se dissesse melhor: em sua excentricidade. Mario de la Cueva é sempre lembrado quando o tema é a natureza da relação laboral. A teoria do contrato-realidade, cuja autoria é, não raro, a ele atribuída, nasceu de reflexão acurada sobre os caminhos seguidos, até então, pelos civilistas e sobre a necessidade de se ofertar uma solução derra- deira, uma classificação para o contrato de emprego que afinal atendesse, diríamos nós, à máxima de Nietzsche, extraída de Crepúsculo dos Ídolos: “O ato de reduzir algo desconhecido a algo conhecido alivia, tranquiliza, satisfaz e proporciona, além disso, um sentimento de poder”. O autor mexicano compara a relação de trabalho à relação de hipoteca e à compra e venda(972), por exemplo, para argumentar que quando se pretende definir esses outros tipos contratuais recor- re-se às definições do Código Civil e se pode conceber toda a estrutura desses outros contratos, intuindo-se então que há sempre um mesmo contrato de hipoteca, com caracteres iguais e igualdade, também, em sua formação e em seus efeitos, à semelhança ao que sucede à compra e venda e à loca- ção. São irrelevantes as pequenas variações de preço ou do imóvel relacionado com o ajuste. De La Cueva admitia, porém, que o direito do trabalho ainda estava em formação e o seu âmbito pessoal de vigência não estava bem definido, existindo atividades que pertenciam ao direito do trabalho e outras que eram, contudo, incertas, não tendo sido abandonadas pelo direito civil. Essa peculiaridade do direito do trabalho fazia com que os seus efeitos nem sempre fossem os mesmos, variando na medida em que esse ramo do direito estendia a sua proteção a essas atividades que originalmente não se inseriam no modelo de emprego herdado da primeira revolução industrial. Por isso que “a relação de trabalho não apresenta sempre os mesmos caracteres nem quanto à sua constituição, nem quanto a seu conteúdo ou efeitos, de tal maneira que é ainda difícil criar um tipo único de relação de trabalho”. A percepção desse grau crescente de complexidade no conteúdo da relação de emprego permitiu a De La Cueva(973) observar, no tocante à origem dessa relação jurídica e fazendo referência a dispositivos do Código Civil mexicano que vigorava em meados do século XX: Segundo o artigo 1794 do Código Civil, para a existência de um contrato se requer consentimento e objeto que possa ser matéria de contrato; conforme o artigo 1796, os contratos se aperfeiçoam pelo mero consentimento (970) Vide art. 7o, XI, da CF. (971) Op. cit. p. 454. O autor dá ênfase à doutrina de Erich Molitor. (972) Op. cit. p. 454. (973) Op. cit. p. 455. 350 – Augusto César Leite de Carvalho e, desde esse instante, se encontram obrigadas as partes ao cumprimento do pactuado. O aperfeiçoamento do contrato determina, por sua vez, a aplicação integral do direito civil à relação jurídica criada e, em caso de inadim- plemento, existe, de imediato, a possibilidade de solicitar a execução forçada [...]. Não ocorre o mesmo na relação de trabalho, pois os efeitos fundamentais do direito do trabalho são gerados unicamente a partir do instante em que o trabalhador inicia a prestação do serviço, de maneira que os efeitos jurídicos que derivam do direito do trabalho se produzem, não pelo simples acordo de vontades entre trabalhador e patrão, senão quando o trabalhador cumpre, efetivamente, sua obrigação de prestar um serviço. Em outros termos: o direito do trabalho, que é um direito protetor da vida, da saúde e da condição econômica do trabalhador, parte do pressuposto fundamental da prestação do serviço e é, em razão dela, que impõe ao patrão deveres e obrigações. Em suma, a relação de trabalho tinha origem em um contrato, mas se tratava de um contrato diferen- ciado, que não se aperfeiçoava com o ajuste de vontades, mas somente a partir da prestação de traba- lho. Isso porque era a proteção ao trabalho humano e subordinado a razão de tal ramo do direito existir. E como esse fundamento da teoria do contrato-realidade continua a vingar – tanto a imprecisão do conteúdo da relação laboral como a proteção ao trabalho subordinado como ratio do direito traba- lhista –, explica-se a influência que o estudo teórico de Mario de La Cueva exerce na atualidade. É a ele associada, também, a definição de contrato prevista no artigo 442 da nossa CLT, que, não fosse por isso, pareceria tautológica: “Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, corres- pondente à relação de emprego”. O dispositivo diria o óbvio, não tivesse a intenção de enfatizar o fato da relação de trabalho, aí incluída a prestação laboral e a contraprestação salarial, como elemento do contrato (ou de sua execução) que corresponde ao acordo tácito ou expresso, ou seja, ao ajuste de vontades. Com a palavra, Arnaldo Sussekind(974), um dos juristas responsáveis pela elaboração da CLT: Outra novidade também reveladora de certa audácia é a que se encontra no art. 442, que muita gente considerou um pleonasmo jurídico. Ele dispõe que o contrato individual de traba- lho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego. Que se quis dizer com isto? Que havendo empregado, segundo o conceito do art. 3o, e empregador, segundo o conceito do art. 2o, há uma relação de emprego, ainda que não se tenha ajustado expres- samente, nem por escrito, nem verbalmente, o contrato de trabalho. Significa a adoção do contrato-realidade. Como observam Evaristo de Moraes Filho e Antônio Carlos Flores de Moraes(975), a contingên- cia de o empregador ser, muita vez, obrigado a admitir em seu estabelecimento empregados que normalmente não contrataria (menores aprendizes, deficientes físicos, ex-combatentes, recuperados da previdência etc.), o mesmo acontecendo na sucessão de empregadores e na reintegração, também ope legis, de empregados estáveis teria influenciado De La Cueva, que, por isso e a seu tempo, acei- tou a expressão usada pelo juiz mexicano Iñarritu para o contrato de trabalho, denominando-o contra- to-realidade. Mas os citados laboralistas brasileiros atribuem exagero e algum engano à tal expressão “pois em verdade o contrato esteve sempre pressuposto”. Qualquer que seja a orientação seguida pelo intérprete, é exato dizer que a teoria do contrato-re- alidade influiu e continua influindo, indiscutivelmente, na atividade normativa e na prática trabalhista, sobretudo quando se associam a natureza da relação laboral e as obrigações daí derivadas às condi- ções de trabalho efetivamente desenvolvidas, a partir de quando o são. Mesmo nos casos em que há instrumento contratual consignando que outra seria a intenção inicial das partes quanto ao tempo, ao modo ou ao lugar da contratação, tudo se define a partir de quando o trabalhador inicia a prestação laboral ou disponibiliza a sua força de trabalho. 12.3 Relação de emprego: espécie do gênero relação de trabalho. Contratos afins ao de emprego O contrato, regra geral, constitui uma relação jurídica. Os contratos de atividade constituem, assim, relações de trabalho cujas tensões são dirimidas pela Justiça do Trabalho (art. 114, I, da Constituição). Isso não obstante, somente uma relação de trabalho é regida pelo direito do trabalho: a relação de emprego. Apesar de termos identificado, a seu tempo, a relação de emprego como aquela em que o (974) CLT em debate: anais do Congresso Comemorativo do Cinquentenário da Consolidação das Leis do Trabalho, LTr, 1994, p. 26. (975) MORAES FILHO, Evaristo de; MORAES, Antônio Carlos Flores de. Introdução ao Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1991. p. 274. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 351 trabalho se realiza de modo subordinado, pessoal, oneroso e não eventual, cabe admitir que, na ordem dos fatos, nem sempre esses elementos distintivos se apresentam nitidamente e, por isso, convém investigar, como de resto faz a boa doutrina, outras características que distinguem a relação emprega- tícia frente a outras relações de trabalho, constituídas por outros contratos de atividade. Os contratos de atividade são “aqueles em que alguém se compromete a colocar a sua atividade em proveito de outrem, mediante remuneração”(976). O contrato de emprego é um deles, mas também se enquadra nessa categoria o contrato de prestação de serviço regido pelo Código Civil, o contrato de empreitada e todos os outros em que a atividade de um de seus sujeitos é o objeto da obrigação. Inten- cionalmente, referimo-nos a alguns desses contratos de atividade quando tratamos da evolução doutri- nária a respeito da natureza da relação de emprego, pois é fato que os primeiros teóricos, na sanha de enquadrar o contrato de emprego entre os tipos contratuais já então conhecidos e sistematizados, confundiram o contrato de emprego com o de locação de serviços, o de mandato e o de sociedade. 12.3.1 Outras relações de trabalho e a relevância da subordinação como elemento distintivo Se concluímos que o contrato de emprego se diferencia desses outros contratos de atividade, interessa saber quais os pontos de dessemelhança, porque de outro modo não poderemos identificar, no mundo dos sentidos, a relação jurídica que será regida pela regra trabalhista. Após acurada análise, José Augusto Rodrigues Pinto conclui: Sobrou apenas o critério da subordinação jurídica para distinguir o contrato de emprego de todos os outros de atividade. Em verdade, pela natureza da prestação do empregado, que o coloca à simples disposição do empregador para utilizá-la e dirigi-la, o contrato de emprego afasta-se de todos os seus afins. E o afastamento se torna nítido quando consideramos que, pela circunstância examinada, só no contrato de emprego a subordinação se mostra em grau absoluto(977). Isso é definitivo: a subordinação em grau absoluto é o elemento mais importante no momento de diferenciar o contrato de emprego dos demais contratos de atividade. Mas há outros critérios de distinção que, embora destituídos de caráter absoluto, auxiliam o agente do direito do trabalho, nessa hora de definição(978). Analisemos, em seguida, quais outras formas de distinção são relevantes para diferenciar o contrato de emprego dos contratos afins. 12.3.1.1 A locação de serviços e o novo contrato de prestação de serviços Sob o prisma histórico, o contrato de locação de serviços não se distingue, em rigor, do contrato de emprego. O que houve, por certo tempo e influência do Código Civil oriundo da era napoleônica, foi erro de denominação, porquanto seja inviável cogitar de relação locatícia cuja cessação não implique o retorno do bem locado ao locador: é impossível que a disponibilidade da força de trabalho retorne ao empregado(979). O Código Civil em vigor supera essa atecnia e dedica, acertadamente, um capítulo(980) ao contrato de prestação de serviço, vale dizer, ao contrato que envolve a prestação de trabalho não regida pela legislação trabalhista. É certo que “prestação de serviço” é expressão genérica – na qual se enquadraria, no plano semântico, inclusive o serviço que se realiza no âmbito de uma relação de (976) Cf. Moraes Filho, op. cit., p. 280. (977) PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2000. p. 181. (978) Consultar, sobre a diferença entre o emprego e os contratos afins, por exemplo: Evaristo Moraes Filho e Antonio Carlos Flores de Moraes (Op. cit., p. 278), José Augusto Rodrigues Pinto (Op. cit., 175), Orlando Gomes e Elson Gottschalk (em GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Atualização de José Augusto Rodrigues Pinto. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 133), Manuel Cândido Rodrigues (em RODRIGUES, Manuel Cândido. Contrato de trabalho. Contratos afins. Contratos de atividade. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. Vol. 1. São Paulo: LTr, 1993. p. 402) e Martins Catharino (em CATHARINO, José Martins. Compêndio Universitário de Direito do Trabalho. São Paulo: Editora Jurídica e Universitária, 1972. p. 275). (979) O contrato de prestação de serviço é outro tipo contratual que, a bem dizer, inexiste, pois presta serviço o empregado, o empreiteiro e o trabalhador eventual. Não há, no direito civil, a denominação de algum contrato típico como contrato de prestação de serviço. (980) Capítulo VII do Título VI da Parte Especial, artigos 593 a 609. 352 – Augusto César Leite de Carvalho emprego –, mas a alusão ao gênero (prestação de serviço) serve para distinguir a espécie (prestação de serviço como objeto de vínculo empregatício) e, assim, identificar, por exclusão, todas as outras relações de trabalho que seriam residualmente regidas pelo Código Civil(981). 12.3.1.2 Distinção entre emprego e empreitada Empreitada é a relação jurídica que se deflagra quando uma determinada obra é contratada a alguém que a executará por inteiro ou, sendo-lhe fornecido o material correspondente, realizar-lhe-á por meio de seu trabalho. Nessa segunda perspectiva, a de o empreiteiro contribuir apenas com o seu trabalho, a empreitada aproxima-se da relação de emprego, sem com ela propriamente confundir-se. Quanto ao contrato de empreitada, os laboralistas adicionam à subordinação em grau abso- luto, que denuncia a existência de relação empregatícia, três outros critérios úteis à distinção entre a empreitada e o emprego: a) a natureza e continuidade da prestação; b) a forma de remuneração; c) a qualidade do empregador. O primeiro critério é explicitado por Jacobi(982): há empreitada quando se tem em vista um fim determinado, com nítida determinação, concreta, da prestação; e contrato de trabalho sempre que a prestação se distender no tempo, mediante operações genéricas, não individualizadas em espécie. Embora ocorra usualmente assim, é certo que alguns trabalhadores prestam serviço subordinado – sendo, pois, empregados – e, pondo à prova essa regra geral, trabalham por peça ou tarefa. A forma de remuneração, esse é um critério que se associa ao anterior, padecendo embora da mesma insuficiência. É que o empregado – notadamente no emprego industrial, primeiro destinatário da proteção trabalhista – recebe, normalmente, salário fixado na proporção de seu tempo de trabalho, enquanto o empreiteiro recebe apenas o preço da obra que contratou. O que dizer, porém, do comis- sionista puro? O empregado vendedor que recebe somente comissão não tem o seu salário calculado à razão do tempo, mas ainda assim é empregado, desde que se enquadre a sua prestação laboral nos pressupostos do artigo 3º da CLT. Nota-se, uma vez mais, que o critério é meramente indicativo, ou indiciário, não se mostrando definitivo. O critério derradeiro seria o da qualidade do empregador, defendendo-se então que é empregado aquele que trabalha para empregador profissional, assim sucedendo quando este professa um ofício e, por conta de tal ofício, contrata e cobra a prestação de trabalho, assistindo-a tecnicamente. Quando o trabalhador, em vez disso, oferece o seu serviço ao público, torna-se ele um empreiteiro, por conse- guinte. Mas o critério é igualmente falho, não conclusivo, porque nada obsta, por exemplo, que um construtor profissional contrate um pedreiro apenas para resolver um problema breve e imprevisto em seu escritório, não sendo essa prestação eventual de trabalho do pedreiro objeto de emprego. 12.3.1.3 Distinção entre emprego e mandato A teor do artigo 653 do Código Civil “opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato”. Sobre as diferenças entre o contrato de emprego e o de mandato, há decerto a alusão a três crité- rios úteis à sua verificação: a) a gratuidade do mandato; b) a natureza da atividade; c) a existência da representação. O contrato de mandato pode ser gratuito ou oneroso; o contrato de emprego é sempre oneroso. A propósito, Martins Catharino(983) assinala que os romanos haviam estabelecido uma nítida hierarquia do trabalho humano: [...] do extremo do escravo-coisa, passando pelo trabalho coisificado (locatio conductio, operis e operarum), ao outro extremo do trabalho essencialmente livre e digno (operae libe- ralis, dos advogados e geômetras, principalmente), objeto do mandato. Assim, somente o trabalho intelectual ou espiritual estava desvinculado da coisa-trabalhadora e do trabalhador (981) Nesse sentido é elucidativo o preceito do art. 593 do Código Civil: (982) Apud Moraes Filho, op. cit. p. 279. (983) CATHARINO, op. cit., p. 284. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 353 coisificado, braçal e indigno, apesar de algumas exceções quanto a libertos devedores de operae (máxime cirurgiões). Segundo essa hierarquia social, o mandatário, dado o elevado valor social do seu trabalho, não era um mercenário. Recebia e aceitava honroso encargo. A gratuidade, que se existente impede se cogite de relação de emprego, não é mais, porém, característica de todas as relações jurídicas de mandato. Na prática, passou a ser exceção. Sem embargo, esteve tão enraizada nos vínculos de antanho que até hoje se conserva a palavra “honorá- rios” para designar a remuneração paga a profissionais liberais, mandatários ou não, como se receber salários fosse depreciativo. O segundo critério distintivo seria a natureza da atividade, porque o mandato teria um ato jurídico como objeto, sempre. Por sua vez, a relação de emprego teria como objeto a realização de atos mate- riais, não jurídicos, pois o empregado não se incumbe, regra geral, da realização de atos que desenca- deiem obrigações, modifiquem-nas ou as extingam. Rodrigues Pinto(984) é, porém, enfático: Nada mais falso, não apenas porque o mandatário é obrigado a praticar atos-meios exclusi- vamente materiais para cumprir o contrato, como, na grande empresa moderna, se encontra, sistematicamente, a figura do empregado-mandatário, porque realiza aqueles mesmos atos jurídicos, em nome do empregador, que o mandatário deverá realizar em nome do mandante. Sustenta-se, ademais, que a representação é inerente apenas ao mandato, porque “em nosso direito, como no francês, no português e em outros, os atos são praticados em nome do mandante, o que dá a ideia de representação”(985). O critério é, no entanto, duplamente frágil: primeiro, porque o é na medida em que os altos-empregados exercem a representação dos seus empregadores, sem deixa- rem de ser sujeitos de relação de emprego (é possível, portanto, a mistura contratual); segundo, uma vez que “pode o mandatário funcionar em seu próprio nome, mas por conta do mandante”(986) – vale dizer, pode haver mandato sem representação (imagine-se o testa-de-ferro em uma relação negocial qualquer). Ainda no tocante ao mandato, uma advertência faz-se necessária. É que pode haver mandatário a prestar trabalho subordinado. É induvidoso que se tratará de empregado, se essa sua prestação de trabalho também for pessoal, onerosa e não eventual. Autores de nomeada sugerem que, no caso de o contrato de emprego se misturar a outro, é possível apurar qual contrato é acessório, podendo sê-lo o de emprego(987). Entendemos, porém, que o intérprete do direito do trabalho deve ser intransigente ao afastar a regência do emprego por norma que atenda a princípios diferentes daqueles que regem a desigual relação entre o capital e o trabalho. Interessa lembrar, igualmente, que a subordinação necessária à caracterização do emprego é a que ocorre em grau absoluto, assim não sucedendo se, “no mandato, o mandatário prende-se a instru- ções concretas, limitadas, especiais, próprias para a realização de determinado ato, de certa operação ou algum negócio. No contrato de trabalho, pelo contrário, a subordinação hierárquica e administrativa é geral, ampla, indeterminada, de todas as horas e às vezes imprevisíveis, fazendo-se sentir durante toda a execução do contrato”(988). 12.3.1.4 Distinção entre emprego e sociedade Os critérios usados, além do critério decisivo da subordinação, para a distinção entre emprego e sociedade, são usualmente dois: a) salário fixo no emprego; b) affectio societatis na sociedade. Ocorre, contudo, que a retirada de valor fixo não acontece apenas no emprego – é comum, inclu- sive, o pro labore fixo, em atenção ao que deliberam os próprios sócios –, nem a remuneração pelo trabalho subordinado é sempre invariável, bastando frisar o que sucede a empregados que recebem salário em forma de comissão ou na proporção das peças fabricadas, tarefas realizadas etc. (984) José Augusto Rodrigues Pinto, op. cit., p. 179. (985) Cf. Eduardo Espínola, apud Manuel Cândido Rodrigues, op. cit., p. 433. (986) Cf. Eduardo Espínola, apud Manuel Cândido Rodrigues, op. cit., p. 433. O autor se refere ao mandato sem representação, mas a doutrina também admite a representação sem mandato, como exemplificam Gomes e Gottschalk (op. cit. p. 138). (987) Cf. Gomes e Gottschalk, op. cit., p. 138. (988) Cf. Moraes Filho, op. cit., p. 283. 354 – Augusto César Leite de Carvalho A affectio societatis é o sentimento, que move aqueles que ingressam em uma sociedade empresária, de repartir lucros e prejuízos decorrentes do negócio comum. Os sócios devem manifestar a sua prévia disposição em tal sentido, pois é este um pressuposto fático da existência da sociedade e um seu componente que decerto a distingue do contrato de emprego, de par com a subordinação. O contraponto a esse valioso critério é anotado por Rodrigues Pinto(989): Nem sempre a affectio societatis é identificada com tanta pureza essencial na sociedade. Poderíamos falar de muitas delas em que reina entre os sócios completa desaffectio socie- tatis, tais as divergências de interesses individuais dentro da empresa. 12.3.1.5 Distinção entre emprego e relação de consumo Conforme preceitua o art. 2o da Lei n. 8.078, de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), define- -se a relação de consumo pela posição singular em que se apresenta um de seus sujeitos, qual seja, o consumidor. O citado dispositivo o conceitua como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. A relação de consumo pode referir-se ao comércio de algum produto ou à prestação de algum serviço(990). Entre os contratos de prestação de serviço que não são disciplinados pelo direito do trabalho ganhou importância, desde certo tempo e para efeito de comparação, aquele que constitui uma relação jurídica de consumo cujo objeto seja a realização de algum trabalho. A frequência com que a jurispru- dência trabalhista se reporta atualmente à relação de consumo tem, a nosso ver, duas causas que se interrelacionam: a ampliação da competência da Justiça do Trabalho e a inversão dos polos assimé- tricos. É fácil explicar. Quando a Emenda Constitucional n. 45, de 2004, estendeu a competência da Justiça do Trabalho a fim de que a sua prestação jurisdicional houvesse de dirimir os conflitos oriundos de qualquer rela- ção de trabalho (art. 114, I, da Constituição), ainda que não se estivesse nos mais estreitos limites do vínculo de emprego, vozes se levantaram contra a possibilidade de serem despojadas de tal atribuição as Varas especiais e de assistência judiciária da Justiça Comum que tradicionalmente se dedicavam, com a eficácia possível, à solução dessas controvérsias. Além da mudança na estrutura do Poder Judiciário, que adviria com a competência da Justiça do Trabalho para resolver conflitos inerentes aos serviços prestados nas relações de consumo, haveria o inconveniente de somar às atribuições dos juízes do trabalho, desde sempre habituados a prover jurisdi- ção em casos nos quais a debilidade econômica é atributo do trabalhador, a nova função de solucionar controvérsias ambientadas em relações jurídicas nas quais a hipossuficiência econômica é atributo de quem consome a prestação laboral, não o sendo de quem a presta. Há assimetria tanto na relação de emprego quanto na relação de consumo, mas decerto se invertem, entre elas, os polos assimétricos. A nosso sentimento, apenas o primeiro desses motivos seria merecedor de mais detida reflexão, dado que bisonha a desconfiança no córtex cerebral dos juízes trabalhistas, aptos à compreensão e realização de outros valores e dogmas jurídicos. A bem dizer, seria até mesmo prudente que os confli- tos gerados em relações complexas ou bifrontes, como aquelas nas quais os empresários fornecem serviços à sua clientela por meio de empregados, fossem inteiramente solucionados por um único órgão jurisdicional, tanto no que concerne ao direito de o consumidor exigir a prestação de serviço com qualidade quanto no que toca à proteção do empregado por meio do qual se realiza essa prestação. Não é raro, por exemplo, ocorrer alegação de justa causa contra empregado por conta de conde- nação, na Justiça Comum, do seu empregador, ou seja, do empresário que teria prestado serviços ruins por meio do empregado que agora pretende dispensar por justa causa. Nesses casos, o titular da empresa precisa se defender em dois foros distintos – melhor se pudesse concentrar seus esforços perante um só magistrado, em relação ao qual haveria unidade de cognição. O que importa acentuar, neste momento, é o fato de a relação de consumo não comportar, quase sempre, a subordinação em grau absoluto do prestador de serviço, muitas vezes se verificando a posi- ção paritária, ou mesmo de vantagem, em relação ao destinatário de seu trabalho. (989) Op. cit. p. 180. (990) O art. 3o, §2o, da Lei n. 8.078/90 esclarece: “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 355 E ainda que o tema relativo à competência jurisdicional seja de direito processual, convém rema- tar que a jurisprudência trabalhista parece tender à posição de que a Justiça do Trabalho não teria competência para atuar em controvérsias havidas nas relações de consumo, consoante se extrai de precedentes paradigmáticos do Tribunal Superior do Trabalho(991). 12.4 Caracteres do contrato de emprego Em se admitindo a origem contratual da relação de emprego, pode-se tentar enquadrá-la em uma das várias classificações de direito civil, assim se agindo para que se verifique a aplicação ao contrato das regras pertinentes ao tipo contratual escolhido. A doutrina trabalhista diz ser o contrato de emprego nominado, de direito privado, principal, consensual, bilateral, oneroso e comutativo, intuitu personae, continuado e de adesão. 12.4.1 Contrato nominado A classificação dos contratos em nominados e inominados teve maior relevância entre os romanos, porque somente aos primeiros correspondia ação especial, sendo ainda distintos, em cada um dos tipos contratuais, os efeitos da manifestação da vontade. Esclarece, com pertinência, Martins Catharino(992): Atualmente, tal divisão tem valor muito relativo, pois os contratos, nominados ou não, ense- jam ação idêntica. Por outro lado, a expressão contratos nominados serve apenas para diferençar os que têm denominação especial e legal dos que não a têm, nem são por lei regulados, embora muitas vezes os inominados não passem de variações dos nominados. Se forem realmente inominados, ficam sob as normas contratuais de caráter geral. Se não, apela-se para a analogia. Sendo contrato nominado, o vínculo de emprego possui, decerto, regência própria, não se expondo à incidência de regras que disciplinem outro ramo do direito, salvo em caráter subsidiário. Estudamos essa matéria quando identificamos os métodos de integração da norma trabalhista, no capítulo reser- vado às fontes do direito. 12.4.2 Contrato de direito privado A distinção entre contratos de direito público e contratos de direito privado ganhou importância sob o Estado Liberal, pois então se preconizava a summa divisio entre as regras de direito que prote- giam a preponderância dos contratos e a autonomia dos interesses inatos ou individuais, no âmbito do direito privado, e, de outro lado, as regras jurídicas que remetiam ao interesse geral da sociedade, a ser tutelado pelo Estado de modo que sua intervenção se desse apenas em caráter extraordinário e aos auspícios do direito público. As regras de direito privado salvaguardavam a liberdade de contratar e não se deixavam permear pelo direito público. Ainda hoje a doutrina distingue o direito privado do direito público em razão dos interesses regula- dos, mas a divisão estanque entre uma e outra áreas do direito não mais subsiste. É que às teorias liber- tárias sobreveio o Estado Social e com ele a percepção de que não há plena liberdade sem o substrato de uma ordem social intervencionista que assegure vida digna, saúde, educação, moradia, segurança, trabalho e outras tantas prestações indispensáveis ao exercício das liberdades fundamentais. Observa Bacellar Filho que “no Estado Social, a relação entre público e privado inverte-se: ao superdimensiona- mento do espaço privado sobrepor-se-á a hipertrofia do público que tende a se esgotar no Estado”(993). (991) TST, 6ª Turma, RR – 674/2006-701-04-00.0, Min. Aloysio Corrêa da Veiga, j. em 03/06/2009, DEJT 12/06/2009; TST, 1a Turma, RR – 1110/2007-075-02-00.5, Min. Lelio Bentes Corrêa, j. em 20/05/2009, DEJT 05/06/2009; TST, 2a Turma, RR – 754/2005-012-04-00.0, Min. José Simpliciano Fontes de F. Fernandes j. em 22/04/2009, DEJT 22/05/2009. (992) CATHARINO, op. cit., p. 263. O autor esclarece o porquê da distinção entre contratos nominados e inominados, no direito romano: “aos primeiros correspondia ação especial, enquanto aos segundos apenas ação geral praescriptis verbis. Além disso, a resolução dos nomi- nados ficava sujeita a acordo dos contratantes, mas a inexecução por parte de um assegurava ao outro o direito de compeli-lo ao cumpri- mento do contrato, e não o de terminar o contrato por resilição unilateral. Quando se tratava de inominados, o contratante fiel podia optar entre a actio praescriptis verbis, para obter a execução forçada do outro, ou exigir a restituição das prestações já efetuadas, segundo a regra condictio causa data causa non secuta, e não por força de vinculação volitiva”. (993) BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito Público x Direito Privado. Disponível em: http://www.oab.org.br/editora/revista/users/ revista/1205503372174218181901.pdf. Acesso em: 18/abr/2015. 356 – Augusto César Leite de Carvalho Progressivamente, e sobretudo a partir do fim da segunda grande guerra, as ordens consti- tucionais do Ocidente incorporaram a índole substancial dos direitos de liberdade e dos direitos sociais, agregaram-lhes perspectiva ambiental e fundaram assim o Estado Democrático de Direito, revestindo a todos esses direitos da característica de direitos fundamentais. As normas infraconsti- tucionais somente são válidas e eficazes quando se ajustam, em conteúdo, ao catálogo de direitos humanos constitucionalizados, tudo a fazer superada a velha assertiva de que seriam os direitos privados impermeáveis à influência do direito público. Quanto a ser o vínculo de emprego um contrato de direito privado, importa considerar que a inclu- são dos direitos sociais entre os direitos fundamentais, pelas Constituições de Querétaro e de Weimar, causou, em alguns teóricos do direito laboral, uma primeira impressão de que estaríamos no âmbito do direito público, porque não mais se exigia do Estado uma postura abstencionista – como ao tempo em que apenas as liberdades civis e os direitos políticos eram direitos fundamentais –, mas já agora se comprometia o Estado Social de Direito, ao consolidar a socialdemocracia, a engendrar os meios necessários à realização dos direitos trabalhistas imanentes à dignidade do trabalho humano(994). Isso e a imperatividade das normas de direito laboral não foram suficientes, porém, para que se convertesse o direito do trabalho em direito público. Consoante notam Evaristo de Moraes Filho e Antonio Carlos Flores de Moraes, “a mesma coisa acontece com o casamento, com as sociedades de capitais, com o inquilinato e assim por diante, que apesar de muito limitados em seu exercício e no que diz respeito à autonomia da vontade dos seus titulares, permanecem no campo do direito privado”(995). O fato de ser contrato privado não impede que o contrato de emprego tenha um conteúdo impera- tivo mínimo, aquém do qual nada se pode ajustar. Não há liberdade contratual absoluta. Como vimos, a indisponibilidade de boa parte dos direitos trabalhistas deriva da incidência do princípio da dignidade da pessoa humana e da característica de ser esse princípio refratário à realização de trabalho em condições injustas ou precárias, que aviltem ou instrumentalizem o homem que trabalha. O caráter privado que se atribui ao contrato de emprego também não o afasta da regência de prin- cípios constitucionais de direito administrativo em casos nos quais a administração pública, direta ou indireta, é o empregador. Tal se verifica, conforme veremos ao tratarmos da resolução do contrato de emprego público, quando a jurisprudência exige a motivação do ato de despedida do empregado público, assim se posicionando porque os atos administrativos devem ser motivados para atender, sobretudo, aos princípios da probidade e da impessoalidade (art. 37 da Constituição). Não há a mesma exigência quanto aos contratos que envolvem empresas privadas não integrantes da administração pública. 12.4.3 Contrato principal Sobre a classificação do contrato de emprego como contrato principal, interessa anotar que o tipo antagônico seria o contrato acessório, sendo exemplos deste a fiança e a hipoteca, que inexistem por si mesmas, mas aderem a outro contrato. A relevância dessa classificação remete a uma ideia singela em sua compreensão, mas fecunda em sua projeção jurídica: o contrato de emprego, mesmo quando com outros se mistura, não se submete, na parte que lhe é substancial, à regência de outros ramos do direito indiferentes aos valores e princípios que inspiram o direito do trabalho. Se há mistura contratual(996), ou seja, quando o empregado, exempli gratia, é também mandatário (pensemos no advogado-empregado) ou mantém com o empregador uma relação locatícia (cogitemos do empregado que aluga seu veículo ao empregador para a realização dos serviços), é imperioso que (994) Cf. De la Cueva, op. cit., p. 454. (995) Op. cit. p. 222. (996) Ao explicar a expressão mistura contratual, Martins Catharino diz: “Por mais numerosos que sejam os contratos nominados e quali- ficados, com a crescente complexidade da vida social sempre surgem contratos outros, inominados ou atípicos, puros e impuros ou ‘mistos’. [...] Realmente, nada impede que os contratantes misturem, por ser de suas vontades e interesses, elementos de dois ou mais contratos nominados e qualificados. No particular, a autonomia volitiva ainda impera”. Cf. CATHARINO, José Martins. Compêndio Universitário de Direito do Trabalho. São Paulo: Editora Jurídica e Universitária, 1972. p. 295. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 357 se perceba a impossibilidade de o contrato de emprego, nos aspectos que dizem sobre as condições de trabalho e salário, aderir resignadamente a regras de direito civil regentes da outra espécie contratual. A proteção ao trabalho humano estará sempre assegurada pelo direito do trabalho, pois figura o contrato de emprego como contrato principal. 12.4.4 Contrato consensual O contrato é consensual porquanto normalmente não exige forma especial – não é formal(997) –, nem se aperfeiçoa com a entrega de algum bem, como sucede com os contratos reais(998). Diz-se consensual porque a forma, mesmo quando prevista em lei, não é, regra geral, da substância do ato. Basta-lhe, em regra, o consentimento(999). Se a Carteira de Trabalho e Previdência Social, a cuja anotação está obrigado o empregador, não contiver a anotação do contrato, o trabalhador tem todos os direitos trabalhistas e mais o de obter tal anotação – a ausência da forma prevista em lei não lhe retira direito algum. A bem dizer, a exigência de forma é excepcional, sendo raros os casos em que se a exige para a constituição de vínculo empregatício (contratos especiais de marítimos e de atletas profissionais, por exemplo) ou para a validação de cláusulas contratuais (compensação de jornada, alargamento de intervalo intrajornada etc.). 12.4.5 Contrato bilateral É bilateral o contrato de emprego por criar direitos e obrigações para as duas partes, empregado e empregador. Não custa recordar que os atos jurídicos podem ser unilaterais ou bilaterais, estes últimos se apresentando como contratos e, por seu turno, subdividindo-se em contratos unilaterais ou bilaterais. A relevância de se classificar algum contrato como bilateral reside na possibilidade de lhe serem aplicáveis as regras estatuídas nos artigos 476 e 477 do Código Civil(1000): a exceção do contrato não cumprido e a cláusula resolutória tácita. Pela primeira, a parte se desonera de cumprir a prestação a que se obrigou enquanto a outra não cumprir a que lhe cabe, sendo de duvidosa utilidade em contra- tos, como o de emprego, nos quais as prestações se sucedem no tempo, porque de trato sucessivo. A cláusula resolutória tácita autoriza à parte inocente dar por resolvido o contrato quando a outra parte desatende ao pactuado, devendo a sua pertinência ser estudada quando examinarmos a possibilidade de o empregado ou o empregador ter por cessado o contrato em razão de o outro cometer justa causa. 12.4.6 Contrato oneroso e comutativo Afirma-se que o contrato é oneroso e comutativo, derivando a sua onerosidade do aspecto de a força de trabalho ser disponibilizada sem o ânimo da liberalidade, do puro despojamento. Fosse gratuita a prestação laboral e decerto não haveria contrato de emprego. Subdivide-se o contrato oneroso em comutativo ou aleatório(1001), somente no primeiro subtipo havendo a equivalência entre as prestações – na hipótese de emprego, referir-nos-íamos à equipolência entre a prestação de trabalho e a contraprestação salarial. O fato de o contrato de emprego ser oneroso, da classe dos comutativos, é de enorme relevância, porque impõe ao aplicador do direito laboral o dever de assegurar ao empregado uma contraprestação (997) Salvam-se exceções relativas a contratos especiais, como o de marítimo e o de atleta profissional, e outras pertinentes a cláusulas espe- cíficas, como a de compensação de jornada. (998) Exemplos de contratos reais: mútuo, comodato etc. Embora tenhamos optado por uma classificação única, usa-se dizer que os contra- tos que antagonizam com os reais são os pessoais. A nossa opção se deve ao fato de os contratos consensuais serem, em regra, pessoais. (999) Devemos fazer remissão, aqui, ao estudo das teorias relacionistas, desenvolvido num tópico precedente deste livro. (1000) Artigo 1092 do Código Civil de 1916. (1001) Cf. Arnoldo Wald (Op. cit. p. 166). Ensina o autor: “o contrato aleatório é o contrato oneroso em que uma ou ambas as prestações são incertas. A incerteza pode referir-se seja à própria existência da prestação, seja ao seu valor. Contrato aleatório é, por excelência, o de seguro, em que a prestação do segurado é certa e a do segurador é incerta, dependendo da realização de uma condição”. 358 – Augusto César Leite de Carvalho salarial sempre que acrescida à sua prestação contratual alguma outra, de modo significativo(1002). A Justiça do Trabalho se revela atenta à necessidade de preservar a equivalência entre as prestações(1003). 12.4.7 Contrato intuitu personae O contrato de emprego é intuitu personae apenas em relação ao empregado, dada a pessoalidade da prestação laboral, examinada quando estudados os sujeitos da relação de trabalho. O emprega- dor pode ser sucedido e essa sucessão, conforme também se pôde perceber, não importa um novo contrato, desde que mantida a empresa, vale dizer, contanto que se sucedam os empregadores, suce- dido e sucessor, na titularidade da mesma organização produtiva. 12.4.8 Contrato continuado É o contrato de emprego continuado ou de trato sucessivo porque não pode ser executado mediante a prática de um só ato, como ocorre nos contratos instantâneos – exemplo destes é o contrato de compra e venda. É interessante notar que, nos contratos continuados, vigora a cláusula rebus sic stantibus, resga- tada pelo direito da era moderna como teoria da imprevisão(1004) e a limitar a autonomia da vontade, na medida em que se propõe, por ela, que se preserve o equilíbrio contratual, a equivalência das presta- ções, revendo-se o valor ou fardo de alguma destas todas as vezes em que ela se tornar, por motivo imprevisto, excessivamente onerosa. Haveria, portanto e com base na teoria da imprevisão, a possibilidade de o empregado recorrer ao Poder Judiciário com o fim de obter a revisão de seu salário contratual, dada a redução de seu poder aquisitivo em razão de corrosão inflacionária? Paradoxalmente, um ingrediente protetivo do direito laboral – a irredutibilidade do salário – favorece, na prática, a tese contrária. É que tem ocorrido de o Supremo Tribunal Federal, no Brasil, interpretar o princípio no sentido de por ele se resguardar o valor nominal do salário, não o seu valor real(1005). É possível que a isso estivesse atento Arion Sayão Romita(1006) quando asseverou: Constitui princípio de moral elementar que a ninguém é lícito enriquecer com a jactura alheia. Do ponto de vista moral, inquestionável é a conexão entre o caráter ético do contrato e o princípio de equivalência das prestações, a exigir, como imperativo da justiça comutativa, a constante atualização do crédito salarial. (1002) Sobre o tema, Márcio Túlio Viana anota: “[...]) hipótese interessante é a do vigilante, obrigado a correr riscos que hoje são quase inerentes, por assim dizer, à atividade de certas empresas [...]. E já que tocamos no assunto, enfrentemos a pergunta: poderá ele resistir, não enfrentando o perigo? Se o perigo for grave, entendemos que sim: o salário não o contrapresta” (VIANA, Márcio Túlio. Direito de resistência. São Paulo: LTr, 1996. p 205). Em outro trecho, o mesmo autor, agora secundando Clóvis Salgado, refere-se à possibilidade de o empregado se valer do art. 460 da CLT para pleitear o arbitramento de um novo e mais alto nível de salário quando é, em meio ao contrato, aumentada a intensidade de seu trabalho (p. 272). (1003) Nesse sentido: RECURSO DE REVISTA EM FACE DE DECISÃO PUBLICADA ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N. 13.015/2014. DIFERENÇAS SALARIAIS. ACÚMULO DE FUNÇÕES. CABIMENTO. ARBITRAMENTO PELO JUIZ. O desempenho, pelo obreiro, de atribuições de cargo superior ao seu exige acréscimo de remuneração, pois a carga ocupacional qualitativamente maior enseja a reparação salarial correspondente. Não se trata de pedido de equiparação salarial ou de desvio funcional. A hipótese é de acúmulo de funções. O contrato de trabalho é marcado pelo princípio da equivalência das prestações, diante do seu caráter sinalagmático, o que significa dizer reciprocidade entre o quanto ajustado e o que representa a sua efetiva execução, característica importante nos contratos de trato sucessivo para que não se distanciem daquilo que foi objeto de ajuste e provoquem ônus excessivo para um dos contratantes, em especial o empre- gado, que se vincula a relação subordinada ao seu empregador. A regra contida no artigo 460 Consolidado objetiva assegurar o princípio da equivalência salarial e se são ampliadas as atribuições de determinado cargo, sem que tenha havido a correspondente contraprestação, há de se restabelecer o equilíbrio do contrato, com recomposição do salário, sob pena de ser efetivada alteração contratual ilícita. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento parcial. [...] (TST, 7ª Turma, RR 725-02.2011.5.09.0010, Rel. Min. Cláudio Mascarenhas Brandão, DEJT 17/04/2015). (1004) Alguns civilistas criticam a imprevisão como um pressuposto necessário à revisão dos contratos, que objetiva o restabelecimento do equilíbrio contratual. Mas é certo que o artigo 478 do novo Código Civil está a consagrar a teoria da imprevisão. (1005) Tratando da extensão desse princípio ao servidor público, o STF entendeu que não havia proteção constitucional que assegurasse irredutibilidade de valor real, pois protegido somente o valor nominal (STF, RE 163851/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 17/5/94, DJ 25/11/94). Mas há, também, decisão em sentido contrário (STF-2a. T., RE 193285/RJ, Min. Marco Aurélio, j. 16/12/97, DJ 17/4/98, p. 17). (1006) ROMITA, Arion Sayão. O princípio da equivalência das prestações na execução do contrato de trabalho. Revista Jurídica do Traba- lho, Salvador, ano I, n. 1, p. 157, abr./jun. 1988. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 359 Será esta uma tarefa da Constituição? Sim, sem dúvida deve constituir objeto de disposição cons- titucional a garantia mínima, assegurada aos trabalhadores, de defesa do poder aquisitivo do salário contra a depreciação monetária, assegurando a manutenção do seu valor real. Será tarefa da Lei? Sim, sem dúvida deve constituir objeto de preocupação do legislador ordinário o respeito ao princípio de equivalência das prestações. Mas, não só da Constituição nem da lei ordinária, como também – e principalmente – da convenção coletiva de trabalho, mercê da atividade reivindicatória dos sindicatos. Não se pode, hoje em dia, esperar tudo da lei, especialmente no campo das relações de trabalho, ante a relevante função historicamente desempenhada pelas fontes autônomas do direito do trabalho. 12.4.9 Contrato de adesão O contrato de emprego é, enfim, contrato de adesão, porque nele o empregado normalmente aceita as condições predispostas pelo empregador, não interferindo, regra geral, na estipulação das cláusulas contratuais. Num parêntese necessário, cabe ressaltar que, no contrato de emprego, o traba- lhador não adere, sempre e propriamente, a cláusulas previamente concebidas pelo empregador, pois um e outro se sujeitam, no comum dos casos, a condições impostas por lei. Essa característica não converte o emprego em contrato paritário, uma vez que o Estado apenas intervém para assegurar um ajuste que respeite os limites da dignidade do trabalho humano. Nada impede o empregador de intensificar a proteção garantida por lei ao empregado, aumen- tando-a. Mas a experiência revela que, a salvo aqueles raros casos nos quais o conteúdo do contrato é realmente estabelecido com a colaboração do empregado, a exemplo do que ocorre a altos-empre- gados, atletas profissionais ou artistas consagrados, a regra generalíssima é a adesão do empregado a cláusulas ordenadas pelo empregador, que se restringe a garantir o nível de proteção que a norma estatal ou coletiva já previa. E que importância há em se classificar o contrato de emprego como de adesão? O artigo 423 do novo Código Civil estatui que “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contra- ditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”. Indo além, o artigo 6o, VIII, da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) assegura ao sujeito da relação de consumo uma proteção não prevista, com igual largueza, no direito material e processual do trabalho, ao menos nas fontes de produção estatal. O dispositivo reza que é direito básico do consumidor “a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”. 12.5 Elementos do contrato de emprego Os teóricos do direito do trabalho não raro são omissos quanto aos elementos do contrato de trabalho pela razão, singela mas não desprezível, de que a obrigação trabalhista é definida e vincula os seus protagonistas muito mais em razão do modo como se presta o trabalho do que em virtude da maneira como se o ajustou. Sobressai, sempre e sempre, a primazia da realidade. O ato de emprego é mais relevante que a vontade expressa, quer na caracterização do vínculo, quer na identificação das prestações devidas pelo trabalhador e por aquele que lhe toma os serviços. Ainda assim, há contrato e, não obstante as peculiaridades do contrato de emprego (estudadas no tópico alusivo à natureza da relação empregatícia), interessa consultar os seus elementos segundo as categorias teóricas desenvolvidas pelos estudiosos do direito civil. A primeira preocupação é certamente a de compreender o que são os elementos de um contrato e entender que a percepção desses elementos permitirá, na sequência, saber quais os efeitos que derivam da presença ou ausência de cada elemento em um contrato qualquer, inclusive no contrato de emprego. A indicação dos elementos de um contrato observa o método de abstração: quando isolamos uma coisa e estudamos os seus elementos, a nossa pretensão é a de resgatar o método aristotélico de conhecimento do mundo sensível e, assim, investigar o que é, de tal coisa, a sua essência e o que, nela, é acidental. Em seguida, identificamos o gênero a que pertence o objeto de nossa intelecção e a sua classificação em meio a coisas distintas. Para haver contrato, os seus elementos essenciais – 360 – Augusto César Leite de Carvalho aqueles que a seguir serão indicados – devem estar presentes ou, do contrário, teremos categoria jurídica diversa. No Brasil, a atividade intelectual dos contratualistas, que consiste em abstrair do contrato o que é, nele, um acidente, para assim apartar a sua essência, está claramente influenciada pela erudição de Francesco Carnelutti(1007). O teórico italiano observou que os fatos, sejam naturais ou produzidos pelo homem, se desenvolvem progressivamente, a partir de uma situação inicial. Nem sempre é possível ao homem observar todo o decurso do fato, desde o princípio até o evento (como faz o médico ao notar a sintomatologia de uma enfermidade, acompanhando toda a sua evolução); mas, quando se determina a causa ou o efeito, depreende-se que se conseguiu fixar a progressão das situações. Cada situação é a causa(1008) da situação seguinte. Os fatos em sentido estrito, ou seja, aqueles com causa exterior(1009), podem ser ou não depen- dentes da vontade do homem. Nos casos em que a transformação de uma situação em outra depende da vontade, ou seja, da aptidão do pensamento para constituir a causa de uma modificação exterior, percebe-se que o homem está em condição de governá-la, denominando-se esse fato ou transforma- ção de ato. 12.5.1 Elementos essenciais do contrato de emprego – hipóteses de nulidade e de anulabilidade no direito civil A singularidade do raciocínio de Carnelutti está, segundo o seu próprio testemunho, na percep- ção de que para proceder à classificação dos requisitos (ou elementos essenciais) do fato jurídico é necessário que se submeta esse fato a decomposição ou análise, identificando-se, nessa trilha, quais os modos de ser postos pela norma que são essenciais tanto à situação inicial quanto ao fato e, noutro canto, quais desses elementos(1010) não concernem à situação inicial, mas apenas ao fato ou situação final. Aos primeiros, Carnelutti denominou requisitos estáticos e nós, sob o escólio de Orlando Gomes(1011), diremos que esses elementos essenciais são os pressupostos. Os requisitos dinâmicos são os que se encontram no fato (situação final), mas não na situação inicial, sendo referidos por todos como requisitos, simplesmente. Sobre os pressupostos (ou requisitos estáticos), cabe lembrar que há ato quando o movimento da situação jurídica dá-se pela vontade do homem. Dir-se-ia, com Carnelutti, que “um dos sujeitos desta (situação jurídica) torna-se o agente que, em face do paciente, opera sobre o bem a que se dirigem os seus interesses respectivos, no conflito juridicamente regulado”. São três, então, os pressupostos, ou seja, os pontos de coincidência entre o fato jurídico e a situação inicial: os sujeitos (a que corresponde o pressuposto da capacidade), o objeto (que corresponde ao pressuposto da comerciabilidade) e a relação (correspondente ao pressuposto da legitimação). A propósito dos requisitos (ou requisitos dinâmicos, na dicção de Carnelutti), é bastante observar que os caracteres juridicamente relevantes da mutação (transformação da situação inicial em fato jurí- dico) podem dizer respeito ao tempo, ao espaço ou à forma(1012). Em verdade, o tempo e o espaço podem transformar uma situação inicial (pessoas, coisas e relações ainda não associadas umas às outras) em fato jurídico, a exemplo do que sucede com o usucapião(1013) e a aluvião(1014), respectivamente. Mas, no (1007) CARNELUTTI, Francesco. Teoria Geral do Direito. Tradução de Antônio Carlos Ferreira. São Paulo: Lejus, 1999. (1008) Conforme propõe Carnelutti (op. cit., p. 70), princípio e evento são termos que pertencem à terminologia do fato; causa e efeito, à terminologia da relação. (1009) Sobre os fatos com causa interna, Carnelutti (op. cit. p. 76) explica que há entes com capacidade própria para se transformarem; os fatos têm causa externa quando a transformação “resulta, não já de um ente apenas, mas da combinação de um ente com outro”. (1010) Carnelutti (op. cit. p. 404) preferia, com ainda maior rigor, chamar elementos os requisitos internos, que são intrínsecos aos atos e que são, por ele mesmo, tratados como requisitos dinâmicos, dizendo serem circunstâncias os requisitos externos, por “serem extrínsecas à estrutura do fato, isto é, ao ciclo de situações sucessivas que o constituem, ou seja, aquém da situação inicial ou além da situação final”. (1011) GOMES. Introdução ao Direito Civil, p. 322. O autor faz remissão a Betti. (1012) Nada obstando, porém, que uma mutação complexa se possa revestir de caráter espacial e formal. Assim se dá com o fato em geral, não apenas com o fato em sentido estrito. (1013) O usucapião, conforme artigos 1238 e seguintes do Código Civil, corresponde à prescrição aquisitiva. O fato jurídico temporal (omissivo) mais conhecido é a prescrição extintiva, ou seja, a inexigibilidade de certa pretensão em decorrência do transcurso do tempo. (1014) A aluvião ocorre porque “acréscimos formados, sucessiva e imperceptivelmente, por depósitos e aterros naturais ao longo das margens das correntes, ou pelo desvio das águas destas, pertencem aos donos dos terrenos marginais, sem indenização” (art. 1250 do Código Civil). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 361 direito do trabalho, tem destacada relevância o requisito dinâmico da forma, a que corresponde, como se pode deduzir, o tipo de ato jurídico formal, que é aquele em que a forma é exigida para o desenvol- vimento desde a situação inicial até o ato. Como forma não se deve entender, aqui, alguma forma especial (um documento escrito, público ou particular, por exemplo), mas o modo pelo qual se deve manifestar o devir da situação inicial ao ato(1015). O ato formal é aquele que realiza uma transformação no mundo exterior. Por isso, Carnelutti(1016) observa que a forma, enquanto requisito dinâmico, decompõe-se em três elementos: um econômico (concernente à causa, que é um interesse futuro que estimula a vontade, projetando-se ao início da mutação na mente do sujeito), um elemento psicológico (pertinente à vontade, embora o ciclo psico- lógico não se resuma a esta, ou seja, ao momento em que o pensamento está apto a exteriorizar-se, mas se inicie com o elemento econômico e se encerre com o elemento físico) e um elemento físico (que corresponde à declaração da vontade). Os pressupostos (ou requisitos estáticos) seriam a capacidade, a licitude do objeto e a legitima- ção, ou seja, o que se pressupõe existente para a posterior constituição do fato jurídico. Por sua vez, os requisitos (ou requisitos dinâmicos) do ato jurídico seriam concernentes à duração (no tempo), a quantidade (relativa a espaço) e a qualidade (relativa à forma, a que se relacionam a causa como elemento econômico, a vontade como elemento psicológico e a declaração de vontade como elemento físico). Quando o ato jurídico se constitui pela vontade de uma ou de ambas as partes da relação, tem-se negócio jurídico. É o que ocorre na relação de emprego e em outras tantas relações de origem contra- tual, por exemplo. A ausência de algum dos pressupostos ou requisitos pode gerar a nulidade ou a anulabilidade do negócio jurídico. Se há nulidade, a invalidação do negócio jurídico é pronunciada de ofício pelo juiz (art. 168, parágrafo único, do Código Civil) e, se há anulabilidade, cabem a convalidação pelas partes e a mitigação de efeitos perceptível no artigo 177 do Código Civil: “A anulabilidade não tem efeito antes de julgada por sentença, nem se pronuncia de ofício; só os interessados a podem alegar, e aproveita exclusivamente aos que a alegarem, salvo o caso de solidariedade ou indivisibilidade”. À classificação doutrinária como pressupostos ou requisitos não se associa, porém, uma correlação de efeitos correspondentes, ou seja: embora se perceba alguma tendência legal nesse sentido, a ausência de pressupostos não acarreta necessariamente a nulidade nem a ausência de requisitos conduz sempre a uma hipótese de anulabilidade. Da leitura do artigo 166 do Código Civil é possível extrair que o negócio jurídico é nulo, no âmbito do direito cível, quando celebrado por pessoa absolutamente incapaz (se a incapacidade é relativa há anulabilidade); for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; o motivo determinante (ou causa, conforme já vimos) for comum a ambas as partes e ilícito; não revestir a forma prevista em lei; for preterida solenidade considerada essencial por lei; tiver por objetivo fraudar lei imperativa; ou quando a lei taxativamente o declarar nulo ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. Por sua vez, a incapacidade relativa e o consentimento viciado provocam, em regra, a anulabilidade do negócio jurídico, consoante se infere do artigo 171 do Código Civil. No tópico que segue, vamos sistematizar a análise dos pressupostos e requisitos da relação laboral, esclarecendo quais os efeitos jurídicos (nulidade ou anulabilidade) e patrimoniais (acerca de serem, ou não, devidos salários e indenizações trabalhistas) em cada hipótese. Incluiremos, entre os pressupostos e requisitos, a legitimação e a forma, embora estas sejam elementos essenciais de alguns contratos de emprego, não de todos. O nosso interlocutor nos fará essa concessão, porém, ante a pouca utilidade de se apartar o exame dos elementos essenciais de contratos especiais de emprego, o que alongaria, demasiada e desnecessariamente, o presente texto. Para Carnelutti, o exemplo de fato jurídico espacial seria o imposto progressivo, “segundo o qual o simples aumento de riqueza, indepen- dentemente da sua transformação, produz uma alteração de certas situações jurídicas tributárias” (Carnelutti, op. cit., p. 337). (1015) Com Orlando Gomes (em Introdução do Direito Civil, p. 336), é possível dizer que se emprega em duplo sentido o vocábulo forma: “No primeiro é a própria expressão do ato; no segundo, a veste externa da declaração de vontade”. Carnelutti (op. cit. p. 333) observa, com acuidade, que “quando pensamos num fato jurídico, logo nos vem à mente a transformação em que se traduz o fato formal. Um homicídio, um furto, uma venda, um testamento, uma sentença antolham-se nos fatos jurídicos na medida em que, através deles, se muda a forma do mundo exterior”. (1016) Op. cit., p. 412-425. 362 – Augusto César Leite de Carvalho 12.5.1.1 Os pressupostos: a capacidade, a licitude do objeto e, em alguns casos, a legitimação A) A capacidade trabalhista A norma pode condicionar o efeito jurídico de um ato ao modo de ser da pessoa que o pratica. Se o ato é de emprego, cuida-se de capacidade trabalhista. E se está a tratar de requisito estático, porque se o exige “para a eficácia do fato na medida em que o for para que a pessoa seja sujeito da situação que com o ato se desenvolve”(1017). Nos artigos 3o e 4o do Código Civil(1018), há regras sobre a capacidade civil que se aplicam a um dos sujeitos da relação de emprego, vale dizer, ao empregador. No artigo 3o está previsto que são absoluta- mente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. O artigo 4o prevê que são incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer, os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; os pródigos. Ao prescrever que os absolutamente incapazes não podem exercer, pessoalmente, os atos da vida civil, está o artigo 3o do Código Civil a preceituar, a contrario sensu, que de outro modo eles podem ser sujeitos de relação jurídica, desde que não se obriguem por ato próprio. Por isso, diz-se, no âmbito do direito civil, que todas as pessoas têm capacidade de direito, embora aos incapazes falte a capa- cidade de exercício. Quando se tornam sujeitos de obrigação, os absolutamente incapazes precisam ser representados por seus responsáveis legais, enquanto os relativamente incapazes estão aptos a manifestar a sua vontade na constituição de ato jurídico, contanto que assistidos. Embora as regras do direito do trabalho e do direito civil tenham se aproximado desde algum tempo, não é possível adotar, sem mais, as regras do direito civil no tocante ao empregado, pois ao menos no que tange aos limites etários há alguma dessemelhança. Quanto ao empregado, a norma pertinente é o artigo 7o, XXXIII, da Constituição(1019), que, na linha do que preconiza o art. 3.1 da Convenção 138 da OIT(1020), proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos. Tais preceitos se coadunam com o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, consagrado em todos os níveis normativos e regulado mais exaustivamente no Estatuto da Criança e do Adolescente. O art. 8.1 da Convenção 138 da OIT, convenção fundamental da Organização Inter- nacional do Trabalho, flexibiliza, contudo, essa proteção, ao preceituar que a autoridade competente poderá conceder permissão individual para o trabalho de menores em representações artísticas. Não obstante o aspecto de nossa ordem constitucional ter avançado mais na proteção da criança, e de vigorar a proibição de retrocesso na esfera dos direitos fundamentais, as cenas de filmes e novelas televisivas produzidos no Brasil revelam a adoção, entre nós, da regra permissiva sob exame. Também não corre prescrição bienal ou quinquenal, parcial ou total, contra os menores de dezoito anos (artigo 440 da CLT). Ao atingirem a maioridade, os empregados terão iniciado o prazo prescricio- nal contra a sua pretensão, contando-se cinco anos a partir da data em que completarem dezoito anos; ou se contarão dois anos, se o vínculo já estiver dissolvido. (1017) Cf. Carnelutti. Op. cit. p. 366. (1018) Artigos 5o e 6o do Código Civil de 1916. No primeiro desses dispositivos prescrevia-se que são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de dezesseis anos, os loucos de todo o gênero, os surdos-mudos que não puderem exprimir a sua vontade e os ausentes, assim declarados por ato judicial. No artigo seguinte, que seriam incapazes, relativamente a certos atos, os maiores de dezesseis e os menores de vinte e um anos, os pródigos e os silvícolas. (1019) Conforme redação dada pela Emenda Constitucional n. 20, de 15/12/98. (1020) O art. 3.1 da Convenção 138 da OIT, convenção que figura entre as oito convenções fundamentais (as quais prescindem de ratifi- cação) e que foi de toda sorte ratificada pelo Brasil, prevê: “A idade mínima de admissão a todo tipo de emprego ou trabalho, que, por sua natureza ou condições em que se realize, possa ser perigoso para a saúde, segurança ou moralidade dos menores, não deverá ser inferior a dezoito anos”. O art. 3.3 relativiza o rigor dessa regra, facultando ao Estado-membro permitir o trabalho nessas condições a partir dos dezes- seis anos “mediante prévia consulta às organizações de empregadores e de trabalhadores interessadas, quando tais organizações existirem”. Parece-nos que, no Brasil, a previsão do limite etário na Constituição o converte em direito fundamental e impede, assim, que se cogite de autorização para trabalho perigoso, insalubre ou noturno por menores de dezoito anos. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 363 Acerca da incapacidade relativa, e como observa Rodrigues Pinto(1021), respaldado no artigo 439 da CLT, “a incapacidade relativa trabalhista não inabilita o menor a praticar sozinho os atos relacio- nados com a execução do contrato, como, por exemplo, dar quitação de salários, pactuar alterações favoráveis ao seu interesse [...]”. Há orientação jurisprudencial(1022), ainda, no sentido de se presumir a assistência em favor do menor relativamente incapaz que já obteve, na forma do artigo, 17, §1o, da CLT, a emissão de sua CTPS. Logo, a capacidade de ser empregado observa os seguintes parâmetros: • Os menores de dezesseis anos, ou de quatorze anos no caso de aprendiz, não podem ser sujeitos de relação de emprego(1023). Diferentemente do que ocorre no direito civil, o direito do trabalho não contempla a representação dos absolutamente incapazes para que se tornem, por meio de seus representantes legais, sujeitos de relação de emprego. • A prevalecer a exceção contida no art. 8.1 da Convenção 138 da OIT, como parece ocorrer na prática, autorização individual para a atuação dos atores-mirins seria possível e significaria a possibilidade de extraordinariamente se conceber a contratação de crianças e adolescentes, por seus responsáveis legais, para representações cênicas ou artísticas. • Os trabalhadores maiores de quatorze anos, se aprendizes, ou maiores de dezesseis e meno- res de dezoito anos têm capacidade trabalhista relativa, mas precisam ser assistidos apenas nos atos de constituição ou desconstituição do vínculo empregatício. • Aos dezoito anos, o trabalhador adquire capacidade plena de contratar emprego. • A prescrição não corre contra o menor de dezoito anos. A inobservância do pressuposto da capacidade não impede que o trabalhador menor exija a remu- neração do tempo em que disponibilizou a sua força de trabalho e mesmo o pagamento de verbas da dissolução contratual, uma vez que a proibição do trabalho do menor é norma que visa a este prote- ger e, além disso, é impossível se restituir ao empregado a prestação que lhe coube, qual seja, a sua energia de trabalho. No direito civil, apenas o menor pode postular a rescisão do contrato, em razão de sua incapaci- dade(1024). A regra proibitiva do artigo 7o, XXXIII, da Constituição faz transcendente, todavia, o interesse, que é assim de toda a sociedade, contra o trabalho do menor de dezesseis anos. O Ministério Público se apresenta, em parceria com os agentes de proteção à criança e ao adolescente, como o órgão estatal responsável por promover a obediência a esse limite etário. B) A licitude do objeto Quando acima nos referimos à comerciabilidade do objeto, estávamos, por óbvio, a dizer da sua idoneidade jurídica, ou seja, do modo de ser do objeto da relação jurídica (a prestação exigível, no caso do emprego) que faz dele um bem idôneo para a formação do objeto da situação jurídica inicial, mantendo-se presente na evolução desta até a completa constituição da relação jurídica de emprego(1025). Estamos a cuidar de um pressuposto, ou requisito estático, exatamente porque é ele um ponto de coincidência entre a situação inicial e o fato jurídico(1026). É interessante notar, ainda, que o artigo 166, II, do Código Civil(1027) prevê a nulidade do negó- cio jurídico quando for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto. A propósito do objeto (1021) PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. São Paulo : LTr, 2000. p. 162. (1022) TST, 2a T., Proc. n. RR 2169/87, Rel. Min. Aurélio Mendes de Oliveira, Decisão em 17/11/97, DJ 12/02/88, p. 2109. (1023) Essa regra pode causar estranheza a quem se apegar em demasia à letra do artigo primeiro do Código Civil, que universaliza a capa- cidade de direito, ao estatuir que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Contudo, parece, uma vez mais, assistir razão a Carnelutti (op. cit., p. 367) , quando sustenta que “capacidade jurídica e capacidade de agir, logicamente, são coisas distintas, mas, na prática, semelhantemente a situação e fato, são uma só e a mesma coisa. Elas configuram o aspecto estático e dinâmico de um mesmo fenômeno. O que para a eficácia do ato importa é que os seus sujeitos sejam pessoas que possam ser sujeitos da situação jurídica inicial”. O autor refere exemplos extraídos da norma penal e comercial, em que há restrições tanto à capacidade ativa como à capacidade passiva, ou apenas a uma delas, para concluir que “não existe uma capacidade para todos os atos como não existe uma capacidade para todas as situações, e que a capacidade é, antes, regulada por categorias de atos e de situações”. (1024) Cf. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 285. (1025) Cf. Carnelutti, op. cit., p. 376. (1026) O fato jurídico é, no nosso caso, a relação de emprego. (1027) Artigo 145 do Código Civil de 1916, que não fazia alusão ao objeto indeterminável. 364 – Augusto César Leite de Carvalho impossível, é correto afirmar que a água do mar e o ar atmosférico não são, rigorosamente, coisas fora do comércio. A bem dizer, não são coisa alguma, porque a coisa é uma porção finita da realidade. Essa noção de finitude fica clara quando percebemos que a mesma água do mar, vertida em um balde e levada a região agreste, onde seja ela um bem exótico e valioso, adquire a condição de coisa e pode, assim, ser objeto de relação jurídica(1028). Como o objeto da relação jurídica nem sempre é uma coisa, podendo ser uma prestação de fato, Orlando Gomes(1029) defende que objeto nos negócios jurídicos(1030) são «as vantagens patrimoniais ou extrapatrimoniais, consistentes em coisas ou serviços que interessam aos indivíduos». E arremata: “Os negócios que têm como objeto serviços exigem a prática de atos que satisfaçam determinadas necessidades humanas”. Mas, qual, afinal, seria o objeto ou prestação exigível da relação jurídica de emprego? No que toca ao empregado, a resposta correta seria alusiva à disponibilidade da energia de trabalho. Há relação de emprego pelo simples fato de o trabalhador sujeitar a sua força à direção de quem pretende lhe tomar os serviços, mesmo antes de a essa força de trabalho ser dada uma destinação qualquer. Por isso, assiste razão ao professor Rodrigues Pinto(1031) ao afirmar existir, na relação de emprego, um objeto imediato ou próximo (a disponibilidade da energia de trabalho) e um objeto mediato ou remoto (pertinente ao direcionamento dado à energia de trabalho, pelo empregador). O objeto imediato é sempre lícito, dado que a ordem jurídica autoriza a disponibilização da energia de trabalho, mediante contrato de emprego. Entretanto, se a prestação de trabalho disponibilizada é, em si, ilícita – a exemplo daquela situação teratológica em que a prestação contratada seja a de matar ou ferir pessoas – haverá objeto ilícito e, portanto, contrato nulo. Caso a ilicitude não esteja na prestação de trabalho, mas sim nos motivos que inspiraram sua contratação, haverá causa ilícita, não se cogitando mais de objeto ilícito(1032). A proximidade entre essas duas noções provoca alguma perplexidade no plano teórico(1033), mas a raridade com que a jurispru- dência enfrenta casos de causa ilícita faz dessa confusão, no plano prático, um problema menor. Logo, e à semelhança do que sucede no âmbito do direito civil, a ação voluntária de praticar um delito ou de contribuir para a sua prática é delituosa, porquanto típica e antijurídica, não surtindo o efeito jurídico pretendido, validamente. A ilicitude do objeto da relação de emprego impede que se assegure ao trabalhador qualquer prestação trabalhista, seja salarial ou indenizatória(1034). Uma derradeira observação se faz, contudo, necessária e diz respeito à configuração da ilicitude ou antijuridicidade de um ato concreto qualquer. A tradição positivista dos agentes do direito, no Brasil, impele-os, muita vez, a que confundam a tipicidade da conduta (o fato de ela estar prevista, em norma (1028) Cf. Carnelutti. Op. cit. p. 377. (1029) Op. cit. p. 326. (1030) Conforme Orlando Gomes (em Introdução ao Direito Civil, p. 238), negócio jurídico é “toda declaração de vontade destinada à produção de efeitos jurídicos correspondente ao intento prático do declarante, se reconhecido e garantido pela lei”. (1031) Op. cit. p. 165. (1032) Se a intenção de praticar a ilicitude não habita o pensamento do trabalhador, mas este apenas contribui, involuntariamente, para o exercício ilícito de uma atividade econômica (suponha-se o empregador que não está habilitado, na forma da lei, a exercer sua atividade econômica ou profissional), ou para o exercício dissimulado de uma atividade ilícita, o elemento do negócio jurídico inquinado de ilicitude é, nessas hipóteses, a causa, vale dizer, o interesse que o empregador buscou satisfazer por meio da energia de trabalho do referido empre- gado. Não haveria, em tais casos, objeto ilícito, a menos que o trabalhador tivesse conhecimento da ilicitude praticada pelo tomador dos seus serviços e fosse, nessa medida, coautor ou partícipe do delito. (1033) Embora devamos estudar a causa mais adiante, cabe aqui transcrever a pertinente observação de Carnelutti (op. cit., p. 376): “[...] Esse erro consiste em ter confundido o objeto com a causa, isto é, e em substância, o bem com o interesse [...]. É certo que a distinção entre os dois requisitos pode ser delicada e difícil de descobrir; mas existe. Assim e nomeadamente a compra e venda de um homem é viciada não de ilicitude da causa mas de incomerciabilidade do objeto; vice-versa, o vício é causal no contrato de meretrício, pois o corpo humano [...] não é afetado de uma incomerciabilidade total e pode, portanto, ser objeto de obrigações; o interesse que aqui constitui o conteúdo da obrigação é que é de natureza tal que a norma não permite a sua tutela”. (1034) Em razão da diferença de tratamento dispensada à matéria pelo professor Rodrigues Pinto, sustenta este autor, ao versar sobre os efeitos da nulidade consequente de objeto ilícito (op. cit. p. 191), que “se o empregado conhece a atividade de contrabando e para ela não contribui diretamente, pois apenas faz a limpeza do recinto onde se realiza, [...] deve preservar-se da retroação apenas a contraprestação salarial, correspondendo diretamente à energia utilizada pelo empregador, visto ter sido passiva a postura do empregado e não contributiva, diretamente, para o resultado ilícito do empreendimento”. Como o mestre baiano está usando, a título de exemplo, uma empresa dedicada à prática de contrabando sob a dissimulação de uma atividade comercial comum, parece-nos que há causa ilícita, ou mesmo falsa causa, não podendo ser nulo o ato por ilicitude de seu objeto. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 365 legal, como delito) com a sua antijuridicidade, malgrado o direito penal há muito abomine essa erronia. Por exemplo: sem questionar a reprovabilidade da conduta nos dias atuais, a orientação jurispruden- cial n. 199 da SBDI-1 tem consagrado, há algum tempo, que “é nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico”. Não custa recordar que a tipicidade faz presumir a ilicitude, ou seja, a reprovabilidade social da conduta, mas o Direito protege o autor do fato típico sempre que a sua ação se enquadre em uma causa legal (legítima defesa, estado de necessidade etc.) ou extralegal (hipóteses em que a ação é típica, mas o tipo penal caiu em desuso, dada a aceitação social da conduta nele subsumida) de exclusão da antijuridicidade. É de se perguntar: os cambistas do jogo do bicho, que atuam aos olhos clementes das autoridades policiais e judiciais repressivas, estariam a realizar conduta ilícita porque socialmente reprovável? Embora seja inquestionável a tipicidade da conduta – está a prática descrita, em norma legal, como uma das hipóteses de contravenção – e não raro seja ela associada à prática de outros delitos, o câmbio de apostas per se seria comportamento socialmente repulsivo? A sociedade faz as suas apostas porque parece desdenhar dessa tipicidade e, quando não vinculam a aposta no bicho a outros delitos de maior nocividade, as autoridades responsáveis pela repressão estatal tole- ram-na, igualmente. C) A legitimação Com o intuito de distinguir capacidade de legitimação, Orlando Gomes e Elson Gottschalk(1035) ressaltam: Toda pessoa capaz pode obrigar-se por um contrato de trabalho que tenha objeto lícito. Mas, essa aptidão geral para vincular-se por esse negócio jurídico sofre limitações em relação à celebração do contrato de trabalho com determinado objeto, por parte de certos indivíduos. Ao introduzirmos o assunto relativo aos elementos essenciais da relação de trabalho, enfatizamos a conveniência de nos apegarmos aos princípios da estática e da dinâmica jurídica, sustentados por Carnelutti. Com esse valioso suporte teórico, incluímos a legitimação entre os pressupostos – ou requi- sitos estáticos – da relação jurídica de emprego, adotando, aqui e assim, a premissa de que estamos a cuidar de elemento contido na situação jurídica inicial, que pelo ato de emprego se desenvolve até formar-se a relação jurídica de trabalho. Podemos afirmar que, enquanto a capacidade é um modo de ser do sujeito em si, a legitimação “resulta de uma sua posição, isto é, de um modo de ser para com os outros”(1036). Anota ainda Carnelutti que o conceito de legitimação evoluiu melhor no campo do direito processual, ao se perceber que do autor e do réu não se exigia apenas a capacidade, mas igualmente o elemento da legitimação (legiti- midade ad causam), isto é, um elemento que, ligando-os desde o conflito de interesses que precedeu a ação judicial (ou seja, ligando-os desde a situação inicial), deveria estar a ligá-los na relação jurídica processual que por essa ação se constituía. Tentando escapar do plano estritamente teórico, poderíamos observar que o menor que tem dezesseis anos ou mais é relativamente capaz de ser empregado, mas não o será se o contrato de trabalho for daqueles que os menores(1037) não podem celebrar, a exemplo dos que exigem trabalho noturno, perigoso ou insalubre (artigo 7o, XXXIII, da Constituição)(1038). A lei, ao negar a pessoas que não possuam a graduação acadêmica correspondente o exercício de certas profissões, está a estatuir que a essas pessoas falta legitimidade para serem empregados em áreas que tais. Novamente inspirados em Gomes e Gottschalk(1039), devemos reparar que não se pode vislumbrar ilicitude do objeto nos exemplos dados. Regra geral, o trabalho noturno, perigoso ou insalubre, assim como o exercício da advocacia, medicina ou engenharia não são ilícitos. Há licitude do objeto, faltando, embora e nas hipóteses referidas, o pressuposto da legitimação. (1035) GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Atualização de José Augusto Rodrigues Pinto. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 148. (1036) Cf. Carnelutti. Op. cit. p. 383. (1037) Menores que já o eram na situação inicial, ou seja, antes de se constituir a obrigação trabalhista, por isso se cuidando de requisito estático ou pressuposto. (1038) Algumas outras restrições eram impostas às mulheres, mas a Lei n. 9.799/99, porventura inspirada no princípio da isonomia, alterou o artigo 373 da CLT, dando-lhes tratamento apenas protetivo. (1039) Op. cit. p. 149. 366 – Augusto César Leite de Carvalho O artigo 166 do novo Código Civil enumera os elementos essenciais dos atos jurídicos cuja inob- servância os torna nulos, incluindo, para esse efeito, o negócio jurídico “que tiver por objetivo fraudar lei imperativa”. Mas a sua aplicação subsidiária, autorizada pelo artigo 8o da CLT nos casos de omissão da ordem trabalhista e compatibilidade com o princípio da proteção, nem sempre se faz necessária em se tratando de matéria pertinente aos elementos essenciais do contrato, já que o artigo 9o da CLT pres- creve: “São nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”. Assim, o ato infringente de qualquer norma protetiva(1040) é nulo, embora a impossibilidade de devolver as partes à condição em que estavam antes do negócio jurídico assegure ao trabalhador a remuneração correspondente ao tempo em que disponibilizou sua força de trabalho e as verbas rela- tivas à dissolução do contrato, tal como dissemos a propósito da ausência de capacidade. Assim se dará com o menor que indevidamente prestar trabalho insalubre, perigoso ou noturno. Solução diversa será adequada quando a legitimação para algumas pessoas – e não para todas as pessoas capazes – é prevista em razão de interesse de toda a sociedade, a exemplo do que ocorre nos casos de exercício ilegal de profissão (que não encerra proteção ao próprio empregado), decerto a nulidade do contrato vai depender de tal efeito estar referido em lei(1041), parecendo-nos, após detida reflexão, que a prestação de trabalho não surtirá o direito à correspondente remuneração ou verbas indenizatórias se o caso for daqueles que repugnam o corpo social, a exemplo de falsos médicos que põem em risco a vida e a saúde de seus ingênuos pacientes. 12.5.1.2 Os requisitos da relação de trabalho: causa, consentimento e, excepcional- mente, a forma especial Dadas as peculiaridades da relação jurídica de emprego, somente os requisitos que correspon- dem à forma, que são os requisitos de qualidade, merecem estudo destacado(1042). Exatamente por ser o contrato de emprego, como regra, do tipo consensual (não solene), o nosso estudo estará centrado nos elementos econômico (causa) e psicológico (vontade induz consentimento) do requisito formal. A alusão ao elemento físico (declaração de vontade) dar-se-á em caráter extraordinário, com as vistas voltadas às situações em que ele é excepcionalmente exigido. A) A causa Ao afirmar, com apoio em Carnelutti, que a causa é o componente econômico do requisito formal, estamos a compreender a forma como o modo sob o qual se manifesta a mutação de situação jurídica inicial em relação jurídica de emprego, não restringindo o termo forma à acepção que o reduziria à declaração escrita da vontade, que seria um seu elemento (o elemento físico). O adjetivo econômico é usado, por sua vez, em seu sentido mais amplo, entendendo como economia “tudo aquilo que é atinente ao desenvolvimento dos interesses, com inclusão daqueles a que, um pouco por aproxima- ção, se dá o nome de interesses morais.”(1043) Por seu turno, a noção de interesse está associada à insuficiência, para atender às necessidades de todos os homens, dos bens materiais ou ideais que podem ser objeto de apropriação. A causa é, portanto, o interesse que estimula a vontade. Contudo, é preciso notar que o empregador pode, no campo das hipóteses, constituir a relação de emprego com empregada, tencionando, embora, conquistá-la como mulher; também pode suceder de o empregado se candidatar, com êxito, a emprego de que não pretende extrair a remuneração indis- pensável à sua subsistência, por ser de outra ordem o seu interesse. Em biografia escrita por Fernando de Moraes, é antológico, por exemplo, o episódio em que Assis Chateaubriand aceita o emprego de copeiro em uma casa de família, cuja matriarca o confundiu com um possível pretendente de tal (1040) A nosso pensamento, a referência aos preceitos contidos na CLT é resultante de uma primeira pretensão, logo malograda, de integrar toda a ordem jurídica trabalhista no texto consolidado e, por isso, não impede que se aplique a pena máxima da nulidade nas hipóteses em que o preceito violado está contido em outra norma trabalhista. (1041) Consoante reza o art. 145, V, do Código Civil. (1042) Vimos que os requisitos dinâmicos do fato jurídico são aqueles que se encontram ausentes na situação inicial e são requisitos de duração, de quantidade e de qualidade. (1043) Cf. Carnelutti, op. cit., p. 414. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 367 vaga, malgrado ele a fosse visitar com o intuito de postular o seu ingresso na equipe de jornalistas da empresa de comunicação por ela mantida. Mais adiante e se valendo desse artifício, Chateaubriand alcançou o seu intento, empregando-se no Jornal. Qualquer interesse configuraria a causa? Houve acirrada divergência entre teóricos subjetivistas, defensores da razão determinante da vontade de contratar (o interesse, porventura lícito, de oferecer-se ao emprego visando à conquista do empregado de outro sexo), e os teóricos objetivistas, que advoga- vam a preeminência da causa típica, a ser investigada em vista da significação social do negócio jurí- dico e sua função, ao pressuposto de que o ordenamento jurídico protege apenas os negócios jurídicos socialmente úteis (na relação de emprego, a causa típica para o empregador é o interesse em obter a utilidade do trabalho a ser prestado pelo empregado; para o empregado, o recebimento de salário). Logo se notou que a prevalência do objetivismo conduziria à inutilidade da noção de causa, pois a causa seria, sempre, a antevisão do objeto da relação jurídica, bastando a verificação deste para se indagar, daquela, a ilicitude. O embate dialético entre as duas correntes resultou, por isso, no sucesso de uma concepção dualista, que “admite a causa típica dos objetivistas, mas não despreza a noção subjetiva, entendendo que a função econômico-social de cada tipo de negócio jurídico tem de ser examinada à luz do resultado visado pelas partes, ao celebrá-lo”(1044). Da visão teórica à prática, dizemos, com apoio em Orlando Gomes(1045), que quando um juiz examina uma relação jurídica, constituída para que uma das partes ofereça a sua energia de trabalho em troca de alguma remuneração, não se limita o juiz a identificar o contrato de emprego como o tipo de negócio jurídico a que corresponde esse esquema objetivo, para aplicar, então, as regras legais pertinentes. Indaga tal magistrado, ainda, se as partes usaram o negócio jurídico para atender a inte- resse lícito, esteja ou não presente, no caso concreto, a causa típica. Nos exemplos citados, em que o empresário se tornou empregador para conquistar a candidata ao emprego ou o jornalista se travestiu de copeiro para assim viabilizar a sua contratação pelo Jornal da dona da casa, a razão determinante não conta, em princípio, com a reprovabilidade social que a faria ilícita. A causa será antijurídica, contudo, se o interesse, que mover o empregador, for o de utilizar o trabalho do empregado com a intenção de dar à vista uma atividade econômica aparentemente regu- lar, mas que serve de fachada para escamotear a sua prática ilícita. Imagine-se, já agora, o proprietário de loja de utensílios domésticos que inclui entre os bens, que oferece ao comércio, as mercadorias que obtém por meio de descaminho ou contrabando; ou o titular de estabelecimento farmacêutico que disfarça, em sua drogaria, o mercado de substância entorpecente; ou ainda o titular de empresa hote- leira que a usa para a prática de rufianismo. Resta saber se essa causa ilícita torna nulo o contrato. Entre os civilistas, a discussão tornou-se por muitos anos esquecida, assim sucedendo por força de um artifício do legislador, que não incluiu, no artigo 145 do Código Civil de 1916, a causa ilícita como uma das razões de se inferir a nulidade do contrato(1046). Estava a referência à causa apenas em seus artigos 90 e 92, aquele a prescrever que “só vicia o ato a falsa causa, quando expressa como razão determinante ou sob forma de condição”, este último a dizer que “os atos jurídicos são anuláveis por dolo, quando este for a sua causa”. É inte- ressante notar que os dois dispositivos (artigos 90 e 92 do Código Civil de 1916) foram mantidos no Código Civil em vigor a partir de 2003 (artigos 140 e 145), mas estão, em ambos os códigos, inseridos na seção que trata dos vícios da vontade, em meio a artigos que tratam de erro, ignorância e dolo, não (1044) Cf. Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, p. 334. (1045) Op. cit. p. 334. O exemplo do autor não é rigorosamente este, mas serve de inspiração. (1046) O Código Civil de 1916 denuncia a índole positivista de seus autores, quando abstrai da causa para regular apenas os elementos seguintes da forma, quais sejam, a vontade e a declaração da vontade. Desse modo, opera o legislador com categorias jurídicas que se elevam a um segundo grau de abstração (não há referência a modelos de condutas, mas a características ou elementos extrínsecos e comuns a todas as condutas possíveis), aproximando-se mais, assim, do seu ideal de conceber um sistema jurídico completo e desapegado de referên- cias metafísicas. Sobre essa concepção formalista do direito, que arrisca confundir o justo com o legal, é eloquente o comentário de Clovis Bevilaqua, inserto em edição histórica do Código Civil, ao seu artigo 90: “Os motivos do acto são do domínio da psychologia e da moral. O direito os não investiga, nem lhes soffre influencia; excepto quando fazem parte integrante do acto, que appareçam como razão delle, quer como condição de elle dependa. Enquanto se mantém na esphera da elaboração interna, ou, ainda que manifestada, se não faz corpo com o acto, seria, realmente, perigoso considerar a falsa causa como viciadora da declaração. Por outro lado, é, muitas vezes, do interesse do agente não denunciar a causa do acto” (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado por Clovis Bevilaqua. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975. p. 338). 368 – Augusto César Leite de Carvalho tratando, estritamente, de causa. Além disso, versam, somente, sobre a falsa causa (ou falso motivo, como está no novo Código Civil) e sobre a vontade viciada por dolo(1047), que é vício da vontade a ser estudado mais adiante. A falsa causa ou falso motivo, referido no artigo 140 do atual Código Civil, não se confunde com a causa ilícita. No primeiro caso, dá-se a realização de negócio jurídico em razão de causa expressa que se percebe, mais adiante, inverídica(1048); na causa ilícita, verifica-se interesse que “contraria a normas imperativas, à ordem pública e aos bons costumes”(1049), vale dizer, interesse que contraria o sentimento de justiça objetivado na sociedade. A nosso pensamento e ainda sobre a falsa causa, a aplicação do artigo 140 do Código Civil ao direito do trabalho parece duvidosa nas hipóteses em que a causa que move o empregador é falsa. É que afeta o princípio da proteção a atribuição de nulidade a um contrato que tenha causa falsa, mas lícita, se o empregado já está a disponibilizar a sua força de trabalho. Por outro lado, pensamos seja apenas cere- brina a possibilidade de a causa falsa ser a do empregado – ou seja, o interesse que moveu o empregado – e, em prejuízo do interesse (típico) de obter renda e sustento, ser a causa determinante. Mas, se não se vislumbra falsa causa, mas sim causa ilícita? Sucede a nulidade? O que há de novo é o preceito inserto no artigo 166, III, do Código Civil editado em 2002, que inclui entre as hipóteses de nulidade do negócio jurídico aquela em que o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito. Trata-se, não temos dúvida, do resgate da causa (ou motivo) como um dos requisitos do contrato(1050). A norma, porém, é clara: somente a ilicitude do motivo determinante para ambas as partes acarreta a nulidade; se o motivo ilícito é determinante para uma só das partes, a parte inocente não sofre os efeitos da nulidade. Ousamos defender que, inclusive sob a regência do Código Civil de 1916, cujos dispositivos não previam o motivo ilícito como uma das hipóteses de anulabilidade, a causa ilícita do contrato de emprego, mesmo quando não expressa como motivo determinante, seria fator de nulidade. Até porque a causa ilícita desvirtua a proteção legal e o artigo 9o da CLT estatui: “Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”. Portanto, a causa ilícita gera a nulidade do contrato. Sobre os efeitos dessa nulidade, basta obser- var que a relação de emprego é concausada – pois assiste uma causa ao empregado e outra, ao empregador – e recordar o que já dissemos sobre os efeitos da nulidade contratual quando o objeto é ilícito. Assim, nada será devido ao trabalhador somente na hipótese de ter sido dele, ou de ambos, (1047) Percebe-se, à simples leitura do artigo 92 do Código Civil de 1916, que não está ele a tratar da causa, vista esta como um dos requisi- tos do contrato. Em vez disso, cuida dos negócios jurídicos que têm o dolo a viciar a vontade, e não o interesse (ou seja, a causa) que, antes, teria estimulado o surgimento dessa vontade. (1048) Carvalho Santos (SANTOS, João Manuel de Carvalho. Código civil brasileiro interpretado. Vol. II. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1985. p. 324) refere-se ao testador que lega a Pedro uma casa e declara que o faz por este o ter salvado de um incêndio, quando foi Paulo quem o salvou. Orlando Gomes (Op. cit. p. 335), por seu turno, parece reportar-se à causa típica, quando diz que se nota a falsa causa quando há a utilização de negócio jurídico para alcançar resultado que só por outro tipo de negócio jurídico pode ser atingido (exemplo: a venda, com o real intuito de doar). (1049) Cf. Orlando Gomes. Op. cit. p. 335. Orlando Gomes observa que há, ainda, a ausência de causa, quando se usa contrato para fim que não corresponde à sua função (como ocorre quando se contrato seguro – que é contrato em que se transfere o risco de um sinistro involuntário – em hipótese em que não há risco), e o vício na causa, nos negócio em fraude a credores e nos lesivos por desproporção entre as prestações. (1050) Irresistível é questionar, no tocante à sua estrutura lógica, a coerência interna do Código Civil de 1916, pois ao mesmo tempo em que nega à causa a relevância inerente aos elementos essenciais dos negócios jurídicos, estão de causa tratando alguns dos seus vários disposi- tivos que referem a má-fé (que é um conceito indeterminado não raro associado ao interesse ilícito) como elemento gerador de obrigação (arts. 513, 514, 546 e 547), também prevendo a invalidade dos contratos de seguro em que a causa típica (o interesse de transferir a outrem o risco de eventual sinistro) é ilícita ou inexistente (arts. 1440 e 1452). Em apoio à crítica a esse arraigado positivismo (que já dissemos derivar, ao que pensamos, de um anseio desmesurado pela completude do sistema jurídico), poderíamos redarguir que serão dificilmente anulados, sem remissão à ilicitude de sua causa, o contrato de seguro de vida de pessoa agonizante, firmado com o disfarçado interesse de sorver o dinheiro de seguradora, com a eventual leniência dos gestores desta, para tornar impenhorável o crédito a ser obtido por segurado (art. 649, IX, do CPC) que acaso se encontre em processo de insolvência; o contrato aleatório (celebrado conforme art. 1118 do Código Civil) de compra dos produtos de safra quando o real intuito é o de eliminar o comércio agrícola local. Sobre a falsa causa não expressa (o art. 90 do CC invalida somente a falsa causa expressa), o que dizer da doação que ocorreu para gratificar uma ação heróica em favor do doador, quando é dirigida, por equívoco, em favor de pessoa diversa da que cometeu o ato de heroísmo? Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 369 o interesse de utilizar o contrato de emprego para fim ilícito(1051). Se a causa ilícita foi a do emprega- dor(1052), nota-se que o empregado pode dela não ter ciência, ou ainda a ter, mas sem contribuir para a consumação do ato antijurídico. Na primeira hipótese, o contrato poderá ser rescindido, se o motivo ilícito se objetivar mediante ações delituosas, porém o empregado terá direito às parcelas salariais e indenizatórias pertinentes(1053); na hipótese derradeira, caber-lhe-á a contraprestação salarial, em sentido estrito. B) O consentimento O consentimento é o ajuste de vontades e, como vimos, a vontade é o segundo elemento do requisito formal de qualquer negócio jurídico, é o seu elemento psicológico. O estudo da vontade não se destina a investigar todas as hipóteses em que a vontade é válida, mas, como sucedeu quando examinamos os outros elementos essenciais, procuraremos identificar as situações em que a vontade é defeituosa e tal defeito torna o ato anulável(1054), preservando a validade de todas as outras situações. Poderemos constatar, sob o escólio de Orlando Gomes(1055), que alguns vícios de vontade – o erro, o dolo e a coação – traduzem uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada. São os vícios psíquicos. Além destes, há os vícios sociais, quais sejam, a simulação e a fraude contra credo- res, que não atingem, segundo Bevilaqua(1056), a vontade “na sua formação, na sua motivação, mas tornam o ato defeituoso porque configuram uma insubordinação da vontade às exigências legais no que diz respeito ao resultado querido”. A esses tradicionais defeitos da vontade, o atual Código Civil acresceu o estado de perigo e a lesão, que decerto se somariam aos vícios psíquicos. Quando recordamos o receio, que Bevilaqua disse ter, de incluir o motivo lícito do ato jurídico entre os requisitos de sua validade, percebemos que o resultado querido remonta, em verdade, à causa, e, portanto, os vícios sociais (simulação e fraude contra credores) são, em última análise, a projeção de defeitos, inerentes à causa do negócio jurídico, na vontade e na declaração da vontade, contaminando-as. Como quer que seja, os vícios de vontade não se confundem com a ausência da vontade, ocor- rendo essa falta de vontade nos casos de falsidade – a manifestação de vontade parte de outra pessoa que não o sujeito –, violência física e incapacidade natural. Para alguns autores, referidos casos nem mesmo seriam de nulidade ou anulabilidade, mas, de lege ferenda, implicariam a inexistência do negó- cio jurídico. É fácil notar, enfim, que os vícios da vontade se apresentam em conjunto, muita vez, em algumas relações de emprego. Outras vezes, um deles basta à anulabilidade ou à nulidade do contrato que constituiu o liame empregatício. O erro é uma falsa representação e não se confunde com a ignorância, referida na mesma seção do Código Civil, como se nota em excerto da obra de Carvalho Santos, que Rodrigues Pinto(1057) destaca: “A ignorância é a ausência de qualquer ideia sobre uma pessoa ou objeto, enquanto o erro é (1051) Pode-se imaginar, v. g., o contrato de emprego firmado por pai e filho e por eles fielmente executado com o intuito, não revelado a terceiros, de assegurar a este último, mediante salário alto e diferenciado, crédito trabalhista que teria preferência em relação a outros crédi- tos tributários ou quirografários, na iminente falência do pai-empregador (art. 449 da CLT). Percebe-se, nesse exemplo, que o motivo ilícito fora determinante para ambas as partes. (1052) Como já havia antecipado, o interesse que move o empregador é ilícito quando ele pretende utilizar o trabalho do empregado com a intenção de dar à vista uma atividade econômica aparentemente regular, mas que serve de fachada à sua prática ilícita. Relembre-se, verbi gratia, o proprietário de loja de utensílios domésticos que inclui entre os bens, que oferece ao comércio, as mercadorias que obtém por meio de descaminho ou contrabando; ou o titular de estabelecimento farmacêutico que disfarça, em sua drogaria, o mercado de substância entorpecente; ou ainda o titular de empresa hoteleira que a usa para a prática de rufianismo. (1053) Vale lembrar que a regra de a nulidade importar o retorno das partes ao status quo ante é, aqui, inaplicável, porque a restituição das partes à situação inicial é impossível, ante a inviabilidade de se restituir a prestação que coube ao empregado, qual seja, a disponibilidade de sua energia de trabalho. (1054) Diferente do ato contaminado de nulidade, que é declarada pelo juiz de ofício e tem efeito desde a constituição do vínculo (efeito ex tunc), o ato susceptível de anulabilidade somente pode ser anulado quando o juiz, para tanto, é provocado, surtindo efeito essa anulação a partir de quando é declarada (efeito ex nunc). Segundo Orlando Gomes (op. cit., p. 365), há defeitos da vontade ou de sua declaração que não autorizam sua anulação, tais como a transmissão inexata, a reserva mental e a vontade declarada por gracejo. (1055) GOMES, Introdução ao Direito Civil, p. 365. (1056) Apud Orlando Gomes, op. cit., p. 365. (1057) PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. p. 169. 370 – Augusto César Leite de Carvalho mais alguma coisa, pois é a substituição da verdadeira ideia por uma ideia falsa sobre a pessoa ou a coisa”. Como prescreve o artigo 138 do Código Civil(1058), somente o erro substancial(1059) anula o ato. Na relação de emprego, a possibilidade, embora remota, de erro poderia acontecer na falsa repre- sentação da natureza do ato (o sujeito supõe que inicia relação de trabalho autônomo), da pessoa (empregador ou empregado supõe contratar com pessoa de boa reputação social, desiludindo-se) ou da prestação de trabalho (outra qualidade ou quantidade). Como se está a cuidar de ato anulável, a sentença anulatória não surtirá efeito retroativo. O dolo é o artifício ou expediente astucioso usado para induzir alguém a erro, que aproveita ao autor do dolo ou a terceiro. Carvalho Santos(1060) observa que o outro sujeito da relação jurídica deve ser o autor do dolo ou ter dele (do dolo) conhecimento, criticando, enfim, a definição de Bevilaqua, que faz referência, descabida a seu pensamento, ao aspecto de o dolo causar, necessariamente, prejuízo. Havendo prejuízo, pode a parte inocente pedir a anulação do ato e o ressarcimento pelo dano doloso. Não havendo o dano, basta a prova do erro para a anulação do ato(1061). A coação que vicia o consentimento é a coação moral (vis compulsiva), sendo ela a ameaça capaz de incutir temor. A ameaça de dispensa sem justa causa é, por exemplo, uma coação moral – ou, mais especificamente, uma coação econômica – a que está sujeito, não raro, o empregado. A ordem jurídica nega efeito aos atos coativos, a ponto de o artigo 468 da CLT declarar nula(1062) a alteração contratual que for prejudicial ao empregado, mesmo contando com a declaração de vontade deste. Além disso, o poder constituinte reservou à vontade coletiva – que é, a princípio, imune à coação econômica – o poder exclusivo de ajustar redução salarial e prorrogação de turnos ininterruptos de revezamento. Como já se pôde verificar, a coação física (vis absoluta) implica a ausência da vontade e, por conseguinte, a inexistência do negócio jurídico. Ainda assim, não se há negar ao trabalhador que prestou serviço em regime de escravidão todas as prestações trabalhistas devidas aos trabalhadores livres, sendo vedado ao tomador dos serviços invocar a própria torpeza, por óbvio. A simulação é a declaração ilusória da vontade, com o fito de enganar a terceiro e alcançar fim contrário à lei. Pode ser absoluta, quando o ato simulado não disfarçar ato algum, a exemplo do que sucede com a relação de emprego inexistente, que é reduzido a termo em instrumento contratual e anotado em CTPS do suposto empregado com o objetivo fraudulento de simular tempo de serviço para efeito previdenciário ou, ainda, visando disfarçar crédito trabalhista que obterá preferência em processo falimentar. Quando a simulação é relativa, ao ato simulado (um contrato de locação de veículo, verbi gratia) se contrapõe um ato dissimulado (um contrato de emprego com o dono do veículo), a atrair a incidência do princípio da primazia da realidade. É bom notar, com base no artigo 167 do Código Civil(1063), que a simulação não incide apenas sobre a natureza do vínculo (locação versus emprego, por exemplo), sendo simulado qualquer ato que aparentar conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas a quem realmente conferem ou transmitem (inciso I), ou o ato jurídico que contiver declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira (inciso II) ou, por último, quando o instrumento contratual, em sendo o ato bilateral, for antedatado ou pós-datado (inciso III). Diversamente do que acontece nas hipóteses de vícios psíquicos (erro, dolo, coação, lesão e estado de perigo), essa diferença entre a vontade real e a vontade declarada é, na simulação, proposi- tal. Em verdade, na simulação relativa a vontade declarada não é real porque o interesse que precedeu (1058) Artigo 86 do Código Civil de 1916. (1059) Segundo prevê o artigo 139 do Código Civil, o erro é substancial quando interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma das qualidades a ele essenciais (I); concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante (II); sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico”. (1060) Op. cit., p. 327. (1061) Carvalho Santos (op. cit., p. 328) acompanha crítica de Giorgi ao ressaltar que a ligação conceitual entre erro e dolo faz o dolo ter diminuta importância, porque “ou o erro de um contratante foi causa determinante do contrato, e será, por si mesmo, um meio de anulação, seja ou não procedente de dolo do outro; ou não foi causa determinante do ato e não dará lugar à anulação, nem como erro, nem como dolo”. Mas o autor faz uma ressalva: “A verdade, porém, é que o ato pode não ser anulável por erro, como o que recai sobre qualidade acidental, e o ser por dolo”. (1062) Não apenas anulável, como podemos notar ao estudo da prescrição trabalhista. (1063) Artigo 102 do Código Civil de 1916. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 371 a vontade era o de obter uma prestação típica de outro contrato, o que equivale a dizer que a simula- ção relativa é um vício de causa, como observa Orlando Gomes(1064): A simulação distingue-se dos vícios do consentimento porque a divergência entre o que querem as partes e o que declaram é produzida deliberadamente. Trata-se de vício de causa. O contrato aparente chama-se contrato simulado; o outro, contrato dissimulado. O Código Civil editado em 2002, no artigo 167, inovou ao cominar a nulidade (não mais a anula- bilidade, que depende de provocação da parte e não surte efeitos retroativos) dos atos simulados e, traduzindo para a seara cível o princípio da primazia da realidade, tão caro entre os juslaboralistas, o citado dispositivo prescreve, ainda quanto ao negócio jurídico simulado, que “subsistirá o que se dissi- mulou, se válido for na substância e na forma”. Sobre a fraude, diz-se que tal se apresenta quando se faz uso da norma jurídica com fim diverso daquele que a inspirou. Exemplo: quando o proprietário de meios de produção forja uma falsa coope- rativa de serviços, com a finalidade de dissimular relações de emprego, tentando eximir-se de obriga- ções trabalhistas com o suporte do artigo 442, parágrafo único, da CLT, incorre em fraude à lei(1065) e atrai, contra si, a regra do artigo 9º da CLT, que impõe a nulidade(1066) do ato fraudulento. Incluem-se entre os vícios de consentimento enumerados no artigo 171, II, do Código Civil em vigor, o estado de perigo e a lesão. O estado de perigo se configura nos casos em que alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa (artigo 156). A lesão ocorre quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, obriga-se a prestação manifestamente desproporcio- nal ao valor da prestação oposta (artigo 157). Temos defendido que o instituto da lesão mostra-se afinado com a hipótese em que ao trabalha- dor, no curso da relação laboral, são atribuídas condições mais gravosas de trabalho e ele as aceita, premido pela necessidade de manter o emprego como provisão de alimentos para si próprio e para sua família. Não se anula necessariamente o contrato nesse caso, pois à anulação prefere o art. 157, §2º, do Código Civil uma solução menos drástica e mais sintonizada com o princípio da continuidade da relação laboral: o empregador oferece suplemento suficiente (ou seja, eleva a contrapartida salarial) ou concorda com a redução do proveito (ou seja, retoma-se a prestação de trabalho nas condições originais). E se o empregador não aquiesce quanto à solução que a lei assim prescreve, cabe ao empregado postular a aplicação, pela Justiça do Trabalho, dessa sanção legal. C) A forma escrita ou a exigência de solenidade Quanto ao elemento físico (declaração de vontade), basta lembrar a influência, entre nós, da teoria do contrato-realidade, que propõe o aperfeiçoamento do contrato de emprego a partir do início da prestação de trabalho – no direito do trabalho vigente no Brasil, diz-se suficiente a disponibilidade da energia de trabalho para a constituição do vínculo empregatício(1067) – e, assim, percebe-se a impor- tância menor, ou importância relativa, do momento em que se exterioriza o ajuste de vontades, ou seja, o consentimento. Mesmo nas raras hipóteses em que há exigência de uma forma especial – a exemplo do que sucede aos atletas profissionais e aos marítimos –, a inobservância da forma escrita acarreta a resci- são do contrato, mas sem prejuízo do salário relativo ao tempo disponibilizado pelo trabalhador, dada a impossibilidade de a ele se restituir a força de trabalho despendida. Uma forma especial é exigida nos casos de emprego público, qual seja, o concurso público, exigido pelo artigo 37, II, da Constituição. Para atender aos pressupostos da moralidade e impessoalidade dos (1064) Op. cit., p. 375. (1065) Além da fraude à lei, Rodrigues Pinto (op. cit., p. 171) lembra que pode haver, também, a fraude contra credores, que é a diminuição maliciosa do patrimônio com o objetivo de prejudicar credores, sendo necessário que o credor lesado ajuíze a ação pauliana para anular a alienação fraudulenta; e a fraude à execução, que é alienação ou oneração de bens quando sobre eles pende ação fundada em direito real ou corre contra o devedor ação judicial que o faria insolvente (art. 593 do CPC), não necessitando o credor de ajuizar ação autônoma para o juiz declarar, no tocante a ele (ao credor), ineficaz o ato de alienação ou oneração do bem. (1066) Consoante reza o art. 147, II, do Código Civil, a fraude, em direito civil, acarreta a anulabilidade do ato. O art. 9o da CLT comina sanção mais forte, que é a nulidade. (1067) Vide artigos 4o e 442 da CLT. 372 – Augusto César Leite de Carvalho atos administrativos, diz-se nulo o contrato de emprego firmado entre a administração pública e o trabalhador que não for precedido pela aprovação em concurso público de provas ou de provas e títu- los(1068). O §2o do mesmo artigo 37 impõe a nulidade do contrato de emprego público não antecedido de concurso e o Tribunal Superior do Trabalho recomenda, por meio da Súmula 363 de sua jurisprudência: A contratação de servidor público, após a Constituição Federal de 1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no seu art. 37, II, e §2o, somente conferindo-lhe direito ao pagamento dos dias efetiva- mente trabalhados segundo a contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respei- tado o salário-mínimo/hora. Em sendo exigida a forma escrita para alguma cláusula do contrato ou algum ato específico da relação de trabalho, a inobservância da forma escrita ou solenidade acarreta, invariavelmente, a nuli- dade parcial, ou seja, tornará sem efeito o ato em particular, e não todo o contrato. É o que ocorre, por exemplo, com a prorrogação de turnos ininterruptos de revezamento e com a redução salarial, que só por convenção ou acordo coletivo de trabalho podem ser ajustadas(1069), ou com o pedido de demissão e recebimento de verbas da dissolução do contrato para o empregado com mais de um ano de emprego, cuja validade está condicionada à assistência do sindicato da categoria profissional ou do Ministério do Trabalho(1070). 12.5.2 Elementos acidentais do contrato de emprego Há elementos do contrato que não lhe habitam a essência, pois que deles pode prescindir o vínculo de emprego. Estando presentes, influem na eficácia do negócio jurídico no tempo(1071). Interes- sam-nos dois elementos acidentais que assim se apresentam: a condição e o termo. A condição é o fato futuro e incerto, de que depende a constituição – condição suspensiva – ou a dissolução – condi- ção resolutiva – do negócio jurídico. O termo é fato futuro e certo, podendo também se apresentar como termo inicial ou termo final. Extrai-se do artigo 443, §1o, da CLT, que o termo pode ser certo ou incerto, conforme se puder precisar, ou não, o exato dia de seu advento. O citado dispositivo da CLT enuncia que se considera “como de prazo determinado(1072) o contrato de trabalho cuja vigência dependa de termo prefixado ou da execução de serviços especificados ou ainda da realização de certo acontecimento suscetível de previsão aproximada”. O termo prefixado é o termo certo (dies certus an et quando) e o termo final é incerto (dies certus an et incertus quando) sempre que a extinção do contrato está vinculada à conclu- são de um serviço ou a um acontecimento de previsão aproximada, como o término da safra. Releva notar que não há previsão legal de termo inicial ou condição suspensiva, no direito do trabalho. Rodrigues Pinto(1073) observa, a propósito, que se celebra o contrato de emprego “no momento em que se faz necessária a utilização da força de trabalho do empregado, daí a inviabilidade de sujei- tar-se o início dessa utilização a acontecimento futuro, certo ou incerto”. Coerente com essa linha de raciocínio, remata o mesmo autor que a frustração de uma dessas duas modalidades (termo inicial ou condição suspensiva) importará efeitos meramente civis “pois a índole de contrato-realidade do ajuste individual de emprego prende seus efeitos à sua execução e não poderá ocasionar consequências jurídico-trabalhistas, se essa nem sequer se iniciou”. (1068) Conforme diz o art. 37, II, da Constituição, “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressal- vadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”. O §2o do mesmo artigo 37 comina a nulidade do contrato que não observar tal exigência. Mas cabe ressaltar que essa exigência é imposta para a admissão em cargo ou emprego, não o sendo no tocante às funções de confiança ou exercidas pelos contratados “por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público” (art. 37, IX). (1069) Vide artigo 7o, XIII e XIV, da Constituição. (1070) Vide artigo 477, §1o, da CLT. (1071) No capítulo intitulado “Das Modalidades dos Atos Jurídicos”, o Código Civil disciplina, a partir do art. 128, um terceiro elemento acidental, que é o modo ou encargo. O encargo não interfere nos efeitos do negócio jurídico, mas acrescenta-lhe outros. Normalmente, apresenta-se em doações ou cláusulas testamentárias, quando ao credor é imposta uma determinação acessória, que para alguns autores é uma contraprestação. Os civilistas que sustentam tratar-se de determinação acessória, que não se integra à estrutura do ato, defendem que o encargo somente pode estar presente em negócios jurídicos gratuitos. (1072) Rectius: tempo determinado. Afinal, todo prazo é determinado; se há indeterminação, não há prazo. (1073) PINTO, Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. p. 173. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 373 Ao analisarmos a classificação dos contratos de trabalho quanto à duração, voltaremos ao tema, para esclarecer em que hipóteses são tolerados o termo final e a condição resolutiva. 12.6 Classificação do contrato de emprego Os contratos de trabalho podem sujeitar-se a duas classificações, dentre várias. Com maior apelo prático, optamos por classificá-los quanto aos sujeitos e no tocante à duração. Ao estudarmos a clas- sificação acerca da duração do contrato, ganharão especial ênfase as regras atinentes aos contratos por tempo determinado, o que por si só justificaria uma atenção maior ao conteúdo deste tópico do direito do trabalho. 12.6.1 Classificação quanto aos sujeitos A propósito dos seus sujeitos, ou do número destes, classificam-se os contratos em singulares ou plúrimos(1074), conforme se apresente um só empregado e um empregador ou haja pluralidade de algum deles. O contrato singular é o mais comum, figurando um sujeito – empregado ou empregador – em cada polo da relação laboral. Já o contrato plúrimo o é em virtude da pluralidade de empregados ou de empregadores, ou de ambos. A pluralidade de empregados acontece no contrato de equipe, sendo assim chamado o contrato por meio do qual o representante de um grupo de trabalhadores (o chefe da equipe) ajusta o labor destes, com vistas à realização de um serviço ou obra que dependa do esforço conjugado de todos os componentes desse grupo. Revela-se o contrato de equipe, exempli gratia, se um conjunto musical presta trabalho em um restaurante ou casa de shows, caracterizando-se o labor subordinado, pessoal, oneroso e não even- tual de cada um dos músicos, mas sendo as condições de trabalho de todos eles ajustadas pelo chefe da equipe, que inclusive intermedeia as ordens de serviço emanadas do empregador. Também se configura o contrato de equipe nos casos em que um mestre de obras ou trabalhador qualificado forma um grupo de pedreiros, carpinteiros, serventes etc., e agencia obras para laborarem em conjunto, desde que se apresentem os requisitos da prestação de emprego, exigidos pelo art. 3º da CLT. O importante é notar que essa intermediação por um empregado mais capacitado ou arguto não desfigura o vínculo de emprego, sendo definitiva a observação de Délio Maranhão(1075): [...] O contrato de equipe se resolve num feixe de contratos individuais. O ‘grupo’ não possui personalidade jurídica e existe, menos em função do contrato, do que da obtenção do resul- tado pretendido, que exige um esforço comum de vários empregados: cada um deles, assim, realiza a sua prestação, por força de um contrato autônomo. Pressupondo o contrato de equipe a organização espontânea do grupo, que se propõe, como tal, prestar um trabalho comum, não há confundir esse contrato com a hipótese em que o empregador atribui um trabalho comum a seus empregados. A pluralidade de empregadores ocorre, por sua vez, quando, em uma sociedade de fato, que reúne médicos ou odontólogos em uma clínica, ou congrega advogados em um escritório, todos estes ou aqueles contratam e utilizam a prestação de trabalho de um secretário ou contínuo. Dá-se o mesmo se os moradores de uma rua contratam a guarda de um vigilante e o mantêm sob sua direção comum, ou, ainda, se em uma república de estudantes os seus alojados usam a força de trabalho de um ou vários empregados domésticos, assalariando-os e os dirigindo. Outros exemplos são possíveis, restando notar que, para os intérpretes do direito que vislumbram a previsão de solidariedade ativa no artigo 2o, §2o, da CLT, a pluralidade de empregadores se esboçará nas hipóteses em que o trabalhador presta serviço, em jornada única, a duas ou mais sociedades empresariais de um grupo econômico. Interessante é observar, enfim, que em todos esses casos de pluralidade de empregadores o vínculo de emprego pode ser um só, não se multiplicando as obrigações e os direitos do trabalhador (1074) Evitamos, aqui, usar as expressões contrato individual e contrato coletivo, tanto porque a expressão contrato coletivo foi, e por vezes ainda é, compreendida como o gênero que corresponde às espécies convenção e acordo coletivo de trabalho, quanto porque os contratos plúrimos se distinguem dessas normas coletivas de trabalho, como adiante se exporá. (1075) MARANHÃO, Instituições de direito do trabalho, Vol. 1, p. 258. 374 – Augusto César Leite de Carvalho na proporção do número de empregadores. Cumprirá o empregado uma só jornada para servir a todos os empregadores e destes receberá um único salário, eventualmente o salário mínimo. 12.6.2 Classificação dos contratos de emprego quanto à duração O contrato de emprego, quanto à duração, classifica-se como contrato por tempo determinado ou contrato por tempo indeterminado. Por sua vez, os contratos por tempo determinado se subdividem em contrato a termo e contrato sob condição resolutiva. O princípio da continuidade repercute nas características do contrato de emprego, fazendo prevalecer o contrato por tempo indeterminado, ou seja, o contrato sem condição ou termo final, com a mesma pretensão à continuidade que caracteriza a empresa. Isso não obstante, nota Ruprecht(1076) que alguns ordenamentos jurídicos admitem o contrato a termo, que “se expandiu primeiro nos países em desenvolvimento, quando seu aparecimento foi rece- bido pelos economistas como uma reação salutar da sociedade civil ao que chamavam uma excessiva sobrecarga de benefícios sociais; mais tarde atingiu dimensões consideráveis na Espanha, na França, Grã-Bretanha, Itália e em outros países industrializados, e hoje é classificado por alguns trabalhistas como um câncer que ameaça a própria existência das relações de trabalho”. Se não houver cláusula fixando condição ou prazo para a relação de emprego se extinguir, enten- de-se que se estará a cuidar de contrato por tempo indeterminado. Se existir cláusula alusiva a prazo ou condição, terá ela que se enquadrar em uma das situações, descritas em lei, que autorizam a esti- pulação de uma condição resolutiva ou termo final. Falta dizer em quais situações pode haver previsão de termo ou condição, pois é certo que a prefixação de termo ou condição deve ocorrer nos estritos limites da lei, não ficando ao alvitre do empregador contratar por tempo determinado fora das hipóteses em que a lei o autoriza. Quanto ao termo final, podemos observar que o direito do trabalho o permite, no Brasil, para rela- ções de emprego protagonizadas por empregados de certas categorias, a exemplo dos atletas profis- sionais. Mas há, com maior abrangência, preceitos de lei que autorizam, em situações que enumeram, a estipulação de prazo para a vigência de contratos em geral, vale dizer, para a duração de contrato firmado por empregado de qualquer categoria. Trataremos, inicialmente, da norma geral. 12.6.2.1 O termo final em norma geral O artigo 443, §1o, da CLT esclarece: “considera-se como de prazo determinado o contrato de trabalho cuja vigência dependa de termo prefixado ou da execução de serviços especificados ou ainda da realização de certo acontecimento suscetível de previsão aproximada”. O dispositivo, assim redi- gido, não cria restrições ao contrato por tempo determinado, pois apenas explicita em quais situações se apresenta o termo certo ou incerto, num contrato de emprego qualquer. A contratação de emprego somente poderá ser por tempo determinado quando o instrumento contratual contiver, em uma de suas cláusulas, a justificativa para a fixação de um termo final. Para a generalidade dos trabalhadores, essa justificativa deverá cingir-se a uma das cinco hipóteses legais, mencionadas em seguida. Aplicando-se a todas as categorias de empregados, a ordem trabalhista tolera o contrato a termo, pois, em cinco hipóteses: a) transitoriedade do serviço (art. 443, §2o, a, da CLT); b) transitoriedade da atividade econômica (art. 443, §2o, b, da CLT); c) experiência (art. 443, §2o, c, da CLT); d) autorização em norma coletiva (art. 1o da Lei n. 9.601/98); e) aprendizes (art. 428, §3o, da CLT). A primeira possibilidade de contrato a termo é aquela que se dá quando o serviço do empregado tem natureza ou transitoriedade que justifica a predeterminação de prazo. É o que sucede, exempli gratia, quando empregados são contratados para a elaboração e execução de um projeto de informati- zação da linha de montagem de uma indústria qualquer, ou, ainda, para a edificação de uma nova sala de trabalho em uma fábrica ou loja comercial. E se o legislador se refere não apenas à transitoriedade do serviço, mas também ao serviço cuja natureza justifica a estipulação de prazo, entendemos possa ser incluída, entre os exemplos possíveis, a contratação a termo para serviços intermitentes, como (1076) RUPRECHT, Alfredo J. Os princípios do direito do trabalho. Tradução de Edilson Alkmin Cunha. São Paulo: LTr, 1995. p. 59. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 375 aqueles que se realizam em estações de veraneio somente nos períodos de estiagem. Uma obser- vação relevante: se o serviço é contínuo, o empregador não pode contratar empregados por tempo determinado para atender a uma demanda maior e episódica de produção, cabendo-lhe, se entender conveniente, valer-se do trabalho temporário regido pela Lei n. 6.019/74, o que implicará a contratação de trabalhadores temporários com a necessária intermediação de empresa interposta(1077). A segunda hipótese legal de contrato a prazo é concernente à transitoriedade da atividade econô- mica exercida pelo empregador, dizendo Valentin Carrion(1078) que disso seria exemplo a contratação de intérpretes para a realização de uma feira internacional por entidade criada para esse fim exclusivo. Podemos, em adendo, lembrar os empregados contratados para laborar nas pequenas lojas que se abrem apenas para a venda temporária de ovos de Páscoa, no período em que a iguaria tem apelo comercial, ou mesmo para laborar em barracas de fogos de artifício que se instalam no nordeste brasi- leiro ao tempo dos festejos juninos. A terceira hipótese é a do contrato de experiência, que, a bem dizer, trata de uma cláusula contra- tual (a experiência não é o objeto do contrato como um todo, sendo uma cláusula autônoma em relação a outras cláusulas, que versam sobre outras condições de trabalho). Ademais, e de lege ferenda, a cláusula de experiência deveria encerrar, como em outros países(1079), não um termo final e certo, mas sim uma condição resolutiva(1080), cujo implemento se daria quando a insatisfação de algum dos sujeitos da relação laboral conduzisse à resolução do contrato. Mas a nossa lei autoriza a cláusula de experiência nos moldes de um ajuste a termo certo, cuja verificação deve se realizar no prazo máximo de noventa dias. Logo, o empregado ou o empregador insatisfeito deve aguardar o exaurimento de todo o período de experiência para só então obter a resolução do contrato de trabalho(1081). A quarta hipótese de contrato a termo é aquela em que o aprazamento está previamente autori- zado em acordo ou convenção coletiva de trabalho, dada a permissão contida na Lei n. 9.601, de 21 de janeiro de 1998. Sob o argumento de essa norma proporcionar uma significativa elevação dos níveis de emprego, os dispositivos da citada lei trouxeram vantagens trabalhistas e tributárias para os empre- gadores que, com base nela, contratassem por tempo determinado. O vício de inconstitucionalidade, que supostamente emerge desse tratamento desigual – endereçado a trabalhadores que estariam a exercer as mesmas funções – divide os laboralistas entre os que defendem a validade da norma e os que a têm como inconstitucional(1082). Esvazia-se, todavia, o interesse por essa discussão, na medida em que os sindicatos pouco têm ajustado, mediante acordo ou convenção coletiva, a autorização para a contratação a termo. A quinta hipótese de contrato a termo é concernente ao contrato de aprendizagem, valendo adian- tar que a contratação de aprendizes pode ser facultativa ou obrigatória, como se extrai do artigo 429 da CLT. Sendo um “contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em (1077)Ao estudarmos as condições de trabalho, no capítulo sobre empregado e no subtítulo dedicado à não eventualidade, cotejamos o trabalho eventual e o trabalho temporário, com maior profundidade. (1078) CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 271. (1079) O art. 114º.1 do Código de Trabalho de Portugal prevê, por exemplo, que “durante o período experimental, salvo acordo escrito em contrário, qualquer das partes pode denunciar o contrato sem aviso-prévio e invocação de justa causa, nem direito a indemnização”. Por sua vez, o Estatuto dos Trabalhadores da Espanha, em seu art. 14.1, autoriza o período de experiência no contrato de trabalho e o remete, preferencialmente, à regulação coletiva: “Podrá concertarse por escrito un período de prueba, con sujeción a los límites de duración que, en su caso, se establezcan en los convenios colectivos. En defecto de pacto en convenio, la duración del período de prueba no podrá exceder de seis meses para los técnicos titulados, ni de dos meses para los demás trabajadores. En las empresas de menos de veinticinco trabajadores el período de prueba no podrá exceder de tres meses para los trabajadores que no sean técnicos titulados.” Acerca de a experiencia malsu- cedida configurar-se uma condição resolutiva, e não um termo final (como é no Brasil), o citado art. 14, em seu item 3, dispõe: “Durante el período de prueba, el trabajador tendrá los derechos y obligaciones correspondientes al puesto de trabajo que desempeñe como si fuera de plantilla, excepto los derivados de la resolución de la relación laboral, que podrá producirse a instancia de cualquiera de las partes durante su transcurso”. Observam Vida Soria, Monereo Pérez e Molina Navarrete (VIDA SORIA, José; MONEREO PÉREZ, José Luis; MOLINA NAVARRETE, Cristóbal. Manual de Derecho del Trabajo. Granada: Comares, 2004. p. 478) que “se puede decir que el período de prueba ‘funciona’ como si se tratara de una condición resolutoria del género, pero con un régimen propio”. (1080) Cf. ALMEIDA, Milton Vasques Thibau de. O contrato de experiência. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. Vol. 1. São Paulo: LTr, 1993. p. 460. (1081) Nélio Reis (apud Márcio Túlio Viana, op. cit., p. 255) defende a possibilidade de o empregador submeter a promoção do empregado a período de experiência, que seria de no máximo um ano (art. 478, §1o, CLT) e desde que expresso o caráter transitório da promoção. Viana sustenta que esse período de experiência deve ser o de noventa dias (art. 445, parágrafo único, da CLT). (1082) Vide artigos de Arnaldo Sussekind (Revista LTr 62-04/443) e Arion Sayão Romita (Revista LTr 62-04/449), respectivamente contra e a favor da eficácia da Lei n. 9.601/98. 376 – Augusto César Leite de Carvalho que o empregador se compromete a assegurar ao maior de 14 (quatorze) anos e menor de 18 (dezoito) anos, inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica” (art. 428), importa rematar que o contrato de tal natureza não poderá ser estipulado por mais de dois anos, salvo se o aprendiz for portador de deficiência (art. 428, §3o, da CLT). Conforme dispõe a CLT, a validade do contrato de apren- dizagem pressupõe a sua anotação na CTPS do empregado (art. 428, §1o), mas a inobservância dessa exigência formal não fará nulo o contrato, pois somente invalidará a cláusula de aprendizagem. Para os intérpretes ou agentes do direito laboral que concebem o trabalhador temporário como um empregado, pode-se mencionar, na conta de uma sexta possibilidade de ajuste a termo, o contrato entre ele e a empresa de trabalho temporário, conforme já analisamos ao cuidar da distinção entre trabalhadores temporários e eventuais, no capítulo concernente ao estudo do empregado. Não há contrato de emprego a termo, todavia, quando as instituições federais de ensino somam aos seus quadros docentes, com suporte na Lei n. 8.745/93, os professores substitutos e visitantes. Exercem estes função pública remunerada, e não emprego, consoante enfatizamos ao tratar do empregado público. 12.6.2.2 O termo final em norma especial Em favor de algumas categorias de trabalhadores, vigora norma especial que autoriza a contrata- ção a termo. Assim se dá, por exemplo, com o empregado rural, o atleta profissional, o trabalhador da construção civil, o marítimo e o técnico estrangeiro. A Lei n. 5.889/73, que rege o trabalho rural, foi há alguns anos alterada para permitir a contratação de empregado rural por até dois anos, a cada período de um ano (art. 14-A), pelo produtor rural que se apresente como pessoa física. A lei diz autorizar, assim, o contrato por pequeno prazo para o exercício de atividade de natureza temporária, convertendo-se em contrato por tempo indeterminado aquele que não observar os limites mencionados. Inusitadamente, e a pretexto de facilitar o acesso do campesino ao mundo da formalidade, os novos dispositivos trazidos com o art. 14-A da Lei n. 5.889/73 dispensam a anotação desse contrato por pequeno prazo na CTPS do trabalhador, bastando a inserção de seu nome na guia de recolhimento da contribuição previdenciária e, se para tanto houver prévia autorização em convenção ou acordo coletivo, a subscrição de contrato escrito de trabalho. A experiência dirá se a medida includente e desburocratizante alcancará seu objetivo ou se setransmudará em um mero incentivo à precariedade do emprego rural. Quanto ao atleta profissional, o seu contrato de emprego deve ser a prazo, com vigência nunca inferior a três meses nem superior a cinco anos, conforme artigo 30 da Lei n. 9.615/98. Também se faculta ao construtor contratar por obra certa, com base na Lei n. 2.959/56, sendo a autorização legal, nesse sentido, estendida até mesmo em favor de empregadores que não exerçam a atividade de construção transitoriamente. Isso fez com que se cogitasse da ab-rogação de citada lei pelo Decreto-lei n. 229/67, que acrescentou o §2o, já estudado, ao artigo 443 da CLT. Mas o Tribunal Superior do Trabalho firmou posição pela sobrevigência do contrato por obra certa, fundado no referido decreto-lei(1083), oscilando a jurisprudência apenas no que toca à sua compatibilidade com o contrato de experiência(1084). À sua vez, referem-se Gomes e Gottschalk(1085) aos marítimos, para explicar que os empregados- -tripulantes podem ser contratados pelos empregadores-armadores sob as seguintes modalidades de contrato: a) por viagem redonda (de ida e volta ao porto inicial); b) por viagem; c) por prazo determi- nado; d) por mês; e) por parte ou quinhão no frete. Não custa reproduzir, porém, a pertinente obser- vação dos citados autores(1086): (1083) Neste sentido: TST, 2a T., Rel. Min. Vantuil Abdala, Ac. 3444/95, Proc. 0121089/94, DJ 29.9.95, p. 32202; ou ainda: TST, 3a T., Rel. Min. Expedito Amorim, Ac. 1068/91, Proc. 2008/80, DJ 12.6.81. (1084) Pela compatibilidade: TST, 3a T., Rel. Min. Coqueijo Costa, Ac. 3965/84, Proc. 1943/83, DJ 7.12.84. Entendendo ser fraudulento e, por isso, inválida a cláusula de experiência no contrato por obra certa: TST, 1a T., Rel. Min. João Wagner, Ac. 3207/83, Proc. 3738/82, DJ 16.12.83. (1085) Op. cit. p. 445. (1086) Op. cit. p. 446. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 377 A particularidade do trabalho marítimo, que se desenvolve a bordo, em ambiente fechado e de área limitada, enseja problema de difícil solução em face da aplicação da lei trabalhista. O aviso-prévio, as férias, o repouso e duração do trabalho são algumas das regras do direito comum dos trabalhadores subordinados, que hão de se conformar e se adequar a essas parti- cularidades. Vencido o prazo do contrato, dá-se [...] a recondução tácita. Passa a ser por prazo indeterminado, seguindo, em tudo, a legislação específica do contrato de trabalho comum. Para a despedida do marítimo sem justa causa, impõe-se o aviso-prévio. No caso da ruptura, busca ou rescisão imotivada, há de ser, do mesmo modo, desligado de suas funções. Estando a bordo, em viagem, a solução única é o desembarque no primeiro porto de escala. A propósito do técnico estrangeiro, anota Valentin Carrion(1087) que pode ele, quando residente no exterior, ser admitido para trabalhos especializados no Brasil, em caráter provisório, com salário em moeda estrangeira. De fato, o artigo 1o do Decreto-lei n. 691/69 impõe seja o contrato desses técnicos estrangeiros celebrado por tempo determinado e prorrogável sempre a termo certo, vedando-lhes o direito à prorrogação por tempo indeterminado e à sucessão de contratos a prazo. 12.6.2.3 Contrato de trabalho sob condição resolutiva Ao cuidarmos da cláusula de experiência, ressaltamos que a cessação do período de prova deve- ria estar subordinada, em princípio, à verificação de uma condição resolutiva, pois é incerto o êxito da avaliação a que se submetem, nesse período de prova, o empregado e, ao menos no nível teórico, também o empregador. Mas é fato que o art. 443, §2º, da CLT tratou o contrato que contém a cláusula de experiência como um contrato a termo, observado o prazo máximo de noventa dias. Outro caso em que o contrato se sujeita a condição resolutiva está disciplinado pelo artigo 475, §2o, da CLT, que permite ao empregador rescindir (rectius: ter por resolvido) o contrato que firmou com o substituto do empregado afastado por invalidez, quando a aposentadoria desse empregado substitu- ído for cancelada em razão de ele recuperar a sua capacidade laborativa(1088). Mas o citado dispositivo da CLT é explícito ao exigir que o empregado substituto tenha ciência inequívoca, ao ser contratado, da interinidade do vínculo. É o mesmo que dizer: a condição resolutiva sob análise deve ser expressa. Não se percebe, à primeira vista, a previsão de outras hipóteses de condição resolutiva na legis- lação trabalhista brasileira, mas é certo que o direito comparado provoca alguma reflexão acerca do tema. Na Espanha, por exemplo, o art. 49.1.b do Estatuto dos Trabalhadores permite que a relação de emprego se extinga por causa validamente consignada no contrato, salvo se citada cláusula constitui manifesto abuso de direito do empresário(1089). Em países europeus, onde é mais comum a circulação de trabalhadores migrantes, não raro se incluem entre as condições resolutivas do contrato de trabalho aquela que faz depender a preserva- ção do vínculo laboral da circunstância de estar regular, em solo nacional, o empregado estrangeiro. Parece-nos apropriado sustentar essa regra também no direito brasileiro, pois a Lei n. 6.815/80 auto- riza a concessão de visto temporário a trabalhadores estrangeiros que vêm ao Brasil na condição de artista, desportista, cientista, professor, técnico ou profissionais a serviço do governo brasileiro (art. 13) e condiciona a concessão de visto permanente ao atendimento de exigências de caráter especial que podem, ou não, ser ocasionalmente preenchidas pelo migrante (artigos 17 e 18). Em rigor, nem mesmo a antecedência de visto temporário faz-se indispensável para que se asso- cie a regularização do trabalhador estrangeiro a uma condição resolutiva do contrato de emprego por ele protagonizado. Cabe, a propósito, a consideração de Fernanda Santinelli: A Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que os Estados não podem deixar de garantir direitos trabalhistas e os direitos humanos aos imigrantes ilegais. O imigrante, ao assumir uma relação de trabalho, adquire direitos por ser trabalhador, que devem ser reco- nhecidos e garantidos independentemente de sua situação regular ou irregular. O Estado e o particular, como empregadores, podem abster-se de estabelecer uma relação de trabalho (1087) Op. cit. p. 271. (1088) Os arts. 46 e 47 da Lei n. 8.213/91 tratam do cancelamento da aposentadoria por invalidez. (1089) No original: “El contrato de trabajo se extinguirá: […] Por las causas consignadas válidamente en el contrato salvo que las mismas constituyan abuso de derecho manifiesto por parte del empresario”. 378 – Augusto César Leite de Carvalho com os migrantes em situação irregular. Se os migrantes são contratados, imediatamente se convertem em titulares de direitos trabalhistas, sem que haja possibilidade de discriminação por sua situação irregular. No entender da Corte, o Estado não pode condicionar o respeito ao princípio da igualdade perante a lei e a não discriminação à concretização dos objetivos de suas políticas públicas e migratórias. O parecer da Corte veio a consolidar o posiciona- mento internacional (2009) no qual o migrante em situação irregular deve ser analisado em três dimensões: enquanto infrator das leis de migração, trabalhador e ser humano. Cada uma destas dimensões deve ter suas próprias consequências jurídicas, que não devem confundir em detrimento dos direitos individuais dos trabalhadores. (1090) Vale dizer: a não regularização da permanência, entre nós, do trabalhador migrante se configura condição resolutiva, pois se apresenta como evento futuro e incerto que estaria circunstancialmente a impor a resolução do contrato de trabalho com estrangeiro, em terra brasileira. 12.6.2.4 Peculiaridades dos contratos a termo. Duração máxima. Recondução tácita. Suspensão contratual. Ruptura antecipada. Aquisição de estabilidade. Sucessão de contratos com termo certo Sobre os contratos a termo certo ou incerto, celebrados em consonância com os artigos 443 e seguintes da CLT, há, ainda, seis importantes características: • A duração máxima do contrato a prazo será de noventa dias, se de experiência, ou de dois anos, nos demais casos de termo certo ou incerto (art. 445 da CLT). É possível uma prorro- gação, tácita ou expressa, contanto que o contrato original e sua prorrogação não excedam mencionados limites (art. 451 da CLT). Cuidando-se de termo incerto, não deve o dia corres- pondente ser previamente indicado, pois o erro de estimativa poderá desnaturar o contrato(1091). • A prestação de trabalho após o advento do termo final implicará a recondução tácita à sua condição natural de contrato por tempo indeterminado. Assim também sucederá quando a fixação de termo final não tiver justificativa que se enquadre em uma das hipóteses previstas em lei (art. 443, §2o), for ajustado um prazo superior ao que a lei autoriza ou houver mais de uma prorrogação do contrato a prazo. • O tempo de suspensão do contrato, ocorrida em razão de afastamento do empregado para a prestação de serviço militar ou encargo público, deve ser computado como se estivesse o empregado a cumprir a sua prestação laboral, salvo se as partes ajustarem o contrário (art. 472, §2o, da CLT, a contrario sensu). Apesar de a doutrina estender essa regra, por vezes, a outras hipóteses de suspensão contratual além daquelas contempladas no caput do art. 472 da CLT (serviço militar ou encargo público) e a qualquer espécie de contrato a termo, parece- -nos manifesta a impropriedade dessa regra quando se trata de enfermidade ou acidente de trabalho que esteja a frustrar a cláusula de experiência do contrato suspenso, dado que não se põe à prova, ou sob teste de aptidão, o trabalhador impossibilitado de trabalhar. Defensável, a respeito da contagem do período experimental, que nos louvemos então da subsidiariedade consentida pelo art. 8º da CLT e apliquemos, do direito comparado, o art. 113º, 2, do Código de Trabalho de Portugal: “Não são considerados na contagem os dias de falta, ainda que justi- ficada, de licença, de dispensa ou de suspensão do contrato”. • A ruptura antecipada do contrato a termo, pelo empregador, obriga-o a pagar a metade da remuneração que o empregado venceria até o termo final, a título de indenização (art. 479 da CLT). Se a iniciativa de romper antecipadamente o contrato for do empregado, deverá ele indenizar o empregador, mas o valor dessa indenização não está preestabelecido em lei, pois o artigo 480, §1o, da CLT prevê, apenas, que essa indenização, devida pelo empregado, não poderá exceder aquela que seria devida pelo empregador, se houvesse este promovido (1090) SANTINELLI, Fernanda. Os direitos dos trabalhadores migrantes em situação irregular. Disponível em: http://www.ambito-juri- dico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9669&revista_caderno=27. Acesso em: 6/maio/2015. (1091) Para a doutrina e a jurisprudência espanholas, a alusão a uma data como termo final em contratos que têm termo final incerto (porque o seu término se dará com a realização de obra ou serviço, não necessariamente na data prevista) teria o caráter de mera orientação, pois deve prevalecer, como termo final do contrato, o dia em que realmente se concluir a obra ou serviço. Nesse sentido: Martin Valverde, Rodríguez-Sañudo e García, Derecho del Trabajo, p. 503 e Albiol, Camps, López e Sala, Compendio de Derecho del Trabajo, p. 187. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 379 a ruptura antecipada do contrato. Uma importante observação: a existência, no contrato, de cláusula assecuratória do direito recíproco de rescisão faz indevida a indenização por ruptura antecipada, conforme preceitua o artigo 481 da CLT(1092). • A aquisição de estabilidade provisória (em virtude de eleição para cargo de direção sindical, ou eleição para cargo de representação dos empregados na CIPA, por exemplo) não converte, regra geral, o contrato a termo em contrato por tempo indeterminado. Essa regra tem sofrido, porém, alguma relativização, sendo três as exceções mais fortemente contempladas na atual jurisprudência: a) na contratação a prazo autorizada por norma coletiva (Lei n. 9.601/98, art. 1º, §4o), a estabilidade, em qualquer de suas modalidades, estará assegurada até o termo final do contrato, não podendo o empregador promover a ruptura antecipada mediante o pagamento da indenização do artigo 479 da CLT; se o fizer, o empregado poderá exigir a reintegração no emprego até o termo final; b) na hipótese de estabilidade provisória em razão de gravidez, diz a nova redação da Súmula 244, III: “A empregada gestante tem direito à estabilidade provisó- ria prevista no art. 10, inciso II, alínea ‘b’, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, mesmo na hipótese de admissão mediante contrato por tempo determinado”; c) na hipótese de estabilidade provisória em razão de acidente de trabalho, orienta a nova Súmula 378, III: “O empregado submetido a contrato de trabalho por tempo determinado goza da garantia provi- sória de emprego decorrente de acidente de trabalho prevista no art. 118 da Lei n. 8.213/91”. Quando estudarmos as estabilidades provisórias, esclareceremos as razões que inspiraram esses novos verbetes da jurisprudência do TST. • Os contratos com termo certo não podem ser sucessivos, devendo haver um intervalo mínimo de seis meses entre eles, sob pena de o contrato seguinte sofrer recondução tácita, trans- formando-se então em contrato por tempo indeterminado. Ao assim estatuir, o artigo 452 da CLT exclui de sua incidência os contratos com termo incerto (cuja expiração dependeria da execução de serviço especificado ou da realização de certo acontecimento), deixando pouca margem à sua própria aplicação. A jurisprudência e a doutrina trabalhista mostram-se tole- rantes à celebração sucessiva de contratos de experiência quando estes têm por objeto o exercício de funções distintas. 12.7 Conteúdo do contrato de emprego O conteúdo do contrato corresponde ao seu objeto imediato, vale dizer, ao conjunto de prestações que por meio desse contrato se tornam exigíveis. Há contratos, porém, nos quais se revela um objeto mediato, ou seja, uma coisa sobre a qual recai a prestação, o que é fácil perceber em se tratando, por exemplo, dos chamados contratos reais (mútuo, comodato, depósito). No contrato de mútuo (emprés- timo de coisa fungível), o seu conteúdo (objeto imediato) é formado pela prestação de restituir coisa de igual gênero, qualidade e quantidade, enquanto o seu objeto (mediato) é a coisa fungível que se empresta(1093). Referindo-se aos contratos reais, explica Sílvio Venosa(1094): A prestação, ou seja, a atividade culminada pelo devedor, constitui-se no objeto imediato. O bem material que se insere na prestação constitui-se no objeto mediato. Trata-se de objeto material da obrigação em sentido estrito. Aliás, uma coisa pode ser, ao mesmo tempo, objeto de vários contratos, dado que sua entrega ou tradição pode ser ajustada de diversas maneiras, mediante contrapartidas dife- rentes. Quando o contrato é consensual (não é real, pois não se exige a entrega de coisa para que ele se aperfeiçoe), o seu conteúdo coincide com o seu objeto imediato, ou seja, com as prestações exigíveis(1095). (1092) A cláusula assecuratória do direito recíproco de rescisão torna devidos o aviso-prévio e a indenização de valor equivalente a 40% do saldo do FGTS. (1093) Em edições anteriores deste livro, preferimos adotar a distinção entre conteúdo e objeto do contrato a partir da acepção deste (do objeto) apenas como o que agora denominamos objeto mediato, ou seja, a coisa sobre a qual recai a prestação (objeto imediato). O conte- údo seria, assim, o conjunto de prestações. A necessidade de interagir mais intensamente com as disciplinas da grade acadêmica de direito civil nos convenceu à adoção dessa sistematização mais minudente, ao menos para que assim não se confundam os acadêmicos de Direito. (1094) VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2007, p. 16. (1095) Cf. Sílvio Venosa, op. cit., p. 13: “O objeto da relação obrigacional é a prestação que, em sentido amplo, constitui-se numa atividade, numa conduta do devedor. Nesse diapasão, importa não confundir a prestação, ou seja, a atividade do devedor em prol do credor, que se 380 – Augusto César Leite de Carvalho 12.7.1 O conteúdo primário do contrato de emprego As prestações fundamentais da relação de emprego, que integram o seu conteúdo, são a dispo- nibilização da energia do trabalho, no tocante ao empregado, e o pagamento de salário, quanto ao empregador. O trabalho em si mesmo e o salário, desgarrando-se da exigência de que sejam presta- dos, seriam objetos mediatos do contrato de emprego. Há prestações secundárias que também compõem o conteúdo do vínculo laboral. José Augusto Rodrigues Pinto(1096) enumera, como prestações complementares do empregador, o fornecimento de meio para execução do trabalho, a urbanidade de tratamento, a preservação de bom ambiente do trabalho, o cumprimento do contrato e da legislação trabalhista, o exercício equilibrado do poder disci- plinar. Como prestações complementares do empregado, a diligência, a obediência, a assiduidade e a pontualidade, a fidelidade, a urbanidade e boa conduta. O mesmo autor correlaciona ao conteúdo da relação laboral o quadro taxativo das justas causas imputáveis ao empregado (CLT, art. 482) e ao empregador (CLT, art. 483), para advertir que “a indis- ciplina e a insubordinação constituem a negatividade da obediência [...]. Do mesmo modo, o rigor excessivo de tratamento é a negatividade da moderação do poder diretivo”. Parece-nos sobremodo interessante perceber que as justas causas se apresentam, portanto e a contrario sensu, como pres- tações trabalhistas. Quando o artigo 483, e, da CLT estatui a lesão à honra do empregado como uma causa motiva- dora da resolução contratual, a ordem normativa está a incluir o respeito à reputação do empregado como uma das prestações devidas pelo empregador. Assim, a conduta infringente desse dever legal é de natureza trabalhista, pois importa a violação de cláusula integrante do conteúdo do contrato de emprego. Um delito de tal modalidade, cometido pelo empregador, não terá os seus efeitos civis defi- nidos apenas pela justiça penal ou pelo juízo cível, pois caberá à Justiça do Trabalho decidir, em se tratando de dano extrapatrimonial, se o empregado é titular de direito a reparação por dano moral(1097). Importa notar que a discussão sobre a competência da Justiça do Trabalho, para dirimir conflitos relativos a danos morais, foi resolvida, inicialmente, com base em fundamento outro, como se estivés- semos a cuidar de direito não relacionado com a obrigação trabalhista. Mas é certo que uma pretensão dessa ordem tem o descumprimento do contrato de emprego como fundamento, assim tendo decidido o Supremo Tribunal Federal(1098): JUSTIÇA DO TRABALHO: COMPETÊNCIA. Ação de reparação de danos decorrentes de imputação caluniosa irrogada ao trabalhador pelo empregador a pretexto de justa causa para a despedida e, assim, decorrente da relação de trabalho, não importando deva a controvérsia ser dirimida à luz do Direito Civil. O Ministro Sepúlveda Pertence proferiu o voto e lavrou a ementa respectiva. Ao julgar outro recurso extraordinário(1099), em que igual discussão (sobre a competência da Justiça do Trabalho) era travada, o mesmo magistrado, integrante da Corte Suprema, reverberou: “O fundamental é que a relação jurídica alegada como suporte do pedido esteja vinculada, como o efeito à sua causa, à relação empregatícia”. É irresistível lembrar como pode ser enriquecedora a combinação das outras justas causas, previstas nas demais alíneas dos artigos 482 e 483 da CLT, com as obrigações correlatas, aquelas cuja violação lhes dá ensejo. Faz-se generosa a possibilidade de os princípios da dignidade da pessoa humana e da lealdade se realizarem a partir das pretensões trabalhistas que podem nascer desse confronto. constitui no objeto imediato da obrigação. Em um contrato de mandato, por exemplo, o objeto imediato da prestação é a execução de servi- ços, atos ou atividades do mandatário em nome do mandante. Há, outrossim, um objeto mediato na prestação, que é nada mais nada menos que o objeto material ou imaterial sobre o qual incide a prestação. No contrato de mandato, no exemplo apresentado, o objeto mediato da prestação são os próprios serviços ou a própria atividade material desempenhada pelo mandatário, como a assinatura de uma escritura, a quitação dada etc.” Sem embargo, dissentimos do autor somente quanto à alusão ao objeto imediato como objeto da prestação, pois seguimos a orientação de Orlando Gomes, citado pelo próprio Venosa (p. 14), que se refere ao objeto imediato como objeto da obrigação, enquanto o objeto mediato seria objeto da prestação. (1096) Op. cit. p. 248. (1097) Neste sentido, Fabio Túlio Correia Ribeiro (RIBEIRO, Fabio Túlio Correia. Processo do trabalho básico: da inicial à sentença. São Paulo: LTr, 1997. p. 98). (1098) STF, RE 238737, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 5-2/99. (1099) RTJ 134/96. Também em igual sentido: RTJ 171/369. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 381 Ao tratarmos da perspectiva existencial do vínculo de trabalho enfatizamos como o direito do trabalho evoluiu para compreender que o conteúdo existencial da relação de emprego é mais impor- tante que a sua dimensão patrimonial ou econômica, malgrado os direitos da personalidade comu- mente se convertam em prestação pecuniária pela fria contingência de os trabalhadores recearem reivindicar direitos in natura enquanto o vínculo empregatício está em curso. Tudo o que vimos, igualmente, a propósito do princípio da dignidade da pessoa humana, no capí- tulo dedicado aos princípios do direito do trabalho, faz-nos perceber que o empregador se obriga a não considerar o empregado apenas como um meio ou insumo para a sua produção de bens ou serviços. O empregador deve estar atento ao aspecto de o seu estabelecimento revelar-se um ambiente onde deve promover, à semelhança do que sucederia em qualquer outro espaço do território nacional, a efetividade dos direitos fundamentais de liberdade e de prestação social. É seu o dever de propor- cionar um ambiente ecologicamente equilibrado. Se assim não age, viola o conteúdo do contrato de emprego e a sua conduta ilícita é passível de resistência obreira, atuação preventiva do Estado e eventual reparação. Ademais, também um conteúdo esparso da relação de emprego pode ser extraído da legislação que não tem índole essencialmente trabalhista. As normas penais cujos dispositivos buscam reprimir o assédio sexual praticado pelo empregador impõem a este, exempli gratia, uma prestação que se inte- gra, afinal, ao conteúdo do contrato de trabalho. As consequências não penais desse ilícito haverão de ser dirimidas pela Justiça do Trabalho. 12.8 Alteração do contrato de emprego Em meio aos teóricos do contrato, é truísmo afirmar que a alteração das cláusulas contratuais somente pode ocorrer por circunstância gravosa superveniente, que perturbe o equilíbrio inicial do contrato (rebus sic stantibus), ou por mútuo consentimento. A bilateralidade do ajuste estaria a impedir que um dos contraentes modificasse, unilateralmente, as condições ajustadas (pacta sunt servanda). Teríamos, no âmbito do direito civil e com exceções que apenas atenuam o caráter individualista desses postulados, a alterabilidade bilateral e a inalterabilidade unilateral dos contratos de direito privado. 12.8.1 Considerações gerais sobre a alteração contratual no âmbito do direito do traba- lho. O direito de variar e o direito de resistir Açodadamente, alguns laboralistas lograram assegurar que ambas as máximas do direito civil não se aplicariam ao direito do trabalho. Incorreram em engano, porém. É que a alteração bilateral do contrato de emprego está autorizada pelo artigo 468 da CLT, vedando-se, estritamente, aquela que importe prejuízo direto ou indireto para o empregado. E a alteração unilateral do contrato de emprego também é, em regra, inválida, com ela não se confundindo, como veremos adiante, a modificação das condições de trabalho que o empregador promove no âmbito de seu jus variandi. Quando o empregador promove alteração unilateral ou prejudicial ao empregado, exercita o empregado o jus resistentiae. A resistência individual, de que estamos a tratar, distingue-se, porém, da resistência coletiva, que se realiza por meio da greve. Nesta, a recusa ao trabalho pode não ter um ato ilícito do empregador como pressuposto. Observa Márcio Túlio Viana(1100) que a resistência individual “é sempre específica, moldando-se a cada tipo de violação de direito. Exemplificando, se o empregador: não paga salário, não recebe trabalho; ordena em excesso, não é obedecido; e assim por diante. Como vimos, os meios utilizados devem ser idôneos. Assim, [...] não pode um enfermeiro, por encontrar o uniforme sujo, executar a sua tarefa defeituosamente”. 12.8.2 Alterações por intervenção do Estado ou por negociação coletiva O estudo das alterações contratuais normalmente dá ênfase àquelas modificações mais comuns, ou seja, às alterações individuais ou intersubjetivas, quais sejam, aquelas que são promovidas pelos sujeitos do contrato de emprego. Entretanto, não custa lembrar que o contrato pode sofrer mudanças por ação do Estado ou da vontade coletiva. (1100) VIANA, Márcio Túlio. Direito de resistência. São Paulo: LTr, 1996. p. 283. 382 – Augusto César Leite de Carvalho A esse propósito, o Estado usa interferir na relação de trabalho sempre que instado a corrigir o nível de proteção ou adaptar o custo trabalhista à política econômica de momento. A depender do seu grau de generalidade, o interesse tutelado pela norma estatal superveniente pode emprestar a essa norma aplicação imediata, oscilando a jurisprudência trabalhista, entre assegurar ou negar a eficácia imediata à nova lei, a depender da natureza e da finalidade da intervenção estatal. Embora a intromissão do Estado usualmente aconteça para alargar a proteção trabalhista, a exemplo do que sucede com as leis que elevam o valor do salário mínimo, também ocorre, em caráter absolutamente extraordinário, de a lei agravar a situação do trabalhador, piorando-a para atender a interesse que aos agentes políticos parece transcendente. Exemplo emblemático de tal agravamento deu-se com a edição das leis que inauguraram os planos econômicos intitulados Bresser, Verão e Collor, pois nessas ocasiões as leis subtraíram o direito a reajustes salariais antes previstos em leis ou em normas coletivas, aparentemente a violarem o direito a esses reajustes de salário assegurado a termo prefixo – bem entendido que o direito a termo prefixo é, em última análise, uma modalidade de direito adquirido (art. 131 do Código Civil(1101)). O STF fez prevalecer a lei superveniente: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REAJUSTE DE SALÁRIOS, COM BASE NO INPC. CLÁUSULA FIXADA EM ACORDO COLETIVO, COM VIGÊNCIA DETERMINADA A PARTIR DE MARÇO DE 1986. DECRETO-LEI N. 2.283/86, SUCEDIDO PELO DECRETO-LEI N. 2.284/86. PLANO CRUZADO. NORMA SUPERVENIENTE. 1. A sentença homologatória de acordo coletivo tem natureza singular e projeta no mundo jurídico uma norma de cará- ter genérico e abstrato, embora nela se reconheça a existência de eficácia da coisa julgada formal no período de vigência mínima definida em lei, e, no âmbito do direito substancial, coisa julgada material em relação à eficácia concreta já produzida. 2. Firmada ante os pressupostos legais autorizadores então vigentes, a sentença normativa pode ser derrogada por disposições legais que venham a imprimir nova política econômica-monetária, por ser de ordem pública, de aplicação imediata e geral, sendo demasiado extremismo afirmar-se a existência de ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada, para infirmar preceito legal que veio dispor contrariamente ao que aven- çado em acordo ou dissídio coletivo. Recurso extraordinário conhecido e provido (STF, Segunda Turma, RE 199905 SP, Relator Min. MAURÍCIO CORRÊA, Data de Julgamento: 13/08/1996, DJ 15-09-2000 p. 00132). Além disso, a Constituição de 1988 se deixou permeabilizar pelo princípio da autodeterminação coletiva para permitir que mediante convenção ou acordo coletivo de trabalho pudessem ser ajusta- das a compensação de jornada (art. 14o, XIII), a redução de salário com a correspondente redução de carga horária (incisos VI e XIII), a prorrogação de turnos ininterruptos de revezamento (inciso XIV) e a redução ou supressão de direitos conquistados em normas coletivas precedentes (art. 114, §2o, a contrario sensu e Súmula 277 do TST). Esses possíveis ajustes, especialmente aqueles relativos à redução salarial e à supressão de vantagens normativas, ocorrem em meio à relação laboral e, na perspectiva do trabalhador, importam a alteração prejudicial de cláusulas contratuais. Para a jurisprudência dominante, a conveniência de adaptar a regra estatal à realidade multifá- ria do mundo do trabalho torna lícitas essas alterações contratuais que ocorrem mediante negocia- ção coletiva, com o endosso da carta constitucional. A preservação do emprego e a contingência de compatibilizar a regra abstrata da lei a novos métodos ou equipamentos de trabalho – pensemos na instalação de máquina que eleve a produtividade em empresa que remunera por produção – fazem da negociação coletiva, muita vez, um instrumento de regulação indispensável e urgente. Não é absoluta, porém, a possibilidade de se reduzir salário ou elastecer jornada por norma cole- tiva, porquanto se faz indispensável que tal se dê em um diálogo social caracterizado pelo equilíbrio, ou seja, pela existência de contrapartidas que revelem uma possível correlação de forças. Malgrado esse equilíbrio normalmente se presuma existente, o TST tem negado validade às normas coletivas que serviram à redução de salário quando lhe é possível perceber que os trabalhadores renunciaram a certo nível salarial sem algo que o compensasse(1102). (1101) Art. 131 do Código Civil: O termo inicial suspende o exercício, mas não a aquisição do direito. No mesmo sentido, o art. 6º, § 2º, da Lei n. de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. (1102) Nesse sentido: AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. DIFERENÇAS SALARIAIS. MAJORAÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO MEDIANTE NORMA COLETIVA. ACRÉSCIMO SALARIAL EM O PERCENTUAL INFERIOR À JORNADA CORRESPONDENTE. ALTERAÇÃO CONTRATUAL LESIVA. O Regional considerou ilícita a alteração contratual decorrente da nego- ciação coletiva, pois não preservou os direitos mínimos dos trabalhadores, revelando-se lesiva. Com efeito, a garantia da irredutibilidade salarial, prevista no art. 7º, VI, da CF, enquadra-se entre os direitos mínimos assegurados constitucionalmente aos trabalhadores, e a possi- bilidade de flexibilização desse direito por meio de negociação coletiva não é absoluta, sendo imperiosa a existência de concessões recípro- cas que resultem em alguma vantagem aos trabalhadores. In casu, não restou evidenciada vantagem equivalente à elevação da jornada, e o Tribunal a quo foi enfático em atestar a existência de prejuízos em virtude da majoração da jornada de trabalho sem o correspondente Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 383 Ainda que a redução de salário possa ser ajustada mediante negociação coletiva, cabe sempre lembrar que assim ocorre de modo extraordinário, pois a regra geral é a que proíbe seja o salário redu- zido, conforme se infere do art. 7º, VI, da Constituição. Voltemos, contudo, a refletir sobre as alterações individuais. 12.8.3 Alterações voluntárias do contrato de emprego 12.8.3.1 A alteração consensual do contrato de emprego Está dito, também, que a lei infraconstitucional recusa validade à alteração bilateral exclusiva- mente na hipótese de ela causar prejuízo direto ou indireto ao empregado. Ao longo do tempo, essa regra impediu, a bem dizer, que se concretizassem, exempli gratia, a redução salarial e o elasteci- mento da jornada, mesmo ao tempo em que essas condutas patronais ainda não estavam vedadas, expressamente, pelo texto constitucional. A elas resistindo, o empregado fazia uso do artigo 468 da CLT para postular, respectivamente, diferenças salariais ou a remuneração, como horas extraordiná- rias, do tempo acrescido à sua jornada, pelo empregador. Em princípio, cabe ao empregador provar que a alteração operada teria sido consensual e, por outro lado, presume-se vantajosa para o empregado essa mudança, por ele consentida, em suas condições de trabalho. Portanto, ao empregado cabe a prova de que a alteração lhe é ou fora prejudi- cial(1103), embora a contar com a sua expressa anuência. Essa distribuição da carga probatória não pode, porém e a nosso sentimento, revestir-se de cará- ter absoluto. Se é fato que cabe ao empregado, como regra, a prova de que teria sido prejudicado, direta ou indiretamente, pela alteração contratual havida com o seu consentimento, também o é que o prejuízo se presume todas as vezes em que tal alteração importa redução de direitos. Um exemplo possível seria a redução de jornada com a consequente redução salarial. Ao que entendemos, uma alteração dessa ordem é lícita se atender a interesse do empregado – que pretenda obter mais tempo para estudos ou outras atividades –, restringindo-se a vedação constitucional às hipóteses em que a redução de salário serve a interesse exclusivo do empregador e é por ele imposto, clara ou disfarçadamente. Mas é certo que cabe ao empregador a prova do extraordinário, ou seja, é do empregador o ônus de provar que a redução de jornada e salário seria, no caso concreto, uma alteração contratual não apenas consentida, mas também benéfica ao empregado. Sendo prejudicial ao trabalhador, a alteração contratual é inválida. Nesse passo, o princípio de direito do trabalho que sobressai é o da indisponibilidade, relativa ou absoluta(1104). À exceção dos casos em que o contrato é alterado para beneficiá-lo, nega-se ao empregado dispor do direito traba- lhista assegurado em lei ou contrato. A proteção trabalhista é atenuada, porém, na proporção inversa da influência que a debilidade econômica e volitiva do empregado exerce sobre o conteúdo do contrato, como se pode enxergar claramente ao associarmos o tema às regras alusivas à prescrição extintiva: quanto às cláusulas impostas por lei, a nulidade de sua alteração surte efeitos mais gravosos para o empregador, pois somente as prestações mensais serão gradualmente atingidas pela prescrição, salvando-se sempre o último quinquênio; no tocante às cláusulas essencialmente contratuais, que acrescem vantagens não previstas em lei, a prescrição é total, segundo a orientação contida na Súmula 294 do TST(1105). aumento salarial. Ileso, portanto, o art. 7º, XXVI, da CF. Agravo de instrumento conhecido e não provido (TST, 8ª Turma, AIRR – 6467- 74.2010.5.12.0037, Rel. Min. Dora Maria da Costa, DEJT 18/05/2012). (1103) O prejuízo, conforme Márcio Túlio Viana (Op. cit. p. 245), pode ser “direto ou indireto; material ou imaterial; atual ou futuro – mas sempre certo, decorrente de circunstâncias contemporâneas, ainda que seus efeitos não tenham sido previstos, mas desde que previsíveis”. (1104) Ao estudarmos o princípio da irrenunciabilidade, lembramos que o grau de indisponibilidade do direito do trabalho oscila segundo a sua fonte, pois o direito previsto em lei é absolutamente indisponível e contra ele corre prescrição apenas parcial; o direito assegurado em contrato é de indisponibilidade relativa, sujeitando-se à prescrição total (Súmula 294 do TST). (1105) No capítulo dedicado à prescrição trabalhista, observamos que a Súmula 294 poderia ser objeto de reflexão no tocante à prescrição total que alcança as alterações estritamente contratuais, ante a consolidação da regra de que não convalescem os atos nulos pelo decorrer do tempo (art. 169 do Código Civil). 384 – Augusto César Leite de Carvalho 12.8.3.2 A inalterabilidade unilateral do contrato e o jus variandi No âmbito da relação de trabalho, distinguem-se a alteração das cláusulas contratuais e a varia- ção das condições do contrato sob a órbita do poder diretivo. Regra geral, a alteração unilateral das cláusulas do contrato, ou das cláusulas essencialmente contratuais, é ilícita. Mas a modelagem da prestação de trabalho e, antes, a destinação da energia laboral são definidas pelo empregador ao exercer ele o poder diretivo stricto sensu. Usando boa metáfora, Márcio Túlio Viana acentua que “ao variar, o empregador se move por entre as cláusulas do contrato, ocupando, liberando e reocupando, a cada instante, novos espaços”(1106). O direito e, mais que tal, o poder de o empregador variar as condições de trabalho, como desdo- bramento do poder diretivo, foi explorado por Sinzheimer, consagrado teórico institucionalista(1107), para enfatizar como o vínculo de emprego se diferenciava de todos os vínculos regidos pelo direito civil, revelando-se aparentemente contrariado quando exclamou: “Nenhum credor pode dar ordens ao devedor. O direito das obrigações não conhece o dever de obediência do devedor”. A mesma ênfase é dada, nos dias que correm, por Vida Soría, Menereo Pérez e Molina Navarrete: [...] é vedado, como princípio do direito das obrigações, deixar a determinação do objeto à só vontade unilateral de uma das partes do contrato(1108). Mas a verdade é que, também nesse ponto, o direito do trabalho tem regramento próprio. Ao estudarmos o princípio da continuidade, ressaltamos o seu nexo com o conceito do jus variandi, pois o interesse de preservar a relação de emprego, mesmo quando se modificam a estrutura empresarial, a atividade preponderante do empregador ou a técnica de produção, induzem o agente do direito laboral a permitir ao empregador certa autonomia para modificar as condições de trabalho que, não estando na essência do contrato, possibilitarão a manutenção da empresa e dos empregos por ela gerados. É importante delimitar, portanto e o quanto possível, o âmbito do direito de variar (jus variandi). Nova- mente aqui, é incisiva a palavra de Márcio Túlio Viana(1109): O traço marcante dessa área é a imprecisão. O comando patronal atua onde as obrigações não foram bem detalhadas, dando conteúdo concreto ao que as partes ajustaram em termos mais ou menos amplos. É que o contrato de trabalho, por sua própria natureza, repele uma previsão antecipada de cada tarefa a ser realizada. O detalhamento da maior parte das pres- tações só surge ao longo de sua execução. É difícil, às vezes, identificar a condição de trabalho que é essencialmente contratual – inalterável a princípio –, distinguindo-a daquela que pode ser reorientada a qualquer momento, por se submeter ao poder diretivo stricto sensu. Um motorista, por exemplo, pode ter a sua rota frequentemente alte- rada pelo empregador, pois não é razoável que tal empregado possa exigir a manutenção do trajeto que estava habituado a percorrer desde quando fora contratado – é provável que esse percurso não tenha sido levado em conta na hora do ajuste inicial e não se pode tolher o empregador de modificá-lo, à conveniência da empresa. Bem se vê que a ordem para o referido motorista conduzir o veículo por outro caminho está no âmbito do jus variandi. Não se configuraria a alteração, nesse caso, da função mesma de motorista. (1106) Op. cit., p. 214. (1107) Não obstante a origem germânica, Hugo Sinzheimer desenvolveu parte significativa de sua obra acadêmica em Amsterdã, onde se refugiou a partir de 1933 fugindo da perseguição aos judeus pela Gestapo. Faleceu em 1945. A referida passagem da obra de Hugo Sinzhei- mer é lembrada pela autora espanhola Maria Dolores Santos Fernández (SANTOS FERNÁNDEZ, Maria Dolores. El Contrato de Trabajo como Límite al Poder del Empresario. Tradução livre. Albacete: Editorial Bomarzo, 2005, p. 56), mas a autora faz ponderação interessante: “A característica fundamental do poder de direção é a de constituir uma imposição da vontade do empresário [...], incorporando-se à estru- tura do contrato. Assim se dá em respeito a um objeto contratual que aparece, regra geral, genericamente determinado, necessitando de especificação posterior. É o que igualmente ocorre com as prestações de fazer continuadas [...]. Mas não é o contrato de trabalho o único contrato com objeto determinado de forma genérica [...] e, sem embargo, à diferença do que se dá com outros contratos civis, a especifica- ção do objeto devido cabe ao credor da atividade, o empresário [...]. Tampouco é o de trabalho o único contrato que gera uma obrigação de fazer continuada no tempo, no qual as circunstâncias cambiantes durante sua execução podem fazer aconselhável, ou necessária, a alteração do objeto da prestação laboral, ou das condições em que se presta, como lugar ou tempo, entre outras”. (1108) VIDA SORÍA; José; MONEREO PÉREZ, José Luis; MOLINA NAVARRETE, Cristóbal. Manual de Derecho del Trabajo. Granada: Editorial Comares, 2004, p. 491. (1109) Op. cit., p. 191. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 385 Ao citar um exemplo semelhante, embora a retratar o direito de um empregador variar o serviço executado por um pedreiro, Márcio Túlio Viana(1110) faz observação elucidativa: Pode parecer que tudo que é secundário, e só por ser secundário, cai no campo do jus variandi. Mas não é bem assim. O comando só se justifica, como vimos, pela natureza do trabalho assalariado, que repele o detalhamento a priori. Assim, o que marca os limites do jus variandi não é tanto a irrelevância da modificação, mas a impossibilidade lógica de sua previsão aproximada. Uma condição de trabalho que não era essencialmente contratual pode assim se tornar, ainda, por ato dispositivo do empregador, esboçado em contrato individual ou norma coletiva. Em toda hipótese, o direito de o empregador variar as condições de trabalho submete-se ao prin- cípio da boa-fé, contemplado no art. 422 do Código Civil: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Comen- tando dispositivo semelhante do Código Civil de Portugal(1111), e tendo em perspectiva os contratos regidos pelo direito civil, Joaquim de Sousa Ribeiro observa a propósito dos pressupostos do regime de “modificação do contrato por alteração das circunstâncias”: Para a parte lesada ter direito à produção de qualquer destes efeitos, requer-se, além do mais, “que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé”. Apesar de estar em causa um dado puramente objetivo, o desequilíbrio do conteúdo do contrato, ou a frustração do seu fim, a tónica é posta num dever de conduta de um dos contraentes – o de se abster da exigência do cumprimento estrito do contrato, nos termos convencionados, na medida em que tal represente uma violação grave dos ditames da boa fé. A lisura negocial que o princípio impõe traduz-se, neste contexto, no dever de não se prevalecer oportunisticamente de um conteúdo contratual que, em face das novas e impre- vistas circunstâncias, se tornou excessivamente oneroso ou inútil para a outra parte.(1112) Mas há, como se pode extrair do excerto acima, uma clara diferença: nos negócios jurídicos pari- tários regidos pelo direito civil, a boa-fé é normalmente o fundamento que estimula a alteração das cláusulas contratuais, daquelas que não mais se fariam oponíveis ante a mudança nas circunstâncias de fato; na relação de emprego, a boa-fé se revela como princípio de contenção do direito de variar as condições de trabalho que não se mostrem essencialmente contratuais, incidindo para inibir a altera- ção abusiva ou ilícita. É correto afirmar, ainda, que o jus variandi se manifesta nos limites do poder diretivo em sentido estrito, não tendo pertinência com as outras duas expressões do poder de comando (o poder de organi- zação e o poder disciplinar)(1113). Mas nada impede que o empregador renuncie, em parte, ao seu poder de organização ou disciplinar, estruturando-se de modo a democratizar o comando do trabalho por meio da instituição, em seu estabelecimento, de conselhos paritários ou comitês de empresa, por exemplo. Convém identificar, adiante, algumas condições de trabalho acerca das quais a possibilidade de alteração contratual, ou de atuação do jus variandi, segue regras já padronizadas por lei ou constru- ção hermenêutica, especialmente aquelas que dizem respeito à alteração das funções exercidas pelo empregado, à modificação do tempo ou do lugar de seu trabalho. 12.8.3.3 A alteração funcional e seu limite de licitude Na abertura do capítulo da CLT que trata das alterações contratuais, é estatuído que “não se consi- dera alteração unilateral a determinação do empregador para que o respectivo empregado reverta ao (1110) Op. cit. p. 222. Em seguida, o autor observa, ainda, que o jus variandi deve respeitar limites conceituais, relativos ao campo em que incidem, e limites funcionais, que se referem à forma com que o empregador o exerce. O limite conceitual é o contrato de emprego, que é a fonte legitimadora do seu exercício. O limite funcional é atinente à necessidade de ele pressupor uma motivação razoável, pois o empregador “deve usar o jus variandi fundado numa razão objetiva, numa necessidade real da empresa, ficando excluído o uso arbitrário, caprichoso, imotivado, discriminatório ou persecutório” (op. cit., p. 223). (1111) Art. 437 do Código Civil de Portugal: “Se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”. (1112) RIBEIRO, Joaquim de Souza. Direito dos Contratos – Estudos. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. (1113) Cf. Márcio Túlio Viana, op. cit. p. 221. 386 – Augusto César Leite de Carvalho cargo efetivo, anteriormente ocupado, deixando o exercício de função de confiança”(1114). Parece um acinte à inteligência acadêmica. A outros pode parecer uma ficção jurídica(1115). Ou um sofisma(1116), simplesmente. Mas, cabe observar que a investidura em função de confiança, com ânimo definitivo ou mesmo transitório(1117), é sempre precária, seja na empresa privada ou na administração pública. Quando o empregado é contratado, ao início da relação laboral, para exercer cargo de confiança, a sua desti- tuição não atrai a incidência do artigo 468, parágrafo único, da CLT, pois não ocorreria, nesse caso, a reversão a um cargo efetivo (inexistente), mas sim a dissolução do vínculo(1118). Se é contratado para exercer cargo efetivo e depois é comissionado, à manutenção desse comissionamento está desobri- gado o empregador. Logo, descabe falar de alteração unilateral do contrato, pois a função que tem caráter fiduciário escapa à regência do princípio pacta sunt servanda, que informa a teoria dos contratos. E se não há alteração contratual, o legislador está ambientando o retorno ao cargo efetivo nos lindes do jus variandi. A interpretação do dispositivo sob análise, quando assim conduzida, afasta a sua aparente teratologia. Mas se o retorno (ou reversão) ao cargo efetivo é permitido, porque fundado na quebra da confiança que teria justificado a investidura em cargo comissionado, o mesmo não vale para o rebaixamento de um cargo efetivo a outro de menor grau no organograma empresarial. Reversão e rebaixamento não se confundem: quando a empresa tem quadro de carreira e a ascensão funcional se dá por merecimento ou antiguidade, ao empregador não é dado o poder de rebaixar o empregado que obteve o direito à progressão segundo tais critérios. O rebaixamento é alteração unilateral e prejudicial, por isso ilícita. Ademais, a estabilidade funcional se distingue da estabilidade econômica. O empregado que exerceu função de confiança por mais de dez anos adquire o direito de ter a gratificação correspon- dente atraída pelo núcleo salarial, consoante consagrado na Súmula 372, I, do TST: Percebida a gratificação de função por dez ou mais anos pelo empregado, se o empregador, sem justo motivo, revertê-lo a seu cargo efetivo, não poderá retirar-lhe a gratificação tendo em vista o princípio da estabilidade financeira. Tal empregado preserva a gratificação de função, malgrado seja eventualmente desinvestido da função de confiança. 12.8.3.4 A tentativa de padronizar o jus variandi A jurisprudência tem ensaiado a padronização das iniciativas empresariais que se situam na esfera do jus variandi. Diz-se, por exemplo, que a quantidade de tempo de trabalho a cada dia (jornada) não pode ser majorada, mas que os horários de início e término dessa jornada podem sofrer modificação no âmbito do direito de variar, desde que o empregador o modifique com parcimônia(1119). A Súmula 265 do TST recomenda, inclusive, que se tolere a transferência de empregado que presta trabalho à noite para o turno do dia, com a perda do adicional noturno. Quanto ao lugar de trabalho, a ordem trabalhista restringe a alteração concernente à localidade de trabalho, ou transferência, definindo-a como aquela que implica a mudança de residência do empre- gado (artigo 469 da CLT), mas consente a modificação do local de trabalho (quando o empregado é removido, por exemplo, de um estabelecimento para outro da mesma cidade ou região metropolitana). Ao empregador não é possível variar a localidade do trabalho de seu empregado, salvo quando este exerce cargo de confiança, exista cláusula tácita ou expressa que autorize a transferência (mudança (1114) Art. 468, parágrafo único, da CLT. (1115) Observa Perelman que “a ficção jurídica, diferentemente da presunção irrefragável, é uma qualificação dos fatos sempre contrária à realidade jurídica”. O arremate é conclusivo: “Se esta realidade é determinada pelo legislador, sua decisão, qualquer que seja, jamais constitui uma ficção jurídica, mesmo que se afaste da realidade. Assim é que, ao atribuir personalidade jurídica a associações, o legislador não institui uma ficção jurídica [...]” (PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 86). (1116) Márcio Túlio Viana (Op. cit. p. 247) inclui essa hipótese entre as de jus variandi extraordinário, pois sustenta que “o legislador usou de sofisma: ao invés de excepcionar, diretamente, a regra proibitiva, preferiu descaracterizar as alterações como tais [...]”. (1117) Vide Súmula 159 do TST. (1118) Vide art. 499, §2o, da CLT. (1119) Cf. Márcio Túlio Viana, Op. cit. p. 238. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 387 de localidade) ou em casos de real necessidade de serviço(1120). Mas os teóricos e agentes do direito do trabalho não veem óbice à remoção, ou seja, à alteração do local de trabalho que não acarrete a premência de o empregado mudar a sua residência. Em suma, a transferência é, em princípio, vedada; a remoção, por seu turno, estaria no universo do jus variandi. Sobre o modo de se trabalhar, a restrição se dá quanto à mudança da função, como tal enten- dida a atribuição ou o conjunto de atribuições. A lei tolera a alteração de serviço ou tarefa – que é elemento da função – nas hipóteses em que a nova incumbência não fere os limites do contrato, sendo inerente à qualificação profissional e demais atributos do empregado (artigo 456, parágrafo único, da CLT). Délio Maranhão(1121) observa que “dentro do círculo do cargo, podem caber [...] vários serviços. A mudança do empregado de um para outro serviço, nos limites do cargo, da qualificação profissional, é que se legitima pelo exercício do jus variandi”. Ainda sobre a variação do modo de trabalhar, impende rematar que não se combate a mudança de cargo, se a função permanece inalterada. Octavio Bueno Magano observa, porém, que a extinção do cargo pode autorizar a variação da função para outra que lhe seja afim(1122). 12.8.3.5 A mudança de localidade e seus efeitos pecuniários. Grupo econômico Vimos, no subitem anterior, a diferença entre transferência e remoção. A transferência importa a mudança de localidade(1123), cujo sentido está aqui associado à residência (a lei se refere, por equívoco, a domicílio) do empregado. A transferência é a variação do lugar de trabalho que acarreta a mudança de residência, numa relação de causalidade e não de coincidência (entre a variação do lugar de traba- lho e a mudança de morada). O artigo 469 veda, a princípio, a transferência, assegurando o artigo 659, IX, da mesma CLT, a antecipação de tutela nos processos em que o empregado postule a invalidação de transferência. Os parágrafos primeiro e terceiro do artigo 469 da CLT excepcionam os casos em que a transfe- rência está no âmbito do jus variandi do empregador. A localidade de trabalho pode variar quando: a) o empregado é exercente de cargo de confiança; b) o contrato contém cláusula explícita ou implícita que permite a transferência; c) a transferência ocorrer por real e transitória necessidade do serviço do empregado em outra localidade. Quanto ao exercício de cargo de confiança, interessa destacar que o permissivo legal se apre- senta no conjunto de regras que reduzem a proteção trabalhista em favor dos altos-empregados, justificando-se nessa medida(1124). Sobre a cláusula contratual que autoriza a transferência, anota Magano(1125) que “há condição implí- cita de transferência quando a mobilidade derivar da própria natureza do trabalho desempenhado pelo empregado. É o caso dos aeronautas, dos aeroviários, dos viajantes ou pracistas, dos artistas etc.” A real necessidade de serviço é concebida, não raro, como a imprescindibilidade do trabalhador transferido na outra localidade, considerando-se a sua aptidão técnica e a inexistência de outro empre- gado cuja transferência importe, para ele, estorvo menor. Cabe ao empregador o ônus de provar a necessidade do empregado na localidade para a qual o está transferindo(1126). A leitura do artigo 469, §3o, da CLT induz à percepção de que a real necessidade de serviço permite apenas a transferência provisória, assegurando, ainda e enquanto durar o trabalho na outra (1120) Art. 469, §§ 1o e 3o, da CLT. O §2o trata de jus variandi extraordinário, como veremos adiante. (1121)Op. cit. p. 510. (1122) Apud Márcio Túlio Viana, Op. cit. p. 260. Em igual sentido, Délio Maranhão (Op. cit. p. 511). (1123)Em outra passagem da CLT, que cuida da equiparação salarial, a expressão mesma localidade é compreendida como mesmo muni- cípio ou, como orienta a Súmula 6, X, do TST, “a municípios distintos que, comprovadamente, pertençam à mesma região metropolitana”. (1124) Vide art. 62, II, da CLT. Pensamos que deva ser cautelosa a subsunção, no status de cargo de confiança, dos diretores e chefes de departamento. O critério matemático, previsto no parágrafo único do art. 62, é um parâmetro inicial, mas não se pode desprezar, no caso concreto, se a condição de trabalho é compatível com a autorização incondicional de transferência. A proteção menor somente se justifica nas hipóteses de altos-empregados, que se destacam na hierarquia empresarial e são vistos, pelos demais empregados, como representantes ou delegados do empregador. (1125) Apud Márcio Túlio Viana, Op. cit. p. 268. (1126) Vide Súmula 43 do TST: “Presume-se abusiva a transferência de que trata o §1o do art. 469 da CLT, sem comprovação da necessidade de serviço”. 388 – Augusto César Leite de Carvalho localidade, o adicional de transferência, no importe nunca inferior a 25% do salário. A jurisprudência assumiu, todavia, posição curiosa ao vincular o adicional referido à transferência provisória, pois o negou nas hipóteses de transferência definitiva, como se extrai da parte final da Orientação Jurispru- dencial n. 113 da SBDI-1 do TST: “O pressuposto legal apto a legitimar a percepção do mencionado adicional é a transferência provisória.” Em princípio, o fato de a transferência definitiva não se situar no âmbito do jus variandi impli- caria uma indenização maior, jamais a supressão desse direito. De toda sorte, Márcio Túlio Viana(1127) sustenta que “se a transferência, embora rotulada de provisória, perdura por longo tempo, pode o empregado resistir, voltando ao local de origem”. A nosso ver, a exigência de que a transferência seja provisória para que só então seja devido o adicional de transferência não pode prevalecer, contudo, na hipótese de transferência para outro país, pois outra seria a fonte do direito, como se infere de julgado pertinente: […] ADICIONAL DE TRANSFERÊNCIA (INTERNACIONAL) E REFLEXOS. Na hipótese de transferência inter- nacional do empregado, irrelevante saber se a transferência teve ou não ânimo definitivo, para concessão do respectivo adicional. É que, diversamente do que sucede com o art. 469, § 3º, da CLT, e bem assim com a reco- mendação da OJ 113 da SBDI-1 do TST, da Lei n. 7.064/82 não se extrai qualquer relevância no aspecto de ser provisória ou definitiva a transferência, daí porque não há como se adotar o quesito provisoriedade à transferên- cia regida pela Lei n. 7.064/82. A transferência do empregado, no âmbito de empresa de dimensão transnacional, dá-se com uma repercussão normalmente mais severa na vida social e familiar do empregado, impondo-lhe a imersão em uma nova cultura, com diferentes idiomas, culinária, referências morais, cívicas, econômicas etc. Tais efeitos não poderiam deixar de ser amenizados pela normativa nacional, que visa proteger o contrato do empregado em um novo panorama laboral e social. Enquanto perdurar a permanência do trabalhador brasileiro no exterior, é devido o adicional de transferência, exegese que se extrai do art. 2º e 10º da Lei n. 7.064/82. Recurso de revista conhecido e provido (TST, 6ª Turma, RR 28600-50.2004.5.02.0021, Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 15/08/2012, Data de Publicação: 14/09/2012). Acentuada dissensão jurisprudencial teve lugar, noutros tempos, a propósito de ser ou não devido o adicional de transferência nas hipóteses em que a variação da localidade de trabalho está fundada no exercício de cargo de confiança ou em cláusula contratual permissiva (CLT, art. 469, §1o). O TST entende que a transferência do empregado de confiança, sendo provisória, importa o direito ao adicio- nal de transferência, o mesmo sucedendo quando a cláusula contratual, explícita ou implícita, faz lícita a transferência(1128). Sendo ou não devido o adicional sob exame, é certo que “as despesas resultantes da transferên- cia correrão por conta do empregador”, consoante enuncia o artigo 470 da CLT. A quantia que servirá ao ressarcimento dessas despesas é aquela que deve ser paga a título de ajuda-de-custo(1129). Cabe frisar que o adicional de transferência visa à indenização do trabalho em situação adversa, porque realizado numa localidade diferente daquela em que o empregado foi contratado e residia, porventura, com a sua família. A despesa consequente da mudança de residência não é ressarcida por meio do adicional de transferência, mas mediante o pagamento de ajuda de custo, que só a isso se destina. Questão realmente embaraçosa é, por fim, aquela que diz respeito à variação de localidade do trabalho que implica o labor do empregado, no novo lugar, para outra empresa do mesmo grupo econô- mico. Aos que interpretam o artigo 2o, §2o, da CLT com o exclusivo sentido de solidariedade passiva, ou adotam a solidariedade ativa com maior parcimônia (posição que parece majoritária), a hipótese ora examinada não será de transferência, mas de cessação de um vínculo e início de um novo liame empregatício. Os intérpretes do direito do trabalho que sustentam a solidariedade ativa entre as socie- dades empresárias que integram grupo econômico entenderão que houve transferência e esta, sendo provisória, daria ensejo ao adicional previsto no artigo 469, §3o, da CLT(1130). (1127) Op. cit. p. 269. (1128) Vide orientação jurisprudencial n. 113 da SBDI-1 do TST: “O fato de o empregado exercer cargo de confiança ou a existência de previsão de transferência no contrato de trabalho não exclui o direito ao adicional. O pressuposto legal apto a legitimar a percepção do mencionado adicional é a transferência provisória.” (1129) Vide art. 457, §2o, da CLT. (1130) Assim entende Sergio Pinto Martins (MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. São Paulo: Atlas, 2001. p. 287). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 389 12.8.3.6 O jus variandi extraordinário A regra da inalterabilidade unilateral do contrato comporta exceções, previstas em norma estatal ou aceitas, de lege ferenda, pela doutrina. Trata-se, já agora, de alteração de cláusulas essenciais do contrato, que o direito autoriza em condições extraordinárias. O poder de transferir o empregado, havendo a extinção do estabelecimento em que este vinha prestando serviço, é expressão do jus variandi extraordinário, que tem esteio no artigo 469, §2º, da CLT. Há, nessa hipótese de transferência, uma clara exceção, prescrita em lei, à regra da inalterabili- dade unilateral. Quanto às situações em que a doutrina admite, em caráter extraordinário, a alteração de condi- ções essenciais do contrato, podem ser enumeradas(1131): a) as alterações decorrentes de necessidade premente da empresa; b) as benéficas ao empregado. Um exemplo da primeira situação, que pode- ríamos associar à incidência de força maior, é a exigência de o vendedor carregar para local seguro a mercadoria da loja em que este trabalha, se essa loja sofre alguma intempérie, incêndio etc. Na segunda situação hipotética se enquadraria, entre outras alterações benéficas a princípio irrecusáveis, a promoção. Os teóricos do direito do trabalho têm evoluído no sentido de entender que a promoção não pode ser recusada quando a empresa está organizada em quadro de carreira ou o novo cargo, a que está ascendendo o empregado, tem função igual ou afim à do cargo anterior(1132). 12.9 Suspensão do contrato de emprego A relação de emprego é de trato sucessivo, pois se protrai no tempo, renovando-se a exigibilidade das prestações. Como qualquer outra relação continuada, está sujeita ao imprevisível, ao imponderá- vel. Estivesse regida pelas regras de direito civil e o fato de se originar em contrato bilateral faria viger a cláusula resolutória tácita, ou seja, o contrato de emprego se resolveria pela circunstância de um de seus sujeitos não poder cumprir a sua prestação. O direito do trabalho está inspirado, porém, no princípio da continuidade, por isso se recheando de normas que asseguram a preservação do contrato quando a sua execução está temporariamente inviabilizada. A bem dizer, não se suspende o contrato, mas a sua execução. A expressão suspensão do contrato contém uma elipse, portanto, que o uso generalizou. Suspende-se a execução do contrato de emprego por motivos inerentes ao empregado, como a doença e fatos relevantes de sua vida civil, familiar, social, suspendendo-se-a ainda por motivos outros, concernentes ao interesse coletivo (referimo-nos à greve) ou à paralisação da atividade econômica. A proteção é, pois, mais abrangente, não se restrin- gindo aos casos em que o empregado está fisicamente impossibilitado de trabalhar. 12.9.1 Nome e conteúdo dos tipos de suspensão Os estudiosos do direito do trabalho por vezes se digladiam acerca da distinção entre a suspen- são e a interrupção do contrato de emprego, divergindo quanto aos conceitos e mesmo no tocante ao acerto dessa terminologia usada pelo legislador (Título IV, Capítulo IV, da CLT) em substituição às expressões “suspensão parcial” (interrupção) e “suspensão total” (suspensão), mais comuns no direito comparado. Vamos abstrair da querela a propósito do nome jurídico adequado, adotando, por objetividade, a nomenclatura legal. Para efeitos práticos, usaremos a palavra suspensão também como gênero, sempre que quisermos referir uma regra comum à suspensão e à interrupção. A iniciativa de classificar os casos de descontinuidade na execução do contrato como suspensão ou interrupção teve em vista a tentativa de diferenciar, respectivamente, as situações em que empre- gado e empregador ficam desonerados de suas obrigações (suspensão) e aquelas outras em que o empregador continua obrigado a pagar o salário, malgrado se interrompa a prestação de trabalho (interrupção). Essa divisão esquemática é relativizada, contudo, ante a existência de casos em que (1131) Cf. Márcio Túlio Viana, op. cit. p. 247. Os exemplos também são do autor. (1132) Cf. Márcio Túlio Viana, op. cit. p. 252. 390 – Augusto César Leite de Carvalho o empregador se exonera do salário em sentido restrito, mas permanece obrigado a cumprir outras prestações acessórias em favor do empregado. A esses tipos intermediários chamaremos de casos híbridos, como adiante se verá. 12.9.2 Classificação legal Por apelo didático, vamos dividir as hipóteses de suspensão contratual em três tipos: a) interrup- ção contratual; b) suspensão contratual; c) casos híbridos. Os efeitos eventualmente extraordinários da causa suspensiva serão analisados, no entanto, caso a caso. 12.9.2.1 Hipóteses de interrupção contratual Os casos em que o empregado suspende a prestação de trabalho, sem prejuízo do salário, acen- tuam a forma peculiar como o caráter comutativo do contrato de emprego se desenha. A equivalência de prestações, que é uma característica da sinalagmaticidade, não implica, no liame empregatício, a exata correlação entre a disponibilidade da energia de trabalho e a retribuição pecuniária, na mesma e invariável razão entre tempo e dinheiro. Há prestações salariais que não correspondem a uma pres- tação de trabalho em tempo específico. Se divisamos o cotidiano de uma relação de emprego, percebemos que a utilidade do trabalho é sempre maior que a remuneração por ela assegurada. Na interrupção do contrato de emprego dá-se o inverso: o trabalho não é prestado, mas o empregador continua pagando o salário. Exemplos desses casos de interrupção contratual são: • O repouso semanal remunerado (art. 7º, XV, da CF e Lei n. 605/49). • O repouso em feriados (Lei n. 605/49). • As férias anuais remuneradas (art. 7º, XVII, da CF e art. 129 da CLT). • A falta abonada, mediante o pagamento do salário correspondente (art. 131, IV, da CLT). • A falta em até dois dias consecutivos, justificada pelo falecimento de cônjuge, ascendente, descendente, irmão ou dependente (art. 473, I, da CLT). • A falta por até um dia, em cada doze meses, para doação de sangue (art. 473, IV, da CLT). • A falta por até dois dias consecutivos em virtude de casamento (art. 473, II, da CLT). • A falta por cinco dias do pai, em virtude do nascimento de filho (art. 7º, XIX, da CF e art. 10, §1º, do ADCT, conforme IN 1/88 do Ministério do Trabalho(1133)). • A falta por até dois dias, consecutivos ou não, para o alistamento eleitoral (art. 473, V, da CLT e art. 48 da Lei n. 4.737/65). • A falta ao trabalho para o cumprimento das obrigações de reservista, notadamente os exercí- cios e atividades comemorativas do dia do reservista (art. 473, VI, da CLT e art. 65, c, da Lei n. 4.375/64(1134)). • As faltas necessárias à prestação do exame vestibular visando ao ingresso em estabeleci- mento de ensino superior (art. 473, VII, da CLT). • A ausência ao trabalho pelo tempo indispensável ao comparecimento em juízo (art. 473, VIII, da CLT(1135)), como parte ou testemunha (art. 822 da CLT). (1133) Sergio Pinto Martins (Op. cit. p. 297), secundando Magano, defende que a licença-paternidade é direito de ausência justificada ao trabalho, mas o permissivo constitucional não estaria garantindo o salário e inexiste a lei que, regulamentando a matéria, assegure o direito à remuneração. A nosso pensamento, o salário é da natureza do instituto e os ilustrados laboralistas estão a desprezar, com venia, a letra do art. 28, V, da Lei n. 8.036/90. A instrução normativa do Ministério do Trabalho está ainda a obrigar, na prática, que seja assim, mais larga, a proteção à paternidade. (1134) Lembra Sergio Pinto Martins (Op. cit. p. 301) que o art. 60, §4o, da Lei n. 4.375/64 faz justificada, também, a falta dos convocados matriculados em Órgão de Formação de Reserva que sejam obrigados a participar de exercícios ou manobras. (1135) Nota Sergio Pinto Martins que a redação do art. 473, VIII, da CLT permite se conclua que o empregado está dispensado do trabalho à tarde, mas não por todo o dia, se a audiência a que compareceu se deu no turno vespertino. De toda sorte, a dicção legal é mais abrangente que a Súmula 155 do TST, que faz alusão somente às horas de comparecimento em juízo. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 391 • A licença remunerada (art. 133, II, da CLT). • A interrupção da atividade empresarial (art. 133, III, da CLT). • O tempo de intervalo intrajornada excedente do limite legal, sem autorização contratual (Súmula 118 do TST). • O afastamento por até quinze dias em razão de enfermidade ou acidente de trabalho (art. 59, §3º, da Lei n. 8.213/91). • O afastamento para o exercício da atividade de conciliador do representante dos empregados na comissão de conciliação prévia (art. 625-b, §2º, da CLT). • O período de aviso-prévio indenizado (art. 487, §1º, da CLT). • O afastamento para prestação de serviço militar extraordinário, com direito a salário integral nos primeiros noventa dias (art. 472, §§3º a 5º, da CLT) e, após, a 2/3 do salário, salvo enga- jamento (arts. 60 e 61 da Lei n. 4.375/64). 12.9.2.2 Hipóteses de suspensão contratual Há casos outros em que se suspendem tanto a prestação de trabalho como a prestação salarial: • O afastamento por exigência de encargo público (art. 472 da CLT). • A suspensão disciplinar por até trinta dias (limite de licitude previsto no art. 474 da CLT). • O afastamento por mais de quinze dias em razão de enfermidade, propiciando o recebimento do auxílio-doença, a ser pago pelo INSS (art. 59, caput, da Lei n. 8.213/91). • A aposentadoria por invalidez, enquanto assim se configurar e por tempo indefinido(1136) (art. 475 e §1º, da CLT e arts. 42 a 47 da Lei n. 8.213/91. Súmula 160 do TST. A Súmula 217 do STF está superada, ante a atual redação do art. 475 da CLT). • A suspensão para a qualificação profissional do empregado, mediante autorização em norma coletiva e prévia aquiescência do trabalhador, por período de dois a cinco meses (art. 476-A da CLT). • A ausência de trabalho em razão de greve (art. 7º da Lei n. 7.783/89), salvo a previsão de direito ao salário em norma coletiva ou arbitral.(1137). • A ausência ao trabalho em razão do desempenho de cargo de direção ou representação sindi- cal, salvo assentimento da empresa ou cláusula em contrato ou norma coletiva que mante- nham a obrigação de o empregador pagar o salário (art. 543, §2º, da CLT). Em todas essas situações, exoneram-se empregado e empregador, durante o afastamento, das prestações de trabalho e salário que lhes cabem. A suspensão contratual, como adiante veremos, está atrelada ao caráter comutativo do contrato de emprego, naquilo que implica a equivalência das suas prestações nucleares. A jurisprudência tem enaltecido a preservação, mesmo durante a suspensão do (1136) Ao estudarmos os contratos sob condição resolutiva, atribuímos essa característica ao contrato do empregado substituto (do empre- gado aposentado por invalidez), em conformidade com o art. 475, §2o, da CLT. (1137) O art. 7o da Lei n. 7.783/89 prevê que “a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais durante o período ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho”. O termo suspende é proposital, pois “durante a greve, o trabalhador tem direito de paralisar os serviços habituais e o empregador de não lhe pagar o salário. O direito confere ao grevista uma imunidade que, nestas ocasiões, não o prejudica e que, em outras circunstâncias, esta ausência comprometeria sua responsa- bilidade ou sua permanência no emprego” (PÉREZ DEL CASTILHO, Santiago. O direito de greve. Tradução de Maria Stella Penteado G. de Abreu. São Paulo: LTr, 1994. p. 107). No mesmo sentido, Márcio Túlio Viana (VIANA, Márcio Túlio. Greve. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. Vol. 2. São Paulo: LTr, 1993. p. 688). O Tribunal Superior do Trabalho não parece divergir: “GREVE – DIAS PARADOS – PAGAMENTO. A participação do empregado em movimento grevista importa na suspensão do contrato de trabalho e, nesta circunstância, autoriza o empregador a não efetuar o pagamento dos salários nos dias de paralisação. A lógica é uma só: sem pres- tação de serviço inexiste cogitar-se de pagamento do respectivo salário. Este é o ônus que deve suportar o empregado na oportunidade em que decide aderir ao movimento grevista. De outro lado, impõe-se observar que o fato de o empregador deixar de pagar o salário pelos dias de paralisação não implica a possibilidade de o empregado rescindir o seu contrato de trabalho por justa causa, nos termos preconizados pelo artigo 483, “d”, da CLT, em face de a lei considerar suspenso o contrato de trabalho no respectivo período do exercício de greve, ainda quando considerado não abusivo o movimento. Recurso de embargos conhecido e não provido” (TST, 1a Turma, ERR 383124/97, Rel. Min. Leonaldo Silva, j. 27/09/99, DJ 08/10/99, p. 52). 392 – Augusto César Leite de Carvalho contrato, das prestações que escapam a esse núcleo contraprestacional, ou seja, à manutenção de cláusu- las ou obrigações que são inerentes ao emprego mas não decorrem diretamente da prestação de trabalho. Nos dois últimos casos há pouco enumerados – greve e representação ou direção de sindicato –, pode haver interrupção, e não suspensão contratual, se o contrato ou a norma coletiva assim dispuserem. Quando ocorre a suspensão para a qualificação profissional do empregado, a ajuda compensa- tória a que se obrigar o empregador, durante o período de afastamento do empregado e em razão de norma coletiva, não tem natureza salarial, pois assim estatui o artigo 476-A, §3º, da CLT. A) Efeitos da suspensão contratual no tocante a prestações não sinalagmáticas – assistên- cia escolar, médica ou odontológica Fácil é notar que inexiste uma posição firme dos estudiosos e agentes do direito do trabalho sobre o caráter absoluto da regra segundo a qual se suspendem todas as prestações do empregado e do empregador nos casos de suspensão do contrato. Em princípio, as prestações que se suspendem são aquelas que servem à contraprestação salarial ou viabilizam a realização dos serviços pelo trabalha- dor, ou seja, aquelas prestações que se ajustam à característica de retribuir o trabalho ou concorrem diretamente para que o labor se desenvolva. Um caso ilustrativo é o dos empregadores que asseguram assistência escolar, médica ou odontoló- gica em razão do liame empregatício. Ao prover jurisdição em feitos nos quais se discute a preservação da assistência médica ou odontológica durante a suspensão contratual, o TST tem sido enfático ao afir- mar que o direito a benefícios dessa ordem se mantêm durante o período de suspensão do contrato(1138). Essa firme jurisprudência resultou na edição da Súmula 440 do Tribunal Superior do Trabalho: Assegura-se o direito à manutenção de plano de saúde ou de assistência médica oferecido pela empresa ao empregado, não obstante suspenso o contrato de trabalho em virtude de auxílio-doença acidentário ou de aposentadoria por invalidez. B) Efeitos da suspensão contratual no tocante à justa causa Debate-se, ainda, quanto à possibilidade de se caracterizar justa causa a agressão física ou verbal contra o empregador durante a suspensão do contrato, parecendo fugir ao limite do razoável propor que todas as obrigações – não somente as de prestar o trabalho e de remunerá-lo – estariam suspensas, sem exceção. Isso porque, ao fim da suspensão contratual, poderia faltar o pressuposto da atualidade da falta, que estudaremos no capítulo relativo à cessação do contrato. E seria, afinal, um contrassenso exigir que o empregador mantivesse, em seu quadro de empregados e por tempo indefinido, aquele que o estapeou ou o tratou com vilipêndio. O mesmo raciocínio se adotaria para a hipótese inversa, em que o empregador infringe o conteúdo do contrato de trabalho. A matéria é vexatória, mas nos parece adequada a distinção que, a propósito das justas causas cometidas pelos trabalhadores em meio à suspensão contratual, faz Mauricio Godinho Delgado(1139): No tocante à dispensa por justa causa não pode haver dúvida de ser ela inviável, juridica- mente, desde que a falta tipificada obreira tenha ocorrido no próprio período de suspen- são do pacto. Ilustrativamente, cite-se o caso do empregado que, comprovadamente, revele segredo da empresa durante o período suspensivo (art. 482, g, CLT); ou do empregado que cometa comprovado ato lesivo à honra ou boa fama ou ofensas físicas contra o empregador durante o período suspensivo do contrato (art. 482, k, CLT). Será distinta, contudo, a solução jurídica em se tratando de justa causa cometida antes do advento do fator suspensivo (por exemplo: empresa está apurando, administrativamente, falta cometida pelo obreiro... o qual se afasta previdenciariamente antes do final da apuração e correspondente penalidade máxima aplicada). Neste caso, a suspensão contratual prevalece, embora possa a empresa comunicar de imediato ao trabalhador a justa causa aplicada, procedendo, contudo, à efetiva rescisão após o findar da causa suspensiva do pacto empregatício. (1138) TST, SBDI-1, E-ED-RR-4954/2002-900-03-00, Rel. Min. Horário Senna Pires, DEJT 27/11/09; TST, SBDI 2, ROMS – 29400-55.2007.5.05.0000, j. 01/06/2010, Rel. Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, DEJT 11/06/2010; TST, SBDI 2, ROMS – 13800-44.2009.5.15.0000, Rel. Min.Antônio José de Barros Levenhagen, j. 11/05/2010, DEJT 21/05/2010; TST, 8ª Turma, RR – 63100- 44.2007.5.05.0025, Rel. Min. Dora Maria da Costa, j. 14/04/2010, DEJT 16/04/2010; TST, 1ª Turma, RR-166/2006-461-05-00, Rel. Min. Luiz Phillipe Vieira de Mello Filho, DEJT – 13/02/2009; TST, 6ª Turma, RR-2818/2003-037-12-00, Rel. Min. Rosa Maria Weber Candiota da Rosa, DJU – 29/09/2006; TST, 5ª Turma, RR-5026/2003-341-01-00, Rel. Min. João Batista Brito Pereira, DEJT – 29/05/2009. (1139) DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2008. p. 1063. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 393 Interessa observar – e o estamos a dizer repetidamente – que a suspensão do contrato importa a descontinuidade das obrigações trabalhistas fundamentais, quais sejam, o salário e a disponibilidade da energia de trabalho. Cabe externar o pensamento de Wagner Giglio: “Suspendem-se efeitos do contrato e ainda assim somente seus efeitos principais – prestação de serviços e pagamento de salários –, sobre- vivendo os secundários, implícitos na avença, de respeito mútuo, fidelidade do empregado etc.”(1140) C) A proteção ao empregado portador da AIDS O artigo 1o da Lei n. 7.670, de 1988, dispõe: A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – SIDA/AIDS fica considerada, para os efeitos legais, causa que justifica: I – a concessão de: a) licença para tratamento de saúde prevista nos artigos 104 e 105 da Lei n. 1711, de 28 de outubro de 1952; b) aposentadoria, nos termos do art. 178, inciso I, alínea b, da Lei n. 1711, de 28 de outubro de 1952; c) reforma militar, na forma do disposto no art. 108, inciso V, da Lei n. 6.880, de 9 de dezembro de 1980; d) pensão especial nos termos do art. 1º da Lei n. 3.738, de 4 de abril de 1960; e) auxílio-doença ou aposentadoria, independentemente do período de carência, para o segurado que, após a filiação à Previdência Social, vier a manifestá-la, bem como a pensão por morte aos seus dependentes. II – levantamento dos valores correspondentes ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, indepen- dentemente de rescisão do contrato individual de trabalho ou de qualquer outro tipo de pecúlio a que o paciente tenha direito. Parágrafo único – O exame pericial para os fins deste artigo será realizado no local em que se encontre a pessoa, desde que impossibilitada de se locomover. As Leis 8.212 e 8.213, de 1991, regularam o custeio e os benefícios da Previdência Social, sem revogar a Lei n. 7.670, de 1988, que é norma especial e, por isso, exigiria revogação expressa. Assim, o que se tem positivado, ao que nos interessa, é o direito de o empregado soropositivo, que houver manifestado a síndrome após sua filiação à Previdência, obter a suspensão de seu contrato e o rece- bimento de auxílio-doença, ou mesmo a aposentadoria. O parágrafo único, acima transcrito, permite concluir, a contrario sensu, que o empregado não precisa estar impossibilitado de se locomover para que tenha suspenso o seu contrato. Assim, a mencionada norma previdenciária desautoriza a resilição do contrato do empregado porta- dor de AIDS, mas não por lhe assegurar estabilidade(1141) e sim por reconhecer o caráter patológico do mal que assoma ao indivíduo quando ele contrai o vírus. A lei garante a suspensão contratual, com o recebimento de auxílio-doença, sendo vedada, como já se sabe, a resilição de contrato suspenso(1142). O recebimento do auxílio-doença pode ser exigido mediante ação movida em face do INSS, dire- tamente. Sendo tal o objetivo do empregado que pede a sua reintegração no emprego, visando a que seja declarada, em última análise e numa aparente contradição, o seu direito à suspensão contratual, decerto que a alternativa mais razoável seria o ajuizamento de ação previdenciária, e não trabalhista. O Tribunal Superior do Trabalho tem-se mostrado, porém, sensível à premência dos interesses do portador do vírus HIV, que é mesmo incompatível com o dispêndio de tempo maior à procura do instrumento jurídico mais adequado. É doente que não pode esperar. Em hipótese na qual uma grande empresa despediu um empregado soropositivo, o Ministro Valdir Righeto observou, em seu voto: “Impossível se faz compreender que, nos dias de hoje, uma Empresa multinacional, de tamanho porte, venha a praticar atos desumanos, arbitrários e que ferem de morte a vida daquele que, com venda da sua força de trabalho, contribuiu durante o tempo em que saudável esteve, para que a ilustre empregadora atingisse o seu fim primordial, qual seja, o lucro”. Na ementa dessa paradigmática deci- são da Segunda Turma do Tribunal Superior do Trabalho(1143), lê-se: (1140) GIGLIO, Wagner. Justa Causa. São Paulo: LTr, 1992. p. 40. (1141) Mesmo a Súmula 443 do TST (“Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego”) também não assegura esta- bilidade, pois garante a reintegração no emprego de empregado não estável se a resilição do contrato, movida por intuito discriminatório, configurar-se ato patronal nulo. (1142) Essa percepção fez Sergio Pinto Martins (op. cit., p. 374) afirmar que “não há lei que determine a reintegração do soropositivo de AIDS no emprego. Assim, não há como dizer da existência de violação ao princípio da igualdade, pois como leciona Themístocles Brandão Cavalcante ´todos têm o mesmo direito, mas não o direito às mesmas coisas´”. (1143) TST, 2a. Turma, Proc. RR 217791/95.3, Rel. Min. Valdir Righeto, j. 14.5.97. Revista LTr 61-08/1098. 394 – Augusto César Leite de Carvalho Muito embora não haja preceito legal que garanta a estabilidade ao empregado portador da síndrome da imuno- deficiência adquirida, ao magistrado incumbe a tarefa de valer-se dos princípios gerais do direito, da analogia e dos costumes para solucionar os conflitos ou lides a ele submetidos. A simples e mera alegação de que o orde- namento jurídico nacional não assegura ao aidético o direito de permanecer no emprego não é suficiente a ampa- rar uma atitude altamente discriminatória e arbitrária que, sem sombra de dúvida, lesiona de maneira frontal o princípio da isonomia insculpido na Constituição da República Federativa do Brasil. Revista conhecida e provida. No caso, a mais alta Corte do Trabalho enlevou o aspecto material do princípio da igualdade, que impede se trate igualmente um empregado aidético, marcadamente desigual. Ignorou, portanto, a velha hermenêutica, que negava aos princípios constitucionais, em seu elevado grau de generalidade, alguma força normativa, ou a força que tem a norma de aplicação direta. Os princípios consagrados na Constitui- ção, especialmente o da isonomia, não se dirigem apenas ao legislador, como pondera Paulo Bonavides: A proclamação da normatividade dos princípios em novas formulações conceituais e os ares- tos das Cortes Supremas no constitucionalismo contemporâneo corroboram essa tendência irresistível que conduz à valoração e eficácia dos princípios como normas-chaves de todo o sistema jurídico; normas das quais se retirou o conteúdo inócuo de programaticidade, mediante o qual se costumava neutralizar a eficácia das Constituições em seus valores reve- renciais, em seus objetivos básicos, em seus princípios cardeais(1144). Andou bem o TST, portanto, quando atribuiu força imperativa ao princípio da igualdade e decidiu, topicamente, pela prevalência do respeito à dignidade e do direito à vida. E se os sintomas da AIDS ainda não se manifestaram, mas o empregado é comprovadamente portador do vírus HIV, não terá ele direito à suspensão do seu contrato, mas, como está a orientar a Súmula 443 do TST, “presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego”. D) Efeitos da suspensão contratual no tocante à prescrição Acerca da prescrição, o tema que inquieta é a possibilidade de o prazo prescricional fluir normal- mente quando alguma circunstância estaria a perturbar o contrato a ponto de fazer suspensa a exigibili- dade de sua execução. Em dado momento, assentou-se a jurisprudência, que hoje não mais predomina, no sentido de o afastamento por doença ou acidente de trabalho ser incompatível com a fluência de prazo prescricional, pois a enfermidade tolhe, em regra, a possibilidade de o empregado exercer o seu direito de ação (pela singela razão de a doença dificultar qualquer ação física). Assim, não poderia correr a prescrição contra quem não está apto, ou inteiramente apto, a deduzir pretensão em juízo. Essa antiga orientação jurisprudencial tinha bom fundamento, porquanto seja evidente que ao legis- lador do direito civil não ocorreria ideia de regular, fora de sua competência estrita, matéria atinente à prescrição da pretensão trabalhista, incluindo porventura a licença para tratamento de saúde ou em razão de acidente de trabalho como causa de suspensão do prazo prescricional. E disso não cuidaria porque as normas de direito trabalhista são especiais, além de ser estranha, àquele ramo do direito que regula os contratos paritários, a ideia de um contrato ser preservado mesmo durante o período em que a sua execução está suspensa. A seu turno, tal particularidade da relação de emprego (a de o seu contrato não se resolver ante a impossibilidade de seu cumprimento, apenas se dando a sua suspensão) estaria a exigir do intérprete do direito do trabalho uma posição afirmativa do princípio da proteção, o que resvalaria, necessaria- mente, para a conclusão de lege ferenda de ser a suspensão do contrato de trabalho uma causa de suspensão do prazo prescricional. Ademais, o direito positivo oferecia chancela a tal entendimento. A esse propósito, é de todo coerente entender, como tantas vezes entendeu o TST antes de adotar sua atual posição, que a alta médica, ao fim do recebimento de auxílio-doença, assemelha-se à condição suspensiva, pois é fato futuro e incerto que faz renascer a condição física necessária ao exercício do direito de ação. Nessa medida, aplicar-se-ia à hipótese o art. 199, I, do novo Código Civil, suspendendo-se o prazo de pres- crição. Houve decisões da alta Corte Trabalhista(1145) que enriqueceram a discussão. (1144) BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 257. (1145) “SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. AUXÍLIO-DOENÇA. PRESCRIÇÃO. NÃO–FLUÊNCIA. 1. Suspenso o contrato de trabalho, em virtude de o empregado haver sido acometido de doença profissional (leucopenia), com percepção de auxílio-doença, opera-se a correlata suspensão igualmente do fluxo do prazo prescricional para ajuizamento de ação trabalhista. Omissa a lei, razoável a invocação analógica do artigo 170, inciso I, do Código Civil Brasileiro, segundo o qual não flui a prescrição “pendendo condição suspensiva”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 395 A verdade, porém, é que a SBDI-1 do TST revisitou o tema para adotar a posição que se mostra claramente influenciada pelas normas de direito civil alusivas à prescrição, não obstante a peculiari- dade do dilema trabalhista. Em decisão publicada no dia 10/ago/2007(1146), o ministro Aloysio Corrêa da Veiga ressalvou o seu entendimento contrário mas, na sequência, admitiu que a orientação majoritária naquela corte jurisdicional já se formava no sentido de não compreender o afastamento por doença ou acidente laboral como causa de suspensão do prazo prescricional trabalhista. Editou-se, mais adiante, a orientação jurisprudencial n. 375 da SBDI-1: A suspensão do contrato de trabalho, em virtude da percepção do auxílio-doença ou da aposentadoria por inva- lidez, não impede a fluência da prescrição quinquenal, ressalvada a hipótese de absoluta impossibilidade de acesso ao Judiciário. Não se estabeleceu a regra incontrastável de que o prazo prescricional sempre corre contra o trabalhador cujo contrato está suspenso por doença ou em decorrência de acidente de trabalho, exigin- do-se dele, contudo, que demonstre a absoluta impossibilidade de propor sua ação trabalhista. 12.9.2.3 Casos híbridos. Efeitos jurídicos Acontece de o empregado se afastar temporariamente do emprego, sem direito a salário stricto sensu, mas com direito a exigir outras prestações do empregador. A Lei n. 8.036/90 enumera casos nos quais o FGTS, que a partir da Constituição de 1988 tem natureza de salário diferido(1147), deve ser recolhido durante o afastamento do empregado. São os seguintes: • Prestação de serviço militar (art. 15, §5º, da Lei n. 8.036/90 e art. 28, I, do Decreto 99.684/90) ordinário e obrigatório, pois o serviço militar extraordinário acarreta a interrupção do contrato e o engajamento definitivo na carreira militar faz cessar o vínculo de emprego. • Licença por acidente de trabalho (art. 15, §5º, da Lei n. 8.036/90 e art. 28, III, do Decreto n. 99.684/90), com recebimento de auxílio-doença. Interessa, aqui, a licença que excede os quinze primeiros dias de afastamento, porque esta primeira quinzena se caracteriza como interrupção do contrato, com direito a salário pago pelo empregador. • A licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias (art. 28, IV, do Decreto n. 99.684/90). • A suspensão causada pela eleição do empregado a cargo de direção da sociedade empresa- rial, desde que não se mantenha a dependência hierárquica (art. 16 da Lei n. 8.036/90 e art. 29 do Decreto n. 99.684/90). O artigo 4o, parágrafo único, da CLT – nascido ao tempo em que o empregado podia não optar pelo regime do FGTS e então tinha direito à indenização de antiguidade (artigo 478 da CLT) e à aqui- sição de estabilidade decenal (artigo 492 da CLT) – manda computar, “para efeito de indenização e estabilidade, os períodos em que o empregado estiver afastado do trabalho prestando serviço militar e por motivo de acidente de trabalho”. Quanto à licença-gestante, vale ressaltar que o salário-maternidade, pago durante o seu gozo, é benefício previdenciário cujo pagamento é adiantado pelo empregador, sendo o seu valor abatido, em seguida, da contribuição previdenciária que tal empregador recolha ao INSS(1148). Ademais, a licença e Daí se infere a regra absolutamente prudente de que se o titular do direito subjetivo material lesado está impossibilitado de agir, para tornar efetivo o seu direito, não flui a prescrição. Assim, forçoso reconhecer que, enquanto perdura a enfermidade determinante da paralisação das obrigações bilaterais principais do contrato, o empregado acha-se fisicamente impossibilitado de exercer o direito constitucional de ação. 2. Embargos de que se conhece e a que se dá provimento para, com supedâneo no artigo 260 do RITST, afastar a prescrição total do direito de ação do autor, determinando o retorno dos autos à Vara do Trabalho de origem para análise do mérito da demanda. (TST-ERR-741962/2001; SBDI-1; DJ 13/12/2002; Ministro João Oreste Dalazen)”. No mesmo sentido e até admitindo a suspensão do prazo prescricional a partir da omissão do empregador em emitir a CAT: ERR 473491/1998.0, conforme notícia divulgada no site do TST em 25/maio/2006. (1146) E-RR-503/2004-002-20-00.0. (1147) O art. 7o, III, da CF incluiu o FGTS entre os direitos sociais do trabalhador urbano ou rural, não existindo mais, como antes, a possi- bilidade de os depósitos percentuais, com os seus acréscimos, não reverterem em favor do empregado. A este pode ser negado o direito ao saque, na dissolução do contrato. Ainda assim, o saldo em sua conta vinculada é mantido sob a titularidade do empregado que não o pode levantar, pelo fato de ter pedido demissão ou de ter sido dispensado por justa causa. Logo, difere-se ou adia-se o pagamento do FGTS ao empregado, mas é este uma clara retribuição pelo trabalho prestado. (1148) Vide nova redação do art. 72, §1º, da Lei n. 8.213/91, dada pela Lei n. 10.710/2003. A Previdência Social para diretamente o benefício em casos de adoção ou de guarda (art. 71-A da Lei n. 8.213). 396 – Augusto César Leite de Carvalho o benefício estão assegurados nos casos de adoção ou guarda de menor, estendendo-se por 120 dias se a criança tiver até um ano de idade, por 60 dias se a criança tem entre um e quatro anos e por 30 dias se a criança tem entre quatro e oito anos. 12.9.2.4 Conversibilidade da suspensão do contrato Anota Rodrigues Pinto(1149) que as modalidades de suspensão contratual são normalmente passí- veis de conversão de uma classe em outra, a exemplo do que se dá com o afastamento por doença ou em decorrência de acidente de trabalho: a interrupção contratual da primeira quinzena de afastamento converte-se, a partir do décimo sexto dia, em suspensão contratual. Também a suspensão disciplinar pode se converter em interrupção do contrato, quando a Justiça do Trabalho reconhece a ilicitude da pena aplicada ao empregado e ordena, então, o pagamento dos salários correspondentes. Não se converte em interrupção contratual, porém, a suspensão do contrato por enfermidade ou acidente de trabalho, quando o auxílio-doença, pago pelo INSS, é complementado pelo empre- gador. Assim sucede nas empresas cujos titulares se obrigam, por contrato individual, regulamento interno ou norma coletiva, a complementar o benefício previdenciário, até que este alcance a pari- dade com o salário dos empregados em atividade. Lembra Amauri Mascaro Nascimento(1150) que esse complemento é acessório de verba previdenciária (destituída de natureza salarial), seguindo a sorte da parcela principal. Se o complemento de benefício previdenciário não é uma modalidade de salário, de interrupção contratual não se há cuidar. 12.10 Cessação do contrato de emprego 12.10.1 Terminologia Na legislação trabalhista, há uma clara generalização dos termos rescisão e demissão, usando-se um ou outro quando a lei quer se reportar ao término do liame empregatício, como se esses vocábulos não tivessem um significado técnico específico. Adiante, veremos que rescisão deveria designar a dissolução do contrato em vista da nulidade deste e demissão seria – como é em rigor – o ato em que o empregado desata, por vontade sua, a relação laboral. Uma vez que a legislação trabalhista surgiu, no Brasil, para ser operada por agentes do Poder Executivo – a magistratura do trabalho surgiu em 1941 e somente na Constituição de 1946 a Justiça do Trabalho se incorporou à estrutura do Poder Judiciário –, parece-nos que a influência de práticas administrativas fez com que a palavra demissão fosse usada com o sentido de despedida. Cabe frisar que, no âmbito do direito administrativo, demissão é pena contra o servidor público infrator. Quanto ao uso indiscriminado da palavra rescisão, em especial na Consolidação das Leis do Trabalho, parece-nos que se seguiu incialmente, apenas incialmente (antes de o legislador desa- pegar-se de qualquer rigor terminológico), uma classificação que foi preconizada, na doutrina, por Cesarino Júnior e Marly Cardone(1151). Esses autores advogam a existência de dois tipos principais de terminação do contrato de trabalho: “1) o de cessação das relações de trabalho; 2) o de sua rescisão. Distinguem-se em que a cessação resulta de um fato, é involuntária, portanto, ao passo que a rescisão provém de um ato, sendo, em consequência, voluntária”. Como exemplos de cessação do contrato de trabalho, os mencionados laboralistas referem-se à morte do empregado, à aposentadoria e à conde- nação criminal deste. É possível tolerar, nessa medida, o caráter pouco técnico da linguagem usada na Consolidação das Leis do Trabalho se compreendemos a sua origem, a classificação que a ela deu azo. Adotaremos, porém, a classificação doutrinária que nos parece mais didática e, por isso mesmo, distinguiremos os modos de cessação do contrato de emprego(1152) com base na seguinte tipologia: a) resilição; (1149) Op. cit. p. 414. (1150) NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Teoria Jurídica do Salário. São Paulo: LTr, 1994. p. 87. (1151) CESARINO JÚNIOR, Antônio Ferreira. Direito social: teoria geral do direito social, direito contratual do trabalho, direito protecio- nista do trabalho / A. F. Cesarino Júnior, Marly A. Cardone. São Paulo: LTr, 1993. p. 247. (1152) A palavra cessação é empregada como gênero, de que são espécies os vários modos como se realiza o fim do vínculo de emprego. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 397 b) resolução; c) rescisão; d) caducidade. Nessa classificação se incluiria, ainda e se estivéssemos cuidando de contrato gratuito(1153), a revogação – o contrato de emprego é, como antevisto, oneroso. 12.10.2 Resilição do contrato de emprego. Direito potestativo, ônus da prova e aviso-prévio O contrato de trabalho é resilido quando se desfaz por iniciativa das partes ou de uma delas(1154). No âmbito do contrato de emprego, a resilição bilateral ou distrato é de rara ocorrência(1155). Por sua vez, a resilição unilateral pode acontecer por iniciativa do empregado, quando ele se demite (há demissão propriamente dita) do emprego, querendo exonerar-se, assim, das obrigações inerentes ao contrato. Sendo o empregador quem decide resilir o contrato, dá-se então a despedida ou dispensa. Regra geral, apenas os contratos por tempo indeterminado são resilidos. Podem sê-lo a qualquer instante e inclusive pelos empregados, pois a estes é assegurada a liberdade de trabalho (artigo 5o, XIII, da Constituição) e, por isso, a liberdade também de não trabalhar. Por outro lado, diz-se comumente que o empregador, no Brasil, está investido do direito potestativo(1156) de despedir os seus empregados, ao menos aqueles empregados que não tenham adquirido estabilidade definitiva ou provisória. Em verdade, o princípio contemplado no art. 7º, I da Constituição é o da “relação de emprego protegida contra a despedida arbitrária ou sem justa causa”, mas o fato de esse mesmo dispositivo esclarecer que a matéria será regida por lei complementar, a qual preverá a indenização compensató- ria, dentre outros direitos, terminou por relativizar a adoção, no Brasil, do princípio da justificação(1157), que, se aplicado plenamente, exigiria do empregador a indicação do motivo inerente à empresa ou à conduta do empregado que estaria permitindo o ato de dispensa. O art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estatui o valor da indenização(1158) devido enquanto não surgir a ansiada lei complementar. A única indenização a que se obriga o empregador, que promove a resilição arbitrária ou sem justa causa do contrato, é, assim, equivalente a 40% (quarenta por cento)(1159) do FGTS do empregado, vale dizer, um valor que pode ser normalmente suportado pelas finanças da empresa e não condiz, afinal, com o valor do bem jurídico que estaria a proteger. Se há direito potestativo, assim sucede porque a Constituição autoriza, na prática, que o empregador dispense o empregado desde que lhe pague alguma indenização, cabendo ao trabalhador submeter-se resignadamente à decisão de despedi-lo. Outros sistemas constitucionais são mais rigorosos quando regulam a liberdade patronal de resi- lir o contrato que é fonte de subsistência para o trabalhador e sua família, como se pode observar, ilustrativamente, à leitura do art. 53 da Constituição de Portugal: “É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”. Os contratos de emprego são ordinariamente resilidos pelo empregador, di-lo a experiência. Ao empre- gado não interessa fazer cessar a fonte do salário que lhe provê alimentos e outras necessidades. O ônus de provar o fato extraordinário da resilição por iniciativa do contrato, ou mesmo o advento de causa gera- dora de resolução ou caducidade, é, por isso, do empregador. Nesse sentido a Súmula 212 do TST(1160). (1153) Ou ainda para o contrato de mandato. (1154) O atual Código Civil, que resgatou a terminologia aqui adotada quanto às modalidades de cessação do contrato, tem preceito perti- nente: Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos. (1155) A jurisprudência nos remete a esse tipo de resilição, a resilição bilateral, quando trata dos programas de demissão incentivada, às vezes denominados pleonasticamente de PDV – Plano de Demissão Voluntária. (1156) Direito potestativo seria aquele a que corresponde apenas a sujeição da outra parte. (1157) O art. 4 da Convenção 158 da OIT, cuja denúncia tem sua validade ainda sob análise do STF, dispõe: “Não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço”. (1158) A indenização prevista no art. 10 do ADCT corresponde a 40% do FGTS. (1159) A Lei n. Complementar n. 110, de 29 de junho de 2001, previu contribuição social de 10% sobre o saldo na conta vinculada do FGTS correspondente a todos os depósitos, a ser recolhida nos casos de despedidas sem justa causa. Mas acresceu essa contribuição social ao débito do empregador sem favorecer, diretamente, o empregado, pois a contribuição foi arrecadada para o fundo comum, com o objetivo de custear o pagamento de reajustes do saldo da conta vinculada que foram assegurados pelo Poder Judiciário. A mesma lei institui, também sem favorecer o trabalhador, contribuição social de 0,5% sobre a remuneração mensal do empregado, elevando a 8,5% o recolhimento a cada mês. 398 – Augusto César Leite de Carvalho 12.10.2.1 O aviso-prévio A) Conceito e cabimento do aviso-prévio No âmbito das relações entre particulares, percebeu-se em dado momento histórico que o indi- vidualismo exacerbado poderia conduzir à sua própria negação. Sendo livre, ou supostamente livre, para contratar, o homem possuía a discrição de se obrigar por toda a vida, impedindo a si próprio de promover o desate do contrato que já não atendia, após vários anos de vigência, à sua mais recôndita esfera de interesses. Era evidente o paradoxo. Noutra perspectiva, autorizar a ruptura imediata de contratos civis importava assegurar aos contraentes uma discricionariedade lesiva à harmonia das relações sociais. O aviso-prévio, tal como se o concebe hoje, foi idealizado para permitir que qualquer dos sujeitos de um contrato por tempo indeterminado pudesse denunciá-lo, contanto que o fizesse cessar após avisar o outro contraente com a antecedência exigida em lei. É uma obrigação, que se realiza mediante uma notificação premonitória, como se extrai do artigo 487 da CLT. Quer na hipótese de demissão, quer nos casos de despedida, a parte que denuncia o contrato por tempo indeterminado – que é o tipo de contrato que comporta, normalmente, a resilição – obriga-se a conceder o aviso-prévio. Portanto, o aviso-prévio encontraria seu leito natural na denúncia vazia (dispensa ou demissão sem motivação expressa) de contratos por tempo indeterminado, mas essa regra admite ao menos duas exceções. Sendo o contrato por tempo determinado, o aviso-prévio não é, em princípio, devido, mas o será se o contrato contiver a cláusula assecuratória do direito recíproco de rescisão, referida no artigo 481 da CLT. Se não há denúncia vazia, o aviso-prévio não é devido, salvo na hipótese mencionada no artigo 487, §4o, da CLT, que diz respeito à despedida indireta, ou seja, à resolução do contrato em razão de justa causa cometida pelo empregador. Aí se estará a evitar, como veremos a seu tempo, que o empregado seja prejudicado, financeiramente, quando o empregador comporta-se de modo insidioso com a finalidade de o induzir, maldosamente, a pleitear a resolução do contrato com base no artigo 483 da CLT. B) Forma do aviso-prévio. Aviso-prévio de trabalhador menor É preferível que o aviso-prévio seja concedido por escrito, mas nada obsta que o seja verbalmente, cabendo sempre à parte denunciante o ônus da prova. É inconcebível, contudo, o aviso-prévio tácito ou presumido. Carlos Alberto Reis de Paula(1161) sustenta tais regras a propósito da forma do aviso-pré- vio e consente que o menor possa pré-avisar o empregador sem estar assistido por seu responsável legal(1162), pois somente lhe seria vedado assinar, sem assistência, o recibo rescisório (rectius: recibo relativo à cessação do contrato). Nesse sentido parece trilhar a jurisprudência(1163). C) Indenização compensatória do aviso-prévio. Integração ao tempo de serviço do aviso- -prévio indenizado pelo empregador Se a parte, que pretende dissolver o contrato por tempo indeterminado, não pré-avisa a outra, incorre ela nas sanções legais, a saber: o empregado que não concede o aviso-prévio ao empregador dá a este o direito de descontar os salários correspondentes ao prazo do aviso (art. 487, §2o, da CLT); o empregador que não pré-avisa o empregado da dispensa, deve pagar-lhe uma indenização de valor (1160) Súmula 212 do TST: “O ônus de provar o término do contrato de trabalho, quando negados a prestação de serviço e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade da relação de emprego constitui presunção favorável ao empregado.” (1161) PAULA, Carlos Alberto Reis de. O aviso-prévio. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. Vol. 2. São Paulo: LTr, 1993. p. 534. (1162) Op. cit. p. 531. (1163) “RECURSO DE REVISTA. EXTINÇÃO DO CONTRATO. NULIDADE DO PEDIDO DE DEMISSÃO. EMPREGADO MENOR. Não viola a literalidade do artigo 439 da CLT decisão regional que firma tese no sentido de que o empregado menor pode manifestar a intenção de resilir o contrato de trabalho sem que esteja na presença de seu responsável, fazendo-o ao fundamento de que tal dispositivo legal “alude à necessidade de assistência para efeitos de quitação de indenização devida por ocasião da resilição”, quando é certo que “a autora não questiona o fato de os valores consignados no recibo de quitação lhe terem sido pagos”. Recurso de revista não provido” (TST, 4ª Turma, RR 798104-97.2001.5.09.5555, Relatora Desembargadora Convocada Maria Doralice Novaes, DJ 03/03/2006). Em igual sentido: RR n. 798104/2001.7, DJ 03/03/2006. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 399 equivalente ao salário(1164) do período de aviso-prévio, integrando esse período ao tempo de serviço do trabalhador para efeito de cálculo dos duodécimos de férias e 13o salário, bem assim do recolhimento do FGTS(1165). Note-se que a integração do período de aviso-prévio ocorre apenas nas hipóteses em que é do empregador a iniciativa de resilir o contrato e ele não pré-avisa o empregado (artigo 487, §1o, da CLT). Nesse caso, devem ser calculadas as parcelas resilitórias com base na remuneração que seria devida no período de aviso, incorporado ao tempo de serviço. Incide nesse cálculo o reajuste salarial porventura assegurado, no período do aviso-prévio indenizado, à categoria profissional – não importa se o empregado recebeu as verbas da resilição contratual antes de ser concedido o reajuste. É o que reza o artigo 487, §6o, da CLT. Por exemplo: se o empregado é dispensado, no dia 30/maio/2015, sem a prévia dação do aviso, aproveita-lhe o reajuste salarial acaso concedido no mês de junho de 2015, ainda que ele receba, antes de junho, as verbas resilitórias. Há orientação jurisprudencial(1166) recomendando, também, a anotação na CTPS do período de aviso-prévio, ou seja, a inclusão deste no tempo de vigência do contrato. Trata-se de construção jurisprudencial sedimentada e sedutora, que se coaduna com a dicção do artigo 487, §1o, da CLT, que manda integrar sempre o período de aviso-prévio ao tempo de serviço. A nossa posição, porém, é crítica no tocante a esse entendimento, ao menos enquanto não estiver firme a jurisprudência acerca de a anotação do período de aviso-prévio na carteira de trabalho surtir o resultado prático de ser esse tempo computado para fim de aposentadoria. Ao não produzir tal efeito, a anotação cria uma ilusão para o empregado, nada mais que isso. E como a norma constitucional foi emendada para que os empregados contem, para efeito de aposentadoria, o tempo de contribuição(1167) (não mais o tempo de serviço), sustentamos que somente os operadores do direito que considerassem o aviso-prévio indenizado como salário de contribuição podem defender, coerentemente, a anotação do período de aviso-prévio indenizado na CTPS. Em verdade, parece razoável entender que seria exigível a contribuição previdenciária sobre o aviso-prévio indenizado, pois a Lei n. 8.212, de 1991, não inclui tal parcela entre aquelas que estariam imunes a essa incidência. Seguindo essa linha, a Instrução Normativa n. 20 de 11/01/2007, do INSS, passou a exigir a cobrança de contribuição previdenciária sobre o aviso-prévio indenizado, balizando assim o procedimento das auditorias fiscais. Logo, a anotação do período de aviso-prévio indenizado na CTPS do empregado ganharia um efeito que, em última análise, lhe emprestaria coerência, qual seja, o efeito de computar-se esse tempo de aviso-prévio para efeito de aposentadoria. Mas é fato que a jurisprudência continua refratária, muita vez, à incidência da contribuição previdenciária sobre a indenização do aviso-prévio(1168). D) Prazo de aviso-prévio. Regra geral e peculiaridades do emprego doméstico Segundo o que preceitua o artigo 7o, XXI, da Constituição, os trabalhadores urbanos e rurais têm direito a aviso-prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias. Sobre o modo de contagem do prazo de aviso-prévio, viceja a vertente jurisprudencial que adota a regra contida no artigo 132 do Código Civil: exclui-se o dia de começo, incluindo-se o do vencimento, conforme reco- menda a Súmula 380 do TST. (1164) Ao salário, e não à remuneração. A gorjeta não se inclui na base de cálculo da indenização do aviso-prévio, como recomenda a Súmula 354 do TST. (1165) Nesse sentido, a Súmula 305 do TST: “O pagamento relativo ao período de aviso-prévio, trabalhado ou não, está sujeito a contribui- ção para o FGTS”. (1166) Orientação jurisprudencial n. 82 da SDI-1 do TST. (1167) Vide artigo 201, §9o, da Constituição. (1168) EMBARGOS INTERPOSTOS ANTERIORMENTE À VIGÊNCIA DA LEI N. 11.496/2007. PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO TURMÁRIO EM 30/03/2007 E CIÊNCIA PELO ENTE PÚBLICO EM 11/05/2007. ACORDO HOMOLOGADO EM JUÍZO. AVISO PRÉVIO INDENIZADO. CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. NÃO INCIDÊNCIA. 1. A despeito de o § 9º do artigo 28 da Lei n. º 8.212/91, em sua nova redação, não mais preconizar no rol de isenção da contribuição previdenciária o aviso-prévio indenizado, permanece inalterada a impossibilidade de sua incidência sobre tal parcela, não só em face da natureza nitidamente indenizatória dessa última, mas, sobretudo, em virtude do que dispõe o artigo 214, § 9º, V, “f ”, do Decreto n.º 3.048/99, que, expressamente, excetua o aviso-prévio indeni- zado do salário de contribuição. Precedentes da SDI-1. Incidência da Súmula n.º 333. 2. Embargos de que não se conhece (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR-44800-44.2005.5.04.0021, Relator Ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos, Data de Julgamento: 11/03/2010, Data de Publicação: 19/03/2010). 400 – Augusto César Leite de Carvalho Por mais de duas décadas, a referida proporção do período de aviso-prévio com o tempo de serviço não passou de uma auspiciosa promessa constitucional. Mas ocorreu de o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento dos mandados de injunção 943 e 1010-DF, em 22 de junho de 2011, esboçar a intenção de fixar a proporcionalidade que atenderia ao comando da Constituição, porquanto demasiada a mora legislativa. Apressou-se então o Congresso Nacional a legislar a matéria, fazendo-o por meio da Lei n. 12.506, de 11 de outubro de 2011, cujo preceito é de singeleza quase angustiante. Diz, no que interessa, a citada lei: Art. 1º. O aviso-prévio, de que trata o Capítulo VI do Título IV da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943, será concedido na proporção de 30 (trinta) dias aos empregados que contem até 1 (um) ano de serviço na mesma empresa. Parágrafo único. Ao aviso-prévio previsto neste artigo serão acrescidos 3 (três) dias por ano de serviço prestado na mesma empresa, até o máximo de 60 (sessenta) dias, perfazendo um total de até 90 (noventa) dias. Tais dispositivos estão abertos à exegese doutrinária e jurisprudencial, mas a exegese que se consolida nos diz que no primeiro ano da relação laboral o aviso-prévio – assegurado pelo art. 7º, XXI, da Constituição como direito fundamental dos trabalhadores – deve ser de trinta dias(1169) e, a partir do primeiro dia do ano seguinte, o empregado terá direito a aviso-prévio que durará, além dos trinta dias desde sempre assegurados, mais três dias por cada ano de serviço prestado na empresa, até o máximo de noventa dias (30 dias do tempo mínimo + 60 dias se contados vinte anos de emprego). O primeiro ano do contrato é computado nessa proporção (+3 dias por ano), embora nele seja devido o aviso-prévio de apenas 30 dias. A nossa compreensão é a de todo o período de aviso-prévio concedido ao empregado destinar-se à procura de novo emprego e, portanto, a dilação do prazo deve importar a sua fruição in natura, nada justificando a conversão em pecúnia de parte do tempo acrescido aos trinta dias. Mas há precedentes, inclusive no âmbito do TST e com ponderáveis fundamentos(1170), nos quais se decidiu pela obrigação de se conceder aviso-prévio de trinta dias e o tempo excedente, derivado da proporcionalidade regu- lada pela Lei n. 12.506/2011, ser devido em dinheiro. O tempo dirá qual o modelo hermenêutico que haverá de atender ao desígnio constitucional, ao propósito da proporcionalidade. Uma parte expressiva da doutrina bradou que o prazo de aviso-prévio seria, também para o empregador, de trinta dias no mínimo e proporcional ao tempo de serviço, sem perceber, aparente- mente, que essa extensão de tempo e a proporcionalidade foram asseguradas como direito social dos trabalhadores, direito fundamental apenas destes, dada a finalidade específica que o aviso-pré- vio tem para o empregado, qual seja, a procura por novo emprego. Como adiante se verá, mesmo quando a ordem constitucional não consagrava o aviso-prévio devido aos trabalhadores como direito fundamental (o art. 158 da Constituição de 1967 era omissa quanto ao tema), inexistia perfeita simetria entre o pré-aviso devido pelo empregado e aquele devido pelo empregador. (1169) Salvo se norma coletiva, regulamentar ou contratual alargarem essa proteção já no primeiro ano do vínculo de emprego, dado que sempre prevalece a norma mais favorável ao trabalhador. (1170) AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. 1. PROPORCIONALIDADE DO AVISO PRÉVIO AO TEMPO DE SERVIÇO. VANTAGEM ESTENDIDA AOS EMPREGADOS. AUSÊNCIA DE BILATERALIDADE. A Lei n. . 12.506/2011 é clara em consi- derar a proporcionalidade uma vantagem estendida aos empregados (caput do art. 1º do diploma legal), sem a bilateralidade que caracteriza o instituto original, fixado em 30 dias desde 5.10.1988. A bilateralidade restringe-se ao aviso-prévio de 30 dias, que tem de ser concedido também pelo empregado a seu empregador, caso queira pedir demissão (caput do art. 487 da CLT), sob pena de poder sofrer o desconto correspondente ao prazo descumprido (art. 487, § 2º, CLT). Esse prazo de 30 dias também modula a forma de cumprimento físico do aviso- -prévio (aviso trabalhado): redução de duas horas de trabalho ao dia, durante 30 dias (caput do art. 488, CLT) ou cumprimento do horário normal de trabalho durante o pré-aviso, salvo os últimos sete dias (parágrafo único do art. 488 da CLT). A escolha jurídica feita pela Lei n. 12.506/2011, mantendo os trinta dias como módulo que abrange todos os aspectos do instituto, inclusive os desfavoráveis ao empregado, ao passo que a proporcionalidade favorece apenas o trabalhador, é sensata, proporcional e razoável, caso considerados a lógica e o dire- cionamento jurídicos da Constituição e de todo o Direito do Trabalho. Trata-se da única maneira de se evitar que o avanço normativo da proporcionalidade se converta em uma contrafacção, como seria impor-se ao trabalhador com vários anos de serviço gravíssima restrição a seu direito de se desvincular do contrato de emprego. Essa restrição nunca existiu no Direito do Trabalho e nem na Constituição, que jamais exigiram até mesmo do trabalhador estável ou com garantia de emprego (que tem -- ou tinha -- vantagem enorme em seu benefício) qualquer óbice ao exercício de seu pedido de demissão. Ora, o cumprimento de um aviso de 60, 80 ou 90 dias ou o desconto salarial nessa mesma proporção fariam a ordem jurídica retornar a períodos selvagens da civilização ocidental, antes do advento do próprio Direito do Trabalho – situação normativa incompatível com o espírito da Constituição da República e do Direito do Trabalho brasileiros. Agravo de instrumento desprovido. [...] Agravo de instrumento desprovido (TST, 3ª Turma, AIRR 10042-93.2012.5.03.0062, Relator Ministro Mauri- cio Godinho Delgado, DEJT 29/08/2014). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 401 Não nos parece consistente, por isso mesmo, a tese de que estaria derrogado, também no tocante ao aviso dado pelo empregado, o inciso I do artigo 487 da CLT, que fixa em oito dias o período de aviso-prévio para empregados que recebem salário a cada semana ou com periodicidade inferior. Não há sentido, enfatiza-se uma vez mais, em se apegar a uma suposta simetria – que sempre foi parcial – entre o aviso concedido pelo empregador e o dado pelo empregado. O aviso-prévio que o empregado deve conceder ao empregador visa apenas a que não se dê a ruptura traumática da atividade produtiva, naquilo que concerniria à contribuição do trabalhador demissionário na produção de bens ou serviços a que se dedica continuamente a empresa. Essa continuidade é uma característica da empresa que não habita a alma do trabalhador, pois a empresa continua operando quando se desfaz o vínculo de emprego, sem que ao empregado se garanta a certeza de que continuará despendendo sua energia de trabalho em outro ambiente empresarial e assim provendo sua subsistência e dignidade. Para o empregado, o aviso-prévio não significa somente a proteção contra um momento de ruptura, mas uma oportunidade para que readquira a condição social e econômica de trabalhador. Além de não ser justo, segundo o senso comum, que o empregado mais antigo tenha um período para desligar-se da empresa igual àquele que ali trabalha há pouco tempo, a reinserção no mercado de trabalho é decerto mais difícil para o empregado que se habitua a uma dada rotina funcional, ano após ano, e assim não se capacita para novos modelos de produção, tecnologia e organização empresarial cuja compreensão lhe seria exigida na busca de novo emprego. Justifica-se, nessa ordem de ideias, a proporção entre o tempo de serviço e o tempo de aviso-prévio. Outro aspecto interessante: o art. 23 da Lei n. Complementar 150, de 2015, ao regular o aviso-pré- vio devido no emprego doméstico, deixou claro que o prazo proporcional de aviso-prévio, nos mesmos moldes da regra alusiva aos empregados em geral, deve ser observado quando a iniciativa de resilir o vínculo é do empregador(1171). Mas, curiosamente, a citada lei complementar não esclarece qual seria a antecedência a ser observada no aviso-prévio que afirma ser devido pelo empregado doméstico. Como a simetria de prazos não é defensável, sobretudo se o seria contra legem, e nunca houve lei disciplinando o aviso-prévio devido pelo empregado doméstico, supõe-se que os intérpretes do direito do trabalho vão adotar, por analogia e não obstante a restrição contida no art. 7º da CLT (que impede a incidência da CLT na relação de emprego doméstica), os prazos previstos no art. 487, I, da CLT. Do contrário, o art. 23, §4º, da LC n. 150 seria de manifesta ineficácia. E) Especificidades do aviso-prévio devido pelo empregador. Peculiaridades do emprego doméstico São ao menos quatro as diferenças entre o aviso-prévio devido pelo empregado e aquele a que se obriga o empregador, sendo que duas dessas diferenças estão vistas: o tempo mínimo de trinta dias para o aviso-prévio devido pelo empregador (não há norma exigindo tempo mínimo para o aviso devido pelo empregado) e a proporção entre o período de aviso-prévio e o tempo de serviço (ao empregado se assegura mais três dias por ano de aviso-prévio, após ele completar o primeiro ano contratual). Outra diferença reside na integração ao tempo de serviço do período de aviso-prévio indeni- zado pelo empregador. Se o empregador não pré-avisa o empregado, deve não apenas pagar-lhe os salários de todo o período de aviso-prévio (observando inclusive a proporcionalidade com o tempo de serviço), como igualmente considerar o tempo de aviso-prévio no tempo de serviço, computando esse tempo inclusive no cálculo de FGTS, 13º salário proporcional e férias que porventura devam ser indenizadas. Não se verifica essa projeção do período de aviso-prévio no tempo de serviço quando o empregado negligencia a sua obrigação de pré-avisar o empregador de que se demite do emprego. A quarta diferença é, certamente, aquela que concerne à redução de jornada ou dias de trabalho durante o período de aviso-prévio, toda vez em que é este regularmente concedido pelo empregador (artigo 488 e parágrafo único, da CLT). Quando é o empregado quem dá o aviso-prévio, continua ele a prestar sua jornada normal, sem redução de carga horária. (1171) Art. 23.  Não havendo prazo estipulado no contrato, a parte que, sem justo motivo, quiser rescindi-lo deverá avisar a outra de sua intenção. § 1o  O aviso-prévio será concedido na proporção de 30 (trinta) dias ao empregado que conte com até 1 (um) ano de serviço para o mesmo empregador. § 2o  Ao aviso-prévio previsto neste artigo, devido ao empregado, serão acrescidos 3 (três) dias por ano de serviço prestado para o mesmo empregador, até o máximo de 60 (sessenta) dias, perfazendo um total de até 90 (noventa) dias. § 3o  A falta de aviso- -prévio por parte do empregador dá ao empregado o direito aos salários correspondentes ao prazo do aviso, garantida sempre a integração desse período ao seu tempo de serviço. § 4o  A falta de aviso-prévio por parte do empregado dá ao empregador o direito de descontar os salários correspondentes ao prazo respectivo. § 5o  O valor das horas extraordinárias habituais integra o aviso-prévio indenizado. 402 – Augusto César Leite de Carvalho O empregador que concede o aviso-prévio obriga-se a reduzir em duas horas(1172) a jornada normal do empregado, salvo se este, o trabalhador, optar por não laborar durante sete dias consecutivos, sem prejuízo do salário. Em princípio, esse período alternativo de sete dias sem trabalho foi estabelecido em consonância com o período de trinta dias que se destinava, em todos os casos, para o aviso-pré- vio. Se agora é maior o período de aviso-prévio, em vista de sua proporção com o tempo de serviço, decerto a jurisprudência se inclinará por assegurar um tempo igualmente proporcional(1173), sem traba- lho, para a procura de novo emprego. Cuidando-se de trabalhador rural eventualmente dispensado, assiste-lhe o direito de não trabalhar em um dia por semana, no período de aviso-prévio(1174). Orienta a Súmula 230 do TST que é ilegal substituir o tempo que se reduz da jornada de traba- lho, no período de aviso-prévio, pelo pagamento das horas correspondentes. Não tem valia jurídica, assim, o aviso-prévio que é concedido sem a redução da jornada ou dias de trabalho. Se tal suceder, faculta-se ao empregado, urbano ou rural, pedir que o aviso-prévio, irregularmente concedido, seja integralmente indenizado e integrado ao seu tempo de serviço. Tais regras se justificam na medida em que o período de aviso-prévio deve ser utilizado para a busca e possível obtenção de novo emprego, pelo trabalhador. Também por isso, ao empregador é vedado fazer coincidir com o período de aviso-prévio o gozo de férias do empregado ou o tempo de estabilidade provisória(1175). Quanto ao emprego doméstico, o art. 24 da Lei n. Complementar n. 150, de 2015, prevê a redu- ção de duas horas na jornada do empregado a quem se der o aviso-prévio, podendo ele optar por não trabalhar em sete dias corridos(1176). A mencionada lei complementar – que haverá de ser seguida porque tem a expectativa de eficácia de todas as leis – apresenta-se falha em dois momentos: a) em vez de repetir simplesmente o texto equivalente da CLT, poderia ter referido “dias úteis”, em vez de “dias corridos”, pois é certo que os sete dias corridos nela citados sempre compreenderão dias de repouso em que o empregado, doméstico ou não, falta ao serviço para descansar ou realizar ativida- des de lazer, não para procurar emprego; b) a LC n. 150 poderia ter instituído um critério de proporcio- nalidade, que escapasse do limite de sete dias corridos, nos casos em que o aviso-prévio tem prazo maior que o de trinta dias. F) Natureza jurídica do aviso-prévio Quanto à natureza jurídica do aviso-prévio, reveste-se este de natureza receptícia e constitutiva. As declarações receptícias são aquelas que somente se tornam eficazes no momento em que rece- bidas por aqueles aos quais se dirige. Orlando Gomes(1177) explica: “Se alguém pretende despedir um empregado, a despedida só se efetiva quando este vem a ter conhecimento [...] da declaração do empregador”. E o aviso-prévio é uma declaração constitutiva porque, tão logo concedido, acarreta a efetiva dissolução do contrato (artigo 489 da CLT). Caso a parte notificante queira reconsiderar o seu ato, antes de se encerrar o período de pré-aviso, a sua retratação só surte efeito se contar com a acei- tação da parte adversa. G) Aviso-prévio e justa causa. Aquisição de estabilidade provisória (1172) Observam Orlando Gomes e Élson Gottschalk (Op. cit. p. 360) que “a regra geral estabelecida não permite distinção para atender, por exemplo, aos casos de jornadas mais reduzidas, por força de lei ou por disposição contratual. Assim, o empregado que tenha uma jornada de duas horas (médico, guarda-livros etc.) estaria, por força de lei, desobrigado de comparecer ao serviço durante o período de aviso-prévio. Ainda que não tenha trabalhado nesses pequenos intervalos diários, o empregado tem direito a perceber o salário correspondente, a título de licença remunerada”. (1173) 7/30 equivale aproximadamente a um dia sem trabalho para cada 4,285 dias de aviso-prévio, ou seja: cada vez que se completar múltiplo de 4,285 dias ou fração maior, devido será mais um dia sem trabalho. Assim: 30 dias de AP => 7 dias sem trabalho; 33 dias => 7 dias; 36 dias =. 8 dias; 39 dias => 9 dias; 42 dias => 9 dias; 45 dias => 10 dias; 48 dias => 11 dias; 51 dias = 11 dias; 54 dias = 14 dias etc.. (1174) Vide artigo 15 da Lei n. 5.889, de 1973 – Durante o prazo do aviso-prévio, se a rescisão tiver sido promovida pelo empregador, o empregado rural terá direito a um dia por semana, sem prejuízo do salário integral, para procurar outro trabalho. (1175) Vide Súmula 348 do TST: “É inválida a concessão do aviso-prévio na fluência da garantia de emprego, ante a incompatibilidade dos dois institutos”. (1176) Art. 24.  O horário normal de trabalho do empregado durante o aviso-prévio, quando a rescisão tiver sido promovida pelo empre- gador, será reduzido de 2 (duas) horas diárias, sem prejuízo do salário integral. Parágrafo único.  É facultado ao empregado trabalhar sem a redução das 2 (duas) horas diárias previstas no caput deste artigo, caso em que poderá faltar ao serviço, sem prejuízo do salário integral, por 7 (sete) dias corridos, na hipótese dos §§ 1o e 2o do art. 23. (1177) Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, p. 251. O autor cita, como exemplo de declaração não receptícia, a do testador, que transmite seus bens causa mortis. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 403 É evidente que o aviso-prévio não imuniza as partes dos seus demais deveres, inerentes ao conteúdo do contrato de emprego. O empregador que comete justa causa em meio ao período de aviso- -prévio deve tolerar a imediata dissolução do vínculo, sem prejuízo de dever o salário correspondente ao restante do prazo do aviso (artigo 490 da CLT). Se é o empregado quem pratica justa causa antes de esse prazo se exaurir, perde ele o direito ao salário relativo ao tempo que faltava para completá-lo (artigo 491 da CLT). Por outro lado, a jurisprudência não tem admitido a aquisição de estabilidade provisória após a concessão do aviso-prévio, se a estabilidade é motivada por ato volitivo do empregado (verbi gratia, o registro de candidatura à direção de sindicato ou CIPA). Assim recomenda a Súmula 369, IV, do TST. Quando a garantia de emprego é assegurada por estar gestante a empregada (art. 10, II, b do ADCT) ou porque o trabalhador ou a trabalhadora sofreu acidente de trabalho (art. 118 da Lei n. 8.213/1991), a superveniência dessa estabilidade provisória ocorre em prejuízo do aviso-prévio, como se pode extrair de copiosa jurisprudência(1178). H) Aviso-prévio e suspensão contratual Questão tormentosa se mostrou, inicialmente, a alusiva à possibilidade de o contrato de emprego ser suspenso durante o período de aviso-prévio, em razão, por exemplo, de enfermidade ou de acidente de trabalho. Reis de Paula(1179) teve oportunidade de sustentar que o fato não prejudicava o aviso-pré- vio nem prorrogava a vigência do contrato, pois a sua natureza jurídica assenta-se no direito potesta- tivo do empregador, mantendo-se sua responsabilidade até o dia em que a denúncia do contrato se consuma. Mas o autor admitia a contrariedade de Russomano e de Hirosê Pimpão, pois sustentavam ambos que o aviso-prévio permite ao empregado a procura de novo emprego, restando impossível alcançar esse objetivo quando o trabalhador adoece, nesse meio tempo. O Tribunal Superior do Trabalho adotou essa última posição, conforme se extrai da Súmula 371 do TST: A projeção do contrato de trabalho para o futuro, pela concessão do aviso-prévio indenizado, tem efeitos limita- dos às vantagens econômicas obtidas no período de pré-aviso, ou seja, salários, reflexos e verbas rescisórias. No caso de concessão de auxílio-doença no curso do aviso-prévio, todavia, só se concretizam os efeitos da dispensa depois de expirado o benefício previdenciário. Conforme explicou o Ministro Ronaldo Leal em um dos precedentes que inspiraram a Súmula 371 do TST, “somente após o final da licença médica é possível contar o prazo do aviso e consequente ruptura do contrato laboral”(1180). I) Aviso-prévio, prazo para pagamento das resilitórias e prescrição Por fim, o fato de o aviso-prévio ser concedido ou, em vez disso, indenizado repercute no prazo legal fixado para pagamento das verbas resilitórias e no prazo de prescrição bienal, que flui a partir da cessação do contrato de emprego. (1178) Sobre a estabilidade da gestante superveniente ao aviso-prévio: EMBARGOS EM RECURSO DE REVISTA. DECISÃO EMBAR- GADA PUBLICADA NA VIGÊNCIA DA LEI N. 11.496/2007. ESTABILIDADE PROVISÓRIA DA GESTANTE. CONCEPÇÃO OCOR- RIDA NO CURSO DO AVISO-PRÉVIO INDENIZADO. A jurisprudência desta c. Corte pacificou-se no sentido de que a ocorrência da gravidez durante o aviso-prévio indenizado garante o direito da trabalhadora à estabilidade prevista no artigo 10, alínea “b”, do ADCT. Precedentes. Recurso de embargos conhecido e desprovido (TST, SBDI-1, E-ED-RR 1168-43.2010.5.12.0029, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 05/06/2015). Sobre a estabilidade acidentária que sobrevenha ao aviso-prévio: ESTABILIDADE PROVI- SÓRIA. DOENÇA PROFISSIONAL. AUXÍLIO-DOENÇA CONCEDIDO NO PERÍODO DO AVISO-PRÉVIO INDENIZADO. 1 – [...]. 2 – [...]. 3 – A Súmula/TST n. 371 preconiza: -A projeção do contrato de trabalho para o futuro, pela concessão do aviso-prévio indenizado, tem efeitos limitados às vantagens econômicas obtidas no período de pré-aviso, ou seja, salários, reflexos e verbas rescisórias. No caso de concessão de auxílio-doença no curso do aviso-prévio, todavia, só se concretizam os efeitos da dispensa depois de expirado o benefício previdenciário.-. Extrai-se, portanto, da referida diretriz, o entendimento acerca da existência de estabilidade provisória quando a concessão de auxílio-doença acidentário ocorrer também durante o período do aviso-prévio indenizado. Assim, sendo essa a situação dos autos, auxí- lio-doença concedido no período do aviso-prévio indenizado, o acórdão embargado – que manteve a decisão regional quanto à concessão da estabilidade provisória – se coaduna com o disposto na referida Súmula/TST n. 371. 4 – O único aresto paradigma colacionado pela parte desserve ao fim colimado, por ser inespecífico, a teor da Súmula/TST n. 296, item I. Recurso de embargos não conhecido (TST, SBDI- 1, E-RR 86900-10.2001.5.04.0003, Relator Ministro Renato de Lacerda Paiva, DEJT 24/05/2013). (1179) Op. cit. p. 529. (1180) Trata-se do precedente TST-E-RR-174.967/95.0. O ministro relator cita mais dois precedentes no mesmo sentido, ambos da SBDI-1 do TST: E-RR-65.187/92, Ac. 3.288/96, Min. Cnéa Moreira, DJ 21/2/97; E-RR-35.887/91, Ac. 4.899/94, Min. Thaumaturgo Cortizo, DJ 7/4/95. 404 – Augusto César Leite de Carvalho Sendo o aviso-prévio regularmente concedido, as verbas da resilição contratual devem ser pagas no dia útil imediato ao término do contrato (artigo 477, §6o, a, da CLT), salvo se o empregado cumprir o aviso-prévio em casa, sendo liberado do trabalho nesse período e obtendo, então, o direito de receber as citadas verbas no decêndio seguinte ao dia em que foi informado da dispensa(1181). Quanto ao prazo de prescrição bienal nos casos em que o aviso-prévio é normalmente concedido, encerra-se o biênio, como não poderia deixar de ser, na mesma data do segundo ano seguinte ao da cessação do vínculo, ou seja, dois anos após se encerrar o período de aviso-prévio. Mas se o aviso-prévio é indenizado pelo empregador, integrando-se ao tempo de serviço o seu período, o prazo para pagamento das verbas resilitórias será de dez dias a partir do dia da cessação do contrato (artigo 477, §6o, b, da CLT). Aqui como lá, o não pagamento nesse prazo tornará devida a multa, prevista no artigo 477, §8o, da CLT. No tocante à prescrição bienal, cabe notar que o prazo pres- cricional foge à regra mais comum no trato da prescrição, que é a da actio nata, pois o biênio prescritivo é deflagrado a partir da cessação do contrato, não obstante a exigibilidade das parcelas resilitórias e da multa ocorra, como visto, no prazo do art. 477, §6º, da CLT. Usualmente, a prescrição flui a partir da lesão e, via de consequência, do nascimento da ação, vale dizer, da exigibilidade da pretensão. Assim se dá com a prescrição quinquenal. Entretanto, o Poder Constituinte de 1988 inovou ao condicionar o término da prescrição trabalhista ao transcurso de dois anos, contados da cessação do contrato de emprego. E o prazo bienal é prescritivo (não é deca- dencial(1182)), porque corre contra uma pretensão de natureza condenatória. Não havia, mesmo, limites que pudessem divisar a atuação do poder constituinte, no tocante à matéria sob exame. Se optou por desprezar, pontualmente, o princípio da actio nata, fê-lo porque podia. E como o artigo 487, §1o, da CLT projeta o período de aviso-prévio indenizado no tempo de serviço do empregado, não temos dúvida de que o biênio prescricional deve ser deflagrado apenas ao término do período de aviso-prévio, inclusive na hipótese de o aviso-prévio ser indenizado e integrado ao tempo de serviço. Assim se posicionou, não por acaso, o Tribunal Superior do Trabalho, por meio da orientação jurisprudencial n. 83 da sua Subseção I de Dissídios Individuais(1183). 12.10.2.2 Assistência ao empregado demissionário. Empregado menor que se demite O artigo 477, §1o, da CLT estatui que o pedido de demissão ou o recibo de quitação, firmados por empregado com mais de um ano de serviço, são válidos quando feitos com a assistência do respectivo sindicato ou perante a autoridade do Ministério do Trabalho. Valentin Carrrion(1184) observa que a ausên- cia dessa formalidade é mais grave no pedido de demissão do que no de pagamento, pois naquele primeiro caso “deseja-se preservar não só a autenticidade de manifestação havida como a data, e ainda afastar a ausência de pressões ou abuso sobre o estado de ânimo claudicante do empregado em virtude de algum revés momentâneo sofrido no ambiente de trabalho ou fora dele. Mesmo que se prove a autenticidade do pedido de demissão não homologado, prevalece o posterior arrependimento”. Embora o fato singelo do pagamento de verbas decorrentes da cessação do contrato possa fazer- -se de outro modo igualmente persuasivo, pois não se negaria eficácia ao pagamento porventura confessado pelo trabalhador em razão de tal pagamento não ter a homologação do Ministério do Trabalho ou do sindicato, é certo que o Tribunal Superior do Trabalho tem usado de maior rigor quando se cuida de pedido de demissão sem a devida assistência por sindicato ou Ministério do Trabalho, após o primeiro ano do contrato. É que a assistência à vontade de dispor de um direito tem configuração e relevância que falta à assistência apenas comprobatória da quitação. Verbis: RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. PEDIDO DE DEMISSÃO NÃO HOMOLOGADO PERANTE O SINDICATO. CONTRATO DE TRABALHO SUPERIOR A UM ANO DE VIGÊNCIA. NULIDADE. CONVERSÃO DA DEMISSÃO EM DISPENSA SEM JUSTA CAUSA. A jurisprudência majoritária no âmbito desta Corte Superior firmou-se no sentido de que o requisito previsto no art. 477, § 1º, da CLT configura norma cogente, impondo um dever e não mera faculdade à disposição das partes. Desse modo, em caso de pedido de demis- são firmado por empregado cujo contrato laboral tem vigência superior a um ano, a assistência do sindicato da (1181) Vide orientação jurisprudencial n. 14 da SDI-1 do TST. (1182) Regra geral, o prazo decadencial corre contra a pretensão de natureza constitutiva, a exemplo daquela em que o empregador quer obter da Justiça do Trabalho a desconstituição do vínculo empregatício, sendo o empregado detentor de estabilidade acidentária. Ao estu- darmos estabilidade, parecerá ainda mais nítida essa distinção. (1183) Orientação Jurisprudencial n. 83 da SBDI-1: “A prescrição começa a fluir no final da data do término do aviso-prévio. Art. 487, § 1º, CLT”. (1184) Op. cit. p. 347. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 405 categoria ou de autoridade do Ministério do Trabalho é formalidade essencial e imprescindível, sem a qual o ato jurídico não se perfaz, gerando a presunção de que a dispensa tenha ocorrido sem justa causa. Recurso de embargos conhecido e não provido (TST, SBDI-1, E-RR 367-57.2010.5.03.0004, Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, DEJT 10/08/2012) A assistência sindical ou ministerial é exigível nos casos em que o empregado conta mais de um ano, sustentando Valentin Carrion(1185) que se integra no tempo de serviço, para esse efeito, o período de aviso-prévio indenizado. Entendemos que essa posição só deve ser adotada se é incontroverso que houve dispensa do empregado. Se o empregado não completou um ano de emprego, pode demitir-se validamente e, se o fizer sem conceder antes o aviso-prévio, pode ser descontado o salário do período de aviso-prévio, mas sem integração desse período ao tempo de serviço. Outra questão, invariavelmente tormentosa, é aquela que gravita em torno da possibilidade de o menor demitir-se do emprego, sem a assistência de seu responsável legal, especialmente quando o faz antes de completar o primeiro ano de emprego. A jurisprudência, como antes visto, tem emprestado eficácia ao aviso-prévio concedido pelo menor de dezoito anos sem a presença de seu responsável legal, mas o que ora se discute é se o pedido de demissão, não necessariamente formulado com a antecedência do aviso-prévio, tem validade jurídica quando o menor demissionário não está assistido. Em rigor, não se reveste de validade o ato praticado por menor ao início e ao fim do contrato, sem a devida assistência. Extrai-se do artigo 439 da CLT que somente os atos de execução do contrato de emprego, não os de constituição ou desconstituição deste, podem se realizar sem a assistência do menor por seu responsável legal. A matéria nunca teve trato uniforme, contudo, pela jurisprudência trabalhista, como se pode notar ao exame de antigas ementas sobre o tema. Primeiro, a relativa a julgamento da Primeira Turma do TST: MENOR – PEDIDO DE DEMISSÃO – VALIDADE. A validade do pedido de demissão apresentado por traba- lhador menor de idade está condicionada à assistência de seu representante legal ao ato praticado. Revista conhecida e provida(1186). Em sentido contrário, pela validade do pedido de demissão firmado por menor não assistido, a decisão da Terceira Turma do TST: MENOR– PEDIDO DE DEMISSÃO – VALIDADE – ARTIGO QUATROCENTOS E TRINTA E NOVE DA CLT. O menor pode, validamente, pedir demissão sem assistência de seus responsáveis legais. O artigo quatrocentos e trinta e nove da CLT apenas veda a ele firmar recibo de quitação de indenização final, em decorrência de rescisão do contrato de trabalho. A possibilidade de anulação da demissão depende, portanto, da demonstração de vício de vontade, como previsto em lei. Recurso de revista desprovido” (1187). E assim concluímos o estudo dos temas mais envolventes que tocam à resilição do contrato de emprego. A respeito das prestações devidas em cada hipótese de resilição contratual trataremos, adiante, no subitem relativo aos efeitos da cessação do contrato de emprego. 12.10.3 Resolução do contrato de emprego. Extinção normal. Justa causa Continua forte a enumeração das hipóteses de resolução contratual que era sugerida por Délio Maranhão(1188), em curso sobre direito de trabalho de sua única lavra. Ao menos quando incluía o reno- mado autor, entre os casos de resolução contratual, também aqueles que não dependiam de interven- ção judicial. E esclarecia não ser a sentença desconstitutiva do Poder Judiciário da essência do ato resolutivo, pois, à semelhança do que previa o artigo 119, parágrafo único, do Código Civil de 1916, o artigo 474 do atual Código Civil também prevê que “a cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial”. O importante é perceber que o vocábulo resolver não tem o significado, aqui, de indicar a solução para uma contenda, decidindo-a. Mas estaremos a tratar de fatos que, com ou sem intervenção judi- cial, resolvem o contrato de emprego porque o extinguem, desfazem-no, reduzem-no à inexistência, resguardando os direitos adquiridos e o eventual direito a perdas e danos. (1185) Cf. Valentin Carrion, Op. cit., p. 348. (1186) TST, 1a Turma, RR 211789/95, Relator Ministro. Ursulino Santos. DJ 20/03/98, p. 268. (1187) TST, 3a Turma, Proc. n. 182167/95, Rel. Manoel Mendes de Freitas, Decisão em 03/09/97, DJ 26/09/97, p. 47925. (1188) MARANHÃO, Délio. Direito do trabalho. Atualização por Luiz Inácio Barbosa Carvalho. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1993. p. 233. 406 – Augusto César Leite de Carvalho Nesse sentido, os sujeitos do contrato de emprego não resolvem o contrato, mas se submetem à ação do fato resolutivo e dele se valem, para manifestar, por meio da dispensa por justa causa ou da declaração de despedida indireta pelo empregado, o seu interesse de pôr fim ao contrato de trabalho. Superada essa digressão semântica, cabe notar que são basicamente dois os casos (que se repartem) de resolução do contrato de emprego: • A extinção normal do contrato em virtude de sua completa execução • A violação de obrigação contratual que atraia a incidência da cláusula resolutiva tácita Sobre as parcelas resolutórias que são devidas em cada um dos casos, cabe examinar o subitem específico, logo adiante. Estudemos, antes, o modo como se realiza cada qual. 12.10.3.1 A resolução mediante extinção normal do contrato de emprego O contrato de emprego somente se extingue normalmente quando está ele sujeito a condição resolutiva expressa ou termo final. O implemento da citada condição ou o advento do termo final, certo ou incerto, implica a extinção do contrato porque se o tem, então, como cumprido. 12.10.3.2 A justa causa – implemento da condição resolutiva tácita. Pressupostos da gravidade, atualidade e imediatidade Os contratos bilaterais, a exemplo do contrato de emprego, contêm uma condição resolutiva tácita, ou seja, a possibilidade de um de seus sujeitos o ter por resolvido em razão da inadimplência do outro sujeito do contrato. É o que sucede sempre que o empregado ou o empregador age de modo a enqua- drar sua conduta em uma das justas causas enumeradas nos artigos 482 e 483 da Consolidação das Leis do Trabalho, respectivamente. Discute-se, às vezes, sobre estarem todas as possíveis justas causas enclausuradas na CLT ou, em vez disso, se os dispositivos regentes da matéria seriam apenas enunciativos. A discussão se esvazia, porém, na medida em que se percebe o grau de generalidade dos dispositivos legais em questão – é rara a conduta socialmente reprovável ou contratualmente incompatível que não pode, afinal, subsumir-se em um dos citados tipos legais, que mais adiante serão, por nós, destrinçados. Como quer que seja, a justa causa tem características que não podem ser olvidadas, quais sejam: a) a gravidade; b) a atualidade; c) a imediatidade. A infração é grave se quebra a relação de confiança que deve existir entre empregado e empre- gador, tornando insuportável a manutenção do vínculo. Não há maior relevância no fato de a infração também se configurar, ou não, um delito civil ou mesmo penal. Sendo tal que não se possa exigir da parte inocente a mantença da fidúcia que é imanente à relação laboral, caracterizada estará a justa causa. Havendo a correlação entre o ato faltoso e a rotina de trabalho, com interferência, por exemplo, na imagem da empresa, na confiabilidade ou na harmonia da relação que a une à outra parte, configu- rado estará o ilícito trabalhista. A conduta se afigura atual(1189) quando é recente, não tendo decorrido tempo bastante para que, em cada caso e sempre com apoio no princípio da razoabilidade, possa se inferir o perdão tácito. Conforme Evaristo de Moraes Filho(1190), “a justa causa deve ser atual, isto é, contemporânea ao próprio ato de rescisão contratual. E isto tanto é verdadeiro para decisão do empregador, como para a do empregado”. Mas doutrina e jurisprudência têm ponderado, desde algum tempo, acerca da neces- sidade de mitigar-se a vetusta lição de Evaristo em dois aspectos: primeiro, a consideração de que o tempo despendido, pelo empregador, em sindicâncias internas ou investigações sérias, visando à certeza sobre a prática da conduta faltosa, sua dimensão e autoria, não desfigura a atualidade, pois, ao revés, convém que a imputação de falta, com sequelas imprevisíveis, seja precedida de apuração e, sendo possível ou exigível por norma regulamentar ou coletiva, com a observância do contraditório; segundo, entende-se que a atualidade da justa causa não pode ser exigida com igual rigor quando a (1189) Um parêntese necessário: alguns laboralistas referem-se a imediatidade como sinônimo de atualidade. (1190) MORAES FILHO, Evaristo de. A justa causa na rescisão do contrato de trabalho. 3a edição fac-similada. São Paulo: LTr, 1996. p. 109. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 407 justa causa é cometida pelo empregador, pois o empregado não deixa o tempo escoar, a partir da falta patronal, pela razão singela de estar perdoando a ofensa moral ou infração jurídica de que foi vítima, mas sim pelo justificado receio de interpelar o ofensor e sofrer então alguma retaliação que ameace o seu emprego. Há sólida construção jurisprudencial nessa direção(1191). O caráter da imediatidade ou determinância é constatado nos casos em que a falta e a ordem de dispensa, tratando-se de justa causa cometida por empregado, correlacionam-se diretamente. Sobre- vindo a dispensa do empregado, a pretexto de ter o mesmo cometido ato de improbidade, mas verificando o empregador, após dispensá-lo, a inocorrência do aludido ato, não poderá perseverar na alegação de justa causa com base em outra conduta do empregado, ainda que estejam presentes, quanto a essa outra conduta, os demais pressupostos da justa causa. A relação de imediatidade é, aqui, etiológica, de causa e efeito imediato, não se confundindo com o pressuposto antevisto da atualidade. 12.10.3.3 A justa causa e a falta grave Vários expoentes do direito do trabalho preferem não distinguir os conceitos justa causa e falta grave. Mas a distinção é útil, pois, como veremos no próximo tópico, existem casos de estabilidade que impedem a dissolução do contrato e a norma que os regula ressalva apenas a hipótese de o empre- gado perpetrar falta grave (não somente justa causa), apurada na forma da lei. Segundo o artigo 494 da CLT, “constitui falta grave a prática de qualquer dos fatos a que se refere o art. 482, quando por sua repetição ou natureza representem séria violação dos deveres e obrigações do empregado”. Logo, a falta é de tal ordem se nela sobressai, mais que em outras, a gravidade (natu- reza grave), ou há, dela, uma inconveniente reiteração. O modo de apurar essa justa causa mais grave ou repetida, a falta grave, é o inquérito judicial, facultando-se ao empregador suspender o empregado e ajuizar o citado inquérito no prazo decadencial de trinta dias, pois do contrário não poderá obter sentença que desconstitua o contrato de emprego. É um caso típico, como adiante se perceberá, de resolução contratual. 12.10.3.4 As justas causas atribuíveis aos empregados Além do casuísmo previsto no artigo 482 da CLT, podemos referir outras condutas, igual- mente previstas em lei ou referidas pela jurisprudência, que também se configuram justas causas cometidas por empregado. São exemplos a recusa de entregar a carteira de trabalho para a anotação pelo empregador, exigida pelo artigo 29 da CLT; a resistência de usar os equipamentos de proteção individual que neutralizam a insalubridade (artigo 191, II, conforme artigo 158, parágrafo único, ambos da CLT) e, até dezembro de 2010, a falta contumaz de pagamento, por bancário, de dívidas legalmente exigíveis (artigo 508 da CLT, revogado pela Lei n. 12.347/2010). (1191) RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. PRELIMINAR DE NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. Nos termos da atual redação do art. 894 da CLT, conferida pela Lei n. 11.496/2007, o recurso de embargos somente se viabiliza por divergência jurisprudencial entre Turmas desta Corte ou entre Turmas e esta SBDI-1. Desse modo, em embargos tornou-se inviável o exame do acerto da Turma na apreciação dos pressupostos intrínsecos de admissibilidade do recurso de revista, sob pena de se reconhecer violação de lei (no caso, o art. 896 da CLT), hipótese não mais prevista na nova redação do art. 894 da CLT. Outrossim, em se tratando de preliminar de nulidade por negativa de prestação jurisdicional, ainda que se admita o conheci- mento dos embargos por divergência jurisprudencial em torno da interpretação dos dispositivos previstos na Orientação Jurisprudencial 115 da SBDI-1 do TST, o conhecimento dos embargos por divergência jurisprudencial, em regra, não se viabiliza, pois as particularidades de cada processo não ensejam a configuração de divergência jurisprudencial específica (Súmula 296 do TST). E, no caso concreto, o embar- gante nem sequer apresenta paradigmas a confronto na tentativa de demonstrar eventual dissenso pretoriano. Recurso de embargos não conhecido. RESCISÃO INDIRETA DO CONTRATO DE TRABALHO. AUSÊNCIA DE RECOLHIMENTO DO FGTS. ART. 483 DA CLT. Hipótese em que nas instâncias ordinárias decidiu-se que o fato de a empregadora negligenciar habitualmente o cumprimento de prestações legais, em especial a obrigação de recolher o FGTS, não configurava rescisão indireta. A Turma do TST, a seu turno, considerou que nessas circunstâncias não haveria violação do art. 483, -d-, da CLT, mas, sim, interpretação razoável do dispositivo, e invocou a Súmula 221, II, do TST. [...] Quanto ao mérito, o entendimento assente na jurisprudência majoritária desta Corte Superior, em julgados da Subseção 1 Espe- cializada em Dissídios Individuais, bem como de todas as oito Turmas, é no sentido de que a ausência de recolhimento de valores devidos a título de FGTS, por parte do empregador, no curso do contrato de trabalho autoriza a rescisão indireta. E esse entendimento ampara-se justamente no artigo 483, -d-, da CLT, segundo o qual o empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando o empregador não cumprir as obrigações do contrato. Recurso de embargos conhecido e provido. [...] (TST, SBDI-1, E-ED-RR 114400-18.2002.5.15.0033, Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, DEJT 10/09/2012) 408 – Augusto César Leite de Carvalho Mas as justas causas mais comumente alegadas são mesmo aquelas que se subsumem nas alíneas do artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho, cabendo esclarecer como os exegetas do direito do trabalho vêm estreitando o significado de cada um desses tipos legais. Nós nos pouparemos, entretanto, de tratar da justa causa referida no artigo 482, parágrafo único, da CLT, pois faz ele menção a ato atentatório à segurança nacional, em consonância com uma norma excep- cional que já não tem eficácia, atendendo a circunstâncias históricas que não deixaram boa lembrança. A) Ato de improbidade Improbidade é palavra com significado muito abrangente, pois ímprobo é todo aquele que age em desacordo com a Moral. Na era da diversidade cultural, os preceitos morais não variam somente em razão de sua alta carga de subjetividade, mas também e sobremodo pela influência dos onipresentes meios de comunicação na interação entre comunidades ou culturas diferentes. Atomizando esse virtual conflito, a jurisprudência tem associado a improbidade referida na alínea a do artigo 482 da CLT à conduta lesiva ao patrimônio do empregador ou de colegas de trabalho. B) Incontinência de conduta ou mau procedimento Incontinência de conduta denota especialmente, segundo a orientação jurisprudencial prevale- cente, o desvio de comportamento sexual. É interessante notar, sob o escólio de Wagner Giglio(1192), que a legislação consolidada referia-se a improbidade ou incontinência de conduta, como se essas expressões tivessem sentido aproximado. Mas a comissão de juristas que elaborou a Consolidação das Leis do Trabalho preferiu unir, em outra alínea e sem a intenção de estabelecer a sinonímia, a incontinência de conduta e o mau procedimento. Mau procedimento é um conjunto de palavras que abarca um sentido novamente muito amplo, optando os doutrinadores por classificar como tal “o comportamento incorreto do empregado, através da prática de atos que firam a discrição pessoal, as regras do bem viver, o respeito, o decoro e a paz; atos de impolidez, de grosseria, de falta de compostura, que ofendem a dignidade”. Após se referir assim, Wagner Giglio(1193) assinala que, sendo vagas essas noções, “o mau procedimento faz as vezes de vala comum, no enquadramento dos atos faltosos: tudo que incompatibilize o empregado com o exercício de suas funções, tudo que autorize e justifique a dispensa – e não possa ser classificado como outra justa causa específica – é encaixado como mau procedimento”. Com propriedade, Wilson de Souza Campos Batalha e Sílvia Marina Batalha de Rodrigues Netto(1194) rematam: Não é possível apurar-se a incontinência de conduta e o mau procedimento in abstrato, mas in concreto, atendendo-se às circunstâncias específicas e, sobretudo, à intenção de provocar perturbação, escândalo ou desrespeito à harmonia indispensável no ambiente de trabalho. Assinale-se que a incontinência e o mau procedimento devem apurar-se no ambiente de trabalho e não alhures. Pouco importa o comportamento do trabalhador fora do ambiente de trabalho, desde que aquele não tenha reflexos negativos neste. Nas zonas rurais, onde os trabalhadores se vinculam por relações de vizinhança, nas deno- minadas colônias, o comportamento do trabalhador pode ter reflexo no contexto familiar dos outros empregados que convivem no mesmo ambiente, e esta circunstância não pode escapar à atenção do julgador. C) Negociação habitual A negociação habitual é justa causa quando, segundo a dicção do artigo 482, c, da CLT, ocorre por conta própria ou alheia, sem permissão do empregador, e quando constitui ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou é prejudicial ao serviço. A negociação não é aqui compreendida como ato de comércio, pois, embora o dispositivo seja originário da legislação que cuidava de matéria mercantil(1195), o vocábulo deve ser abrangente de todas (1192) GIGLIO, Wagner D. Justa causa. São Paulo: LTr, 1992. p. 69. (1193) Op. cit. p. 70. (1194) BATALHA, Wilson de Souza Campos. Rescisão contratual trabalhista: despedida arbitrária individual/coletiva. São Paulo: LTr, 1997. p.115. (1195) Cf. Wagner Giglio, Op. cit., p. 82. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 409 as atividades do empregado que visam a obtenção de lucro(1196), sejam industriais, comerciais, rurais, de transporte etc. Além disso, a caracterização dessa justa causa não prescinde da habitualidade e da ausência de permissão, expressa ou tácita(1197), do empregador. Necessário é, igualmente, que a atividade do empregado seja concorrente com a do empregador (vendas avulsas de cosméticos quando se trabalha em loja do mesmo ramo; conserto de veículos ou equipamentos nos intervalos concedidos pela empregadora, porventura uma oficina que se dedica a essa atividade etc.) ou lhe seja prejudicial (ausência do empregado ao trabalho para se dedicar ao outro serviço(1198)), ainda que esse prejuízo seja virtual. Não havendo atividade que visa ao lucro, habitualidade, não autorização do empregador e concor- rência ou prejudicialidade, estará assegurada a liberdade de trabalho. Salva-se apenas a hipótese de a cláusula de exclusividade ser contratual e, portanto, vinculativa(1199). D) Condenação criminal O artigo 482, d, da CLT prescreve a condenação criminal como uma espécie de justa causa, mas explicita que a sentença condenatória deve ter transitado em julgado e que essa justa causa estará desfigurada se houver concessão do sursis, vale dizer, da suspensão da execução da pena. O legisla- dor não desprezou o fim social que é inerente à norma de direito penal, qual seja, a ressocialização do apenado. Em vez disso, teve em vista a impossibilidade de trabalho, dada a segregação do empregado pela Justiça Criminal. O que configura a condenação criminal como justa causa é, somente, a privação de liberdade, que impede a prestação laboral(1200). Assim, a pena restritiva de direito ou mesmo o benefício de prisão-albergue, que implica o reco- lhimento à prisão somente à noite, não autorizam a dispensa por justa causa(1201). Quando é decretada a prisão preventiva do empregado, mas se o absolve ao final do processo-crime, inexiste condenação criminal com trânsito em julgado que lhe possa ser irrogada. Não há justa causa. Nada obsta, porém, que o empregador enquadre a conduta do empregado, sendo o caso, como ato de improbidade ou mau procedimento, despedindo-o por justa causa, na hipótese de a condenação criminal não importar a aplicação de pena privativa de liberdade. E) Desídia no desempenho das funções Desídia é sinônimo de negligência, incúria, indolência. Implica desleixo, e não incapacidade ou imperícia. É justo que o empregador cobre do empregado, em situação de normalidade, uma quantidade de trabalho que corresponda à produção de um ser humano com as características desse seu empregado – consideremos a aptidão menor de um deficiente físico ou de um menor aprendiz – ou, regra geral, de um homem mediano. O artigo 482, e, da CLT prevê, como justa causa, a desídia no desempenho das funções, pois não se deveria conceber que a negligência pudesse ser percebida na inação. Apesar disso, há doutrina e jurisprudência remansosas que enquadram a falta ao trabalho ou a impontualidade como manifesta- ções de desídia, o que parece uma contradição em termos(1202). Contudo, quando o empregado negligencia a sua obrigação de manter um ritmo razoável de traba- lho, inviabilizando, assim, o regular funcionamento da engrenagem que depende de sua contribuição (1196) Assim se posicionam Wagner Giglio (Op. cit. p. 82), Wilson de Souza Campos Batalha, Sílvia Batalha Netto (Op. cit. p. 115. Os auto- res lembrar que negócio significa nec-otium, ou seja, atividade não ociosa, vale dizer, lucrativa ou que colima o lucro) e Valentin Carrion (Op. cit. p. 361), este último a secundar Dorval Lacerda. Contrária, pois a sustentar que negociação diz respeito a ato de comércio, é a orientação de Sergio Pinto Martins (Op. cit. p. 326). (1197) Cf. Wilson de Souza Campos Batalha e Sílvia Batalha Netto (Op. cit. p. 116). (1198) Cf. Sergio Pinto Martins (Op. cit. p. 326) e Wagner Giglio (Op. cit. p. 84). (1199) Cf. Sergio Pinto Martins (Op. cit. p. 326). Mas o autor esclarece que, por meio da cláusula da não concorrência, “não pode haver uma proibição total do trabalho. O ideal é que fosse limitada no tempo. Em caso de violação da previsão contratual, o empregado pode responder por perdas e danos ou de acordo com cláusula penal, caso tenha sido ajustada”. (1200) Neste sentido, Dorval de Lacerda, secundado por Rodrigues Pinto (Op. cit. p. 471), e Valentin Carrion (Op. cit. p. 361), que faz remissão a Gomes e Gottschalk e a Délio Maranhão, além de Wagner Giglio (Op. cit. p. 105). (1201) Cf. Valentin Carrion (Op. cit. p. 361). (1202) Cf. Wagner Giglio (Op. cit. p. 117). 410 – Augusto César Leite de Carvalho para produzir bens ou serviços, a sua desídia, mormente se contumaz, é conduta que se tipifica como justa causa e autoriza a dispensa. F) Embriaguez habitual ou em serviço São duas as situações que, segundo a expressão legal, devem-se distinguir: a embriaguez costu- meira ou a embriaguez em serviço. A princípio, para a configuração da justa causa sob exame basta uma só manifestação de embriaguez durante o cumprimento da jornada de trabalho ou, em outras circunstâncias, a sucessiva turbação alcoólica fora do ambiente ou do tempo de trabalho. O torpor, que a ingestão desmesurada de álcool provoca, degenera o caráter do homem e o expõe à irrisão ou ao medo, à inércia ou à atividade motora desordenada, causando insegurança e apreensão que não são condizentes com a função social da empresa. É injusto, porém, que a lei dispense o mesmo tratamento para a embriaguez em serviço e para o alcoolismo, como se estivesse a cuidar de conduta voluntária e igualmente reprovável. Voltaremos ao tema. Por ora, adiantamos que a embriaguez em serviço não se dá, necessaria- mente, no estabelecimento do empregador. Há empregados que prestam trabalho externo e, enquanto o fazem, a intoxicação alcoólica é causa de dispensa. Ademais, Wagner Giglio(1203) pondera sobre o fenômeno da irradiação do estabelecimento, que pode ser considerado em casos de improbidade e também de embriaguez: Assim, será considerada como embriaguez em serviço não só a falta cometida à entrada do estabelecimento, nas circunstâncias apontadas, como a praticada durante o intervalo para descanso, ou para refeição, e a cometida no serviço externo, além das que, como é lógico, surgirem durante a jornada. A embriaguez deve ser provada pelo empregador que a alega, à semelhança do que sucede com qualquer outra justa causa. Almeida Júnior, citado por Giglio(1204), indica quatro meios para o diagnós- tico da embriaguez, a saber: observação comum, exame clínico, teste e dosagem alcoólica. Todavia, o elemento subjetivo, ou seja, a intenção de se embriagar ou de ingerir bebida que contém álcool, sob o risco de alcançar o estado de êxtase, é necessário, não se caracterizando justa causa a embriaguez fortuita ou involuntária, induzida, por exemplo, pelo desconhecimento sobre o teor inebriante da subs- tância ingerida ou pela sua ingestão com fim medicinal. Além disso, o texto da Consolidação das Leis do Trabalho está visivelmente desatualizado no tocante a outras substâncias tóxicas, diferentes do álcool. Não há razão para se restringir a justa causa ao consumo desregrado de bebida alcoólica, como observam Wilson de Souza Campos Batalha e Sílvia Batalha Netto(1205). Até porque estaria essa conduta (consumo de qualquer substância entorpe- cente em meio à jornada) subsumida, decerto, em outra das justas causas enumeradas no artigo 482 da CLT, o que tornaria anódina essa discussão. Questão por muito tempo controvertida foi a relativa à embriaguez patológica, que é, para muitos, o mesmo que embriaguez habitual ou alcoolismo. Rodrigues Pinto(1206) anota “um consistente alinha- mento de juízes e tribunais do trabalho com a tese de que a embriaguez habitual (cuja denominação mais precisa é alcoolismo) não configura justa causa para despedida do empregado. A tese encontra respaldo nas áreas médica e sociológica, para as quais o alcoolismo é doença, conclusão que não pode deixar de refletir-se, necessariamente, no campo jurídico”. O autor lembra que o alcoolismo é reconhecido como enfermidade pelo órgão competente da Organização Mundial de Saúde, inclusive com inscrição na Classificação Internacional de Doenças – CID(1207). Adotando-se tal entendimento, como nos parece seja adequado, necessário é rematar que o alcoólatra que se apresenta ébrio no local de trabalho, uma ou mais vezes, deve ser conduzido a tratamento de saúde, com direito a benefício previdenciário. Não pode ser dispensado por justa causa. (1203) Op. cit. p. 139. (1204) Op. cit. p. 147. (1205) Op. cit. p. 120. (1206) Op. cit. p. 475. (1207) CID n. 291: psicose alcoólica; CID n. 303: síndrome de dependência do álcool; CID n. 305.0: abuso do álcool sem dependência. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 411 Entretanto, essa matéria sempre foi controvertida no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, como revelam as ementas das suas Terceira e SegundaTurmas do TST, dispostas aqui em ordem cronológica(1208): JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO. O alcoolismo é uma figura típica de falta grave do empregado ensejadora da justa causa para a rescisão do contrato de trabalho. Mesmo sendo uma doença de consequência muito grave para a sociedade é motivo de rescisão contratual porque a lei assim determina. O alcoolismo é um problema da alçada do Estado que deve assumir o cidadão doente, e não do empregador que não é obrigado a tolerar o empregado alcoólatra que, pela sua condição, pode estar vulnerável a acidentes de trabalho, problemas de convívio e insatisfatório desempenho de suas funções. Revista conhecida e desprovida. Em sentido diametralmente contrário: [...] RECURSO DE REVISTA DA RECLAMADA. ALCOOLISMO. JUSTA CAUSA. Não se pode convalidar como inteiramente justa a despedida do empregado que havia trabalhado anos na empresa sem cometer a menor falta, só pelo fato de ele ter sido acometido pela doença do alcoolismo, ainda mais quando da leitura da decisão regional não se extrai que o autor tenha alguma vez comparecido embriagado no serviço. A matéria deveria ser tratada com maior cuidado científico, de modo que as empresas não demitissem o empregado doente, mas sim tentasse recuperá-lo, tendo em vista que para uma doença é necessário tratamento adequado e não punição. Revista parcialmente conhecida e parcialmente provida [...]. Ao que parece, tal discussão já foi mais acentuada no TST, pois parece emblemática e definitiva a decisão da Subseção I de Dissídios Individuais no sentido de enfatizar o aspecto patológico do alco- olismo, afastando de vez a validade da dispensa por justa causa em hipótese de embriaguez habitual. Assim decidiu a SBDI I: EMBARGOS. JUSTA CAUSA. ALCOOLISMO CRÔNICO. ART. 482, F, DA CLT. 1. Na atualidade, o alcoolismo crônico é formalmente reconhecido como doença pelo Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde – OMS, que o classifica sob o título de síndrome de dependência o álcool (referência F- 10.2). É patologia que gera compulsão, impele o alcoolista a consumir descontroladamente a substância psicoativa e retira-lhe a capacidade de discernimento sobre seus atos. Clama, pois, por tratamento e não por punição. 2. O dramático quadro social advindo desse maldito vício impõe que se dê solução distinta daquela que imperava em 1943, quando passou a viger a letra fria e hoje caduca do art. 482, f, da CLT, no que tange à embriaguez habitual. 3. Por conseguinte, incumbe ao empregador, seja por motivos humanitários, seja porque lhe toca indeclinável responsabilidade social, ao invés de optar pela resolução do contrato de emprego, sempre que possível, afas- tar ou manter afastado do serviço o empregado portador dessa doença, a fim de que se submeta a tratamento médico visando a recuperá-lo. 4. Recurso de embargos conhecido, por divergência jurisprudencial, e provido para restabelecer o acórdão regional.(1209) Não podia ser diferente, pois a reclamar do direito do trabalho uma atualização dogmática está o art. 4º, II, do Código Civil de 2002 que inclui, entre as pessoas relativamente incapazes, “os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido”. G) Violação de segredo da empresa O artigo 482, g, da CLT não exige a divulgação, bastando a violação de segredo da empresa, ou seja, o seu uso indevido, para a tipificação da conduta como justa causa. Nem mesmo trata de infor- mação inacessível ao empregado, mas de segredo do qual, por força do cargo, o empregado esteja de posse, como rezava o Decreto n. 20.465, de 1931, a primeira norma a cuidar do tema(1210). É exato afirmar, ainda, que a profanação de segredo pessoal do empregador não caracteriza a justa causa em foco, porquanto descaberia falar de segredo da empresa(1211) em tal hipótese. Irrelevante, aliás, é que o segredo seja industrial ou relativo a estratégia comercial, por exemplo. Ao estudarmos o princípio da boa-fé, informante do direito do trabalho, percebemos a importância de empregado e empregador manterem uma relação de lealdade, que oportunize a harmonia das rela- ções internas e o consequente sucesso da atividade empresarial, em benefício de todos que fazem a empresa ou consomem o seu produto final. Assim, comete justa causa o empregado que faz uso inde- vido de informação sigilosa da empresa, que a diferencia e viabiliza a sua participação no mercado, sobremodo competitivo. (1208) A primeira ementa: TST, 3a Turma, Proc. n. RR 524378/98, Rel. Juiz Convocado Lucas Kontoyanis, Decisão em 18.08.99, DJ 17.09.1999, p. 207. A segunda ementa: TST, 2a Turma, Proc. n. RR 383922/97, Rel. Min. VANTUIL ABDALA, Decisão em 04.04.01, DJ 14.05.01, p. 1296. Parte final da segunda ementa: “II – RECURSO DO RECLAMANTE. SEGURO-DESEMPREGO. A C. SDI, já consubs- tanciou o entendimento, mediante a Orientação Jurisprudencial no 211, de que ‘o não-fornecimento pelo empregador da guia necessária para o recebimento do seguro-desemprego dá origem ao direito à indenização’. Revista parcialmente conhecida e provida”. (1209) TST, SBDI-1, Rel. Min. Oreste Dalazen, E-RR 586320/99, DJ 21/05/2004. (1210) Cf. Giglio, op. cit., p. 152. (1211) Cf. Giglio, op. cit., p. 155. 412 – Augusto César Leite de Carvalho É vedado ao empregador dispensar por justa causa, porém, o empregado que informar segredo da empresa por imposição de autoridade, seja esta uma autoridade administrativa, em meio a fiscalização ordenada por órgão estatal, ou um magistrado, que esteja a tomar seu depoimento após obter do tal empregado o compromisso de não calar a verdade(1212). H) Indisciplina ou insubordinação Distinguem-se o ato de indisciplina, que pressupõe uma ordem genérica, destinada a uma coleti- vidade de empregados, e o ato de insubordinação, pois insubordinado é o trabalhador que desatende a ordem que lhe é diretamente dirigida. A indisciplina é uma manifestação de rebeldia contra o poder de organização, em que se investe o empregador quando edita normas regulamentares. A insubordinação se revela como um momento de resistência contra o poder diretivo stricto sensu, ou seja, o poder de o empregador dizer em que será despendida a energia de trabalho do empregado. Se a ordem patronal exceder os limites do jus variandi, vale dizer, as condições de trabalho que inte- gram a essência do contrato, a desobediência a esse comando não importará ato de insubordinação, mas sim o legítimo exercício do jus resistentiae. I) Abandono de emprego O abandono de emprego é justa causa que exige, para a sua caracterização, o fato do abandono e o ânimo de abandonar. Malgrado o ânimo seja irrelevante sem o fato precedente do abandono, somente a conjunção desses dois fatores autoriza a dispensa por justa causa. O fato do abandono se configura mediante a ausência continuada, sem interrupção, ao trabalho. O trabalhador que costuma faltar ao serviço, de modo intermitente, pode estar cometendo alguma outra justa causa, mas não a do abandono de emprego. Sobre o ânimo de abandonar, cabe esclarecer que quando o empregado falta ao trabalho, mas informa que assim age para atender a um compromisso familiar de alguma relevância, a sua falta pode não se justificar a ponto de ser abonada e, por isso, decerto serão descontados os dias de falta no cálculo do salário. Mas é claro que a justa causa sob exame não estará configurada, porque não estaria movido o empregado pelo interesse de se despojar, definitivamente, do emprego. Há construção jurisprudencial no sentido de se presumir o elemento subjetivo – o desejo de aban- donar o emprego – nos casos em que o empregado não se apresenta ao trabalho por mais de trinta dias, sem qualquer justificativa. Não é outra, aliás, a orientação contida na Súmula 32 do TST(1213). Todavia, o empregador pode obter elementos de convicção, que o certifiquem do ânimo de abandono, antes desse trintídio. Assim ocorre, por exemplo, quando o empregado inicia prestação de serviço em outra empresa. Por parte do empregado, poderia ele comprovar que faltou continuadamente ao trabalho em razão de estar submetido a cárcere público ou privado, ou mesmo por estar doente e não ter como se comu- nicar com o empregador. A justa causa estaria desfigurada. Igual raciocínio se desenvolveria nos casos em que o empregado estivesse em período de aviso- -prévio, com carga horária reduzida em vista da necessidade de obter outro posto de trabalho, e então deixasse de ir trabalhar, pois bem sucedido nessa procura por um novo emprego. Não haveria aban- dono de emprego, como está a recomendar a Súmula 73 do TST(1214). Às vezes, desenvolve-se, em processos judiciais, o confronto entre a tese patronal de abandono de emprego e a antítese, oposta pelo empregado, no sentido de que teria trabalhado além do período consentido pela defesa, sendo, ao final, dispensado sem justa causa. A jurisprudência é exigente, nesse caso, pois atribui ao empregador o ônus de provar não apenas o abandono, mas também a cessação (1212) Cf. Wagner Giglio, Op. cit. p. 166. Mas o autor sustenta, com apoio em Dorval de Lacerda, que nos casos de fiscalização a “revelação de segredo só tem cabimento em casos excepcionais e na ausência do chefe da empresa. Este presente, ou acessível a chamamento, deverá o empregado, mesmo como medida de prudência, deferir a ele a solução da questão”. (1213) Súmula 32 do TST: “Configura-se o abandono de emprego quando o trabalhador não retornar ao serviço no prazo de 30 dias, após a cessação do benefício previdenciário, nem justificar o motivo de não o fazer”. (1214) Súmula 73 do TST: “Falta grave, salvo a de abandono de emprego, praticada pelo empregado no decurso do prazo do aviso-prévio, dado pelo empregador, retira àquele qualquer direito a indenização”. Em sentido contrário: Wagner Giglio, Op. cit. p. 220. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 413 do trabalho. Elucida a Súmula 212 do Tribunal Superior do Trabalho: “O ônus de provar o término do contrato de trabalho, quando negados a prestação de serviço e o despedimento, é do empregador, pois o princípio da continuidade da relação de emprego constitui presunção favorável ao empregado”. Enfim, vale ressaltar que nada justifica a prática de se solicitar o retorno ao emprego por meio de jornais, em anúncios caros e evidentemente inacessíveis à grande massa de trabalhadores. O uso é inócuo, não atende à exigência legal e se mostra, ainda, incompatível com o atual estágio dos meios de comunicação, que permite interagir com o empregado por via postal, telefone, rede social ou correio eletrônico, por exemplo. Ademais, a obrigação de comparecer ao trabalho é do empregado, não estando ela condicionada ao convite do empregador. J) Ato lesivo da honra e boa fama ou ofensas físicas A norma penal prescreve penas dissuasivas contra as condutas que o legislador reputa social- mente reprováveis. Extraem-se, dentre estas, as condutas difamatórias ou somente injuriosas, que consistem, respectivamente, em atribuir a outrem a prática de ato não capitulado como crime e em irrogar atributo ou qualidade ofensiva, em detrimento das regras de civilidade. A ninguém é permitido o comentário, falso ou verdadeiro, sobre atos que de outros desaprova, nem a adjetivação desairosa, pois o bem jurídico resguardado pela norma penal é a honra, a reputação, a imagem das pessoas em seu meio social. Tanto assim que a lei admite a exceção da verdade somente nos casos em que a ofensa irrogada é alusiva a fato tipificado como crime – se a ação penal pode ser manejada pelo Ministério Público – ou é relativa ao exercício pelo funcionário público de suas funções, já que nesses casos há interesse do Estado em ser informado do delito e, munido dessa informação, cabe ao órgão estatal deduzir a pretensão punitiva. Em outras hipóteses de difamação ou mesmo de injúria, o ofensor é passível de ação penal independentemente da veracidade de sua ofensa. O artigo 482, j, da CLT capitula como justa causa a ação difamatória ou injuriosa, bem como a ofensa física, cometidas pelo empregado em serviço, contra qualquer pessoa. Quando a ofensa verbal ou física é dirigida ao empregador ou superiores hierárquicos, configura-se a justa causa mesmo que não ocorra em serviço, consoante estatui o artigo 482, k, da mesma Consolidação das Leis do Trabalho. Estamos a tratar da justa causa que se realiza mediante da difamação ou da injúria. Mas, ao que se nota, também a calúnia – imputação de crime – é ato que configura justa causa, salvo se o empre- gado obtiver, em juízo penal ou mesmo trabalhista, a oportunidade de provar a veracidade de sua afirmação. É que o cometimento de crime, consoante sobrevisto, deve mesmo ser delatado, mas essa delação exige seriedade e disposição de provar a sua veracidade. Sobre a ofensa física, o dispositivo legal sob exame ressalva a possibilidade de ela se dar em legítima defesa, que é a excludente de ilicitude em que se enquadra quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem(1215). A lei que deu origem à alínea ora analisada era de 1935 e, segundo Giglio, reproduzira decreto de 1931. O nosso Código Penal é de 1940, com alteração de sua parte geral em 1984. É possível que isso justi- fique o fato de citado dispositivo da CLT não fazer referência a outras causas excludentes de antijuri- dicidade, sejam as legais – estado de necessidade e estrito cumprimento de dever legal –, sejam as extralegais, como se apresentam os casos em que a ação, em suas circunstâncias, não se contamina de reprovabilidade social. Ao que entendemos, a retorsão imediata, ou seja, a resposta desrespeitosa do empregado após a provocação do empregador, que também lhe atingiu a honra pessoal ou estritamente profissional, não pode ser tratada como justa causa, salvo se o empregado se excedeu ao redarguir a ofensa que lhe foi dirigida(1216). Seria razoável a compreensão de que, em tal hipótese de excesso verbal, haveria culpa recíproca, reduzindo-se à metade a indenização de aviso-prévio, férias e 13o salário proporcionais(1217). Quanto à retratação, reza a norma penal que é ela excludente de punibilidade. Mas, em princí- pio, não há reflexo da retratação do empregado na seara trabalhista, ante a natural dificuldade de se (1215) Vide artigo 25 do Código Penal. (1216) Wagner Giglio (Op. cit. p. 272) trata do tema, lamentando a ausência de orientação jurisprudencial a esse propósito. (1217) Súmula 14 do TST – “Reconhecida a culpa recíproca na rescisão do contrato de trabalho (art. 484 da CLT), o empregado tem direito a 50% (cinquenta por cento) do valor do aviso-prévio, do décimo terceiro salário e das férias proporcionais.” 414 – Augusto César Leite de Carvalho restabelecer a harmonia e o mesmo grau de fidúcia, no ambiente empresarial, após a ofensa verbal inviabilizar o trato civilizado e o exercício do poder diretivo pelo empregador(1218). K) Prática constante de jogos de azar A Lei n. das Contravenções Penais (artigo 50, §3o) tipifica como jogo de azar aquele em que o ganho e a perda dependem exclusivamente ou principalmente da sorte; as apostas sobre corridas de cavalo, fora do hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; as apostas sobre qualquer outra competição esportiva. Pode-se reparar uma clara preocupação do legislador de proscrever, mais que outros jogos, as apostas, em que a sorte é a única determinante do resultado. O futebol, o surf e o tênis de quadra são, portanto e exempli gratia, modalidades esportivas cuja prática não põe em risco o emprego. Há, ainda, a ressalva de que, nas corridas de cavalo, a aposta (costumeira) do jogador somente se enquadra como justa causa se não acontecer em local onde sejam autorizadas. Mutatis mutandis, a prática de apostar em loterias oficiais, porque lícita, não justifica a despedida do empregado. É necessário, de igual modo, que o empregado tenha a finalidade de apostar, ou seja, arriscar algum dinheiro ou bem no sucesso daquele que mereceu sua indicação, ou dele próprio, com o obje- tivo de obter retorno mais rendoso. Está implícito na definição legal de jogo de azar esse pressuposto, o intuito de lucro(1219). Se a atividade é apenas lúdica ou prazerosa, a sua constância deve ser estimu- lada, não havendo justa causa. Quando a norma exige prática constante, não está, segundo Wagner Giglio(1220), a referir o jogador viciado. O autor argumenta: Equiparar a prática constante ao vício não esclarece o significado da expressão legal, mas apenas transfere o problema: que é vício? Seria o costume, o hábito, a simples repetição da atividade? Ou seria o comportamento patológico, aquele apelo interior psicologicamente irre- sistível, aquela atração invencível pelo jogo? Evidentemente o viciado, no sentido patológico do termo, incide na falta, em estudo, mas não só ele. É suficiente, para configurar a infração, que o empregado tenha o hábito arraigado do jogo, que a ele se dedique reiteradamente, como um costume que já faz parte de seu comportamento em sociedade. Por fim, Giglio enfatiza que a gravidade da falta varia em razão do cargo em que o empregado está investido, pois é mais grave na proporção em que ele exerce função de maior confiança, dada a potencial influência do jogo ou aposta na formação ou desvirtuamento do caráter. Se o empregado exerce função não especializada, sendo um servente ou um trabalhador braçal, decerto que a quebra da relação fiduciária, imprescindível à configuração da justa causa, não se apresenta. 12.10.3.5 As justas causas atribuíveis aos empregadores Está visto que os contratos bilaterais se resolvem quando uma das partes negligencia alguma de suas obrigações e a parte inocente opta, então, por considerar terminado o vínculo. Contra o empre- gador se pode ativar, igualmente, a cláusula resolutória tácita, presente assim no contrato de emprego, sempre que ele viola qualquer de suas obrigações, seja a de remunerar o trabalho, seja a de tratar o empregado com urbanidade e respeito ou qualquer outra prestação que integre o conteúdo do contrato. O artigo 483 da CLT enumera as justas causas que podem ser cometidas pelo empregador e a experiência jurídica, como a prática forense, intitulam-nas como casos de rescisão indireta ou despedida indireta, numa imprecisão terminológica que se justifica pela tentativa de enaltecer o fato de essas justas causas do empregador surtirem os mesmos efeitos financeiros da dispensa sem justa causa e, não raro, disfarçarem mesmo o interesse de livrar-se do trabalhador sem o despedir com todas as palavras. Sendo essa a orientação jurisprudencial que prevalecia, ao artigo 487 da CLT foi acrescido, há algum tempo, o parágrafo quarto, prevendo que é devido o aviso-prévio na despedida indireta. Em verdade, essa norma se reveste de caráter atípico porque o aviso-prévio é, como já estudado, um instituto que se coaduna com a denúncia vazia de contratos por tempo indeterminado. A resolução por justa causa se concretiza por meio de denúncia cheia – com a qual seria, em regra, incompatível o aviso-prévio. Mas o legislador apenas deu vazão ao que a jurisprudência trabalhista tinha consagrado: (1218) Cf. Giglio, op. cit., p. 271. (1219) Cf. Giglio, op. cit., p. 281. (1220) Op. cit. p. 282. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 415 o aviso-prévio é devido na despedida indireta para que o empregador não se beneficie de sua torpeza, ao induzir o empregado a postular a resolução do contrato, perseguindo-o dissimuladamente, sem o despedir. O ônus, que recai sobre o empregado, de provar o descumprimento do conteúdo do contrato pelo empregador, é, às vezes, dificultoso. Nem sempre o empregado está apto a provar que o seu empre- gador incorreu em uma das faltas capituladas no artigo 483 da CLT. Há, inclusive, dois casos, entre os referidos nesse dispositivo consolidado, em que o trabalhador pode, sem se afastar do emprego, ajuizar ação trabalhista, visando à declaração judicial de que o contrato se resolveu. Como veremos, o artigo 483, §3o, da CLT, autoriza o empregado a continuar trabalhando quando propõe reclamação trabalhista com base nas suas alíneas d e g(1221). Se mal sucedido na tentativa de provar que o empre- gador cometeu justa causa, o empregado teria, nesses casos, preservado o seu vínculo laboral. Questão interessante é a que concerne à atualidade da falta cometida pelo empregador, pois o empregado se submete, muita vez, a infração patronal por tempo continuado. Por algum tempo, perce- beu-se forte corrente jurisprudencial no sentido de não se configurar a justa causa do empregador o fato de este descumprir por longo tempo, contando com a aparente tolerância do trabalhador, uma regra qualquer legal ou contratual. Haveria perdão tácito porque ausente a atualidade da falta quando finalmente fosse provocado o Poder Judiciário. Essa linha de pensamento desprezava a nuance de o perdão tácito ser de muito difícil aplicação contra o empregado, pois abstrai da sua hipossuficiência econômica, ou seja, da necessidade imediata que o trabalhador tem de manter a fonte de seu sustento e acomodar-se, assim, ante a lesão que lhe atinge e se protrai no tempo. A jurisprudência atual reve- la-se, porém, atenta a esse aspecto da realidade vivida pelo empregado(1222). Analisemos, então, cada uma das justas causas atribuíveis ao empregador. A) Serviços superiores às forças do empregado O artigo 483, a, da CLT prevê, como justa causa cometida pelo empregador, a exigência de servi- ços superiores às forças do empregado, defesos por lei, contrários aos bons costumes ou alheios ao contrato. Não parece fazer sentido, portanto, a discussão doutrinária sobre a norma estar referindo apenas a força física, pois se estaria, talvez sem o propósito, a discriminar o trabalho intelectual, mais comum agora, no mundo da automação, que antes. Vale dizer, não pode ser cobrado trabalho além da energia intelectual suportável, pois o contrário significaria, tal como sucede quando a força física é cobrada em excesso, permitir e, mais que isso, prestigiar o trabalho estressante e desumano. Wilson de Souza Campos Batalha e Sílvia Batalha Netto(1223) lembram que também as exigências afetas à ergonomia do trabalho, como aquelas contidas em normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho a propósito do assento que assegure postura correta ao trabalhador, devem ser observadas pelo empregador, sob pena de estar ele a cobrar labor que extravasa os limites da força física. (1221) Art. 483 – O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: [...] d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato; [...] g) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensi- velmente a importância dos salários. (1222) Nesse sentido: “[...] RESCISÃO INDIRETA DO CONTRATO DE TRABALHO. AUSÊNCIA DE RECOLHIMENTO DO FGTS. ART. 483 DA CLT. Hipótese em que nas instâncias ordinárias decidiu-se que o fato de a empregadora negligenciar habitualmente o cumpri- mento de prestações legais, em especial a obrigação de recolher o FGTS, não configurava rescisão indireta. A Turma do TST, a seu turno, considerou que nessas circunstâncias não haveria violação do art. 483, -d-, da CLT, mas, sim, interpretação razoável do dispositivo, e invo- cou a Súmula 221, II, do TST. Superada eventual controvérsia acerca do conhecimento do apelo, uma vez que a decisão turmária, ainda que não renda ensejo ao conhecimento dos embargos por contrariedade direta ao verbete (Súmula 221, II, do TST), apresenta conteúdo de mérito suficiente a autorizar o cotejo de teses. [...] Quanto ao mérito, o entendimento assente na jurisprudência majoritária desta Corte Superior, em julgados da Subseção 1 Especializada em Dissídios Individuais, bem como de todas as oito Turmas, é no sentido de que a ausência de recolhimento de valores devidos a título de FGTS, por parte do empregador, no curso do contrato de trabalho autoriza a rescisão indireta. E esse entendimento ampara-se justamente no artigo 483, -d-, da CLT, segundo o qual o empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando o empregador não cumprir as obrigações do contrato. Recurso de embargos conhecido e provido. [...]” (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-ED-RR 114400-18.2002.5.15.0033, Relator Ministro: Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 30/08/2012, Data de Publicação: 10/09/2012). Ou ainda: [...] DESPEDIDA INDIRETA – CARACTERIZAÇÃO – MORA SALARIAL Não se aplica o requisito da imediatidade à despedida indireta, nos termos do art. 483, “d”, da CLT, se a gravidade da conduta decorre justamente da reiteração do descumprimento de obrigação legal, especialmente tendo em vista que o interesse maior do empregado é pela manutenção do emprego. Precedentes. Embargos conhecidos parcialmente e providos (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-ED-RR 740596-64.2001.5.03.5555, Relatora Ministra: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Data de Julgamento: 18/06/2009, Data de Publicação: 26/06/2009). (1223) Op. cit. p. 131. 416 – Augusto César Leite de Carvalho Por igual, o serviço vedado por lei, pela moral ou pelo contrato não pode ser cobrado, sob pena de essa cobrança ou seu atendimento implicar a justa causa sob exame. A expressão vedado por lei é compreendida, às vezes e sem prejuízo para a eficácia da sanção jurídica, como a fazer alusão, estritamente, ao trabalho proibido por lei penal. A extrapolação indevida da jornada de oito horas ou o trabalho noturno, insalubre ou perigoso por menores de dezoito anos (artigo 7o, XXXIII, da Constitui- ção), que são exemplos de infração trabalhista, enquadrar-se-iam, segundo Giglio(1224), como serviço vedado pelo contrato (alínea d do art. 483 da CLT), assim se sustentando numa óbvia referência ao conteúdo imperativo do contrato de emprego. É, enfim, agressivo aos bons costumes o trabalho que se desenvolve em detrimento da moral objetivada na sociedade ou das regras de trato social. Excedendo esses limites, o empregador se sujeita a ação movida pelo empregado, com vistas à declaração de justa causa patronal. B) Rigor excessivo Bem entendido, o empregador comete justa causa quando o empregado é tratado, por ele ou por outro superior hierárquico, com excesso de rigor. Sobreleva, nesse ponto, a dignidade da pessoa, vale dizer, do empregado contra o qual se dirige a ordem de serviço. A consciência humana não tolera mais a existência de escravos nem feitores, e as relações sociais devem ter, hoje, a característica da civilidade. Nesse passo, percebe-se, também, como se alarga o conteúdo do contrato de trabalho, pois a configuração de qualquer conduta como justa causa importa a inserção da conduta inversa no rol de prestações devidas pelo empregador. O tema rigor excessivo é normalmente associado ao modo deseducado como o trabalhador é tratado. Mas a doutrina vem enriquecendo essa discussão, não raro decidindo-se pelo rigor excessivo em casos de submissão do empregado, por exemplo, a revista abusiva(1225) ou a assédio moral. O assédio moral se caracteriza pela sujeição do empregado a tratamento que o faz constrangido ou aviltado, mediante conduta patronal caracterizada pela reiteração e pela potencial aptidão para humilhar o trabalhador ou privar-lhe de algum direito inerente ao desenvolvimento de sua persona- lidade. O Código de Trabalho de Portugal, editado em 2009, contém preceito descritivo do assédio moral que, sem embargo de não exigir a repetição da conduta, aclara o seu significado. A saber: Art. 29.1 do Código de Portugal – Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o base- ado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador. É certo, ainda, não ser indiferente a ordem jurídica brasileira à conduta moralmente ofensiva que escape à definição de assédio moral por não ter a característica da reiteração. A exemplo do que sucede ao assédio moral, tal conduta poderá justificar a resolução do contrato em vista de configu- rar-se rigor excessivo ou mesmo ato lesivo à sua honra e boa fama, não importando para ter o efeito da rescisão indireta, como tantas vezes visto, a alínea do art. 483 da CLT em que se enquadrará a conduta do empregador. C) Perigo manifesto de mal considerável Há perigo quando a saúde ou a incolumidade física do empregado está ameaçada. A justa causa se configura se o perigo é manifesto, dele não surgindo dúvida. Reproduzindo lição de Dorval de Lacerda, observa Valentin Carrion(1226) que, como mal conside- rável, devem se enquadrar “não os riscos naturais da profissão, mas os anormais, em virtude da não adoção pelo empregador de medidas geralmente utilizadas ou de normas de higiene e segurança do trabalho”. No mesmo sentido, Wagner Giglio(1227) anota: Qualquer trabalho oferece riscos, por mínimos que sejam. A execução de serviços ao sol pode avermelhar a pele; na chuva, pode causar um resfriado. Não são esses pequenos inconvenientes que preocuparam o legislador, mas os males consideráveis, no sentido de ponderáveis, relevantes, importantes, de vulto. (1224) Op. cit. p. 319. (1225) Vide BARROS, Alice Monteiro de. Proteção à intimidade do empregado. São Paulo: LTr, 1997. p. 73. (1226) Op. cit. p. 366. (1227) Op. cit. p. 331. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 417 É evidente que os exemplos, mencionados pelos laboralistas acima nominados, são apenas ilustrativos. O trabalho a céu aberto, dando-se por tempo demasiado, expõe o empregado a doenças de pele extre- mamente graves, como informam os mais recentes estudos médicos. Portanto, há, nele, mal considerável, sem interferência do fato de inexistir, segundo o item I da orientação jurisprudencial n. 173 da SDI-1 do TST, previsão legal para assegurar, em tal hipótese, o direito ao adicional de insalubridade(1228). O mesmo se pode argumentar a propósito da exposição do trabalhador a poeiras minerais sabi- damente tóxicas, a exemplo daquelas que contêm amianto ou sílica. Ainda que o empregado receba o adicional de insalubridade, a exposição acima dos limites de tolerância prenuncia doenças pulmonares graves e autoriza o empregado a postular, a qualquer instante, a resolução do contrato que lhe provê alimento e adoecimento, talvez o seu definitivo e precoce passamento. D) Não cumprimento de obrigações do contrato Ao analisarmos a alínea a do artigo 483 da CLT, vimos que se dá, ali, alusão a justa causa que se configura quando são exigidos serviços alheios ao contrato. Por sua vez, a alínea d, ora em estudo, refere-se à violação de cláusulas contratuais, não mais à exigência de trabalho que extra- pole o conteúdo destas. Cuida-se, aqui, de uma das duas hipóteses em que o empregado pode continuar trabalhando para o empregador, mesmo depois de requerer que a Justiça do Trabalho declare a resolução do vínculo, pelo cometimento de justa causa. Essa faculdade lhe é assegurada pelo artigo 483, §3o, da CLT, e tende a jurisprudência a deferir, sendo o caso, salários e indenizações até o último dia de trabalho, ainda que o último dia de trabalho aconteça após a propositura da ação trabalhista. Durante algum tempo, maior foi o dissenso doutrinário sobre configurar-se a rescisão indireta quando o empregador descumpre obrigações impostas por lei, como férias e FGTS. Preconizava-se, não raro, que se indefirisse, nesses casos, a resolução do contrato, a pretexto de a prestação descum- prida poder ser ordenada mediante sentença judicial. Como posição intermediária, citava-se a de que o princípio, a nortear a decisão nesses conflitos, deveria ser sempre o da razoabilidade, como se infere de excerto da obra de Wilson de Souza Campos Batalha e Sílvia Batalha Netto(1229): Ao juiz caberá a análise das circunstâncias para verificar até que ponto o descumprimento das obrigações possa comportar reparação por meio de reclamação e a partir de que ponto se justifica a rescisão indireta pela insuportabilidade do descumprimento contratual e o preju- ízo para a subsistência do trabalhador e de sua família. Em verdade, a jurisprudência dava coro à ideia de que haveria perdão tácito do trabalhador que resig- nadamente suportasse a violação da lei trabalhista pelo seu empregador, sem o interpelar perante as cortes judiciais. Sempre guardamos muita reserva contra essa vertente jurisprudencial, pois a sua absorção pode- ria traduzir-se, por exemplo, em uma postura transigente do Poder Judiciário nos casos em que o empre- gador transgredisse a sua obrigação (principal) de pagar o salário, sendo este o salário mínimo. É antiga, a esse propósito, a orientação contida na Súmula 13 do Tribunal Superior do Trabalho: “O só pagamento dos salários atrasados em audiência não elide a mora capaz de determinar a rescisão do contrato de trabalho”. Estamos convencidos, em verdade, de que é forte a jurisprudência atual noutra direção, como se pode colher dos precedentes(1230) da Subseção I de Dissídios Individuais do TST a que fizemos remissão, em nota, na introdução deste tema. A bem dizer, tais precedentes retra- tam a jurisprudência que já se formava no âmbito das turmas do Tribunal Superior do Trabalho(1231). E) Ato lesivo da honra ou boa fama. Ofensas físicas (1228) Orientação jurisprudencial n. 173 da SBDI-1: ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. ATIVIDADE A CÉU ABERTO. EXPOSI- ÇÃO AO SOL E AO CALOR. I – Ausente previsão legal, indevido o adicional de insalubridade ao trabalhador em atividade a céu aberto, por sujeição à radiação solar (art. 195 da CLT e Anexo 7 da NR 15 da Portaria N. 3214/78 do MTE). II – Tem direito ao adicional de insalu- bridade o trabalhador que exerce atividade exposto ao calor acima dos limites de tolerância, inclusive em ambiente externo com carga solar, nas condições previstas no Anexo 3 da NR 15 da Portaria N. 3214/78 do MTE. (1229) Op. cit. p. 134. (1230) Aludimos aos precedentes da SBDI-1: E-ED-RR 114400-18.2002.5.15.0033 e E-ED-RR 740596-64.2001.5.03.5555 (1231) Por exemplo: TST, 2ª Turma, RR-2.045/2001-067-02-00.5, Rel. Min. José Simpliciano Fontes de F. Fernandes, DJ 6/3/2009; TST, 1ª Turma, RR-328/2002-010-04-00.1, Rel. Min. Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DJ 26/9/2008; TST, 2ª Turma, RR-467/2002-042-12-00.6, Rel. Min. Renato de Lacerda Paiva, DJ 19/9/2008. 418 – Augusto César Leite de Carvalho Aplicam-se, quanto à justa causa prevista na alínea e do artigo 483 da CLT, os conceitos já exami- nados ao tempo em que estudamos a justa causa de igual natureza, cometida pelo empregado. Bem assim no tocante às ofensas físicas. Mas duas observações são importantes. É que a ofensa física do empregador ou de seu preposto se configura justa causa se perpetradas contra o empregado, salvo em legítima defesa. Já a ofensa verbal pode ser dirigida ao empregado ou mesmo a pessoa de sua família, caracterizando-se, em ambos os casos, a justa causa sob análise. A segunda observação é atinente ao assédio sexual, que pode ocorrer por intimidação ou chanta- gem como bem se extrai do artigo 216-A do Código Penal, a descrevê-lo assim: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. Consumando-se pela conduta permeada de insinuações sobre a possibilidade de favores sexu- ais, subsume-se na justa causa alusiva aos atos atentatórios à honra do empregado ou, como é mais comum, à honra ou reputação da empregada. Assiste razão, porém, a Alice Monteiro de Barros(1232), ao sustentar: A legislação e a jurisprudência têm destacado como elemento essencial do assédio sexual que o comportamento seja incômodo e que seja repelido. Logo, só o repúdio manifesto a uma solicitação sexual ou a oposição declarada a uma atitude sexual ofen- siva pode justificar uma ação judicial, e não um simples galanteio, um elogio acompa- nhado de certas sutilezas comuns entre os povos, principalmente latinos, e às vezes até provocados pela pseudo-vítima. Em consequência, o fato de o assédio sexual partir de pessoas que já tiveram um relacionamento afetivo pode impedir o êxito de uma ação judicial, dada a dificuldade de se desincumbir do ônus da prova. Alguns autores e juízes preferem, contudo, enquadrar o assédio sexual cometido por empregador ou seu preposto como perigo manifesto de mal considerável(1233). O fundamento legal é irrelevante, pois são os mesmos os efeitos e, afinal, se o empregado não promo- ver o enquadramento legal que agrade à compreensão do magistrado, poderá ele, ao decidir, emprestar à falta a subsunção adequada com esteio no princípio da livre dicção do direito (jura novit curia). F) Redução do trabalho remunerado por peça ou tarefa A justa causa referida na alínea g do artigo 483 da CLT é concernente a um modo disfarçado de reduzir o salário do empregado, aproveitando-se do fato de ele receber salário variável. De justa causa se cogita quando o empregador passa a cobrar do empregado uma quantidade menor de trabalho, com o objetivo, certamente dissimulado, de reduzir o seu ganho salarial e, assim, induzi-lo a deixar o emprego. A lei previne tal conflito, assegurando logo ao empregado o direito de postular, em tais circunstân- cias, a declaração judicial de que se está a processar a sua despedida indireta. É certo, ainda, que o dispositivo sob análise faz referência apenas ao trabalhador que recebe por peça ou tarefa. Mas também se aplica, por integração analógica, a outros trabalhadores que vencem salário por unidade de obra ou serviço, a exemplo de vendedores que percebem apenas comissão. De quando em vez, a jurisprudência(1234) adota o dispositivo legal, que ora examinamos, como fundamento para a resolução dos contratos de emprego em que o trabalhador é mantido, pelo empre- gador, em constrangedora ociosidade. E entendemos que vulnera mesmo os limites do trato civilizado o empregador que passa, em determinado momento do liame laboral, a não mais dar ordens de serviço ao empregado, com o intuito maldisfarçado de persegui-lo ou vexá-lo ante a presença incômoda de colegas que o veem submetido assim ao constrangimento de ser confundido com um homem afeito à vadiagem, em detrimento do valor social do trabalho. (1232) Op. cit. p. 145. (1233) Cf. Valentin Carrion, Op. cit. p. 369. (1234) Valentin Carrion (Op. cit. p. 367) faz remissão ao seguinte aresto: “Empregado mantido em ociosidade recebendo salário. Ato empre- sarial que atenta contra a dignidade da pessoa humana, pois é vexatória ao trabalhador a situação de receber salários sem que isto aconteça em razão de haver cumprido labor” (TST, RR 7127/86.2, Rel. Min. Norberto Silveira, Ac. 3a Turma 1736/87). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 419 12.10.3.6 A culpa recíproca O artigo 484 da Consolidação das Leis do Trabalho prescreve que, “havendo culpa recíproca, no ato que determinou a rescisão do contrato de trabalho, o tribunal do trabalho reduzirá a indenização à que seria devida em caso de culpa exclusiva do empregador, por metade”. A indenização referida nesse artigo de lei é a do artigo 478 da CLT, devida aos empregados que, antes da Constituição de 1988, não optavam pelo regime do FGTS. Logo, cuida-se de situação residual, pois são bem raros esses empregados. Entretanto, o instituto da culpa recíproca continua atual, dada a possibilidade de o juiz do traba- lho(1235) perceber, ao enfrentar um caso concreto, que empregado e empregador agiram mediante condutas igualmente graves e contemporâneas (não necessariamente simultâneas), de modo a tornar insustentável a preservação do emprego. É comum ocorrer de uma das condutas ser a causa da conduta adversa, como na troca de ofensas físicas ou verbais, quando o comportamento de ambos os contendores se mostra estranho às regras de civilidade. Sucedendo, ao revés, a retorsão imediata e sem excesso verbal, ou a legítima defesa, decerto que não há culpa recíproca, mas o cometimento de justa causa pelo primeiro agressor. Há casos em que se conclui pela culpa recíproca quando o empregado reage, imoderadamente, a uma conduta patronal que viola lei ou contrato e se protrai no tempo, a exemplo de uma agressão verbal ou física do trabalhador provocada por mora salarial. Assistimos a julgamento, faz vários anos, no qual foi declarada a culpa recíproca em caso de acidente provocado por empregado que, ao conduzir de modo imprudente o veículo do empregador após ingerir bebida alcoólica, causou acidente, revelando- -se a culpa recíproca pelo fato de se ter exigido desse empregado o trabalho em meio ao Carnaval, já se encontrando ele animado pela folia momesca quando foi surpreendentemente chamado a trabalhar. A culpa recíproca é importante pelos efeitos jurídicos que dela advêm. O artigo 18, §2º, da Lei n. 8.036, de 1990, reduz a 20% a indenização que é devida, nesse caso, sobre os depósitos do FGTS. Por sua vez, a Súmula 14 do TST orienta: Reconhecida a culpa recíproca na rescisão do contrato de trabalho (art. 484 da CLT), o empregado tem direito a 50% (cinquenta por cento) do valor do aviso-prévio, do décimo terceiro salário e das férias proporcionais. 12.10.3.7 Justa causa do empregado doméstico Uma certa perplexidade aturdia os agentes do direito do trabalho nas ocasiões em que instados a refletir sobre o empregado doméstico ser passível de dispensa por justa causa, pois o artigo 7o, a, da CLT excluía a aplicação da norma consolidada em favor – ou contra – essa categoria de trabalhadores. Isso não obstante, é regra geral de direito a resolução dos contratos bilaterais quando um de seus sujeitos negligencia o cumprimento de uma de suas cláusulas e isso inviabiliza a manutenção do vínculo. A Lei n. 10.208, de 2001, acresceu à Lei n. 5.859, de 1972, que regulava o emprego doméstico, o artigo 6º, §2º: “Considera-se justa causa para os efeitos desta Lei n. as hipóteses previstas no art. 482, com exceção das alíneas c e g e de seu parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho”. Por sua vez, a Lei n. Complementar 150, de 2015, que atualmente disciplina a relação entre empregadores e empregados domésticos, dispõe em seu artigo 27 acerca das justas causas que podem ser atribuí- das aos sujeitos da relação doméstica de emprego. Quanto às justas causas oponíveis contra o empregado doméstico, o mencionado dispositivo enumera a submissão de enfermo, pessoa com deficiência ou criança sob seus cuidados a maus-tratos, o ato de improbidade, a incontinência de conduta ou mau procedimento, a condenação criminal com trân- sito em julgado sem suspensão da execução da pena, a desídia, a embriaguez habitual ou em serviço, a indisciplina, a insubordinação, o abandono de emprego, o ato lesivo à honra ou à boa fama, as ofensas físicas praticadas em serviço, a prática constante de jogos de azar. Surpreende o fato de o legislador ter inovado a justa causa alusiva a maus-tratos e em seguida copiado as alíneas do art. 482 da CLT sem atentar para o aspecto de a jurisprudência estar consolidada acerca de as condenações criminais somente promoverem a resolução do contrato quando implicam o encarceramento do empregado e, (1235) O juiz do trabalho, que é provocado ante a natural dificuldade de o ser humano reconhecer a própria falta. 420 – Augusto César Leite de Carvalho também, de a embriaguez habitual ser hoje considerada, como já visto, uma enfermidade a provocar o encaminhamento do trabalhador a tratamento de saúde, com suspensão do contrato, longe estando o tempo em que configurava justa causa. Sobre as justas causas oponíveis ao empregador doméstico, o parágrafo único do mesmo artigo 27 da LC n. 150/2015 enumera a exigência de serviços superiores às forças do empregado, defesos por lei, contrários aos bons costumes ou alheios ao contrato, o rigor excessivo ou tratamento degra- dante, o perigo manifesto de mal considerável, o descumprimento de obrigação contratual, o ato lesivo à honra e à boa fama, a ofensa física e a violência doméstica contra mulher proscrita pela Lei n. 11.340, de 2006. Andou bem o legislador, a nosso ver, quando equiparou o rigor excessivo ao tratamento degradante e igualmente ao incluir a violência doméstica contra mulher, a que se reporta a famosa Lei n. Maria da Penha, entre os tipos legais que descrevem as possíveis justas causas do empregador. Assim, o empregado doméstico pode ser dispensado por justa causa, desde que a sua conduta, sendo grave, atual e determinante, enquadre-se nas alíneas do artigo 27 da Lei n. Complementar n. 150/2015. E pode pleitear a resolução do contrato nos casos em que o empregador aja de modo reprovável e tenha assim a sua conduta subsumida na casuística do parágrafo único de citado dispo- sitivo. É certo que a falta do empregador doméstico, sendo continuada, dela não se exigirá o critério da atualidade, ou seja, não se há de exigir que a primeira falta seja recente, dado que a jurisprudência tem relativizado a presunção de perdão tácito em casos nos quais o empregado tolera a contumácia do empregador pela singela razão de que não pode prescindir, mesmo em tais e adversas circunstâncias, do emprego que garante a subsistência sua e de sua família. 12.10.3.8 A resolução do contrato de empregado público – necessidade de motivação pela administração pública indireta e em contratos de gestão Como se pode observar no capítulo reservado aos empregados, no subitem dedicado aos empre- gados públicos, os servidores públicos regidos pela CLT são aqueles que prestam trabalho para socie- dades de economia mista e empresas públicas. São também empregados públicos, residualmente, os servidores contratados pelo regime da CLT antes de o Supremo Tribunal Federal restabelecer o regime jurídico único (art. 39 da Constituição). Antes de o STF assim decidir, os empregos públicos que surgiram em razão da quebra, pela Emenda Constitucional n. 19, de 1998 (a Reforma Administrativa), da unicidade do regime jurídico, observaram, no âmbito da União, os preceitos da Lei n. 9.962, de 2000, segundo a qual a administração não pode dispensar o empregado público com a mesma discricionariedade que é assegurada ao empregador privado, uma vez que o art. 3o da citada Lei n. 9.962, de 2000, estabelece, em consonância com o princí- pio da motivação e em numerus clausus(1236), as situações de fato que justificam a despedida: • Falta grave, conforme art. 482 da CLT. A lei usa, ao que parece, de imprecisão terminológica, porquanto esteja a tratar de resolução contratual que depende de ato unilateral da Administra- ção e a expressão falta grave é usada, pela legislação trabalhista, para referir as justas causas cuja repetição e gravidade justifiquem a resolução do contrato de empregados estáveis pela Justiça do Trabalho, mediante inquérito judicial(1237). • Acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas. A lei está a cuidar da acumula- ção vedada pelo art. 37, XVI e XVII, da Constituição. • Necessidade de redução de quadro de pessoal, por excesso de despesa, nos termos da lei complementar a que se refere o art. 169 da Constituição Federal (Lei n. Complementar 101/2000, art. 23). O §3o, II, do artigo 169 da CF prevê que o segundo procedimento para a redução do quadro de pessoal (após a redução dos cargos em comissão e funções de confiança) é a (1236) A Lei n. 9.962, de 2000, em seu artigo 3o, parágrafo único, excluiu a relação de emprego decorrente dos contratos de gestão, previstos no art. 37, §8o, da Constituição, da proteção fundada naquele mesmo dispositivo infraconstitucional. Em outras palavras, o empregado cujo contrato fora celebrado em consequência de contrato de gestão tem direito a que se observe o princípio da motivação em sua dispensa, pois é tal princípio a mais clara expressão da moralidade e da impessoalidade exigidas no art. 37 da Constituição. Mas o motivo da dispensa não precisa se subsumir em uma das hipóteses previstas no art. 3o da Lei n. 9.962, de 2000 (falta grave, acúmulo de cargo, emprego ou função, redução de pessoal ou insuficiência de desempenho). (1237) Vide artigos 493, 543, §3o e 853 da CLT e artigo 8o, VIII, da Constituição. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 421 exoneração dos servidores não estáveis. Sendo insuficiente, exonerar-se-ão os servidores está- veis investidos em cargos (§4o), já agora mediante indenização. • Insuficiência de desempenho, apurado em procedimento sumário, cabendo um recurso para chefe imediato, com efeito suspensivo e prazo de trinta dias para apreciação, desde que haja “o prévio conhecimento dos padrões mínimos exigidos para a continuidade da relação de emprego, obrigatoriamente estabelecidos de acordo com as peculiaridades das atividades exercidas” (art. 3o, IV, da Lei n. 9.962, de 2000). O servidor investido em cargo público tem proteção maior, assegurada em lei complementar (art. 41 da Constituição). A mesma Reforma Administrativa (EC 19/1998) alterou a redação do art. 41 da Constituição e, nesse ponto, a mudança interessa ao estudo da resolução do contrato entre a administração e os seus servidores. É que, antes, o mencionado art. 41 previa: “são estáveis, após dois anos de efetivo exercício, os servidores nomeados em virtude de concurso público”. Àquele tempo, o STF entendia: “A garantia constitucional da disponibilidade remunerada decorre da estabilidade no serviço público, que é assegurada, não apenas aos ocupantes de cargos, mas também aos de empregos públicos, já que o art. 41 da C.F. se refere genericamente a servidores”(1238). Na mesma linha, o Tribunal Superior do Trabalho consolidou a sua jurisprudência, que mais adiante se cristalizou na Súmula 390: Súmula 390 do TST: I – O servidor público celetista da administração direta, autárquica ou fundacional é beneficiário da estabilidade prevista no art. 41 da CF/1988. II – Ao empregado de empresa pública ou de sociedade de economia mista, ainda que admitido mediante apro- vação em concurso público, não é garantida a estabilidade prevista no art. 41 da CF/1988. Contudo, a regra mudou. Após a Emenda Constitucional n. 19/1998, o art. 41 da Constituição passou a estar assim redigido: “São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomea- dos para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público”. O preceito não mais se refere, genericamente, aos servidores, mas assegura estabilidade somente aos servidores investidos em cargo público, ou seja, sujeitos ao regime estatutário(1239). Não demorou para que os estudiosos de direito administrativo discorressem sobre a mudança, que retirava a estabilidade dos servidores públicos celetistas, assim se manifestando, entre outros, Bandeira de Mello(1240) e Lopes Meirelles, este a sustentar que os empregados públicos, “não ocupando cargo público e sendo celetistas, não têm condição de adquirir a estabilidade constitucional (CF, art. 41), nem podem ser submetidos ao regime de previdência peculiar, como os titulares de cargo efetivo e os agentes políticos, sendo obrigatoriamente enquadrados no regime geral de previdência social, a exemplo dos titulares de cargo em comissão ou temporário”(1241). (1238) Ementa na íntegra: “Direito Constitucional e Administrativo. Servidores Públicos. Disponibilidade. Empregados do Quadro Perma- nente da Comissão de Valores Mobiliários (autarquia). Mandado de Segurança impetrado pelos servidores colocados em disponibilidade por força do Decreto n. 99.362, de 02.07.1990. Alegação de que o instituto da disponibilidade somente se aplica aos ocupantes de cargos e não aos de empregos públicos. Alegação repelida. 1. A garantia constitucional da disponibilidade remunerada decorre da estabilidade no serviço público, que e assegurada, não apenas aos ocupantes de cargos, mas também aos de empregos públicos, já que o art. 41 da C.F. se refere genericamente a servidores. 2. A extinção de empregos públicos e a declaração de sua desnecessidade decorrem de juízo de conve- niência e oportunidade formulado pela Administração Pública, prescindindo de lei ordinária que as discipline (art. 84, XXV, da C.F.). 3. Interpretação dos artigos 41,”caput”, PAR- 3., 37, II, e 84,IV, da C.F. e 19 do A.D.C.T.; das Leis n.s. 8.028 e 8.029 de 12.04.1990; e do Decreto n. 99.362, de 02.07.1990. 4. Precedentes: Mandados de Segurança ns. 21.225 e 21.227. 5. Mandado de Segurança indeferido” (STF, MS 21236, Rel. Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, j. 20/04/1995, DJ 25-08-1995 pp. 26022, Ement. vol. 1797 -02 pp. 00315). (1239) Uma interessante digressão é atinente à preocupação dos poderes constituídos, sobremodo do poder reformador, no sentido de precarizar a relação dos entes públicos com os empregados, seus novos servidores. Essa intenção parece mais transparente quando se nota que a perda do cargo por excesso de despesa e consequente redução de pessoal (regulada pela Lei n. 9.801/99) implicará o pagamento de indenização ao servidor estatutário, prevista no art. 169, §5o, da Constituição, sem que igual indenização seja prevista em favor do empre- gado público. A regra tem coerência interna, pois o empregado público não adquire estabilidade, sendo esta assegurada somente ao servidor investido em cargo público (art. 41 da Constituição). Percebe-se, em igual sentido, que a insuficiência de desempenho do servidor estatutá- rio será avaliada em processo com rigorosa observância do contraditório e ampla defesa, em consonância com a lei complementar exigida pelo art. 41, §1o, III, da Constituição, sendo menor, como sobrevisto, a proteção ao empregado público. (1240) MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 260-261. (1241) MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Atualização de Eurico de Andrade Azevedo e outros. São Paulo: Malhei- ros, 2002. p. 388. 422 – Augusto César Leite de Carvalho Seguindo a mesma trilha, o Supremo Tribunal Federal revisitou o tema e, ao fazê-lo, distinguiu os empregados públicos admitidos antes da EC 19, para os quais a estabilidade após o segundo ano de contrato converteu-se em direito adquirido, daqueles que, sendo admitidos após a mudança, não adquiriam mais a estabilidade(1242). A propósito, todavia, dos empregados admitidos no âmbito dos contratos de gestão previstos no art. 37, §8o, da Constituição, a Lei n. 9.962, de 2000, em seu artigo 3o, parágrafo único, excluiu-os da sua proteção. Em outras palavras, o empregado cujo contrato fora celebrado em consequência de contrato de gestão não tem direito, segundo tal preceito, a que se observe a exigência de motivação em sua dispensa, não obstante seja tal princípio a mais clara expressão da moralidade e da impesso- alidade exigidas no art. 37 da Constituição. Motivar não significa necessariamente atribuir falta discipli- nar ao empregado, mas esclarecer-lhe as razões de ordem técnica, estrutural, econômica, financeira ou mesmo relacionadas a conduta faltosa ou desidiosa do trabalhador que estariam a justificar a disso- lução, sempre traumática na perspectiva do empregado, do contrato de emprego. Sobretudo a partir da Lei n. 9.637, de 1998, que não disfarça o propósito de substituir servidores públicos por empregados de organizações sociais que lhes façam as vezes por meio de contratos de gestão, é preocupante constatar que o motivo da dispensa desses trabalhadores, substitutos dos servi- dores públicos – em atividades de educação, saúde, cultura, desporto, lazer, ciência e meio ambiente – não precisaria subsumir-se em uma das hipóteses previstas no art. 3o da Lei n. 9.962, de 2000 (falta grave, acúmulo de cargo, emprego ou função, redução de pessoal ou insuficiência de desempenho), estando livres as organizações sociais para despedi-los arbitrariamente, mediante o pagamento das indenizações tipicamente trabalhistas. Entretanto, ao julgar a ADI 1923 (em que afirmou a constitucionalidade da referida Lei n. 9.637/1998), o Supremo Tribunal Federal determinou que “a seleção de pessoal pelas Organizações Sociais seja conduzida de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade”. O tempo dirá se, em coerência com a premissa de que os empregados protegidos pelo artigo 37 da Constituição só podem ser dispensados se o forem motivadamente – veja-se a decisão do STF no RE 589998 comentada em seguida –, a jurisprudência exigirá motivação para a despedida de empregados de organizações sociais que atuem na realização de serviços públicos por intermédio de contratos de gestão. Outra questão, tão ou mais instigante, é aquela alusiva à estabilidade dos empregados públicos que o são porque admitidos nos quadros das sociedades de economia mista e empresas públicas. Eles realmente não têm estabilidade e assim o STF(1243), como também o TST (por meio da jurispru- dência consolidada na Súmula 390, II(1244)), sempre entenderam. O que nos parecia susceptível a crítica, respeitosamente, era a orientação jurisprudencial no sentido de que esses servidores públicos celetistas, os quais são investidos mediante concurso em empregos oferecidos pelas sociedades de economia mista e empresas públicas, poderiam ser dispensados sem (1242) Nesse sentido: “1. RECURSO. Agravo de instrumento. Ofensa constitucional. Caracterização. Recurso conhecido. Deve ser conhe- cido agravo de instrumento quando a questão de fundo é eminentemente constitucional, mas sem que isso implique consistência do recurso extraordinário. 2. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Ofensa ao art. 41 da Constituição Federal. Inexistência. Empregado público. Aprovação em concurso público e cumprimento do estágio probatório antes da EC 19/98. Estabilidade. Precedentes. Agravo regi- mental não provido. Faz jus à estabilidade prevista no art. 41 da Constituição Federal, em sua redação original, o empregado público que foi aprovado em concurso público e cumpriu o período de estágio probatório antes do advento da EC n. 19/98” (AI 510994 AgR, Relator(a):  Min. Cezar Peluso, Primeira Turma, j. 21/02/2006, DJ 24-03-2006 pp. 00027, Ement. vol. 02226-06 pp. 01171); “CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDOR PÚBLICO. ART. 41 DA CONSTI- TUIÇÃO FEDERAL. ADMISSÃO POR CONCURSO PÚBLICO ANTES DO ADVENTO DA EMENDA CONSTITUCIONAL 19/98. ESTABILIDADE. REINTEGRAÇÃO. PRECEDENTE DO PLENÁRIO. 1. A jurisprudência desta Corte consignou que a estabilidade assegurada pelo art. 41 da Constituição Federal, na sua redação original, estende-se aos empregados públicos, admitidos por concurso público antes do advento da EC 19/98, pois “se refere genericamente a servidores”. Precedente do Plenário: MS 21.236/DF. 2. Agravo regimental improvido” (STF, AI 480432 AgR/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, j. 23-03-2010, DJe 067, divulgação 15-04-2010, p. 16-04-2010, Ement. vol. 02397 pp 01271). (1243) “Empresa de economia mista: firme o entendimento do Supremo Tribunal no sentido de que a estabilidade prevista no artigo 41 da Constituição Federal não se aplica aos empregados de sociedade de economia mista: precedentes” (STF, AI 323346 AgR/CE, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, j. 08/03/2005, DJ 01-04-2005 pp. 00021, Ement. vol. 02185-03 pp. 00455). (1244) Súmula 390, II do TST – Ao empregado de empresa pública ou de sociedade de economia mista, ainda que admitido mediante aprovação em concurso público, não é garantida a estabilidade prevista no art. 41 da CF/1988. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 423 qualquer motivação. Era o que pensava o STF(1245) e, nessa mesma linha, o TST editou a orientação jurisprudencial n. 247 da SBDI-1: SERVIDOR PÚBLICO. CELETISTA CONCURSADO. DESPEDIDA IMOTIVADA. EMPRESA PÚBLICA OU SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. POSSIBILIDADE. I – A despedida de empregados de empresa pública e de sociedade de economia mista, mesmo admitidos por concurso público, independe de ato motivado para sua validade; II – A validade do ato de despedida do empregado da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) está condicionada à motivação, por gozar a empresa do mesmo tratamento destinado à Fazenda Pública em relação à imunidade tributária e à execução por precatório, além das prerrogativas de foro, prazos e custas processuais. O fundamento para a licença de despedir imotivadamente, que se outorgava a esses entes da administração pública indireta, era a circunstância de o art. 173, §1º, II da Constituição atribuir-lhes a “sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários”. A primeira crítica a essa vertente jurisprudencial era o aspecto de o princípio da motivação não estar necessariamente atrelado à estabilidade do art. 41 da Constituição. A motivação dos atos admi- nistrativos – dentre eles se incluindo o ato de despedir um servidor público celetista – tem como suporte os princípios consagrados no art. 37 da Constituição, especialmente o postulado da legalidade(1246), pois não é possível certificar-se que o ato administrativo é legal e atende à moralidade pública e à impessoalidade se ele não contém a indicação do motivo que lhe rende ensejo. A crítica derradeira, a propósito do tema, é a aparente impropriedade de se reportar a jurispru- dência a dispositivo constitucional (art. 173, §1º, II(1247)) que não protege a administração pública de quem quer que seja, menos ainda a exonera da obrigação de tratar seus servidores com dignidade, porquanto a preocupação foi outra e de natureza estranha à relação de emprego: a intenção do constituinte foi claramente a de não permitir que o Estado interviesse na economia, exercendo ativi- dade produtiva em regime de concorrência, sem submeter-se às regras de direito civil, trabalhista e tributário exigidas das empresas privadas concorrentes. O intento do poder constituinte foi o de onerar convenientemente a administração pública, salvaguardando os interesses do livre mercado, em coerência com o princípio da subsidiariedade – que reserva ao Estado um papel secundário na atividade produtiva de bens e serviços desprovidos de utilidade pública. Não foi, claramente, o de desonerá-la de qualquer obrigação que lhe fosse imanente. Quando se permitia que os entes paraestatais dispensassem seus empregados, aprovados mediante severos concursos públicos, sem qualquer motivação, liberavam-se os entes da administração de um dever que não está regido diretamente pelos princípios e regras que balizam a ordem econômica e social, mas sim no postulado da moralidade pública. Em boa hora, a jurisprudência que emana do STF reviu a orientação anterior e, ao decidir o RE 589998 consagrou a necessidade de as sociedades de economia mista e empresas públicas motivarem os atos de dispensa de seus empregados: EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS – ECT. DEMISSÃO IMOTIVADA DE SEUS EMPREGA- DOS. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DA DISPENSA. RE PARCIALEMENTE PROVIDO. I – Os empregados públicos não fazem jus à estabilidade prevista no art. 41 da CF, salvo aqueles admitidos em período anterior ao advento da EC n. 19/1998. Precedentes. II – Em atenção, no entanto, aos princípios da impessoalidade e isonomia, que regem a admissão por concurso público, a dispensa do empregado de empresas públicas e sociedades de economia mista que prestam serviços públicos deve ser motivada, assegurando-se, assim, que tais princípios, observados no momento daquela admissão, sejam também respeitados por ocasião da dispensa. III – A motivação do ato de dispensa, assim, visa a resguardar o empregado de uma possível (1245) “1. Esta Corte orientou-se no sentido de que as disposições constitucionais que regem os atos administrativos não podem ser invo- cadas para estender aos funcionários de sociedade de economia mista, que seguem a Consolidação das Leis do Trabalho, uma estabilidade aplicável somente aos servidores públicos, estes sim submetidos a uma relação de direito administrativo. 2. A aplicação das normas de dispensa trabalhista aos empregados de pessoas jurídicas de direito privado está em consonância com o disposto no § 1º do art. 173 da Lei n. Maior, sem ofensa ao art. 37, caput e II, da Carta Federal. 3. Agravo regimental improvido” (STF, AI 507326 AgR/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 29/11/2005, DJ 03-02-2006 pp. 00049, Ement. vol. 02219-15 § 02961). (1246) Cf. Meirelles, op. cit., p. 96 e Mello, op. cit., p. 40. (1247) Art. 173 da Constituição – Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I – [...]; II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. 424 – Augusto César Leite de Carvalho quebra do postulado da impessoalidade por parte do agente estatal investido do poder de demitir. IV – Recurso extraordinário parcialmente provido para afastar a aplicação, ao caso, do art. 41 da CF, exigindo-se, entretanto, a motivação para legitimar a rescisão unilateral do contrato de trabalho (STF, Pleno, RE 589998/PI, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJE n. 179 de 12/09/2013). O precedente importa a revisão da jurisprudência e a consagração da tese segundo a qual toda a administração pública, inclusive a indireta, deve respeito aos princípios da moralidade, impessoali- dade e isonomia que se irradiam a partir do artigo 37 da Constituição. Ementa e voto contêm premissa, porém, que a nosso sentir não foi respaldada pela maioria dos ministros julgadores, qual seja, a de a exigência de motivação alcançar somente as sociedades de economia mista e empresas públicas “que prestam serviço público”. Em rigor, os votos que se colheram no âmbito do STF, a partir do voto-vista do Ministro Joaquim Barbosa, abstraíram da distinção entre atividade econômica stricto sensu e a atividade econômica desenvolvida com exclusividade pelo poder público para generalizar a regra de ser exigida a motiva- ção quando a dispensa do empregado é protagonizada por qualquer sociedade de economia mista ou empresa pública(1248). 12.10.3.9 A greve e a resolução contratual A greve não é um ato ilícito e, entre nós, parece inadequado tratá-la como mera faculdade, pois o artigo 9º da Constituição a eleva ao status de direito fundamental, ao preceituar: É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender. §1º. A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiá- veis da comunidade. §2º. Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei. Os servidores públicos civis têm assegurado o direito de greve, vedada somente aos militares. O artigo 37, VII, da Constituição remete, contudo, a regulação da matéria, pertinente à greve dos servi- dores civis, a lei específica, que ainda não foi editada. A inércia do Poder Legislativo provocou, afinal, uma decisão emblemática do Supremo Tribunal Federal(1249) que, em âmbito de mandado de injunção, estabeleceu, como norma de regência da greve dos servidores públicos, com algumas ressalvas que especificou, a Lei n. 7.783/89, ou seja, a lei que disciplina a greve na empresa privada. Mas a greve no serviço público é um fato que se particulariza pois a primeira concepção de greve foi aquela que se associou à interrupção da atividade econômica e, por essa via, do lucro do empresário, como forma de pressão contra situações injustas. Regra geral, a greve significa a ruptura da atividade produtiva, revelando-se, assim, uma manifestação de rebeldia contra a premissa, aparentemente inde- fectível, de ser a mão de obra sempre disponível e farta, carecendo buscar o empresário, apenas, os outros insumos necessários ao desenvolvimento da empresa. A administração pública stricto sensu não desenvolve atividade lucrativa, nem sofre prejuízo econômico quando seus servidores deflagram greve. De toda sorte, a paralisação da prestação laboral, como movimento de reivindicação ou resistên- cia coletiva de empregados ou servidores públicos, configura a greve e é necessário que se esclareça se o exercício desse direito fundamental pode, em alguma circunstância, autorizar o empregador, contraditoriamente, a despedir por justa causa o empregado que o exerce. Em rigor, a categorização como direito fundamental faria da greve um direito cujo exercício imunizaria o trabalhador inclusive quanto à possibilidade de ele ser dispensado sem justa causa. Para não permitir que a dependência econômica do trabalhador se converta em estado de pura resignação, o que conspiraria em favor da barbárie no mundo do trabalho, a greve protege o sistema econômico dos excessos acaso cometidos pelo empresariado, investido em poder social. Nessa medida, justifica-se um dispositivo constitucional que, como visto, tutela um ato coletivo de subversão em razão de ser ele, em síntese, um ato de violência legitimado, avesso embora à ordem (1248) É o que se extrai à leitura dos votos dos eminentes ministros, disponíveis em: file:///C:/Users/tst.HP_ULTRA_W7/Downloads/ texto_169674101.pdf. Acesso em: 16/11/2015. (1249) STF, MI 670/ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Mauricio Corrêa, Relator para Acórdão:  Min. Gilmar Mendes, Julgamento:  25/10/2007. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 425 preestabelecida. O caput do artigo 9o da Constituição está, em sua literalidade, a permitir, num primeiro plano e sem peias, que os trabalhadores decidam a hora e o motivo da greve. Os §§1o e 2o do mesmo artigo 9o ressalvam, contudo, a possibilidade de norma infraconstitucional estabelecer limites ao exercício do direito de greve, admitindo os citados preceitos, nessa linha, que a ação coletiva deverá preservar o atendimento a necessidades inadiáveis da comunidade e, se abusiva, será alvo de repressão estatal, igualmente legitimada. Não obstante a mencionada característica da greve – a de ser uma resistência coletiva aos desa- linhos ou iniquidades da ordem econômica, quase sempre com aparência de legitimidade e aptidão, por isso, para incorporar-se placidamente ao ordenamento jurídico –, era esperado que a inserção da greve no universo do Direito ocorresse à custa de alguma limitação dos atos de paredismo. Se é um direito, sendo inclusive direito fundamental, a greve passa a conviver com outros direitos e garantias fundamentais, não se permitindo que o arbítrio dos trabalhadores se realize com o sacrifício de outros interesses, necessidades e direitos individuais ou coletivos. Paga-se um preço por ser direito. A delimitação da greve, consequente de sua juridicização, não se deu, exclusivamente, nos cita- dos parágrafos do artigo 9º da Constituição. A Lei n. 7.783, de 1989, ao divisar um significado para o conceito de greve, reza em seu art. 2º: Para os fins desta lei, considera-se legítimo exercício do direito de greve a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador. Em capítulo posterior deste livro, dedicado ao direito de greve, destrinçaremos as quizilas doutriná- rias e jurisprudenciais a propósito dos limites estabelecidos no conceito legal que assim se firmou. Por ora, importa perceber que a greve deverá ser, segundo a lei, precedida da tentativa de negociação ou possível arbitragem(1250), de autorização em assembleia sindical(1251) e de aviso ao empregador com ante- cedência de quarenta e oito horas ou, cuidando-se de serviços ou atividades essenciais(1252), o aviso ao empregador e usuários deve acontecer setenta e duas horas antes do início da paralisação(1253). Tentando proteger o empregado contra a conduta do empregador que impede o pleno exercício do direito de greve, o artigo 6o, §2o, da Lei n. 7.783, de 1989, veda ao patronato a adoção de meios que visem constranger o trabalhador a comparecer ao trabalho ou frustrem a divulgação do movimento. Com igual objetivo, suspendem-se os contratos de emprego dos grevistas durante a paralisação(1254). Nessa ambiência de proteção jurídica a um direito fundamental, decerto que não se reveste de juridicidade a despedida de um empregado pelo só fato de ele participar do movimento grevista. Logo, teríamos duas situações a considerar: a participação em greve contra a qual inexiste declaração judi- cial de ilegalidade ou abusividade e, de outro lado, a insistência em participar de greve declarada abusiva ou ilegal pelo Poder Judiciário. Quanto à greve não declarada ilícita, o ato patronal de despedir o empregado, durante a greve ou em razão dela, revela-se conduta antijurídica que reclama indenização, quiçá por dano moral(1255), (1250) Artigo 3o da Lei n. 7.783/89. (1251) Artigo 4o da Lei n. 7.783/89. (1252) O artigo 10 da Lei n. 7.783/89 enumera os serviços ou atividades essenciais: tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; assistência médica e hospitalar; distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; funerários; transporte coletivo; captação e tratamento de esgoto e lixo; telecomunicações; guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; processamento de dados ligados a serviços essenciais; controle de tráfego aéreo e compensação bancária. (1253) Artigos 3o, parágrafo único, e 13 da Lei n. 7.783/89. (1254) Artigo 7o da Lei n. 7.783/89. (1255) Sobre a dispensa de empregado que aderiu a greve importar dano moral a ser reparado, é de citar: “EMENTA: AGRAVO DE INSTRU- MENTO EM RECURSO DE REVISTA. EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À GREVE PELA TRABALHADORA. DANOS MORAIS PELA DISPENSA ABUSIVA. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 5º, INCISO II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 10, I, DO ADCT, 186 E 927 DO CC, 818 DA CLT E 333 DO CPC, BEM COMO À SÚMULA 330 DO C. TST. NÃO CARACTERIZAÇÃO. A dignidade é uma qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana. Todo princípio, regra ou instituto que a garanta não pode ser desprezado ou suprimido. Desse princípio maior, emerge um complexo de direitos e liberdades fundamentais que devem ser respeitados pelo Estado e pelos particulares. A greve como direito fundamental ou liberdade constitucional, diretamente vinculada aos Direitos da Pessoa Humana é regida pelos princípios da progressividade e da irreversibilidade. A greve dá concretude ao princípio do valor social do trabalho e a outros consagrados na constituição, como o do meio ambiente sadio e equilibrado, remuneração justa, isonomia de tratamento, direito à saúde e ao lazer, jornada de trabalho razoáveis etc., umbilicalmente relacionados ao superprincípio da Dignidade da Pessoa Humana. De modo que o direito humano e fundamental de greve, assegurado, por tratados e convenções internacionais, mediante seu livre e amplo exercício, permite ao cidadão que labora ter acesso de fato à saúde, lazer, remuneração e trabalho dignos 426 – Augusto César Leite de Carvalho ou mesmo o direito à reintegração no emprego. Se o trabalhador exige apenas as parcelas resilitórias que normalmente decorrem das despedidas sem justa causa, socorre-lhe a Súmula 316 do Supremo Tribunal Federal: “A simples adesão à greve não constitui falta grave”. É fácil perceber, entretanto, que o STF não esclarece, nesse enunciado, se está imunizando, também, o trabalhador que adere a greve declarada ilegal, tema de que trataremos em seguida. Antes, cabe observar que o ato do empregador, quando consiste em dispensar empregado pelo fato de ele participar de greve, afronta não somente o direito fundamental de greve como igualmente vulnera o princípio da não discriminação, porquanto segregue o trabalhador que exerce legitimamente esse direito. Há precedentes, inclusive do TST(1256), nessa direção e assim se decidiu em consonância com a Lei n. 9.029, de 1995, que assegura a reintegração no emprego sempre que a despedida de traba- lhador – seja ele estável ou não – tem o intuito de discriminá-lo. A discriminação pode dirigir-se ao grevista, por sê-lo, ou contra alguns trabalhadores em greve em detrimento de outros. Observa Messias Pereira Donato: Se todos ou grande parte dos trabalhadores participaram ou deram adesão coletiva ao processo de greve e aos procedimentos de sua sustentação, não se manterá na via judicial o ato do empregador que vier a sancionar um ou alguns dos empregados, com perdão ou abstração de outros. Se, no interesse da empresa, não quiser ou não lhe convier punir a todos, em princípio não poderá punir a ninguém.(1257) e um meio ambiente saudável, tornando palpáveis as normas e regras que tratam desses direitos humanos e de outros consagrados como tais os instrumentos de direitos internacionais e nas constituições dos países civilizados. Se os trabalhadores não encontrarem real e efetivo acesso à greve em uma sociedade capitalista, com interesses econômicos e sociais contrapostos – onde a distribuição da riqueza é feita, em regra, em favor de uma minoria que se apropria da riqueza para “distribuí-la” por meio de salário, o mais baixo possível, ou mediante bene- fícios que não afetem significativamente seus ganhos – os demais direitos humanos e fundamentais seriam na prática totalmente negados. É preciso, pois, evitar a penalização da Greve. A greve não é um delito! É um direito fundamental assegurado por tratados e convenções e pela Constituição Federal que, no seu artigo 9º, diz que cabe aos trabalhadores a análise da conveniência e oportunidade de sua deflagração. Não pode ser cerceada pela lei, tampouco pelo Judiciário. O cerceio e penalização do direito de Greve afrontam claramente o Princípio da Vedação do Retrocesso Jurídico e Social no Direito Coletivo também conhecido como irreversibilidade ou não regressividade social, consequência do princípio da progressividade social. No Direito Constitucional brasileiro há expressa previsão acerca da progressividade associada à irreversibilidade ou à proibição da regressão no tocante aos direitos sociais fundamentais do trabalhador. Com efeito, o art. 7º, caput, dispõe que são direitos dos trabalhadores, além todo o elenco apontado em seus incisos, quaisquer outros que possam ser acrescidos por atos normativos ou negociais que impliquem na melhoria das condições do trabalhador. Infelizmente ainda presenciamos atos e proce- dimentos antigreve, traduzidos em discriminação, punição ou despedida de dirigentes e ativistas sindicais ou, mais grave ainda, daqueles que simplesmente participaram de movimentos grevistas. Conforme bem narrado pelo E. Regional: O direito de greve é garantido em nível constitucional. Dispõe o art. 9º da Constituição Federal da seguinte forma: “Art. 9º É assegurado o direito de greve, competindo aos traba- lhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.” O contexto probatório eviden- cia que a reclamada efetivamente praticou conduta antissindical, ao despedir a reclamante e outros empregados logo após o movimento paredista promovido por um número considerável de seus empregados, os quais estavam assistidos pelo sindicato da categoria profissional. A dispensa discriminatória da trabalhadora em virtude de sua adesão ao movimento paredista é circunstância apta a ensejar abalo de ordem moral, pois tencionou frustrar direito fundamental consagrado na CF/88, cujo exercício é forte instrumento de melhoria da condição social dos trabalhadores. Se o Regional de origem, sopesando as provas apresentadas pelas partes, concluiu da forma que fundamentou, é incabí- vel qualquer modificação da decisão recorrida em função das alegações feitas pelo agravante em seu recurso de revista, pois, não havendo registro fático das referidas alegações, é necessário revolver fatos e provas, o que não é possível nesta sede recursal. Assim, não estando demonstrada qualquer hipótese que autorize o processamento do recurso de revista, mantém-se a decisão agravada por seus próprios funda- mentos, adicionando-se os ora exarados, pois visa ao processamento de recurso de revista que não preenche os pressupostos intrínsecos de cabimento previstos no artigo 896, da CLT. Agravo de instrumento desprovido” (TST, 2ª Turma, AIRR 1015-75.2013.5.04.0304, Relator Desembargador Convocado Cláudio Armando Couce de Menezes, DEJT 27/11/2015). (1256) AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA – DISPENSA DISCRIMINATÓRIA – REINTEGRAÇÃO – MATÉ- RIA FÁTICA. A Turma regional foi taxativa ao afirmar, com base no acervo fático-probatório dos autos, notadamente testemunhal, que a conduta empresarial, ao dispensar o autor, teve intuito discriminatório. Dessa forma, para se modificar o julgado, na forma como pleiteado pela reclamada, necessário o revolvimento dos fatos e das provas, o que é vedado pela Súmula n. 126 do TST. Agravo de instrumento despro- vido (TST, 1ª Turma, AIRR 540-54.2009.5.23.0006, Relator Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT 17/06/2011) (1257) Op. cit. p. 587. Em igual sentido: RECURSO DE REVISTA. ADESÃO À GREVE. RESCISÃO DO CONTRATO DE TRABALHO POR JUSTA CAUSA. IMPOSSIBILIDADE. O movimento paredista é o grande mecanismo viabilizador da efetiva aproximação de poderes, de igualização entre trabalhadores coletivamente considerados e empregador. É mecanismo que potencialmente estabelece equivalência entre os contratantes coletivos, pois concentra o grande momento em que os poderes empresariais são, de fato, postos em questão. O insti- tuto da greve, ao ser incorporado pela ordem jurídica como um direito, acaba por encontrar nela suas próprias potencialidades e limitações e, entre as potencialidades, está a proteção de dispensa por parte do empregador dos trabalhadores paredistas, estando o contrato de traba- lho suspenso, juridicamente (art. 7º da Lei n. 7.783/89). Extrai-se do acórdão Regional que mais de duzentos trabalhadores continuaram em greve após tratativas do sindicato em cessar a paralização. A Reclamada dispensou esses empregados, por justa causa, sob o entendimento de que teriam praticado ato de insubordinação. Contudo, reviu a despedida por justa causa em relação a alguns trabalhadores que, assim como o Reclamante, não acataram o retorno ao trabalho após a reunião das lideranças. O Regional, reformando a decisão de primeiro grau, Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 427 O tema mais instigante, a atrair debates acalorados, é aquele concernente à possibilidade de o empregador despedir por justa causa o empregado que continuar participando de movimento grevista após o Poder Judiciário afirmar a ilicitude da greve. O Tribunal Superior do Trabalho teve oportunidade de decidir que mesmo a participação em greve ilegal ou abusiva não autoriza a dispensa por justa causa, salvo em decorrência de ato faltoso individual. Não se tolera, por exemplo, o ato de sabotagem ou violência, moral ou física, contra a pessoa ou o patrimônio do empregador ou de outros emprega- dos, a pretexto da greve. As ementas seguintes são elucidativas de como o TST se tem posicionado, historicamente, sobre a matéria: JUSTA CAUSA – PARTICIPAÇÃO EM PARALISAÇÃO EM DESACORDO COM A LEI N. 7.783/89. A greve é um direito consagrado no texto constitucional, sendo facultado aos trabalhadores decidir obre a oportunidade de desempenhá-lo. A simples adesão ao movimento paredista não constitui falta grave, porquanto somente atos de violência desencadeados por força desta paralisação conduzem ao reconhecimento da justa causa (TST, 1a Turma, RR 546287/99, Red. des. Min. Ronaldo José Lopes Leal, DJ 24/03/2000, p. 76). RECURSO DE REVISTA – ADESÃO À GREVE – INEXISTÊNCIA DE FALTA GRAVE – RESCISÃO POR JUSTA CAUSA – IMPOSSIBILIDADE 1. A garantia constitucional (art. 9º) de que compete aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de recorrer ao direito de greve e os interesses a serem defendidos por meio dele leva a duas conclusões: (i) o exercício do direito não tem sua validade e constitucionalidade condicionadas à procedên- cia ou não das reivindicações; (ii) o eventual descumprimento das formalidades legais, embora possa caracte- rizar -abuso- para os estritos fins da Lei n. 7.783/89, não converte a participação na greve em falta grave. 2. O Supremo Tribunal Federal, há muito tempo, consagrou o entendimento de que -a simples adesão à greve não constitui falta grave- (Súmula n. 316). 3. A Corte de origem, ao declarar a justa causa para a rescisão contratual, diante da participação do Reclamante em movimento paredista, violou a previsão constitucional (art. 9º da Carta de 1988) e legal (art. 1º da Lei n. 7.783/89) do direito de greve. Recurso de Revista conhecido e provido (TST, 8ª Turma, RR 124500-08.2008.5.24.0086, Relatora Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Data de Julgamento: 22/09/2010, DEJT 24/09/2010) RECURSO DE REVISTA. 1. JUSTA CAUSA. NÃO CONFIGURAÇÃO. MATÉRIA FÁTICA. PARTICIPAÇÃO EM GREVE, AUSÊNCIA DE PROVA DE QUE O OBREIRO TENHA ADOTADO COMPORTAMENTO ABUSIVO NO DECURSO DO MOVIMENTO PAREDISTA QUE AUTORIZASSE A RUPTURA CONTRATUAL POR JUSTA CAUSA. SÚMULA 126/TST. 2. REVERSÃO DA JUSTA CAUSA EM JUÍZO. MULTA DO ART. 477 DA CLT DEVIDA. 3. MULTA POR EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PROTELATÓRIOS. Não merece reforma o acórdão recorrido, tendo em vista que, de seu detido cotejo com as razões de recurso, conclui-se não haver a demonstração de jurisprudência dissonante específica sobre o tema, de interpretação divergente de normas regulamentares ou de violação direta de dispositivo de lei federal ou da Constituição da República, nos moldes das alíneas -a-, -b- e -c- do art. 896 da CLT. Recurso de revista não conhecido (TST, 3ª Turma, RR 1163-74.2012.5.06.0172, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, Data de Julgamento: 26/11/2014, DEJT 28/11/2014) Percebe-se que, nesses julgamentos, o TST solucionou o hard case que envolve a validade, ou não, da despedida de empregado motivada pela circunstância de ele continuar em estado de greve após a Justiça do Trabalho decidir pela abusividade do movimento grevista e ordenar o retorno ao trabalho. Não há dúvida de que se esteja então a transcender a imunidade contra a despedida sem justa causa, que o art. 7º da Lei n. 7.783/89 assegura com vistas a proteger o trabalhador que participa de movimento grevista encetado nos limites da juridicidade. A nosso ver, o que justifica a atitude prudente, mas com viés progressista, do Poder Judiciário, nesses tormentosos casos, é a compreensão de que a greve pressupõe uma deliberação coletiva e é exercida coletivamente – ou não há greve. A índole coletiva da greve se preservaria mesmo na hipó- tese de a greve resvalar, por questões formais, para a ilicitude. É evidente que a greve e sua manutenção, mesmo depois de ser declarada a sua abusividade pela Justiça do Trabalho, são assuntos de deliberação em assembleia sindical, desenvolvendo-se um processo comunicativo em que os trabalhadores, titulares de interesses contramajoritários, rendem-se à vontade da maioria. A experiência permite constatar como pode ser odiosa a retaliação contra os líderes(1258) – que se expõem ao desagrado do empregador, sob o manto constitucional da estabilidade, imputou ao Reclamante a justa causa por insubordinação. Essa decisão, além de violação ao direito de greve assegurado pelo art. 9º da CF, afronta o princípio da isonomia, porquanto deu tratamento diferenciado a empregados em idêntica situação (art. 5º, caput, CF). Recurso de revista provido (TST, 6ª Turma, RR 121300-90.2008.5.24.0086, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, DEJT 11/05/2012). Em sentido contrário: TST, 5a Turma, RR 378487/97, Rel. Min. Rider Nogueira de Brito, j. 14/02/01, DJ 16/03/01, p. 870. (1258) Messias Pereira Donato (DONATO, Messias Pereira. Direito de greve e seu exercício: efeitos sobre o contrato individual de trabalho. Coordenação de Gustavo Adolpho Vogel Neto. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 588) transcreve ementa de julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, em sentido contrário ao do texto: “Só devem ser punidos os grevistas que tiveram atuação de chefia, e não aqueles que não tiveram essa atuação ou papel saliente no movimento” (STF, RE Bem n. 40733/61, Rel. Min. Gonçalves de Oliveira). 428 – Augusto César Leite de Carvalho na defesa de interesses sempre metaindividuais – ou contra os liderados, que o são pela razão singela de se sujeitarem ao princípio democrático do respeito à vontade majoritária. Logo, o empregador que despedir o empregado após a Justiça do Trabalho afirmar a ilegalidade ou abusividade do movimento coletivo encontrar-se-á em duas situações, a depender de dispensá-lo sem justa causa ou por justa causa. Se o dispensar sem justa causa, correrá o risco de ter contra si uma ação judicial visando à reintegração ou à reparação por dano moral caso o motivo oculto da dispensa se revele o propósito de discriminar a adesão do trabalhador ao movimento grevista. Se for outro o motivo (oculto ou declarado) da dispensa – a exemplo da necessidade de resgatar a normali- dade da atividade produtiva eventualmente perturbada pela paralisação ilícita do trabalho –, a preten- são reintegratória ou reparatória provavelmente não será exitosa. O mais relevante é que a participação em greve ilícita não seria razão para despedir o empregado por justa causa. A configuração de justa causa não seria uma mera decorrência da decisão judicial que consagrasse a ilicitude da greve, a surpreender todos os trabalhadores que teriam acreditado na regularidade da mal engendrada ação sindical e agora estariam sob a contingência, por isso apenas, de perder seus postos de trabalho, em prejuízo de sua subsistência e de sua família. Tema correlato à proibição da dispensa de trabalhadores que aderirem à greve é, enfim, a proi- bição de novos contratos e de resilições contratuais nos dias por que durar o seu exercício(1259), salvo em duas situações: a) no caso de o sindicato ou a comissão de negociação(1260) não acordarem com o empregador sobre a manutenção de uma equipe de empregados que deverá atuar, durante a greve, visando assegurar os serviços cuja interrupção resulte em prejuízo irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a manutenção dos serviços essenciais à retomada das atividades da empresa; b) em caso de abuso, que o artigo 14 da Lei n. 7.783/89 diz ser o ato infringente de qualquer de seus preceitos ou a continuação da greve depois de ser celebrado acordo ou convenção coletiva de trabalho, ou após a decisão da Justiça do Trabalho. Malgrado a dubiedade do preceito legal, parece-nos que as duas situações permitem a contratação de novos empregados, mas só a última delas estaria a ensejar, também, o debate acerca da possibilidade, faz pouco por nós enfrentada, de o empregador despedir trabalhadores. A opção do legislador por moldar a greve como um direito individual está refletida em alguns dispositivos da Lei n. 7.783, de 1989, mas com relevo naqueles em que é proscrita a manifestação ou o ato de persuasão utilizados, pelos grevistas, para obstar o acesso ao trabalho dos empregados que não queiram aderir ao movimento (artigo 6o, §3o) e no parágrafo, mencionado linhas atrás, que traria a reflexão sobre a possível autorização para a dispensa de empregados. Voltaremos ao tema em capítulo próprio, dedicado sobretudo à compreensão da greve como direito fundamental. 12.10.4 Rescisão do contrato de emprego Autores de escol se renderam à terminologia adotada, com técnica duvidosa, pelo legislador e, assim, passaram a usar como sinônimas as palavras resilição e rescisão. Os dicionários não distin- guem um e outro termo, sendo feita a distinção, conforme antevisto, pela linguagem jurídica e, desde 2002, pelo Código Civil brasileiro. Para a teoria jurídica dos contratos, a rescisão se dá nas hipóteses em que o contrato é dissolvido por força de nulidade, que é a sanção consistente em negar efeito a negócio jurídico, por faltar a este um ou mais de seus elementos constitutivos. Em outra passagem de nosso curso, enumeramos os elementos essenciais e acidentais do contrato de emprego, enfatizando quais os efeitos da nulidade contratual em cada um dos casos. Regra geral, a prestação de trabalho já ocorrida, ou o tempo à disposição do empregador, devem corresponder a uma contraprestação salarial, mesmo se rescindido o contrato em razão de nulidade, (1259) Artigo 7o, parágrafo único, da Lei n. 7.783/89. (1260) Segundo o artigo 4o, §2o, da Lei n. 7.783/89, a comissão de negociação é formada pelos trabalhadores quando não há sindicato que os represente. É bom observar que a convenção ou o acordo coletivo que puserem fecho a essa negociação deverão ser firmados por federação ou confederação, nesse caso (artigo 611, §2o, da CLT). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 429 dada a impossibilidade de se restituir ao empregado a energia de trabalho que disponibilizou e porven- tura despendeu. Em última análise, a prestação que onera o trabalhador é a disponibilidade de sua força de trabalho e, se tal houve, impossível é devolvê-la. Quanto à ausência de capacidade trabalhista, vimos que o empregado recebe salário e comple- mentos salariais, inclusive o salário diferido (férias, 13o salário, FGTS etc.), nos casos em que a nuli- dade contratual atende a preceito de lei que protege os interesses do próprio empregado. Não se pode, por exemplo, negar ao empregado menor, por sê-lo e assim ter o seu contrato rescindido, as parcelas resolutórias a que teria direito se dissolvido o seu contrato sem o vício da menoridade. Se o objeto da relação jurídica é ilícito e, por isso, sobrevém a rescisão contratual, o empre- gado tem direito ao salário e aos complementos salariais se contribuiu indiretamente, mas com o seu trabalho (voltado a uma parte lícita da atividade econômica), para viabilizar a atividade delituosa do empregador. É o caso do balconista de loja de equipamentos de segurança que disfarça o comércio de armamento proibido, sem que o trabalhador faça, ele próprio, a mercancia das armas. Ocorrendo de o trabalhador praticar o comércio de tal mercadoria, não obstante conheça o caráter ilícito desse seu ato, o contrato deve ser rescindido sem que se assegure ao trabalhador direito algum. Não é possível estimar a remuneração do ato criminoso. Há pelo menos um caso em que a nulidade do contrato de emprego é prevista em razão de inob- servância de forma. Como visto, trata-se da hipótese de contratação, por ente estatal ou paraestatal, sem o prévio concurso público. A Súmula 363 do TST recomenda: “A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS”. A parte final da Súmula 363 do TST acresce aos efeitos da nulidade o FGTS (sem o acréscimo de 40%) porque o legislador infraconstitucional aditou à Lei n. 8.036, de 1990, o artigo 19-A, que prescreve: É devido o depósito do FGTS na conta vinculada do trabalhador cujo contrato de trabalho seja declarado nulo nas hipóteses previstas no art. 37, §2º, da Constituição Federal, quando mantido o direito ao salário. Houve um primeiro momento no qual se debateu a constitucionalidade desse dispositivo, sobre- tudo quanto à possibilidade de se aplicar tal regra aos contratos anteriores ao acréscimo legal. Mas o TST dirimiu o dilema ao editar a orientação jurisprudencial 362 de sua SBDI-1 com o seguinte teor: “Não afronta o princípio da irretroatividade da lei a aplicação do art. 19-A da Lei n. 8.036, de 11.05.1990, aos contratos declarados nulos celebrados antes da vigência da Medida Provisória n. 2.164-41, de 24.08.2001”. E essa orientação foi endossada pelo STF em agosto de 2014, no julgamento, com reper- cussão geral, do RE 705140. De todo modo, a não ser que o agente do direito do trabalho atribua ao FGTS outra natureza, afora a de salário diferido, mesmo após a Constituição o ter assegurado(1261) como direito social do traba- lhador – qualquer que seja o modo de dissolução do contrato –, a pergunta será sempre inevitável: se o FGTS, como salário diferido, é direito do trabalhador irregularmente contratado pelo Estado, qual a razão de outros complementos salariais não o serem? Talvez o interesse transcendente que é atendido pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, destinado a programas sociais. Talvez a falta de sintonia entre as instâncias decisórias, judiciária e legislativa. 12.10.5 Caducidade do contrato de emprego A caducidade do contrato é, como ensina Rodrigues Pinto(1262), a extinção desse contrato por esgo- tamento de suas funções, no mundo jurídico. A bem ver, há fatos, como a morte ou a força maior, que fazem o contrato perder forças e então o resolvem(1263). A modalidade sob análise seria, portanto, uma espécie de resolução do contrato. Ainda assim, preferimos classificar à parte a caducidade do contrato, dada a dessemelhança de efeitos jurídicos entre esta e os demais casos de resolução contratual. (1261) A Constituição manteve, apenas, a restrição ao saque imediato, nas hipóteses de cessação do contrato que se dá mediante a dispensa por justa causa. Ainda nesse caso, o empregado mantém o saldo em conta vinculada. (1262) Op. cit. p. 463. (1263) Cf. MARANHÃO, Délio. Direito do trabalho. p. 233. 430 – Augusto César Leite de Carvalho A) Morte do empregado O falecimento do empregado faz cessar o contrato porque a prestação laboral é intuitu personae. A pessoalidade é uma característica dos atos de emprego. Quando morre o empregado, os seus direi- tos trabalhistas não precisam ser arrecadados em processo de inventário, para posterior distribuição entre os seus sucessores. O artigo 1o da Lei n. 6.858, de 1980, contém o seguinte preceito: Os valores devidos pelos empregadores aos empregados e os montantes das contas individuais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participação PIS-PASEP, não recebidos em vida pelos respectivos titulares, serão pagos, em cotas iguais, aos dependentes habilitados perante a Previdência Social ou na forma da legislação específica dos servidores civis e militares, e, na sua falta, aos sucessores previstos na lei civil, indicados em alvará judicial, independentemente de inventário ou arrolamento. Bem se vê que a necessidade de alvará judicial(1264) somente existe quando faltam dependentes habilitados perante a Previdência Social ou na forma da legislação específica dos servidores públicos, podendo o empregador pagar diretamente aos citados dependentes, se há eles. O artigo 38 da Lei n. 8.036, de 1990, tratando especificamente do saque do FGTS deixado pelo empregado, que veio a falecer, é ainda mais explícito ao prescrever que “o saldo da conta vinculada do trabalhador que vier a falecer será pago a seu dependente, para esse fim habilitado perante a Previdência Social, indepen- dentemente de autorização judicial”. Mas tanto a Lei n. 6.858, de 1980, quanto a Lei n. 8.036, de 1990, acrescentam aos artigos citados um parágrafo primeiro que ressalva as cotas atribuídas a menores, prevendo que estas devem perma- necer depositadas em caderneta de poupança e, salvo autorização judicial, não podem ser levantadas antes de os tais menores completarem dezoito anos. Sobre as parcelas resolutórias que são devidas, nesse e em outros casos de caducidade do contrato de emprego, cabe examinar o subitem específico, logo adiante. B) Aposentadoria do empregado Em se cuidando dos efeitos da aposentadoria na relação de emprego, interessa tratar das aposen- tadorias compulsória, espontânea e por invalidez. Sobre a aposentadoria por invalidez, recomendava a Súmula n. 217 do Supremo Tribunal Federal: “Tem direito de retornar ao emprego ou ser indenizado em caso de recusa do empregador o aposen- tado que recupera a capacidade de trabalho dentro de 5 (cinco) anos, a contar da aposentadoria, que se torna definitiva após esse prazo”. Sobreveio, porém, a Lei n. 8.213/91 que preserva a aposentadoria mesmo após os cinco primeiros anos de afastamento e a faz cessar, definitivamente, dezoito meses depois (art. 47, II). Em princípio, a aposentadoria por invalidez, mesmo quando se protrai por mais de cinco anos, não é mais causa de resolução do vínculo empregatício. A aposentadoria compulsória, que é aquela requerida pelo empregador quando o empregado do sexo masculino completa setenta anos, ou sessenta e cinco anos se mulher, faz cessar o contrato de emprego, sendo devidas as mesmas indenizações previstas em favor do empregado dispensado sem justa causa (artigo 51 da Lei n. 8.213, de 1991). Sobre a tese de que a aposentadoria espontânea – requerida pelo empregado que completa o tempo de contribuição ou a idade exigidos no artigo 201, §7o, da CLT – também resolve o contrato, adiantamos que o Tribunal Superior do Trabalho já entendeu assim, mas se fez atento a iterativas decisões do Supremo Tribunal Federal para editar enfim a Orientação Jurisprudencial n. 361 da SBDI- 1: “A aposentadoria espontânea não é causa de extinção do contrato de trabalho se o empregado permanece prestando serviços ao empregador após a jubilação. Assim, por ocasião da sua dispensa imotivada, o empregado tem direito à multa de 40% do FGTS sobre a totalidade dos depósitos efetua- dos no curso do pacto laboral”. A questão, relativa à aposentadoria espontânea fazer cessar o contrato, é normalmente enfren- tada à luz do artigo 453 da CLT e do artigo 49 da Lei n. 8.213/91. O primeiro inciso deste último reza que a aposentadoria por idade será deferida “ao segurado empregado, inclusive o doméstico, a partir: a) da data do desligamento do emprego, quando requerida até essa data ou até 90 (noventa) dias (1264) Ao que sempre nos pareceu, o juízo cível – o mesmo que decide outras questões relativas à sucessão do empregado falecido, haja ou não inventário – é competente para mandar expedir o alvará, salvo se houver litígio trabalhista, a exemplo do que acontece se o empregador se nega a pagar as parcelas resultantes do contrato de trabalho. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 431 depois dela; ou, b) da data do requerimento, quando não houver desligamento do emprego ou quando for requerida após o prazo previsto na alínea a”. E se a lei previdenciária autoriza a opção de o empregado desligar-se (alínea a) ou não se desli- gar do emprego (alínea b), é evidente que a aposentadoria importa a extinção do vínculo de emprego somente se o empregado o quiser(1265). É bom notar que a questão toca bem de perto assunto de política legislativa, sendo certo que houve valores sociais em conflito a serem sopesados pelo legislador – a este, coube a alternativa de privilegiar o interesse do trabalhador mais velho que o mercado não mais quer ou, em vez disso, prestigiar o incremento dos níveis de emprego que resulta da substituição de inativos pelos jovens que precisam ingressar no mercado de trabalho. Estudos de direito comparado têm revelado que o legislador, em países diferentes, opta por um ou outro valor, ora premiando o trabalhador no ocaso da vida laboral, ora optando por alargar a expec- tativa de trabalho para a população jovem. Isso levou Arion Sayão Romita, citado por Rodrigues Pinto, a concluir que a aposentadoria “extingue o contrato de trabalho se a lei dispuser nesse sentido. Caso contrário, não”. A lei, que está em vigor no Brasil, assegurou ao empregado o direito de decidir pela extinção do contrato ao aposentar-se. No cotidiano forense, percebemos, inclusive, que o empregador é informado, pelo instituto previ- denciário, sobre a concessão da aposentadoria requerida pelo seu empregado, vários meses – às vezes mais de um ano – depois de essa aposentadoria ser deferida. Isso deixou de ser um problema quando se consolidou o entendimento de que a aposentadoria espontânea não resolve o contrato de emprego. C) Morte do empregador Não é intuitu personae a participação do empregador na relação de emprego. Ao revés, ele costuma se apresentar difusamente em meio ao vínculo e pode se fazer suceder sem o prévio conhe- cimento, menos ainda a anuência, do empregado. Tudo isso está visto. Existe, contudo, uma exceção a essa regra. É que o empregador, quando é ele pessoa física, estabelece com o empregado, normalmente, uma relação mais próxima, que é pessoal na ordem dos fatos, embora não o seja para efeitos jurídicos. Por isso, o artigo 483, § 2º, da CLT, estatui: “No caso de morte do empregador constituído em empresa individual, é facultado ao empregado rescindir o contrato de trabalho”. Mas a permissão outorgada por citado dispositivo não garante ao empregado, que optar pela resolução do contrato em razão da morte de seu empregador, qualquer indenização. Alguns autores radicalizam, ao entenderem que a norma está autorizando o empregado a se demitir, pura e simples- mente(1266). O entendimento implica, com venia, a neutralização dos efeitos da norma jurídica, pois não havia necessidade de norma específica para que o empregado pudesse, em tais circunstâncias, demitir-se. Valentin Carrion(1267) anota, porém, que a interpretação no sentido de que o artigo 483, §2º, da CLT permite ao empregado demitir-se tem consequência importante: a indenização por ruptura antecipada de contrato a termo, que seria indevida nessa hipótese. Ao que inferimos, a morte do empregador (pessoa física) autoriza a dissolução do contrato, mas não assegura indenização em favor do empregado. Não se dá, todavia, resilição, mas sim fato reso- lutivo, condicionada essa resolução do contrato à vontade do trabalhador. As consequências práticas dessa distinção aparecem quando se cogita de parcelas que são devidas, em princípio, apenas na resilição contratual, a exemplo do aviso-prévio (a se entender que a morte do empregador pessoa física resolve o contrato, inexiste a obrigação – que o empregado demissionário teria – de conceder aviso-prévio). A distinção entre pedido de demissão e resolução contratual deveria ser útil também no tocante a direitos que são simplesmente vedados ao empregado demissionário, mas que seriam compatíveis com os casos de resolução contratual, como o direito de sacar o FGTS (a resolução contratual pode- ria autorizar o saque, mas o empregado que pede demissão não tem o direito de obter a liberação (1265) Cf. PINTO, José Augusto Rodrigues. O direito do trabalho e as questões do nosso tempo. São Paulo: LTr, 1998. p. 95-96. (1266) Cf. MARTINS, Sergio Pinto. Comentários à CLT. São Paulo : Atlas, 2001. p. 493. (1267) Op. cit. p. 367. 432 – Augusto César Leite de Carvalho do FGTS). É certo, porém, que o artigo 20, II, da Lei n. 8.036, de 1990, dá direito ao saque do FGTS quando há a morte do empregador individual se esse falecimento implicar a “rescisão de contrato” e a Circular n. 166, de 1999, da Caixa Econômica Federal, exige, ao regular o saque pelo código 03, que o empregado apresente, entre outros documentos, declaração escrita do empregador “confirmando a rescisão do contrato em consequência de supressão de parte de suas atividades”. Logo, não há direito ao saque do FGTS quando o empregador individual morre, mas a sua atividade econômica continua sendo desenvolvida pelos seus sucessores. Outras verbas da dissolução contratual são previstas em normas que as vinculam ao tempo de serviço (férias adquiridas, por exemplo), à dispensa sem justa causa (indenização de valor equivalente a 40% do FGTS) ou à inocorrência de justa causa (férias e 13o salário proporcionais), não tendo rele- vância o fato de se configurar a resolução contratual ou a resilição por iniciativa do empregado quando o empregador pessoa física falece. Dúvidas não restam, entretanto, de que ao empregado são devidas todas as prestações que o seriam numa dispensa sem justa causa, sempre que o falecimento do empregador, pessoa física, implique a cessação da atividade econômica. É o que regula o artigo 485 da Consolidação das Leis do Trabalho. D) Força maior que determina a extinção da empresa O Código Civil(1268) equipara os efeitos do caso fortuito e da força maior. A Consolidação das Leis do Trabalho silenciou sobre o caso fortuito e definiu a força maior de modo a incluí-lo nessa definição(1269). A força maior é definida pelo artigo 501 da CLT como o “acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente”. Os dois parágrafos desse mesmo artigo esclarecem que a imprevidência do empregador é causa exclu- dente da razão de força maior (§1o) e que o motivo de força maior não tem relevância, para efeitos trabalhistas, quando não afeta, substancialmente, a situação econômica e financeira da empresa (§2o). Prescreve o dispositivo seguinte, o artigo 502 da CLT, que serão devidas por metade as indeni- zações devidas nos casos em que o motivo de força maior impuser a extinção da empresa. Os seus incisos fazem menção à indenização de antiguidade(1270) e à indenização devida pelo empregador em hipótese de ruptura antecipada de contrato a termo (a indenização prevista no artigo 479 da CLT). Os pressupostos da força maior, tal como compreendida a partir dos mencionados artigos da Consolidação das Leis do Trabalho, são: • acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador. • acontecimento para o qual não concorreu o empregador, direta ou indiretamente (incluída a sua imprevidência). • acontecimento que afete, substancialmente, a situação econômica e financeira da empresa. • acontecimento que provoque a extinção da empresa (exclui-se, portanto, a extinção de setor da empresa; mas a extinção de estabelecimento pode ser resultante de força maior(1271)). Inocorre força maior, assim, quando o empregador enfrenta dificuldades financeiras por má gestão empresarial ou em razão de crise econômica no País, pois não se está a cuidar de válvula de escape para a atividade de risco. Ao empregado descabe assumir riscos da atividade patronal. Também a greve e a falência, como a recuperação judicial ou mesmo a liquidação extrajudicial são fatos que, embora anormais, não derivam de força maior, no âmbito trabalhista, pois são inerentes ao exercício da atividade empresarial e a lei estabelece, em normas especiais, os efeitos de cada qual na relação de emprego. (1268) Artigo 393 do Código Civil: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.” (1269) Cf. Mozart Victor Russomano, apud OLIVEIRA, José César de. Factum principis, força maior e temas correlatos. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. Vol. 2. São Paulo: LTr, 1993. p. 497. (1270) Que sabemos ser devida, residualmente, apenas aos poucos empregados que não optaram pelo regime do FGTS antes de ser promul- gada a Constituição de 1988 e continuam trabalhando. (1271) Op. cit. p. 394. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 433 E) Factum principis O factum principis, ou fato do príncipe, é uma variação da força maior, designando uma ordem ou proibição de autoridade pública que frustra a execução do contrato(1272) – interessa-nos, particularmente, o contrato de emprego. Porque encerra uma modalidade de força maior, o factum principis exige a impre- visibilidade e a irresistibilidade, no tocante ao empregador. Vale dizer: não há fato do príncipe se o ato da autoridade pública consiste em revogação de ato administrativo de concessão ou autorização, pois é previsível a ação revogatória. Também não há fato do príncipe se a determinação estatal foi motivada pelos reflexos na sociedade da inadimplência do empregador e busca restabelecer o equilíbrio das relações sociais, de resto ameaçado pela imprevi- dência de tal empregador. São raros, portanto, os casos de intervenção estatal que não derivem da má gestão empresarial ou não possam ser associados ao risco da atividade econômica, o que levou Valentin Carrion(1273) a comentar: O instituto (o factum principis) se esvaziou no decorrer do tempo, se é que já não nasceu morto; a prática revela dois aspectos: se o ato da autoridade é motivado por comporta- mento ilícito ou irregular da empresa, a culpa e as sanções lhe são atribuídas por inteiro; se seu proceder foi regular, a jurisprudência entende que a cessação da atividade faz parte do risco empresarial e também isenta o poder público do encargo; o temor de longa duração dos processos judiciais contra a Fazenda Pública também responde por essa tendência dos julgados. Ocorrendo o fato do príncipe, o ente estatal é responsabilizado quanto às indenizações decorren- tes da dissolução do contrato. Mas somente as indenizações (artigo 486 da CLT) e, destas, as que têm a intervenção estatal como fato gerador (a exemplo do acréscimo de 40% sobre o FGTS e da indeni- zação do artigo 479 da CLT). Mesmo quando se configura o factum principis, as parcelas salariais (não indenizatórias) continuam devidas pelo empregador e há entendimento, anotado por Valentin Carrion(1274), no sentido de outras parcelas dissolutórias (aviso-prévio, férias e 13o salário proporcionais) serem indevidas, porquanto incompatíveis com a força maior – enquanto fato involuntário e extintivo de obrigação. Relembraremos, porém e mais adiante, que a força maior não interfere no débito de férias e 13o salário proporcionais. Quando o empregador é notificado para se defender em processo judicial e invoca, em sua defesa, o fato do príncipe, cabe à Justiça do Trabalho verificar a pertinência da alegação e, sendo essa a hipó- tese, denuncia a lide(1275) ao ente público cuja ação interventiva fez cessar, supostamente, o contrato de emprego. Em se constatando o factum principis, a indenização porventura devida ao empregado o será pelo ente público, remetendo-se os autos do processo ao juízo federal ou da fazenda pública competente (artigo 486, §3o, da CLT). F) Outros casos de cessação da empresa ou estabelecimento. Falência. Recuperação judi- cial. Liquidação extrajudicial Referimos, aqui, a falência e a recuperação judicial do empresário-empregador para negar que nesses casos há, ou há necessariamente, a cessação dos contratos de emprego. Vamos por partes. O artigo 64 da Lei n. 11.101, de 2005 (Lei n. de Falências), estatui que, durante o procedimento de recuperação judicial, o devedor ou seus administradores serão mantidos na condução da atividade empresarial, sob fiscalização do comitê de credores, se houver, e do administrador judicial. O dispo- sitivo ressalva os casos em que o gestor da empresa é afastado por práticas indevidas ou mesmo ilícitas, mas essa situação excepcional não traria, ao que nos parece, reflexos na seara trabalhista. (1272) Cf. OLIVEIRA, José César de. Op. cit. p. 504. (1273) CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. p. 371. (1274) Op. cit. p. 372. (1275) A CLT prevê que a pessoa jurídica de direito público é chamada à autoria, porque o chamamento à autoria era o antigo nome da denunicação da lide, antes do CPC de 1973. Cf. PINTO, José Augusto Rodrigues de. Processo trabalhista de conhecimento. São Paulo: LTr, 2000. p. 205. 434 – Augusto César Leite de Carvalho Diversamente do que sucedia na concordata (instituto jurídico extinto com o advento da Lei n. 11.101/2005), nos casos de recuperação judicial há a suspensão da prescrição e de todas as ações e execuções contra o devedor(1276), salvo se o crédito correspondente não estiver abrangido pelo plano de recuperação apresentado por este ao juízo(1277). Havendo, contudo, a suspensão do prazo prescri- cional e das ações cognitórias e executivas, o §4º do artigo 6º da Lei n. 11.101, de 2005, é peremptório ao limitar esse tempo de suspensão, verbis: Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, resta- belecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial. Restabelecendo-se o curso da ação judicial em que o empregado postula direitos inerentes ao vínculo de emprego, a Justiça do Trabalho estará apta a acolher todas as pretensões que se podem deduzir numa hipótese de descumprimento da ordem jurídica, inclusive aquelas que seriam decorren- tes da dispensa sem justa causa. O fato de o empregador ter requerido a recuperação judicial de sua empresa não sucede em prejuízo dos direitos sociais. Quanto à falência, convém sempre ter em mente que estamos a tratar de processo judicial que nasceu para atender ao interesse dos empresários – a princípio dos comerciantes e hoje sem qualquer restrição de atividade econômica – que enfrentavam intempéries econômicas ou crises de gestão. O fim maior de tal processo é a extinção das obrigações(1278), mesmo daquelas que seriam honradas parcialmente durante a falência: sucede ao vexatório processo judicial de falência o restabelecimento da capacidade de o empresário malsucedido abrir novo negócio, quando terá virado uma página turbu- lenta de sua vida e a esquecerá, sem remorso com o que se passa na memória de seus antigos credo- res. Se essa é a teleologia da norma, a sua aplicação dependerá de sua afinidade com o valor social do trabalho, que é princípio constitucional. Mas, ainda sobre a falência, consultemos logo as regras da Lei n. 11.101, de 2005. O primeiro dispositivo a ser considerado é o artigo 83, I, que limita a cento e cinquenta salários mínimos por empregado o valor que preferirá a créditos de outra natureza, no momento em que os credores da massa falida recebem os seus haveres. Talvez em pouca sintonia com o que acontece na prática, o artigo 117 da Lei n. 11.101 prevê que os contratos bilaterais, a exemplo do contrato de emprego, não se resolvem pela falência e podem ser, assim, executados pelo administrador judicial. Se ele, o administrador judicial, entender que é conveniente para a massa a resilição dos contratos, será a massa falida onerada em relação a todas as parcelas devidas nas hipóteses de dispensa sem justa causa, mas não se sujeitará ela à sanção do artigo 467 nem à multa do artigo 477, §8º, da CLT – conforme recomenda a Súmula 388 do TST. De toda sorte, a prescrição contra as obrigações do falido se suspende(1279), voltando a correr quando se dá o trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência(1280). Em rigor, essa derradeira situação – a da retomada do prazo prescricional – somente acontecerá nos casos em que o empregado não habilitou o seu crédito no processo de falência, assim sucedendo porque não houve tempo para essa habilitação (o crédito se teria constituído quando o processo já havia iniciado) ou o credor trabalhista não teve conhecimento da quebra do seu empregador(1281). Fora daí, a sentença de encerramento da falência extinguirá a obrigação trabalhista da massa falida (mesmo que ela não tenha sido solvida por inteiro) e então não fará sentido cogitar de prescrição. Sobre a liquidação extrajudicial das sociedades anônimas, prevista na Lei n. 6.024, de 1976, basta notar que ela não acarreta, por igual, a resolução dos contratos de emprego. (1276) Vide arts. 6º e 52, II, da Lei n. 11.101/2005, este último a esclarecer que o processo suspenso continua em poder do juízo trabalhista durante a suspensão. A propósito da concordata, orientava a Súmula 227 do STF: “A concordata do empregador não impede a execução de crédito nem a reclamação de empregado na Justiça do Trabalho”. (1277) Vide art. 71, parágrafo único, da Lei n. 11.101/2005. (1278) Extinguem-se (ou prescrevem) inclusive as obrigações do sócio de responsabilidade ilimitada, a valer o art. 160 da Lei n. 11.101/2005. Os sócios de responsabilidade limitada obterão a pronúncia de prescrição dois anos após o encerramento da falência. (1279) Art. 6º da Lei n. 11.101/2005. (1280) Art. 157 da Lei n. 11.101/2005. (1281) Quanto a não valer a extinção das obrigações em relação aos empregados que não sabiam sobre a decretação de falência, parece-nos ser influente o art. 159, §4º, da Lei n. 11.101, de 2005. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 435 G) A confusão como causa extintiva da obrigação trabalhista O artigo 381 do Código Civil diz extinguir-se a obrigação “desde que na mesma pessoa se confun- dam as qualidades de credor e devedor”. Dá-se, nesse caso, a confusão. Acontece, por vezes (raras), de o empregador ser pessoa física e ter o único filho como seu empregado. O falecimento do primeiro faz do segundo o seu sucessor universal, inclusive no tocante à titularidade da empresa. O exemplo é ilustrativo de como a confusão pode fazer cessar o vínculo de emprego: o filho empregado não pode ser, após a morte do pai, credor dele próprio. Em pequenos negócios, ocorre, também episodicamente, de o empregador ser sucedido, como titular da empresa, pelo seu próprio empregado. É evidente a impossibilidade de se preservar, no caso, o liame empregatício. Mas se o empregado apenas passa a integrar o quadro de sócios da organi- zação patronal, mantendo-se a dependência hierárquica, decerto poderá ele agir contra a sociedade empresária que titulariza a organização produtiva, dela exigindo o cumprimento das obrigações traba- lhistas, pois se distinguem, em princípio, as esferas de responsabilidade das pessoas jurídica e física. 12.10.6 O regime do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço 12.10.6.1 A história e a estrutura do sistema de depósitos O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço nasceu como um sistema alternativo de indenização do tempo de serviço, pois veio substituir a parte do regime da CLT que previa indenização de antigui- dade (artigo 478) e estabilidade após dez anos de emprego na mesma empresa (artigo 492). Era um sistema opcional, podendo o empregado urbano optar por ele ou, não fazendo tal opção, ser regido pela Consolidação das Leis do Trabalho, sem ressalvas. Em 1988, a Constituição (artigo 7o, III) estendeu o FGTS ao trabalhador rural e, no mesmo passo, converteu o FGTS em regime único dos empregados urbanos e rurais. Agindo desse modo, o constituinte também pôs fim ao direito de opção que o trabalhador urbano, em verdade, nunca propriamente exerceu. Como nota Ribeiro de Vilhena(1282), “apesar de a Lei n. 5.107/66 enunciar o ato jurídico de incorporação do empregado em seu quadro através de uma manifestação de vontade chamada ´opção`, como um direito de escolha, a verdade é que quem sempre ´optou` foi o empregador, pois, antes de assinar-se a Carteira de Trabalho ou um contrato, seja de experiência, assina-se o termo de opção”. A prestação laboral do empregado que não optava pelo regime do FGTS não representava, ainda assim, um custo menor para o empregador (que não depositava 8% da remuneração do empregado em conta-vinculada, mas tinha que fazê-lo em conta-individualizada, para estorno posterior). Também por isso, o empregador optava por não ter um empregado que pudesse estar fora do regime do FGTS e assim adquirir estabilidade. A Lei n. 8.036, de 1990, atribuiu a um Conselho Curador, composto por representantes de traba- lhadores e empregadores, órgãos e entidades estatais, o poder de estabelecer normas e diretrizes do FGTS (artigo 3o), cometendo ao Ministério da Ação Social a gestão do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e à Caixa Econômica Federal a responsabilidade de agente operador. 12.10.6.2 Alíquotas e titulares do direito ao FGTS O artigo 15 da Lei n. 8.036, de 1990, obriga os empregadores a depositar em conta vinculada de seus empregados quantia correspondente a 8% da remuneração que lhes paga, reduzindo-se a 2% essa alíquota em se cuidando de empregado aprendiz (artigo 15, §7o). A contribuição é facultativa se incidente sobre as retiradas de diretores não empregados(1283). Quanto aos empregados domésticos, o art. 21 da Lei n. Complementar 150, de 2015, os incluiu finalmente entre os trabalhadores submetidos ao regime do FGTS, superando assim um período (2001 (1282) VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. O novo FGTS. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. Vol. 2. São Paulo: LTr, 1993. p. 580. (1283) Vide Súmula 269 do TST. 436 – Augusto César Leite de Carvalho a 2015) em que o antigo art. 3º-A da Lei n. 5.859, de 1972, facultava ao empregador doméstico requerer a inclusão de seu empregado no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e os empregadores domésti- cos, como era esperado, simplesmente optavam por não os incluir. A LC 150/2015 prevê que o empre- gador deve depositar, em guia única(1284), o valor correspondente a 8% da remuneração do empregado doméstico, acrescido de 3,2% (da mesma remuneração) que terá como destinação o “pagamento da indenização compensatória da perda do emprego, sem justa causa ou por culpa do empregador” (art. 22). Como a desconfiar que o empregador doméstico não pagaria espontaneamente a indenização devida pela dispensa sem justa causa, a lei lhe impõe, como não faz com qualquer outro empregador, o ônus de acrescer ao recolhimento mensal os 40% (40% de 8% = 3,2%) devidos em caso de dispensa de tal ordem, facultando-lhe obter a restituição desse acréscimo nas “hipóteses de dispensa por justa causa ou a pedido, de término do contrato de trabalho por prazo determinado, de aposentadoria e de falecimento do empregado doméstico” (art. 22, §1º). Se, porém, for reconhecida a culpa recíproca pela dissolução do contrato, o empregador doméstico terá direito de receber a restituição de metade desse valor acrescido (art. 22, §2º). A Lei n. 9.601, de 21 de janeiro de 1998, permite que normas coletivas de trabalho autorizem a contratação por tempo determinado. Em seu artigo 2º, II, esteve prevista a redução a 2% da alíquota para o FGTS dos empregados que foram contratados, sob a sua regência, nos sessenta meses seguin- tes à sua edição. Deu-se o exaurimento desse prazo em 2003 sem que o estímulo (redução do percen- tual do FGTS) aparentemente houvesse provocado a intensificação de contratos a termo autorizados por normas coletivas. Por fim, o artigo 19-A da Lei n. 8.036/90 exige a incidência do FGTS sobre os salários pagos ou devidos por força de contrato de emprego com ente público quando esse contrato tenha a sua nulidade declarada em juízo, dada a inocorrência de concurso para a investidura do trabalhador. Conforme já visto, o STF afirmou a constitucionalidade desse dispositivo ao julgar, com repercussão geral, o RE 705140, em agosto de 2014. 12.10.6.3 Natureza jurídica do FGTS. Contribuição social ou salário diferido. A Lei n. Complementar n. 110 e sua aparente inconstitucionalidade Por fazer único o regime do FGTS, ao menos quanto aos empregados não domésticos, a Consti- tuição de 1988 ressuscitou a discussão sobre a natureza jurídica do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Sergio Pinto Martins(1285), mostrando-se familiarizado também no trato de matéria tributária, expõe as teorias que versam sobre o tema e, ao final, sustenta que, no tocante ao empregado, o FGTS é um instituto de natureza trabalhista; quanto ao empregador, o FGTS vem a ser uma contribuição social, espécie do gênero tributo. Vamos nos deter, inicialmente, na caracterização do FGTS como contribuição social. Interessante é notar, com Hugo de Brito Machado(1286), que o tributo parafiscal não foi definido pelo Código Tributário Nacional e, apoiando-nos em Becker, poderíamos rematar que a contribuição social parece fugir à regra geral das relações tributárias, que têm o Estado como sujeito ativo(1287). Sustenta Becker que “nunca poderão ser sujeito ativo de relação jurídica tributária, nem o indivíduo humano, nem a pessoa jurídica não estatal”, explicando que mesmo sendo válida, eventualmente, a regra jurídica que atribuir a posição de credor à pessoa física ou jurídica não estatal, excluir-se-á a natureza tributária da obrigação que desse modo se estabelecer(1288). (1284) A guia única, regulamentada pela Resolução 780/2015 do Conselho Curador do FGTS e pela Circular 694 da Caixa Econômica Federal, é acessível pelo sítio www.esocial.gov.br e serve para alimentar a conta vinculada do empregado doméstico e também para o reco- lhimento previdenciário devido por empregador e empregado domésticos. (1285) Op. cit. p. 394. (1286) Hugo de Brito Machado, após definir o tributo parafiscal como aquele cujo objetivo é “a arrecadação de recursos para o custeio de atividades que, em princípio, são funções próprias do Estado, mas este as desenvolve através de entidades específicas”, remata: “Na verdade o tributo é instrumento de transferência de recursos financeiros do setor privado para o Estado. O Código Tributário Nacional, embora não o diga expressamente, ao definir tributo, em seu art. 3o, conduz a este entendimento. Por isto mesmo não tratou das chamadas contribuições parafiscais” (MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. São Paulo : Malheiros, 1998. p. 52). (1287) BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3a edição. São Paulo: Lejus, 1998. p. 274. Em estudo minudente e igualmente criterioso, Becker identifica no sujeito ativo da relação tributária “os três elementos essenciais: a) ser Órgão estatal; b) exercer (exclusivamente ou simultaneamente) função executiva; c) estar revestido de personalidade jurídica”. (1288) BECKER, Alfredo Augusto. Op. cit. p. 276-278. Concluindo, o autor lembra que o legislador defronta-se com a seguinte alternativa, Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 437 O tema merece alguma ponderação, porém. Vale ressaltar que o art. 149 da Constituição permitiu à União instituir tributo (contribuição social) como instrumento de atuação das categorias profissionais ou econômicas em suas respectivas bases territoriais, não autorizando a utilização, a qualquer título, desses recursos financeiros pela própria União. O trecho pertinente do dispositivo (“contribuições sociais... de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas”) não deixa margem a dúvida. Importa frisar que o argumento não contraria aquele anterior, que reclama estar o ente público no polo positivo da relação tributária, porquanto possa o Estado situar-se na posição de sujeito ativo da relação, mas a instituir tributo cuja destinação reverta integralmente em favor de ente não estatal, mediante seu repasse após a arrecadação (mesmo a arrecadação pode ser delegada a instituições bancárias, conforme artigos 6o e 7o do CTN). A destinação aos trabalhadores, que integram uma cate- goria profissional, seria irrelevante para que se configurasse a natureza tributária, consoante reza o artigo 4o, II, do Código Tributário Nacional e ensina Alfredo Becker(1289). O artigo 149 remete ao art. 146, III, da Constituição e este, por seu turno, diz caber à lei comple- mentar “estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) defi- nição de tributos e de suas espécies [...]; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários [...]”. Sustenta-se, contudo, que o Código Tributário Nacional estaria vigendo como se lei complementar tributária fosse, assim se posicionando os mais festejados intérpretes do direito fiscal. Anote-se ainda que o CTN regula os tributos como meio de transferir dinheiro de particulares para o Erário (fato inocorrente pela via da contribuição sindical), mas ressalva, em seu art. 217, IV, a exigibili- dade da contribuição destinada ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. É defensável, por tais razões, a tese de o FGTS ser, na perspectiva do empregador, uma contribuição social. Aliás, essa orientação justificou, em 2001, a edição da Lei n. Complementar n. 110, que instituiu contribuição social devida pelos empregadores em caso de despedida sem justa causa de empregado, na proporção de 10% sobre o montante dos depósitos na conta vinculada, com os acréscimos legais (artigo 1o). A mesma lei complementar instituiu outra contribuição social com alíquota de 0,5% sobre a remuneração mensal do empregado (artigo 2o). Num primeiro momento, alguns empregados postularam a indenização de valor equivalente a essas novas alíquotas (8% + 0,5% por mês e 40% + 10% na dispensa sem justa causa), pois não perceberam que as contribuições sociais criadas pela Lei n. Complementar n. 110 não revertiam em seu favor, diretamente. O valor arrecadado servira para o Fundo pagar o valor resultante da atualiza- ção monetária suprimida em dezembro de 1988, fevereiro de 1989 e abril de 1990. O que pôde pedir o empregado é a incidência do acréscimo indenizatório de 40% sobre o produto desses reajustes, caso dispensado sem justa causa. Não custa questionar, entretanto, a constitucionalidade da citada lei complementar, que transferiu a empregadores um débito do sistema financeiro estatal e ignora o preceito do artigo 7o, III, da Consti- tuição, que estatui ser o FGTS um direito social do empregado urbano ou rural. É, ainda, da essência do FGTS a responsabilidade de o empregador recolhê-lo sobre a remuneração de cada um de seus empregados, estritamente. Tal norma infraconstitucional é, portanto, antissistêmica, porquanto obrigue os atuais empregadores a prover o saldo do FGTS relativo a trabalhadores estranhos aos seus quadros de empregados, saldo este resultante de depósitos cuja atualização monetária foi negligenciada pelo Estado. É verdade, contudo, que o STF declarou a constitucionalidade da LC n. 110 ao julgar as ADI’s 2556-2 e 2568-6, pondo termo a esse tormentoso debate. Quanto ao FGTS ser salário diferido, na perspectiva do empregado, entendemos que essa posi- ção possa ser defendida com desassombro, a partir da edição do atual texto constitucional. É que antes de sua promulgação, o empregado perdia o FGTS que não podia ser por ele sacado, ao final quando investe pessoa não estatal no polo positvo dessas relações jurídicas: “a) ou colocava o Estado na posição de sujeito ativo de uma relação jurídica tributária, cujo tributo teria uma destinação determinada, a saber, a entrega àquele indivíduo humano (...); b) ou colocava aquele indivíduo humano (ou pessoa jurídica não estatal) diretamente na posição de sujeito ativo, da relação jurídica, a fim de perceber diretamente do sujeito passivo (...)”. (1289) Becker, Alfredo Augusto. Op. cit. p. 277. 438 – Augusto César Leite de Carvalho do vínculo. Atualmente, quando o empregado é dispensado por justa causa ou se demite, o saldo de FGTS é mantido em sua conta vinculada, podendo ser levantado por motivo (previsto em lei) diferente da dispensa por justa causa ou extinção da empresa ou, afinal, sobrevindo a sua aposentadoria(1290). Por conseguinte, não se pode mais cogitar de indenização ou mesmo de prêmio, ao se investigar a natureza jurídica do FGTS. É ele um complemento do salário cuja percepção, pelo empregado, é adiada. 12.10.6.4 A movimentação da conta vinculada O saldo da conta vinculada pode ser sacado, pelo empregado, nas situações tipificadas em inci- sos do artigo 20 da Lei n. 8.036, de 1990. Tratam esses incisos, com pormenores, de levantamento possível em razão de despedida sem justa causa, inclusive a indireta, por culpa recíproca e por força maior; extinção total da empresa ou fechamento de estabelecimento; aposentadoria; falecimento do trabalhador; pagamento de prestações do Sistema Financeiro Habitacional; aquisição de moradia; conta inativa; extinção normal do contrato a termo; suspensão do trabalho avulso; neoplasia maligna; aplicação em quotas de Fundos Mútuos de Privatização. Se o empregado é dispensado sem justa causa, assiste-lhe o direito a indenização de valor equi- valente a 40% do montante dos depósitos em sua conta vinculada, acrescido de juros e correção monetária. Em hipóteses de cessação do contrato por culpa recíproca ou força maior, a indenização é devida, mas por metade (20%). Essa indenização deve ser depositada na conta vinculada do traba- lhador, para que este a levante em seguida, dada a necessidade de se coibir a resilição simulada de contratos (que visavam ao saque em meio ao vínculo de emprego), tudo em conformidade com o artigo 18 e parágrafos da Lei n. 8.036, de 1990. 12.10.7 A forma e a força liberatória do recibo firmado no desate contratual Na ocasião em que estudamos a resilição do contrato por iniciativa do empregado (demissão), pudemos constatar que a mais alta jurisprudência trabalhista é inflexível ao afirmar a invalidade do pedido de demissão de empregado com mais de um ano de serviço, sem a assistência sindical ou ministerial(1291). Sem o mesmo rigor, mas com firmeza, não se tem validado a quitação de verbas da dissolução contratual após o primeiro ano de contrato, sem tal assistência (artigo 477, §1o, da CLT). Inexistindo sindicato ou representação do Ministério do Trabalho na localidade, vale a assistência de órgão do Ministério Público, do Defensor Público ou, se impedidos estes, do Juiz de Paz (§3o). Ocorre, contudo e por vezes, de o próprio empregado admitir, em juízo, que recebeu as verbas discriminadas em recibo firmado na cessação do contrato, não obstante a ausência da assistência exigida no artigo 477, §1º e 3º, da CLT. Havendo prova inconcussa do pagamento, o bom-senso reco- menda que não se prestigie o enriquecimento sem causa, ou seja, que não se condene o empregador a reiterar o pagamento das verbas resilitórias confessadamente recebidas. A matéria não está pacifi- cada, contudo, dada a sanção de nulidade (não validade) prescrita no citado dispositivo. A lei exige que o pagamento das verbas rescisórias (rectius: parcelas dissolutórias) se dê em dinheiro ou, se o empregado for alfabetizado, em cheque visado (artigo 477, §4o, da CLT). O paga- mento complessivo (um valor global a quitar várias parcelas) é mais uma vez vedado, pois o §2o do artigo 477 da CLT é explícito: O instrumento de rescisão ou recibo de quitação, qualquer que seja a causa ou forma de dissolução do contrato, deve ter especificada a natureza de cada parcela paga ao empregado e discriminado o seu valor, sendo válida a quitação, apenas, relativamente às mesmas parcelas. (1290) Vide artigo 35, §§ 1o e 2o, do Decreto 99.684/90, que regulamenta a Lei n. 8.036, de 1990. (1291) Nesse sentido: “RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. PEDIDO DE DEMISSÃO NÃO HOMOLOGADO PERANTE O SINDICATO. CONTRATO DE TRABALHO SUPERIOR A UM ANO DE VIGÊNCIA. NULIDADE. CONVERSÃO DA DEMISSÃO EM DISPENSA SEM JUSTA CAUSA. A jurisprudência majoritária no âmbito desta Corte Superior firmou-se no sentido de que o requisito previsto no art. 477, § 1º, da CLT configura norma cogente, impondo um dever e não mera faculdade à disposição das partes. Desse modo, em caso de pedido de demissão firmado por empregado cujo contrato laboral tem vigência superior a um ano, a assistência do sindicato da categoria ou de autoridade do Ministério do Trabalho é formalidade essencial e imprescindível, sem a qual o ato jurídico não se perfaz, gerando a presunção de que a dispensa tenha ocorrido sem justa causa. Recurso de embargos conhecido e não provido” (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 367-57.2010.5.03.0004, Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 02/08/2012, Data de Publicação: 10/08/2012). Na fundamentação desse acórdão, citamos vários arestos com igual teor. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 439 Havendo crédito do empregador, a compensação deste não pode exceder, nessa ocasião da cessação do contrato, o valor que corresponder a um mês de remuneração (§5o). Questão polêmica foi, por um tempo longo, a de definir se o empregado poderia postular diferen- ças de verbas pagas na cessação do contrato após ser assistido por seu sindicato, no ato em que as recebeu. Contra a tese de que haveria ato jurídico perfeito, vale dizer, a quitação irrevogável de títu- los e valores referidos em tal recibo, posicionou-se o Tribunal Superior do Trabalho, inicialmente, no sentido de a quitação ser concernente apenas aos valores discriminados no documento. Com o intuito de estimular a assistência sindical e evitar o congestionamento das pautas de juízes do trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho editou novo enunciado da súmula de sua jurisprudência, recomendando a eficácia liberatória dos recibos passados ao término dos contratos de emprego, sob a assistência do sindicato obreiro. Surgiu, assim e como alvo de aplausos e apupos, a Súmula 330 do TST: A quitação passada pelo empregado, com assistência de entidade sindical de sua categoria, ao empregador, com observância dos requisitos exigidos nos parágrafos do art. 477 da CLT, tem eficácia liberatória em relação às parcelas expressamente consignadas no recibo, salvo se oposta ressalva expressa e especificada ao valor dado à parcela ou parcelas impugnadas. I – A quitação não abrange parcelas não consignadas no recibo de quitação e, consequentemente, seus reflexos em outras parcelas, ainda que estas constem desse recibo. II – Quanto a direitos que deveriam ter sido satisfeitos durante a vigência do contrato de trabalho, a quitação é válida em relação ao período expressamente consignado no recibo de quitação. A alta Corte Trabalhista constatou, então, que os sindicatos estavam evitando homologar os Termos de Rescisão de Contrato de Trabalho (TRCT), recusando-se a prestar aos empregados a assistência devida, pois a todos parecia certo que os títulos e valores por eles quitados são, regra geral, somente aqueles cujo débito é preestabelecido pelo empregador, não havendo transação a ensejar pagamento de quantia maior que a admitida. Sensível à necessidade de restabelecer a tranquilidade dos atores sociais, o TST revisitou o tema no Incidente de Uniformização de Jurisprudência n. IUJ-RR 275570- 1996(1292) e esclareceu então que a quitação dada com assistência sindical restringia-se aos títulos e valores consignados no TRCT, podendo o trabalhador pleitear a diferença que entender devida na Justiça do Trabalho. 12.10.8 Efeitos da cessação do contrato de emprego Sob o ponto de vista prático, inquieta ao agente do direito do trabalho a tarefa de identificar as possíveis pretensões de empregados cujo contrato foi atingido por resilição, resolução, rescisão ou caducidade. É interessante enumerar quais os direitos que resultam da cessação do contrato e listar os casos em que há o cabimento de cada um desses direitos. 12.10.8.1 O direito à reintegração Quando pode um empregado, após ser despedido, postular sua reintegração no emprego? Ao enfrentar um conflito dessa ordem, a primeira preocupação deve ser a de consultar as peculiaridades do caso concreto para examinar se o contrato podia ser dissolvido, dada a inexistência de garantia de emprego. Se afirmativa a resposta, importa verificar se a dispensa, mesmo podendo operar-se sem justa causa, teve motivo e se tal motivo revestiu-se de licitude, pois poderá o trabalhador exigir a restauração do vínculo no caso de ser despedido por causa ilícita. (1292) Sobre o tema: RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. QUITAÇÃO. EFICÁCIA LIBERATÓRIA DO TRCT. SÚMULA 330 DO TST. A jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que a eficácia liberatória do termo de rescisão do contrato de trabalho restringe-se às parcelas e valores nele discriminados, na forma do disposto no art. 477 da CLT. Dessa forma, não existe a eficá- cia liberatória ampla e irrestrita pretendida pela reclamada. Aliás, no julgamento do IUJ-RR-275570-1996 (Tribunal Pleno, Rel. Ministro Ronaldo Leal, DJ 04/05/2001), ficou decidido que a quitação se refere somente aos valores efetivamente pagos, de modo que não fica libe- rado o empregador em relação a quantias posteriormente apuradas em reclamação trabalhista como devidas. No caso concreto, o acórdão turmário demonstra a existência de ressalva do reclamante no TRCT, na qual registrada que a quitação não abrangeria a postulação de “direitos e diferenças que entender devidos, inclusive quanto às parcelas objeto desta homologação”. Inteligência da Súmula 330 do TST. Há precedente. Recurso de embargos conhecido e provido (TST, SBDI-1, E-RR 2617800-24.2009.5.09.0015, Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, DEJT 18/12/2015). 440 – Augusto César Leite de Carvalho Em rigor, são ao menos seis as hipóteses em que se revela a invalidade da dispensa: a) estabili- dade definitiva ou provisória; b) suspensão do contrato; c) dispensa discriminatória; d) dispensa lesiva de direito fundamental; e) em caso de empregado público, a veracidade do motivo determinante da dispensa; f) anistia. Nas cinco últimas hipóteses não se exige que o empregado seja titular de estabili- dade no emprego, dado que a declaração de nulidade da dispensa e a ordem judicial de reintegração têm então, como causa autônoma, a restituição das partes ao estado em que se encontravam antes do ato nulo. Convém examinar cada um desses casos de nulidade da dispensa. A) Estabilidade Analisemos primeiramente a possibilidade de estabilidade, definitiva ou provisória, a proteger o emprego. Embora o próximo capítulo deste livro seja dedicado às hipóteses de estabilidade, algumas noções podem ser adiantadas. Se o contrato se dissolvera por iniciativa do empregador e o empregado era estável, deve este postular a reintegração, com salários vencidos e vincendos, além de férias, 13º salário, FGTS e outras parcelas acaso suprimidas em razão do afastamento. A Súmula 244, II, do TST esclarece que “a garantia de emprego à gestante só autoriza a reintegra- ção se esta se der durante o período de estabilidade. Do contrário, a garantia restringe-se aos salários e demais direitos correspondentes ao período de estabilidade”. A regra mostra-se comum a todos os casos de estabilidade provisória, como se nota à leitura da Súmula 396 do TST: ESTABILIDADE PROVISÓRIA. PEDIDO DE REINTEGRAÇÃO. CONCESSÃO DO SALÁRIO RELATIVO AO PERÍODO DE ESTABILIDADE JÁ EXAURIDO. INEXISTÊNCIA DE JULGAMENTO “EXTRA PETITA” I – Exaurido o período de estabilidade, são devidos ao empregado apenas os salários do período compreendido entre a data da despedida e o final do período de estabilidade, não lhe sendo assegurada a reintegração no emprego. II – Não há nulidade por julgamento “extra petita” da decisão que deferir salário quando o pedido for de reinte- gração, dados os termos do art. 496 da CLT. Presume-se, em verdade, que o empregador já teria manifestado a sua intenção de despedir o empregado sem justa causa quando o dispensou em meio ao período de estabilidade e, por isso, ao Poder Judiciário caberia apenas deslocar a dispensa para data posterior a tal período, condenando o empregador a pagar as verbas trabalhistas sonegadas no tempo em que o emprego estava garantido ao trabalhador. É razoável concluir, portanto, que o empregado deverá pedir a reintegração se estável no dia da propositura da ação, ou seja, se ainda está em curso o período de estabilidade. Se o julgamento for favorável ao empregado e se der após o termo final da estabilidade, ao juiz cabe ordenar a conversão em pecúnia (salários etc.) do direito à reintegração. A jurisprudência foi resistente, em dado período, à possibilidade de o empregado ajuizar ação, visando à sua reintegração no emprego, quando o período de estabilidade já se havia exaurido. É que, nesse caso, o empregado teria impedido o empregador de satisfazer a pretensão principal, qual seja, a de restabelecer o emprego, às vezes sem que o empregador sequer tivesse conhecimento de que despedira o trabalhador em meio ao período de estabilidade. É outro, porém, o entendimento hoje prevalecente, conforme se extrai da orientação jurisprudencial n. 399 da SBDI-1: O ajuizamento de ação trabalhista após decorrido o período de garantia de emprego não configura abuso do exercício do direito de ação, pois este está submetido apenas ao prazo prescricional inscrito no art. 7º, XXIX, da CF/1988, sendo devida a indenização desde a dispensa até a data do término do período estabilitário. Outra questão genérica é aquela que concerne ao direito de estabilidade ser assegurado também em contratos por tempo determinado. Quando estudarmos, no próximo capítulo, as espécies de esta- bilidade provisória, veremos que a jurisprudência do STF e do TST têm modificado a sua compreensão sobre o tema, pois há algum tempo está a afirmar que a garantia de emprego assegurada ao trabalha- dor que sofre acidente de trabalho e à empregada gestante incidem mesmo quando o contrato está sujeito a termo final ou condição resolutiva, conforme se infere, respectivamente, das Súmulas 378, III e 244, III do TST. O próximo capítulo tratará, como antes esclarecido, apenas do direito à estabilidade no emprego. B) Reintegração na hipótese de suspensão do contrato Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 441 No capítulo relativo à suspensão do contrato, vimos que os artigos 471 e seguintes da CLT imuni- zam o trabalhador que tem o seu contrato suspenso por doença, acidente de trabalho, serviço militar obrigatório, greve etc. Ele não pode ser despedido durante a suspensão contratual. Em rigor, o empregado não pode ser reintegrado à rotina do emprego se a causa de seu afasta- mento persiste, a exemplo de quando ele tem o seu contrato suspenso em razão de enfermidade e ainda não recuperou a sua aptidão para o trabalho, mas é surpreendido com a despedida. Nesse caso, assiste ao trabalhador o direito de obter o restabelecimento do vínculo de emprego, mas assim sucede para que ele continue afastado em gozo do benefício previdenciário(1293) até recuperar as suas forças, a sua condição de prestar trabalho. Sobre o empregado que recebe aviso-prévio e em seguida tem o seu contrato suspenso em razão de enfermidade, a parte final da Súmula 371 explicita: “No caso de concessão de auxílio-doença no curso do aviso-prévio, […] só se concretizam os efeitos da dispensa depois de expirado o benefício previdenciário”. Segue-se, aqui, o mesmo raciocínio desenvolvido a propósito da estabilidade, ou seja, protrai-se a data da dispensa para tempo posterior ao da suspensão contratual. C) Dispensa discriminatória No capítulo dedicado à análise dos princípios de direito do trabalho, especialmente quando trata- mos do princípio da igualdade de tratamento, enfatizamos a possibilidade de empregados, titulares ou não de estabilidade, serem reintegrados após sofrerem despedida com viés discriminatório. O art. 1º da Lei n. 9.029/95 proíbe “a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as hipóteses de proteção ao menor previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal”. Em seguida, prescreve a mesma lei: Art. 4º O rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, nos moldes desta Lei, além do direito à reparação pelo dano moral, faculta ao empregado optar entre: I – a readmissão com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remu- nerações devidas, corrigidas monetariamente, acrescidas dos juros legais; II – a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais. O texto do inciso I contém um erro de terminologia ao confundir os institutos da “readmissão” com o da “reintegração”. Mas se trata de equívoco sem maior consequência, pois o significado de reintegração é aquele explicitado no restante do dispositivo, qual seja, a restituição do emprego com o recebimento de todas as parcelas salariais relativas ao período de afastamento. Haveria readmissão se, em vez disso, o empregador fosse obrigado a estabelecer um novo contrato com o trabalhador injustamente despedido. Por sua vez, a Súmula 443 do TST tem o seguinte enunciado: DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. PRESUNÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. ESTIGMA OU PRECONCEITO. DIREITO À REINTEGRAÇÃO – Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego. E assim se completa o sistema jurídico de proteção contra atitudes patronais preconceituosas, quer ao início do liame empregatício, quer ao seu final. A nulidade da dispensa discriminatória gera não apenas a reparação por dano moral, mas igualmente a reintegração no emprego. Ou seja, preser- var-se-á o emprego até que sobrevenha alguma causa de resolução contratual ou mesmo nova ordem de dispensa, mas nesse caso o empregador deverá provar que, a despeito de sua conduta anterior socialmente reprovável, há motivo de índole disciplinar ou inerente à empresa que estaria a justificar a dissolução do contrato. (1293) Nesse sentido: “[...] ESTABILIDADE PROVISÓRIA. RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO NO CURSO DE LICENÇA MÉDICA. A suspensão do contrato de trabalho implica sustação dos efeitos decorrentes do vínculo de emprego, continuando, contudo, em vigor o contrato de trabalho. Constitui, em verdade, uma mera pausa transitória do trabalho, permanecendo, no entanto, obrigações recí- procas entre empregado e empregador. Sobreleva registrar que a concessão de auxílio-doença funciona como obstáculo à imotivada resci- são contratual, tendo em vista que os arts. 476 da CLT e 63 da Lei n. 8.213/91 dispõem que o empregado, no gozo de auxílio-doença, será considerado em licença. [...]” (TST, 3ª Turma, AIRR 30200-39.2009.5.15.0096 , Relator Ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, Data de Julgamento: 30/05/2012, Data de Publicação: 08/06/2012). 442 – Augusto César Leite de Carvalho D) Dispensa lesiva a direito fundamental – a garantia de indenidade O empregado é titular, normalmente, de vários direitos fundamentais, a exemplo do direito de participar de greve como meio pacífico de reivindicar condições mais justas de trabalho, ou do direito de exercer em plenitude a liberdade sindical, inclusive candidatar-se a cargo de direção do sindicato e assim veicular interesses nem sempre simpáticos ao empregador, ou enfim do direito de provocar a jurisdição trabalhista com vistas à satisfação de pretensões que, não obstante fundadas na ordem jurí- dica, são resistidas pelo titular da empresa. Trata-se, como se percebe, de direitos fundamentais que incomodam o empregador, sem embargo de servirem à sustentabidade do meio ambiente de trabalho. Quando o ambiente laboral está assim tensionado, não raro o empregador atende à irresistível tentação de subjugar o trabalhador que se insurgiu contra o seu poder, como se precisasse mostrar, ao trabalhador e iguais, a sua incontrastável hegemonia econômica, social e política. A reação do empregador é então a de despedir o empregado insurreto, não importando a eventual justeza de seu interesse e o meio legítimo, sobretudo pacífico, usado para satisfazê-lo. O intuito emulatório ou perse- cutório, vingativo mesmo, de tal conduta é manifesto, mas é certo que durante muitos anos a jurispru- dência se acomodou ante esses atos patronais a pretexto de que havia, como um óbice à realização da justiça, um direito potestativo de despedir empregados. Talvez a reação primeira ou mais reluzente contra esse desvirtuamento do poder empresarial tenha emanado do Supremo Tribunal Federal, em acórdão cuja dicção é paradigmática: O direito potestativo de despedir não pode ser potencializado a ponto de colocar-se, em plano secundário, o próprio texto constitucional, como se a ordem jurídica agasalhasse, no campo patrimonial, direito absoluto. Se de um lado, reconhece-se o direito do empregador de fazer cessar o contrato a qualquer momento, sem que esteja obrigado a justificar a conduta, de outro não se pode olvidar que o exercício respectivo há que ocorrer sob a égide legal e esta não o contempla como via oblíqua para se punir aqueles que, possuidores de sentimento democrático e certos da convivência em sociedade, ousaram posicionar-se politicamente, só que o fazendo de forma contrária aos interesses do co-partícipe da força de produção. Não, a este ponto não pode ser guindado o direito de despedir. O exercício respectivo deve observar, até mesmo, a ética primária, o que se dirá quanto às garantias do cidadão relativas às convicções políticas, à liberdade de consciência, à manifestação de convicção política (§§ 1º, 5º e 8º do art. 153 da Constituição Federal de 1967). É sabença geral que contra a Constituição não existe direito, ainda que ligado à potestividade (STF, RE 130206-PA, Relator Ministro Marco Aurélio, DJ de 14/08/1992).(1294) A mudança de perspectiva se deve, também e muito, à construção jurisprudencial que se forjou no âmbito do Tribunal Constitucional da Espanha e, sob a denominação audaciosa de “garantia de indeni- dade”, logo se difundiu por toda a Europa, mais adiante sendo gradualmente absorvida pelos tribunais trabalhistas brasileiros. Ilustra essa nova tendência a ementa seguinte: DISPENSA RETALIATÓRIA – DISCRIMINAÇÃO EM RAZÃO DO AJUIZAMENTO DE RECLAMATÓRIA TRABA- LHISTA – ABUSO DE DIREITO – REINTEGRAÇÃO Demonstrado o caráter retaliatório da dispensa promovida pela Empresa, em face do ajuizamento de ação trabalhista por parte do Empregado, ao ameaçar demitir os empregados que não desistissem das reclamatórias ajuizadas, há agravamento da situação de fato no processo em curso, justificando o pleito de preservação do emprego. A dispensa, nessa hipótese, apresenta-se discrimi- natória e, se não reconhecido esse caráter à despedida, a Justiça do Trabalho passa a ser apenas a justiça dos desempregados, ante o temor de ingresso em juízo durante a relação empregatícia. Garantir ao trabalhador o acesso direto à Justiça, independentemente da atuação do Sindicato ou do Ministério Público, decorre do texto constitucional (CF, art. 5º, XXXV), e da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (arts. VIII e X), sendo vedada a discriminação no emprego (convenções 111 e 117 da OIT) e assegurada ao trabalhador a indenidade frente a eventuais retaliações do empregador (cfr. Augusto César Leite de Carvalho, -Direito Fundamental de Ação Trabalhista-, in Revista Trabalhista: Direito e Processo, Anamatra – Forense, ano 1, v.1, n. 1 – jan/mar 2002 – Rio). Diante de tal quadro, o pleito reintegratório merece agasalho. Recurso de embargos conhecido e provido (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 7633000-19.2003.5.14.0900, Relator Ministro Ives Gandra Martins Filho, Data de Julgamento: 29/03/2012, Data de Publicação: 13/04/2012). Igual ao que sucedeu na jurisprudência europeia, a garantia de indenidade em sentido estrito(1295), no Brasil, é associada ora ao princípio da não discriminação, ora à fundamentalidade do direito de ação, como agora a tratamos. De um modo ou de outro, é fato que o instituto ganha foro de importância (1294) O relator foi o ministro Ilmar Galvão, seguido pelos ministros Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Vencido o ministro Octavio Gallotti. A decisão recorrida era do Pleno do TST, da lavra do Ministro Marco Aurélio. (1295) A garantia de indenidade lato sensu seria a imunização da pessoa que exerce qualquer direito fundamental. Quando se trata de imunizar o trabalhador que exerce o direito fundamental de ação judicial, cuidamos da garantia de indenidade stricto sensu. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 443 na jurisprudência brasileira(1296) e remete à possibilidade de rever-se, mais que a anterior resignação dos tribunais, o traço cultural, talvez legado de um tempo colonial de senhores e escravos, segundo o qual o patrão se investiria de potestade inconciliável com a submissão a uma corte de justiça. Há, na garantia de indenidade, um bafejo de civilização direcionado ao ambiente de trabalho. A garantia de indenidade importa a reintegração do trabalhador que ajuíza ação trabalhista em face de seu empregador quando ainda está em curso o vínculo de emprego. E) Dispensa de empregado público com motivo declarado e infundado Quando tratamos de resolução contratual, especialmente da resolução do contrato de empre- gado público, dissemos que o empregado público não adquire estabilidade no emprego. E afirmamos também que, para nosso desconforto intelectual, a jurisprudência vinha endossando a conduta de sociedades de economia mista e empresas públicas que dispensavam seus empregados sem apre- sentar motivo que justificasse o ato de dispensa. Sucedeu, porém, de o STF revisitar o tema no julgamento, em repercussão geral, do RE 589998, decidindo enfim que é obrigatória a motivação da dispensa de empregado promovida por sociedade de economia mista ou empresa pública. A reorientação dada ao tema pelo Supremo Tribunal Federal veio em boa hora, porquanto se trate de ato patronal que é, a nosso ver e em detrimento da jurisprudência antes consagrada, um ato administrativo cuja legitimidade exigiria prévia motivação. A não ser assim e se estaria a fazer tabula rasa dos princípios da moralidade e impessoalidade consagrados no art. 37 da Constituição. Nesta passagem do nosso curso não enfrentamos, todavia, a obrigação de a administração pública motivar os seus atos, mas sim as consequências jurídicas dessa motivação. Ocorre, não há dúvida, de a administração pública, nessa contingência de empregadora, motivar o ato de dispensa e, então, atrair a incidência da teoria dos motivos determinantes, segundo a qual a validade do ato está condicionada à real existência e juridicidade dos motivos declarados. Mesmo quando a jurispru- dência autorizava a sociedade de economia mista e a empresa pública a despedir seus empregados admitidos mediante concurso (OJ 247, I da SBDI-1) sem dizer por que o faziam, o motivo da resilição contratual, porventura informado no ato de despedida, vinculava o órgão da administração, de modo a tornar inválido o ato de dispensa cuja causa fosse inveraz ou ilícita. Assim tem decidido a Justiça do Trabalho, conforme se extrai de iterativos julgados(1297). E como não é normal a administração pública dispensar sem justa causa os servidores que admitiu mediante concurso, resulta inviável converter o ato patronal em dispensa sem justa causa, mormente se nem mesmo o empregador pretendeu revesti-lo desse caráter de absoluta precariedade, pois motivou, embora motivasse mal, o ato de dispensa. Quando não comprovado ou sem base jurídica o motivo declarado pelo empregador público para despedir o servidor, ordena-se a reintegração no emprego. F) Anistia Anistiar significa esquecer e perdoar. Mas é assunto estranho às relações paritárias, pois é ato de poder, como se colhe do sentido dado ao verbete pelo Dicionário Houaiss: “ato do poder público que declara impuníveis delitos praticados até determinada data por motivos políticos ou penais, ao mesmo tempo que anula condenações e suspende diligências persecutórias”. Nas sociedades ocidentais que viveram tempos de governos autoritários, os quais encarceravam e submetiam a tortura ou ao degredo os adversários de ideologia ou prática política, o retorno à ordem democrática compreendeu atos igualmente políticos de anistia, a exemplo do que sucedeu, no Brasil, (1296) Sobre a garantia de indenidade: TST, 4ª Turma, AIRR 77700-47.2009.5.04.0019, Relator Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Data de Julgamento: 19/09/2012, Data de Publicação: DEJT 28/09/2012; TST, Subseção I de Dissídios Individuais, E-ED-RR 197400- 58.2003.5.19.0003, Relator Ministro: Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 21/06/2012, Data de Publicação: DEJT 29/06/2012. (1297) Arestos que adotam a teoria dos motivos determinantes: TST, 6ª Turma, ED-ED-RR 10000-77.2004.5.22.0003, Relator Minis- tro Aloysio Corrêa da Veiga, DJ de 31/07/2009; TST, 1ª Turma, AIRR 7153-86.2010.5.01.0000, Relator Ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, DEJT 03/06/2011; TST, 3ª Turma, AIRR 6745-95.2010.5.01.0000, Relator Ministro Horácio Raymundo de Senna Pires, DEJT 19/08/2011; TST, 8ª Turma, RR 148400-84.2005.5.09.0654 Data de Julgamento: 21/11/2012, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, Data de Publicação: DEJT 23/11/2012. 444 – Augusto César Leite de Carvalho com a edição, ainda sob o regime militar, da Lei n. 6.683/79, que pretendeu consolidar a abertura polí- tica “lenta, gradual e segura” iniciada no Governo Geisel. Mas o reaproveitamento de servidores civis e militares ficou subordinado à decisão de comissões especiais criadas no âmbito dos respectivos minis- térios para estudar cada caso e a orientação jurisprudencial (transitória) n. 44 da SBDI preconizava: “O tempo de afastamento do anistiado pela Lei n. 6.683/79 não é computável para efeito do pagamento de indenização por tempo de serviço, licença-prêmio e promoção”. Em suma, tratava-se de readmis- são, não propriamente de reintegração no emprego. Ainda sob a regência da ordem constitucional anterior, a Emenda Constitucional 26, de 1985, concedeu anistia “a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares”, bem assim “aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais”. Como o art. 4º, §5º, da EC 26/85 previa que a anistia aos servidores civis haveria de gerar efei- tos financeiros a partir da data de promulgação da emenda, “vedada a remuneração de qualquer espécie, em caráter retroativo”, sobreveio a orientação jurisprudencial n. 12 da SBDI-1: “gera efeitos financeiros a partir da promulgação da presente Emenda, vedada a remuneração de qualquer espé- cie, em caráter retroativo”. Deu-se à anistia o efeito de readmissão (celebração de novo contrato), em consonância com o texto da emenda constitucional que a concedeu, mas em detrimento da correlação lógica entre a concessão de anistia (perdão em plenitude) e a reintegração (restauração do emprego desde o injusto afastamento). A atual Constituição atribui à União a competência para conceder anistia (art. 21, XVII), mediante lei (art. 48, VIII), e o seu Título X, reservado ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, no art. 8º, estabelece: É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo n. 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei n. 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos. À semelhança da EC 26/85, o §1º do art. 8º do ADCT vedou qualquer pagamento de salário com efeito retroativo, embora uma e outra norma assegurassem o cômputo do período de afastamento para efeito de promoções e outras vantagens. Mas havia controvérsia sobre o reinício do contrato quando a administração não a promovia e assim provocava a demanda judicial. A esse propósito, a orientação jurisprudencial n. 91 da SBDI-1: “os efeitos financeiros da readmissão do empregado anistiado serão contados a partir do momento em que este manifestou o desejo de retornar ao trabalho e, na ausência de prova, da data do ajuizamento da ação”. Outras leis sobrevieram para casos pontuais, como a Lei n. 8.878/94 que concedeu anistia aos servidores públicos civis e empregados da Administração Pública Federal direta, autárquica e funda- cional, bem como aos empregados de empresas públicas e sociedades de economia mista sob controle da União que, no período compreendido entre 16 de março de 1990 e 30 de setembro de 1992, tenham sido: exonerados ou demitidos com violação de dispositivo constitucional ou legal; despedidos ou dispensados dos seus empregos com violação de dispositivo constitucional, legal, regulamentar ou de cláusula constante de acordo, convenção ou sentença normativa; exonerados, demitidos ou dispensa- dos por motivação política, devidamente caracterizado, ou por interrupção de atividade profissional em decorrência de movimentação grevista. Interpretando o art. 6º da Lei n. 8.878/94, seguiu-se a orientação jurisprudencial (transitória) n. 56 da SBDI-1: “Os efeitos financeiros da anistia concedida pela Lei n. 8.878/94 somente serão devidos a partir do efetivo retorno à atividade, vedada a remuneração em caráter retroativo”. Uma vez mais, cuida-se de readmissão no emprego com o cômputo do tempo de serviço, numa reiterada mistura de readmissão e reintegração. Igualmente adveio a Lei n. 10.790, de 2003, que concedeu anistia “a dirigentes, representantes sindicais e demais trabalhadores integrantes da categoria profissional dos empregados da empresa Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 445 Petróleo Brasileiro S/A – PETROBRAS, que, no período compreendido entre 10 de setembro de 1994 e 1o de setembro de 1996, sofreram punições, despedidas ou suspensões contratuais, em virtude de participação em movimento reivindicatório, assegurada aos dispensados ou suspensos a reintegração no emprego”. Sobre a retroação de efeitos financeiros, o art. 1º, §1º, da Lei n. 10.790/2003 previu que as pendências observariam parâmetros fixados em acordo celebrado na Justiça do Trabalho em 2003. Conforme já esclarecido, a anistia deveria apagar todos os efeitos das ações autoritárias ou de revanchismo sofridas por empregados públicos, mas decerto que a preocupação com o erário vem de mitigar esses efeitos nas várias leis e dispositivos constitucionais que, historicamente, anistiam tais traba- lhadores. Na maior parte dos casos, percebe-se que a anistia restaurou o emprego, mas com a roupa- gem de um novo contrato cujas cláusulas consideraram o tempo de serviço anterior ao afastamento. Ainda assim, uma nuance da readmissão – sem efeito financeiro retroativo – perturbava os juízes do trabalho, a saber: não se pode falar em anistia, propriamente, se os trabalhadores anistiados retomam o vínculo em condições de nível funcional e salário menos favoráveis que aqueles nos quais estariam situados se houvessem permanecido no emprego, sem serem arbitrariamente afastados. Mesmo não sendo possível computar as promoções de cargo ou prestígio que adviriam pelos atributos e contributos do empregado supostamente perceptíveis na hipotética situação de ele não ter sofrido perseguição ou dispensa abusiva, pois tais vantagens demandariam uma análise puramente especulativa, decerto que vantagens salariais e progressões funcionais linearmente concedidas aos demais trabalhadores, durante o tempo no qual o anistiado esteve compulsoriamente afastado de seu emprego, devem ser estendidas ao empregado que conquista o direito de retornar à empresa, porquanto o contrário significaria mitigar, em proveito do arbítrio, os efeitos da anistia. A jurisprudência mostrou-se atenta a esse aspecto em julga- mento emblemático da Subseção I de Dissídios Individuais do TST: CONAB – ANISTIA – LEI N. 8.878/94 – EFEITOS FINANCEIROS – REAJUSTES SALARIAIS E PROMOÇÕES GERAIS. O artigo 6º da Lei n. 8.878/94, estabelece que “a anistia a que se refere esta lei só gerará efeitos financeiros a partir do efetivo retorno à atividade, vedada a remuneração de qualquer espécie em caráter retro- ativo”. Já a Orientação Jurisprudencial Transitória n. 56 da SBDI1/TST dispõe, in verbis: “Os efeitos financeiros da anistia concedida pela Lei n. 8.878/94 somente serão devidos a partir do efetivo retorno à atividade, vedada a remuneração em caráter retroativo”. Desta forma, a anistia só pode gerar efeitos financeiros a partir do efetivo retorno à atividade, sendo vedada a remuneração em caráter retroativo. Todavia, a referida Lei n. o deixou de assegurar aos anistiados a repristinação do contrato de trabalho original, até porque o retorno ao serviço não exige nova aprovação em concurso público. Pelo que, se pode concluir que a anistia deve equivaler à suspen- são do contrato de trabalho, nos termos do artigo 471 da Consolidação das Leis do Trabalho, segundo o qual “ao empregado, afastado do emprego, são asseguradas, por ocasião de sua volta, todas as vantagens que, em sua ausência, tenham sido atribuídas à categoria a que pertencia na empresa”. Com efeito, não se pode vedar a recomposição da remuneração do reclamante pela concessão dos reajustes salariais e das promo- ções gerais, concedidas linearmente ao conjunto dos empregados da reclamada, no período de afastamento do autor, como se em atividade estivesse, todavia, com efeitos financeiros devidos apenas a partir da data de seu retorno ao serviço. Assim, não existe desalinho com a Lei n. da Anistia e a Orientação Jurisprudencial Transitó- ria n. 56 da SBDI-1 desta Corte, ao se deferir o pagamento da recomposição da remuneração do reclamante, após a sua readmissão, pela concessão dos reajustes salariais e das promoções gerais, essas últimas nos termos em que foram concedidas aos demais trabalhadores, independente da antiguidade e do merecimento, no período de afastamento do empregado anistiado. São devidas ao anistiado apenas as promoções concedidas em caráter geral, linear e impessoal a todos os trabalhadores, que, no período de afastamento do empregado anistiado, continuaram a trabalhar enquadrados nos mesmos cargos e desempenhando as mesmas funções daquele empregado. Recurso de embargos conhecido e parcialmente provido (TST, SBDI-1, E-ED-RR 47400- 11.2009.5.04.0017, Redator Ministro Renato de Lacerda Paiva, DEJT 24/10/2014). Examinemos, na sequência, as parcelas que são devidas em hipóteses de dissolução válida do contrato de trabalho. 12.10.8.2 As prestações típicas da dissolução do contrato É exato afirmar que o empregado cujo contrato se dissolveu pode ter direito, a depender do tipo de cessação do contrato que se realizou na situação concreta, a deduzir as pretensões seguintes: A) Indenização e integração do período de aviso-prévio Pudemos notar, no subtítulo dedicado à resilição do contrato de emprego, que o empregado pode postular que o seu período de aviso-prévio seja indenizado e integrado ao tempo de serviço sempre que o empregador o dispensar sem justa causa e não o tiver notificado na forma legal, com a 446 – Augusto César Leite de Carvalho antecedência mínima de trinta dias, observada a proporção legal com o tempo de serviço. A obrigação de pré-avisar inclui a redução de carga horária, exigida, em relação aos empregados urbanos, pelo artigo 488 e seu parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho. Não é lícito pedir o tempo correspondente à redução de jornada (duas horas diárias) como horas extraordinárias, consoante preconiza a Súmula 230 do TST. Também já pudemos perceber que, excetuando a regra geral, entende-se devida a indenização do aviso-prévio, com integração ao tempo de serviço, em casos de ruptura antecipada de contratos a termo que contenham a cláusula assecuratória do direito recíproco de rescisão (artigo 481 da CLT) e também nas hipóteses de despedida indireta (artigos 483 e 487, §4o, da CLT). Havendo a indenização do período de aviso-prévio, na forma do artigo 487, §1o, da CLT, o seu valor corresponderá ao salário que seria pago nesse período. A Súmula 354 do TST exclui a gorjeta desse cálculo e, assim, orienta que seja o salário (o conjunto de parcelas salariais), e não a remunera- ção (que incluiria a gorjeta e oportunidades de ganho), a base de cálculo do aviso-prévio indenizado. Se é o empregado quem se demite, sem dar o aviso-prévio, pode o empregador descontar de eventuais créditos desse empregado o valor que equivaler ao salário do período de aviso-prévio (artigo 487, §2o, da CLT). A princípio, não pode o empregador exigir indenização nesse valor, mas apenas proceder a desconto, se crédito do empregado houver. B) Férias em dobro, simples e proporcionais O artigo 146 da CLT deixa claro que as férias adquiridas devem ser indenizadas, ainda que o empregado tenha cometido justa causa. Em qualquer caso de dissolução contratual, as férias adquiri- das, que o jargão forense converte em férias vencidas, estarão asseguradas ao trabalhador. Exaurido o período concessivo, pedem-se férias em dobro, ou melhor, a indenização das férias na forma dobrada. Se o período concessivo ainda fluía ao tempo em que houve a cessação do contrato, as férias são devidas na forma simples. Sobre o período aquisitivo que estava em curso quando sobreveio a cessação do contrato, dá ele ensejo às férias proporcionais (indenização de valor proporcional ao tempo de aquisição de férias interrompido: 1/12 da remuneração, não apenas do salário, por cada mês contratual ou fração supe- rior a quatorze dias(1298)). Quando apenas a CLT regulava o direito a férias proporcionais, a primeira verificação era atinente ao tempo de serviço: se o empregado contava menos de um ano de emprego, as férias proporcionais eram devidas somente nas hipóteses de extinção normal do contrato a termo ou dispensa sem justa causa (artigo 147 da CLT); se o empregado contava com mais de um ano de emprego, as férias proporcionais somente não eram devidas nas hipóteses em que ele fosse despe- dido sem justa causa (artigo 146, parágrafo único, da CLT). Mas é fato que o art. 11 da Convenção 132 da OIT, ratificada pelo Brasil e por isso integrante de nosso sistema jurídico como norma supralegal, assegurou o direito a férias proporcionais quando há “cessação da relação empregatícia”, sem prescrever qualquer correlação entre esse direito e a moda- lidade da dissolução contratual. O TST percebeu essa alteração normativa e alterou a Súmula 261 do TST, para afirmar que o empregado que pede demissão antes de completar um ano de emprego tem direito a férias proporcionais. Prevaleceu, assim, a regra mais benéfica prevista na Convenção 132 da OIT, não mais vigorando a regra da CLT segundo a qual o trabalhador com menos de um ano de contrato somente teria direito a férias proporcionais se despedido sem justa causa ou na resolução normal de contrato por tempo determinado. Citando os casos mais comuns, vale dizer que a dispensa sem justa causa sempre dá direito a férias proporcionais; a dispensa por justa causa nunca assegura o direito a férias proporcionais; o empregado que se demite tem direito a férias proporcionais mesmo que não tenha completado um ano de emprego(1299). Em princípio, a jurisprudência tenderia a aplicar a Convenção 132 da OIT e assim assegurar férias proporcionais em outras hipóteses de cessação do contrato no primeiro ano da rela- ção laboral, a exemplo da resolução contratual por morte do trabalhador. (1298) Exemplo: se o empregado foi admitido em 12/fev/2002 e despedido em 28/maio/2002, recebendo salário mensal de R$ 2.400,00, terá ele direito a férias proporcionais no importe de R$ 800,00 (R$ 2.400,00 x 4/12, com acréscimo de 1/3), se lhe foi regularmente concedido o aviso-prévio (não houve indenização e integração ao tempo de serviço, portanto, do período de aviso-prévio). (1299) Vide Súmula 261 do TST. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 447 As férias em dobro, as férias simples e as férias proporcionais devem ser remuneradas ou indeni- zadas, indistintamente, com o acréscimo de 1/3 (um terço) sobre o salário, previsto no artigo 7o, XVII, da Constituição. A Súmula 328 do TST é enfática: “O pagamento das férias, integrais ou proporcionais, gozadas ou não, na vigência da Constituição da República de 1988, sujeita-se ao acréscimo do terço previsto em seu art. 7o, inciso XVII”. C) Décimo terceiro salário proporcional O artigo 1o, §1o, da Lei n. 4.090, de 1962, garante o 13o salário, que a lei ainda denominava gratificação natalina, explicitando que o seu valor deve corresponder a 1/12 (um doze avos) da remu- neração, não somente do salário, devida em dezembro. O §2o do mesmo dispositivo esclarece que a fração igual ou superior a quinze dias deve ser considerada como mês integral, para tais efeitos. Ditos preceitos de lei se reportam ao 13o salário devido em dezembro, quando o contrato está em curso ou cessa após o dia quinze desse mês. Por coerência, o artigo 1o, §3o, da citada Lei n. 4.090, estatui que o 13o salário proporcional é devido, mesmo quando o contrato termina antes do mês de dezembro, nas seguintes hipóteses: a) extinção normal dos contratos a prazo; b) cessação do contrato resultante da aposentadoria; c) dispensa do empregado sem justa causa. O dispositivo em tela (artigo 1o, §3o, da Lei n. 4.090) refere-se, em verdade, à rescisão sem justa causa e poderia ser interpretado como a se reportar não somente à despedida, mas também à resilição contratual que ocorre por iniciativa do próprio trabalhador. Essa discussão foi superada pela Súmula 157 do TST, que recomenda: “A gratificação instituída pela Lei n. 4.090, de 1962, é devida na resili- ção contratual de iniciativa do empregado”. Comentando o verbete, Francisco Antônio de Oliveira(1300) reproduz ementa emblemática do Pleno do Supremo Tribunal Federal, em julgamento no qual figurou o Ministro Evandro Lins como relator: O décimo-terceiro salário é devido, proporcionalmente aos meses trabalhados, mesmo quando o empregado pede demissão, rompendo espontaneamente o contrato de trabalho. O direito do empregado à sua percepção é conquistado mês após mês, tanto que, se demitido sem justa causa, pelo empregador, antes do advento do mês de dezembro, somente receberá tantos avos quantos meses efetivamente trabalhados. É importante notar que o cálculo de férias proporcionais leva em conta o mês contratual, da mesma forma como as férias vencidas têm como parâmetro o ano contratual, e não o ano civil. Já para o 13o salário proporcional, computa-se o mês civil, assim se considerando a fração de mês igual ou superior a quinze dias. O empregado que recebe salário de R$ 1.200,00 e trabalha de 03/jan/2015 a 16/jul/2015, sendo despedido após a regular concessão de aviso-prévio, tem direito de receber R$ 800,00 a título de férias proporcionais (6/12 da remuneração, acrescida de 1/3 do salário) e 13o salário proporcional no valor de R$ 700,00 (7/12 da remuneração). No cálculo de férias proporcionais, consi- deramos que havia seis meses e quatorze dias de trabalho. No cálculo de 13o proporcional, computa- mos cinco meses completos (fevereiro a junho) e mais duas frações de mês de mais de quatorze dias (29 dias em janeiro e 16 dias em julho). D) Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e acréscimo indenizatório de 40% Consoante sobrevisto, ao empregado que tem dissolvido o seu contrato é assegurado o direito a sacar o saldo existente em sua conta vinculada quando há (artigo 20 da Lei n. 8.036/90): • dispensa sem justa causa do empregado; • despedida indireta (artigo 483 da CLT); • cessação do contrato por culpa recíproca; • cessação do contrato por motivo de força maior; • extinção total da empresa ou fechamento de um seu estabelecimento; • aposentadoria do empregado; • falecimento do trabalhador; (1300) OLIVEIRA, Francisco Antônio de. Comentários aos enunciados do TST. p. 380. 448 – Augusto César Leite de Carvalho • extinção normal do contrato a termo; • declaração de nulidade do contrato por admissão de servidor público sem concurso. Acrescentou-se à Lei n. 8.036, de 1990, o artigo 19-A, exigindo a incidência do FGTS sobre os salários pagos ou devidos por força de contrato de emprego com ente público que tenha sido decla- rado nulo, por não se ter submetido o empregado ao concurso de provas ou de provas e títulos. Mas a indenização de valor equivalente ao acréscimo de 40% do saldo do FGTS não é devida nesse caso. Sendo o contrato lícito e o empregado dispensado sem justa causa, assiste-lhe o direito, ainda, a indenização de valor equivalente a 40% do montante dos depósitos em sua conta vinculada, acrescido de juros e correção monetária. Formulários e mesmo decisões judiciais denominam essa indenização de multa, sem que a imprecisão terminológica acarrete algum problema. Nas hipóteses de cessação do contrato por culpa recíproca ou força maior, a citada indenização é devida, mas por metade (20%). A indenização sob exame deve ser depositada na conta vinculada do trabalhador, em conformi- dade com o artigo 18 e parágrafos da Lei n. 8.036, de 1990. Se o empregador assim não procede, pode o empregado postular o pagamento direto, pois o depósito em conta vinculada tem o objetivo de evitar a fraude, que nesse caso não estaria a ocorrer. É oportuno reiterar que as contribuições sociais previstas na Lei n. Complementar n. 110, de 2001, enquanto devidas pelos empregadores em caso de despedida sem justa causa de empregado, na proporção de 10% sobre o montante dos depósitos na conta vinculada, e com alíquota de 0,5% sobre a remuneração mensal do empregado, não revertem em favor do empregado, diretamente. E) Multa do artigo 477, §8o, da CLT A multa, agora sob análise, é devida sempre que o prazo para pagamento das verbas da disso- lução contratual não é cumprido. O prazo pode ser de um ou de dez dias, conforme preceitua o artigo 477, §6o, da Consolidação das Leis do Trabalho. Se o aviso-prévio é regularmente concedido, as verbas consequentes do desate contratual devem ser pagas no dia útil imediato ao término do contrato (artigo 477, §6o, a, da CLT). Os intérpretes e agen- tes do direito do trabalho desconfiam, porém, do aviso-prévio que é cumprido em casa, pois esse não pode ser um artifício para postergar, simplesmente, o pagamento das parcelas resilitórias. Por isso e porque o artigo 477, §8o, da CLT prevê que o prazo é de dez dias, a partir da notificação da demissão (sic), quando é dispensado o cumprimento do aviso-prévio, entende-se que se o empregado cumprir o aviso-prévio em casa, sendo liberado do trabalho nesse período, obtém, então, o direito de receber as citadas verbas no decêndio seguinte ao dia em que foi informado da dispensa(1301). Mas se o aviso-prévio é indenizado pelo empregador, integrando-se o seu período ao tempo de serviço, ou ainda se o aviso-prévio não é devido (casos de resolução contratual ou de contrato a termo, por exemplo), o prazo para pagamento das verbas da dissolução contratual é de dez dias a partir do dia da cessação do contrato (artigo 477, §6o, b, da CLT). Aqui como lá, o prazo é contado com exclu- são do dia de começo e inclusão do dia de vencimento, conforme orientação jurisprudencial n. 162 da SDI-1 do TST, prorrogando-se até o dia útil seguinte, ao que entendemos, sempre que o seu termo final coincidir com dia em que não há expediente na empresa ou, sendo o caso, na sede do órgão incum- bido da assistência ao empregado (artigo 477, §§ 1o e 3o, da CLT). O não pagamento no prazo de um ou dez dias tornará devida a multa, prevista no artigo 477, §8o, da CLT. É certo que o empregador se exime da multa se prova, inclusive mediante de declaração do Ministério do Trabalho ou do sindicato, que a mora é do credor, pois tal empregador teria, sem êxito, envidado esforços para realizar o pagamento. A multa, em favor do empregado, tem valor equivalente ao seu salário, segundo a norma que ora analisamos. A interpretação mais razoável do dispositivo legal conduziria ao entendimento de que essa multa deveria ter o salário por dia de trabalho como parâmetro, multiplicando-se-o pelo número de dias em mora. A multa teria valor maior na proporção em que fosse maior o tempo de atraso no pagamento, não onerando o empregador que atrasasse um dia, por eventual descuido, com o valor cobrado ao (1301) Vide orientação jurisprudencial n. 14 da SDI-1 do TST. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 449 empregador que estivesse em mora há meses ou anos. A verdade, porém, é que esse entendimento não tem prevalecido. Os empregados pedem e, assim provocados, os juízes deferem a multa no valor de um salário mensal, tanto contra o empregador que está em mora há poucos dias como contra aquele que está assim há mais de um mês, ano ou lustro. É de se lamentar essa acomodação da jurisprudência. A multa é devida em qualquer caso de cessação contratual, desde que constatado débito do empregador gerado pela cessação do contrato e ocorra a mora. Salvam-se, como antevisto, a hipó- tese de falência do empregador e, a nosso sentimento, os casos de resolução contratual que sejam incompatíveis com o prazo fixado no artigo 477, §6o, da CLT, a exemplo da morte do empregado, força maior e morte do empregador pessoa física. Percebe-se forte jurisprudência no sentido de não caber a multa em casos de dispensa por justa causa, mas entendemos que a alegação precisa ser procedente, para que não se use a imputação falsa de justa causa como um ardil para evitar o pagamento da multa prevista no artigo 477, §8o, da CLT. Outro ponto de polêmica jurisprudencial sempre foi a imposição da multa do art. 477, §8o, da CLT nos casos em que o vínculo de emprego é reconhecido apenas em juízo. De um lado, advoga-se que o empregador de boa-fé seria lesado quando se impusesse a ele uma sanção legal em consequência de liame empregatício que ele imaginava ser de outra natureza; de lado oposto, rebate-se que não se pode privilegiar a torpeza dos empregadores que mantêm empregados na informalidade. O TST adotou esse último entendimento(1302) ao revogar a orientação jurisprudencial 351 da SDI-1(1303). F) Sanção do artigo 467 da CLT Até o início de setembro de 2001, o artigo 467 da CLT cominava uma sanção que correspondia à dobra do salário retido, sempre que havia cessação do contrato e o empregador não quitava o salário incontroverso até a primeira audiência do processo judicial movido pelo empregado. A Lei n. 10.272, de 2001, alterou a redação do artigo 467 da CLT, que passou a conter a seguinte prescrição: Em caso de rescisão (rectius: cessação) de contrato de trabalho, havendo controvérsia sobre o montante das verbas rescisórias, o empregador é obrigado a pagar ao trabalhador, à data do comparecimento à Justiça do Trabalho, a parte incontroversa dessas verbas, sob pena de pagá-las acrescidas de 50% (cinquenta por cento). É evidente que se não houver controvérsia sobre qualquer das verbas dissolutórias, estará o empregador na contingência de pagá-las, todas, até a primeira audiência em sede judicial, sob pena de as dever, daí por diante, com o acréscimo de 50%. Mas é importante lembrar que a cominação somente é válida nos casos em que já houve a dissolução do contrato (o que é lógico, pois, do contrá- rio, não seriam devidas as tais verbas) e a jurisprudência, com razão, tem entendido que a controvérsia sem consistência, instaurada com o fito exclusivo de elidir a sanção do artigo 467 da CLT, em rigor não a afasta. Exemplo disso é a alegação do empregador de que teria pago as verbas dissolutórias, quando ele sequer tenta comprovar o pagamento. A elisão da pena imposta pelo artigo 467 da CLT pressupõe controvérsia séria sobre o débito em discussão. Por fim, faz-se oportuno aludir ao princípio da extrapetição. É que há, aparentemente, consenso jurisprudencial quanto a ser devida a sanção prevista no artigo 467 da CLT mesmo quando o empre- gado não a pede, ao propor a sua ação trabalhista. G) Indenização adicional. Artigo 9o da Lei n. 7.238/84 (1302) Nesse sentido: RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. MULTA DO ART. 477, § 8.º, DA CLT. RECONHE- CIMENTO DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO EM JUÍZO. A SBDI-1, após o cancelamento da sua Orientação Jurisprudencial 351, firmou posicionamento no sentido de ser devida a multa do art. 477, § 8.º, da CLT, não obstante o reconhecimento do vínculo empregatício tenha se materializado apenas em juízo. A única exceção adotada se verifica no caso em que ficar comprovado que o próprio trabalhador foi quem deu causa à mora no pagamento, hipótese a qual não se pode afirmar como presente na espécie. Precedente. Recurso de embargos conhecido e não provido (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 76200-76.2002.5.02.0461, Relatora Ministra Delaíde Miranda Arantes, Data de Julgamento: 04/10/2012, Data de Publicação: 15/10/2012); ou ainda: MULTA PREVISTA NO ART. 477, § 8º, DA CLT. DIFERENÇAS DE VERBAS RESCISÓRIAS. DEFERIDAS EM JUIZO. A circunstância de as diferenças de parcelas rescisórias terem sido deferidas em juízo não afasta, por si só, a imposição ao pagamento da multa prevista no art. 477, § 8º, da CLT. Recurso de Embargos de que se conhece e a que se nega provimento (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 96700-92.2007.5.17.0002, Relator Ministro João Batista Brito Pereira, Data de Julgamento: 04/10/2012, Data de Publicação: 19/10/2012). (1303) A Orientação Jurisprudencial 351 da SDI-1 tinha o teor seguinte: “Incabível a multa prevista no art. 477, §8o, da CLT, quando houver fundada controvérsia quanto à existência da obrigação cujo inadimplemento gerou a multa”. 450 – Augusto César Leite de Carvalho O artigo 9º da Lei n. 7.238, de 1984, reproduziu o artigo 9º da Lei n. 6.708, de 1984. Uma e outra leis regulavam, a seu tempo, a correção automática semestral dos salários. Rezava o citado artigo de lei: O empregado dispensado, sem justa causa, no período de 30 (trinta) dias que antecede a data de sua correção salarial, terá direito à indenização adicional equivalente a um salário mensal, seja ele optante ou não pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Para além da discussão atinente ao valor da indenização adicional(1304), uma primeira questão se levantou: o período de trinta dias, que antecedia a correção salarial, deveria considerar a integração ao tempo do serviço do período de aviso-prévio indenizado? A resposta é afirmativa, conforme se extrai da Súmula 182 do TST. Se o empregado integra categoria profissional que tem data-base em primeiro de maio e é dispensado, sem justa causa e sem aviso-prévio, em início de março do mesmo ano, a integra- ção do período de aviso-prévio, a ser indenizado, certamente fará devida a indenização adicional. Em contrapartida, tem-se decidido que não é devida essa indenização quando a integração do aviso-prévio indenizado projeta a cessação do contrato para depois da data-base(1305) (o que ocorreria, no nosso exemplo, se a dispensa do empregado se desse em abril). Embora os reajustes semestrais automáticos já não sejam devidos, pois a política governamental de salário se modificou com o tempo, decerto que a angústia de ser dispensado às vésperas da data- -base de sua categoria permanece, sendo esse o caso. O preceito legal não protegia o empregado, somente, contra a despedida que parecia ser obsta- tiva do reajuste salarial. Mais que isso, tentava estatuir sanção pecuniária para inibir a conduta patronal que resultava em impedir que o empregado melhorasse o seu poder aquisitivo, vivendo tempos de novo padrão salarial. Tanto assim que a Súmula 314 do TST recomenda: Ocorrendo a rescisão contratual no período de 30 (trinta) dias que antecede a data-base, observado a Súmula n. 182 do TST, o pagamento das verbas rescisórias com o salário já corrigido não afasta o direito à indenização adicional prevista nas Leis ns. 6.708/79 e 7.238/84. Mas, note-se bem: a indenização somente é devida em caso de dispensa sem justa causa, ocor- rida no trintídio anterior à data-base. H) Seguro-desemprego O Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), instituído pela Lei n. 7.998, de 1990, é constituído essencialmente pela arrecadação das contribuições devidas ao PIS-PASEP e pelo produto da contri- buição adicional pelo índice de rotatividade, previsto no art. 239, §4º, da Constituição. O FAT custeia a bolsa de qualificação profissional de trabalhadores que estão com o seu contrato de trabalho suspenso em virtude de participação em curso ou programa de qualificação profissional (artigo 2o-A da Lei n. 7.998/90) e o seguro-desemprego devido a trabalhadores identificados pela audi- toria fiscal do Ministério do Trabalho como submetidos a regime de trabalho forçado ou reduzidos a condição análoga à de escravo (art. 2º-C), bem como a empregados dispensados sem justa causa que comprovem (art. 3º): • ter recebido salário: em pelo menos doze dos dezoito meses que antecederam a dispensa quando da primeira solicitação, ou em pelo menos nove dos últimos doze meses quando da segunda solicitação, ou ainda nos seis meses que antecederam a dispensa quando das soli- citações seguintes; • não estar em gozo de benefício previdenciário de prestação continuada, exceto o auxílio-aci- dente, o auxílio suplementar e o abono de permanência; • não estar em gozo de auxílio-desemprego; • não possuir renda própria de qualquer natureza suficiente à sua manutenção e de sua família. O período aquisitivo do direito ao benefício é contado a partir da data da dispensa que deu origem à última vez que o empregado se habilitou ao seu recebimento e a extensão desse período aquisitivo depende de a solicitação ser a primeira, a segunda ou alguma solicitação posterior, sendo menor o tempo de aquisição na medida em que as solicitações se sucedem (art. 4º, §2º, da Lei n. 7.998/1990). O valor de cada parcela do benefício observa piso (salário mínimo) e teto previstos em resoluções do (1304) Sobre o valor da indenização adicional, consultar a Súmula 242 do TST. (1305) Vide TST, 2ª Turma, AIRR-779.369/2001, Rel. Min. José Simpliciano Fernandes, DJ 13/02/2004; TST, 4ª Turma, RR-1027/2002-141- 18-00.5, Rel. Min. Milton de Moura França, DJ 10/09/04. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 451 Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador – CODEFAT, variando o número de parcelas em função do tempo de emprego e da ordem de solicitações, sendo maior a quantidade de parcelas na primeira solicitação(1306). O artigo 14 da Resolução n. 467, de 21 de dezembro de 2005, do CODEFAT, exige que o empregado requeira o benefício a partir do 7o (sétimo) e até o 120o (centésimo vigésimo) dias subsequentes à data da dispensa sem justa causa. O empregado que não recebe a Comunicação de Dispensa do seu empregador, ao ser dispen- sado sem justa causa, pode requerer o benefício, ainda assim, pela via administrativa. Mas é certo que a eventual informalidade do contrato (sem anotação na CTPS) ou a falsa imputação de demissão (resilição por iniciativa do empregado) ou de justa causa inviabilizarão o recebimento. Atento a qualquer possibilidade de o empregado sofrer dano em razão de o seu empregador ser omisso, não lhe entregando os documentos úteis ao requerimento de seguro-desemprego, o TST editou a Súmula 389 de sua jurisprudência: SEGURO-DESEMPREGO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. DIREITO À INDENIZAÇÃO POR NÃO LIBERAÇÃO DE GUIAS I – Inscreve-se na competência material da Justiça do Trabalho a lide entre empregado e empregador tendo por objeto indenização pelo não fornecimento das guias do seguro-desemprego. II – O não fornecimento pelo empregador da guia necessária para o recebimento do seguro-desemprego dá origem ao direito à indenização. I) Indenização por danos morais O que se questiona é a possibilidade de a imputação de justa causa configurar dano moral, quando o empregador a alega, mas dela não faz prova ou resulta vencido no processo trabalhista em que são pedidas as verbas resilitórias. A nosso pensamento, a alegação de justa causa precisa mesmo ser refletida ou precedida de máxima ponderação, porque é evidente que causa sério constrangimento (dano extrapatrimonial) a imputação injusta, haja ou não o agravante da divulgação para outras pessoas, no corpo social, da falsa acusação. Até aqui, cogitamos do dano moral cuja reparação fora erigida a direito fundamental pelo art. 5o, V, da Constituição. Num parêntese, cabe redarguir que há, contudo, outro direito que não pode ser relevado, quando se está a discernir que implicações decorrem da alegação malsucedida de justa causa. Referimo-nos ao direito de acesso à Justiça, consagrado no art. 5o, XXXV, da Constituição, em favor da pessoa que se defende no processo Judicial. Também exerce direito subjetivo de alta envergadura jurídica o empregador que postula a apreciação pelo Poder Judiciário de matéria de defesa, como se nota em ementa que provém do STF: A garantia constitucional alusiva ao acesso ao Judiciário engloba a entrega da prestação jurisdicional de forma completa, emitindo o Estado-juiz entendimento explícito sobre as matérias de defesa veiculadas pelas partes. Nisto está a essência da norma inserta no inciso XXXV do art. 5o da Carta da República (STF, 2a Turma., RE 172084/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ Seção I, 3 mar. 1995, p. 4111). Entendemos, por isso, que se deve rejeitar pretensão de tal ordem – de reparação por dano moral resultante da alegação não comprovada de justa causa – em hipóteses nas quais o empregador comprova o cometimento pelo trabalhador de ato reprovável mas não tem sucesso no enquadramento jurídico da conduta a este atribuída, como nos casos em que a Justiça do Trabalho não qualifica como ato de desídia, indisciplina ou insubordinação um comportamento imputado ao trabalhador com proce- dência (porque comprovadamente ocorrido), ou não o reputa grave o suficiente para configurar a justa causa. Inexistiria, ainda, dano moral a ser reparado quando o empregador houvesse postulado, em processo judicial anterior, a declaração de justa causa com base em auditoria interna, instaurada e desenvolvida com isenção e contraditório. Mas a convicção, que temos, de não ser possível impedir que o empregador tenha assegurado esse direito – o de obter provimento jurisdicional sobre a configuração, como justa causa, de fato que tenha apurado com exação administrativa –, não se amolda, inteiramente, à orientação jurisprudencial (1306) O artigo 4o da Lei n. 7.998, de 1990, com as alterações advindas com a Lei n. 13.134, de 2015, assegura de quatro a cinco parcelas na primeira solicitação, três a cinco parcelas na segunda solicitação e de três a cinco parcelas na terceira solicitação, podendo o período máximo ser excepcionalmente prorrogado a critério do Codefat. 452 – Augusto César Leite de Carvalho que somente admite o dano moral quando o processo antecedente é manejado, pelo empregador, com desvio de finalidade, vale dizer, com o propósito de atingir a honra do empregado, a sua fama ou outros direitos da personalidade(1307). A acusação infundada de improbidade gera dano moral independente- mente de a ela se dar, ou não, alguma divulgação. A utilização abusiva do artigo 482 da CLT, quando resulta em desconforto moral para o empre- gado, é causa bastante do direito à reparação. De modo emblemático e após intenso debate, a SBDI-1 do TST decidiu a esse propósito: [...] O ato de improbidade pressupõe conduta que causa dano ao patrimônio do empregador, tendo correlação com crimes previstos no Direito Penal, como furto, previsto no artigo 155 do Código Penal, ou apropriação indé- bita, prevista no artigo 168 do referido diploma legal. Diante disso, a acusação de prática de ato de improbidade constituiu uma grave imputação ao empregado, e a desconstituição pelo Judiciário demonstra claramente o abuso do direito do empregador de exercer o poder disciplinar, ao aplicar a mais severa das penas disciplina- res, fundado em conduta gravíssima sem a cautela necessária. O empregado demitido com base nesse tipo de conduta carrega a pecha de ímprobo, de desonesto, mesmo quando há a desconstituição da justa causa judicial- mente, o que, por óbvio, ofende, de forma profunda, sua honra e sua imagem perante ele mesmo e perante toda a sociedade, causando-lhe sofrimento, independentemente da ampla divulgação ou não do ocorrido por parte de sua empregadora. Mesmo porque, tratando-se de verificação judicial dessa conduta, a publicidade é absoluta, haja vista que o processo é público e, no caso dos autos, não há notícia de que corra em sigilo de justiça. Em julgamentos dessa natureza, é comum a oitiva de testemunhas e a exposição a um processo público para que o reclamante demonstre que não foi ímprobo, que não deu causa a despedimento justificado. Dessarte, antes de imputar conduta ímproba a qualquer trabalhador é indispensável que o empregador se certifique absoluta- mente da materialidade, da autoria, de todos os elementos necessários à futura comprovação dessa imputação. Evidenciado, assim, o dano moral decorrente da não comprovação do ato de improbidade que fundamentou a justa causa do reclamante, é devida a indenização correspondente, nos termos dos artigos 5º, inciso X, da Constituição Federal e 927 do Código Civil. Embargos conhecidos e desprovidos (TST, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, E-RR 20500-90.2003.5.07.0025, Redator Ministro José Roberto Freire Pimenta, DEJT 25/05/2012). Recordemos, inclusive e por oportuno, que no processo em que o Supremo Tribunal Federal reco- nheceu a competência da Justiça do Trabalho para prover sobre a indenização por dano moral(1308), o Ministro Sepúlveda Pertence assentou, para tal efeito, que “a imputação caluniosa – causa petendi de ação reparatória de danos morais –, surgiu exclusivamente em razão da relação de emprego, formu- lada como pretexto de justa causa para a resolução do contrato de trabalho pelo empregador”. 12.11 Estabilidade no emprego 12.11.1 Fonte jurídica e tipologia da estabilidade Após estudarmos os modos e os efeitos da cessação do contrato de emprego, impende obser- var que há fatos impedientes da despedida do trabalhador. Ao proteger interesses ou valores que devem prevalecer quando confrontados com o poder de o empregador dispensar, imotivadamente, o seu empregado, a norma trabalhista garante, por vezes, a manutenção, provisória ou definitiva, do vínculo empregatício. Cuida-se, portanto, de estabilidade, que pode ser prevista em norma estatal e também em conven- ção coletiva de trabalho, no regulamento de empresa ou em qualquer outra fonte de direito do trabalho, inclusive no contrato individual. A sentença normativa, proferida pelos tribunais trabalhistas ao término dos dissídios coletivos de trabalho, às vezes contém cláusula assecuratória de estabilidade por algum tempo a partir do encerramento de greve, o tempo bastante para que as sequelas do movimento grevista se diluam. Antes de esmiuçar as hipóteses legais de estabilidade, uma breve digressão acerca da termi- nologia jurídica: para alguma doutrina, a palavra “estabilidade” denota uma situação definitiva, não transitória, havendo contradição em termos quando cogitamos de “estabilidade provisória”. Se é provi- sória, não seria caso de estabilidade. Quando o emprego está assegurado por algum tempo, não para (1307) Vide Revista LTr 62-09/1241. (1308) Vide Revista LTr 62-12/1620. Sobre a competência da Justiça do Trabalho para decidir sobre indenização por dano moral ou patri- monial decorrente de acidente de trabalho: STF, CC 7204, Rel. Min. Carlos Britto, j. 29/06/2005. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 453 sempre, haveria então “garantia de emprego”, incorrendo em erronia aqueles, como nós, que deno- minamos tal condição jurídica de estabilidade provisória. Deixando ao leitor a prerrogativa de formar entre os críticos da expressão “estabilidade provisória”; usá-la-emos porque associada à práxis jurídica e sobretudo em razão de estar igualmente dicionarizado o significado de estabilidade como “estado de equilíbrio” que não remete ao sentido de definitividade. Por ora, interessam-nos as hipóteses mais comuns de estabilidade, aquelas que têm a Constitui- ção ou alguma lei como fundamento. 12.11.2 A estabilidade definitiva Houve tempo em que a legislação trabalhista se deixou influenciar pela necessidade de o Governo Federal estabilizar a receita de institutos previdenciários e, com tal objetivo, assegurou, inicialmente aos ferroviários, a estabilidade definitiva no emprego após dez anos de serviços efetivos em uma empresa. Editou-se a Lei n. 4.682, de 1923, conhecida como Lei n. Eloy Chaves – em homenagem ao seu autor –, sendo então uma lei nitidamente previdenciária, pois visava à criação da Caixa de Aposen- tadoria e Pensões junto às empresas ferroviárias. Com igual preocupação, a de prover os institutos de previdência social que então se constituíam, outras leis surgiram, na década seguinte, a estender o direito de estabilidade definitiva a marítimos, comerciários e bancários, sendo que estes últimos se tornavam estáveis com apenas dois anos de serviço para um só empregador. Observa Arnaldo Sussekind(1309) que somente com a Lei n. 62, de 1935, o instituto da estabilidade deixou de ser tratado em diploma de previdência social para ser regulado por norma trabalhista, sendo que a citada lei estendeu o direito à estabilidade definitiva, após dez anos de serviço efetivo, a todos os empregados que ainda não possuíam a garantia, excetuados os trabalhadores rurais e os domésticos. A Consolidação das Leis do Trabalho uniformizou, em 1943, a legislação concernente à estabili- dade no emprego, mas excetuou, uma vez mais, rurícolas, domésticos e também os servidores públicos (artigo 7o). Para os demais empregados, inclusive os bancários, a estabilidade era adquirida quando o empregado completava dez anos de trabalho em uma mesma empresa. Os períodos descontínuos de trabalho se somavam, salvo se o empregado houvesse sido dispensado por falta grave, recebido indenização legal ou se aposentado espontaneamente ao final de algum desses períodos (artigo 453 da CLT). Além disso, incluía-se no tempo de serviço o período de afastamento por acidente de trabalho ou para a prestação de serviço militar obrigatório (artigo 4o, parágrafo único, da CLT). Ao empregado que não contasse dez anos de emprego, mas tivesse o seu contrato dissolvido, sem que fosse sua a iniciativa de o resilir, garantia-se uma indenização de valor equivalente a um mês de remuneração por ano ou período superior a seis meses de serviço para aquele empregador (artigo 478 da CLT), desde que ele houvesse superado o primeiro ano da relação laboral, então compreendido como período experimental. O empregado que adquiria a estabilidade decenal não podia ser dispensado, mesmo que come- tesse ilícito tipificável como justa causa. Se o trabalhador cometesse falta grave(1310), facultava-se ao empregador instaurar inquérito judicial, com vistas à comprovação de tal falta e à dissolução do contrato pela Justiça do Trabalho, tudo com base no artigo 494 da Consolidação das Leis do Trabalho. Com esteio no princípio da continuidade, a legislação trabalhista foi edificada a partir do pressu- posto de que a permanência do trabalhador na empresa era um fato natural, que correspondia ao inte- resse patronal de exercer, também por tempo indefinido e com sucesso crescente, a mesma atividade econômica. Tanto assim que o artigo 499, §3o, da CLT, previa (como ainda prevê, mas sem a mesma eficácia): “A despedida que se verificar com o fim de obstar ao empregado a aquisição de estabilidade sujeitará o empregador a pagamento em dobro da indenização prescrita nos arts. 477 e 478”. Na esteira da rica jurisprudência que se construiu a propósito do sistema de estabilidade, a Súmula 26 do TST orientava (até ser revogada em novembro de 2003): “Presume-se obstativa à estabilidade a (1309) SÜSSEKIND, Arnaldo. Instituições de Direito do Trabalho. Vol. 1. p. 609. (1310) Artigo 493 da CLT: “Constitui falta grave a prática de qualquer dos fatos a que se refere o art. 482 (hipóteses de justa causa), quando por sua repetição ou natureza representam séria violação dos deveres e obrigações do empregado.” 454 – Augusto César Leite de Carvalho despedida, sem justo motivo, do empregado que alcançar nove anos de serviço na mesma empresa”. Esse modo de garantir a vigência do artigo 499, §3o, da CLT, acima transcrito, consolidava o entendimento de ser o final do decênio o termo inicial do período de estabilidade – preservava-se, de tal modo, a regra de direito civil, segundo a qual “o termo inicial suspende o exercício, mas não a aquisição do direito”(1311). Vivia-se, podemos notar, um período que parecia ser auspicioso para os trabalhadores, como acentua Arion Sayão Romita: O princípio da estabilidade no emprego chegou a converter-se, em algumas formulações doutrinárias – como expõe Durán Lopez –, em autêntico mito, em um valor intemporal, impe- recível, destinado a inspirar o desenvolvimento do moderno Direito do Trabalho. A estabili- dade no emprego, como conquista de um Direito do Trabalho evolvido e moderno, promoveria a obtenção de novas conquistas. A estabilidade não poderia ser questionada e sua existên- cia deveria ser preservada a todo custo, como barreira oposta a retrocessos intoleráveis. Ignoravam-se as exigências das empresas, de fundo econômico. O progresso histórico da regulação do trabalho humano impunha o contrato de trabalho de duração indefinida, apto a ensejar uma carreira ao empregado, imune ao término derivado da iniciativa patronal. Os contratos por tempo determinado somente seriam tolerados a título de exceção, em nome de um princípio sacrossanto, o da estabilidade no emprego.(1312) Toda essa rede de proteção começou a ruir em 1966. A pretexto de atrair o capital estrangeiro, dando novo impulso à nossa economia, forjou-se, em tal ano, um novo regime, em que os empregados poderiam optar pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), não mais adquirindo estabili- dade os que fizessem tal opção(1313). Ao início de cada mês, o empregador passou a recolher 8% da remuneração paga aos seus empregados, optantes pelo FGTS, no mês anterior. Esses empregados, que optavam pelo FGTS, não mais adquiriam estabilidade decenal e, por isso, disseminou-se, entre os empregadores, o estratagema de não admitir empregados que se opusessem a optar pelo novo regime. Eram raros os empregados regidos pelos artigos 478 e 492 da CLT, sendo residual o paga- mento de indenização de antiguidade ou a aquisição de estabilidade. Salvavam-se os trabalhadores rurais, pois para eles não vigia o regime do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. A Constituição de 1988 universalizou, contudo, o regime do FGTS. Todos os empregados, urbanos e rurais, passaram a ser titulares do direito de receber, ao final de seus contra- tos, o valor recolhido pelos respectivos empregadores em suas contas-vinculadas, desde que não tenham motivado ou deliberado a cessação do vínculo e observadas as restrições legais relativas a esse saque. Não há mais aquisição de estabilidade decenal e o pagamento da indenização de antiguidade somente é devido a empregados, urbanos ou rurais, que tenham prestado serviço antes de 1988 na condição de não optantes pelo regime do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. Raros, muito raros, são os trabalhadores que se encaixam nesse perfil e continuam em atividade. Nada obsta, porém, que o contrato individual, o regulamento de empresa ou mesmo a norma coletiva de trabalho assegurem estabilidade definitiva, embora tal não seja uma prática entre nossos atores sociais. Quando comparamos o sistema trabalhista brasileiro com os de outros países ocidentais, nota- mos que neles se acentua a tendência de flexibilizar as condições de trabalho internas ao contrato, como a regência do tempo e do lugar de labor, mas se tenta preservar a proteção contra a despedida não justificada, ou seja, a proteção do emprego e, nessa esteira, a mantença do trabalhador e de sua família. Ilustrativamente, pode ser lembrado que o trabalhador português assiste a programa acelerado de flexibilização das suas condições de trabalho, sobretudo a partir do Código de Trabalho de 2009 e das reformas que se seguiram, mas o art. 53 da Constituição portuguesa permanece efetivo e inal- terado: “É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”. (1311) Art. 131 do novo Código Civil. (1312) ROMITA, Arion Sayão. Proteção contra a despedida arbitrária. Revista Trabalho & Processo, junho de 1994, São Paulo, Editora Saraiva, p. 8. (1313) Vide Lei n. 5.107, de 1966. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 455 Há, no direito comparado, uma clara inclinação – muito pouco absorvida pelo ordenamento jurí- dico brasileiro – de prestigiar o direito, não de estabilidade, mas sim de o empregado ser informado sobre as razões da cessação de seu contrato. Nessa medida, o contrato de trabalho pode findar até mesmo por outros motivos, que não dizem respeito ao comportamento do empregado. O princípio emergente é o da justificação, como se pode perceber à leitura da Convenção 158 da OIT, ratificada pelo Brasil e em seguida denunciada pela presidência da República (estando a cons- titucionalidade da denúncia sob exame do STF). Países como Alemanha, Canadá e Portugal coíbem a despedida arbitrária(1314), que é aquela completamente desprovida de qualquer motivo, inerente à conduta do empregado, à manutenção da empresa (motivo econômico, financeiro ou mesmo técnico, como o relativo à redução de pessoal que acontece em processos de automação da empresa). Assim está assentado nos anais da 67a Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Genebra, nos idos de 1982: A legislação em matéria de cessação do contrato de trabalho por iniciativa do empregador mudou radicalmente em muitos países. Deixou de consistir essencialmente em regras sobre períodos de pré-aviso e indenizações por despedida e sobras as condições em que se tornam indevidos, passando o requisito de justificação por parte do empregador a constituir o centro jurídico das análises e decisões dos tribunais, principalmente em virtude do frequente apelo a sua proteção por parte de trabalhadores que entendem perdido o emprego sem motivo justifi- cado. Assim, pois, o princípio da justificação se converteu no fundamento da legislação de muitos países sobre o término do contrato de trabalho por iniciativa do empregador [...]”. O artigo 7o, I, da Constituição protege a relação de emprego “contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos da lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”. É lamentável que o projeto de lei complementar, elaborado com a firme colaboração de Arnaldo Sussekind, esteja há cerca de uma década em morosa tramitação no Congresso Nacional. Ademais, a citada lei terá que prever a indenização compensatória, por exigência do referido preceito constitucional. Não haverá a vedação absoluta da despedida arbitrária. Por ora, a indenização devida é aquela prevista no artigo 10, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (acréscimo de 40% sobre o saldo do FGTS), sendo insuficiente para inibir a despedida não justificada. Não custa anotar que a justificação da despedida é uma conduta conotativa de civilidade e respeito à dignidade da pessoa humana. 12.11.3 A estabilidade provisória Certas circunstâncias, em meio à relação de emprego, expõem o trabalhador a conflito aberto com o seu empregador, dada a necessidade de defender interesses titularizados pela coletividade dos empregados. Assim se dá, por exemplo, quando o empregado se candidata e eventualmente se elege dirigente sindical ou representante dos trabalhadores na Comissão Interna de Prevenção de Acidentes. Noutras vezes, protegem-se valores de mais alta estima, como a maternidade, ou mesmo se preserva o vínculo de emprego enquanto o empregado está a exercer representação em colegiado que delibera sobre interesses coletivos, só podendo fazê-lo enquanto empregado. Noutra passagem de nosso curso, vimos que, a salvo os casos de estabilidade da gestante e de estabilidade acidentária, os empregados contratados por tempo determinado não adquirem estabili- dade provisória, ou melhor, adquirem-na somente até o termo final de seus contratos. A jurisprudência trabalhista tem-se posicionado no sentido de também não caber a aquisição de estabilidade provisória em meio ao período de aviso-prévio(1315), mormente quando esse período é indenizado(1316). Havendo direito a estabilidade provisória, importa saber se a lei está a vedar a dispensa arbitrária ou se proíbe qualquer dispensa, mesmo em hipóteses de justa causa, pois a exigir que o vínculo possa se desconstituir apenas em razão de cometimento de falta grave e por sentença, exarada em inquérito judicial (artigo 494 da CLT). É o que sucede, por exemplo, com o dirigente sindical, como recomenda a Súmula 379 do TST: “O dirigente sindical somente poderá ser dispensado por falta grave mediante a apuração em inquérito judicial, inteligência dos arts. 494 e 543, §3º, da CLT”. (1314) Cf. ROMITA, op. cit., p. 11. (1315) Vide Súmula 369, V, do TST. (1316) TST, SBDI-1, Proc. n. ERR-388544/97, Rel. Min. Carlos Alberto Reis de Paula, DJU 6.4.2001, Rev. TST, Brasília, vol. 67, n. 2, abr/ jun 2001, p. 288. 456 – Augusto César Leite de Carvalho Quando a norma, assecuratória da estabilidade, não restringe a dissolução do contrato ao come- timento de falta grave, a jurisprudência(1317) tem enfatizado a desnecessidade de inquérito, vale dizer, a possibilidade de o empregador, diretamente, dispensar o empregado que incorrer em justa causa. Outra decorrência comum das várias hipóteses de estabilidade provisória é a impossibilidade de se obter a reintegração no emprego quando o período de estabilidade já se exauriu. Tem enfatizado o TST que, nesses casos, são devidos apenas os salários desde a despedida até o final do período estabilitário, como revelam as Súmulas 244, II e 396 do TST. Os casos de estabilidade provisória previstos em normas estatais são, em princípio, os que enumeramos em seguida. 12.11.3.1 A estabilidade sindical É vedada a dispensa do empregado sindicalizado que se candidatar a cargo, sujeito a eleição, de direção sindical ou de representação do sindicato perante outros órgãos ou entidades. Dura essa estabilidade, se o empregado for eleito, até o ano seguinte ao término do mandato, dada a necessidade de impedir a maior exposição dos empregados à possível retaliação de seus empregadores, seja quando estes pretendem conter a defesa de interesses trabalhistas que a eles ainda onera ou incomoda, seja quando a defesa da categoria resulte em atos emulatórios ou de pura perseguição que ocorram após o fim do mandato sindical, mas já agora por puro rancor ou tardia vingança. Com o intuito de abrandar o conflito, embora sem o eliminar, a norma jurídica sempre optou por preservar o emprego de tais trabalhadores, desde o momento em que eles se apresentam ao confronto, predispondo-se a participar do diálogo, até quando se esvazia a tensão, o estado de conflito que é imanente à relação entre o empregador e os representantes dos empregados. Antes mesmo de a estabilidade sindical ser contemplada no art. 543, §3o, da CLT, o art. 25 da Lei n. 5.107, de 1966, primeiro dispositivo legal a tratar da matéria, já previa que esse período de conflitu- osidade latente se estendia do registro da candidatura até um ano após o final do mandato. A garantia está, atualmente, assegurada pelo artigo 8o, VIII, da Constituição e, desde antes, vinha prevista, consoante sobredito, no artigo 543, §3o, da CLT, que foi, assim, recepcionado pela nova ordem constitucional, salvo quanto aos dirigentes de associações profissionais – os quais eram está- veis porque, até a edição do texto constitucional de 1988, a entidade associativa somente recebia a investidura sindical (a Carta de Reconhecimento do Ministério do Trabalho) se fosse, até então, uma associação profissional afinada com a política de governo(1318). Como o sindicato não precisa mais passar, ao início de seu processo de constituição, pelo estágio em que figurava apenas como associa- ção profissional, cancelou-se a Súmula 222 do TST, que contemplava a estabilidade dos dirigentes de associações profissionais. Também está visto que o período de estabilidade se inicia com o registro da candidatura e, se eleito o empregado, ainda que suplente, não pode ser ele dispensado até um ano após o final de seu mandato, salvo se cometer falta grave, a ser apurada em inquérito judicial (artigos 494 e 853 da CLT). Duas questões podem ser, aqui, suscitadas: a primeira é pertinente ao início da estabilidade nos casos em que o sindicato está em formação, constituindo-se a diretoria antes de a associação obter a investidura sindical; a segunda questão é relativa ao possível limite para a composição da diretoria, (1317) “ESTABILIDADE PROVISÓRIA DO CIPEIRO – PRÁTICA DE FALTA GRAVE – DESNECESSIDADE DE INQUÉRITO JUDI- CIAL. O art. 494 da CLT, que prevê a necessidade de inquérito judicial para apuração de falta grave imputada a empregado estável, pertine à estabilidade decenal, que era aquela adquirida pelo empregado após mais de dez anos de serviço na mesma empresa. Em caso de estabilidade provisória do cipeiro, assegurada pelo art. 10, II, “b”, do ADCT da Constituição Federal, o dispositivo constitucional é de meridiana clareza ao vedar a dispensa do empregado, nessas condições, se inexistente justa causa. Na mesma linha, o art. 165 da CLT assevera que, ocorrendo a despedida do titular da representação dos empregados na CIPA, caberá ao empregador, se acionado na Justiça do Trabalho, comprovar a existência da justa causa. Não prevêem, como se infere, a necessidade de instauração de inquérito judicial para apuração da falta. Ademais, o Regional, que é soberano na apreciação do material fático-probatório dos autos, entendeu caracterizada a justa causa, por incontinência de conduta, mau procedimento e embriaguez em serviço do Reclamante. Nesse compasso, não tem aplicação ao caso o art. 494 da CLT, ante o que dispõem os arts. 165 da CLT e 10, II, “b”, do ADCT da Carta Magna. Recurso de revista a que se nega provimento” (TST, 4a Turma, Proc. n. RR 556215/99, Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho, Decisão em 29.03.2000, DJ 12.05.2000, p. 369). (1318) Neste sentido: TST, SBDI-1, Proc. ERR 164772/95, Rel. Min. Carlos Alberto Reis de Paula, DJU 30.6.2000. Rev. TST, Brasília, vol. 66, n. 3, jul/set 2000, p. 411. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 457 pois do contrário se forjarão colegiados com número excessivo de trabalhadores, todos desejosos de estabilidade, mas de modo a desfigurar a garantia. Sobre o início da estabilidade quando a composição da diretoria precede a constituição do sindi- cato, parece-nos deslindada a controvérsia a partir de julgamento antológico do Supremo Tribunal Federal. É que o STF garantiu a efetividade do direito mesmo antes do registro da entidade, como esclarece a ementa correspondente: A constituição de um sindicato – posto culmine no registro no Ministério do Trabalho (Supremo Tribunal Federal, MI 144, 3.8.92, Pertence, RTJ 147/868) – a ele não se resume: não é um ato, é um processo. Da exigência do registro para o aperfeiçoamento da constituição do sindicato, não cabe inferir que só a partir dele estejam os seus dirigentes ao abrigo da estabilidade sindical; interpretação pedestre, que esvazia de eficácia aquela garantia constitucional, no momento talvez em que ela se apresenta mais necessária, a da fundação da entidade de classe(1319). A propósito da composição da diretoria sindical, vale resgatar as observações que fizemos ao tratar dos princípios regentes da organização sindical, em confronto com o da autodeterminação cole- tiva. Vimos que o artigo 8o, I, da Constituição consagrou o princípio da autonomia sindical (que veda a interferência do Estado na organização interna do sindicato, nada impedindo, portanto, que a direção do sindicato se constitua, por exemplo, na forma colegiada), mas o Supremo Tribunal Federal(1320) e o Tribunal Superior do Trabalho(1321) vêm decidindo, após intensas refregas em um número significativo de processos, que é abusiva a composição do órgão de direção do sindicato com número de dirigentes sindicais superior ao previsto no artigo 522 da CLT: A administração do Sindicato será exercida por uma diretoria constituída, no máximo, de 7 (sete) e, no mínimo, de 3 (três) membros e de um Conselho Fiscal composto de 3 (três) membros, eleitos esses órgãos pela Assembleia Geral. Em sua redação mais recente, a Súmula 369, II, do TST esclareceu que a estabilidade alcança os sete dirigentes sindicais investidos na forma do art. 522 da CLT e igual número de suplentes. Assim se estancaram as possíveis dúvidas sobre os suplentes também serem estáveis, pois deles cuida o art. 8º, VIII, da Constituição(1322), sem que antes o fizesse o citado dispositivo da CLT. Não tem sido reconhecida a estabilidade de outros dirigentes sindicais, além daqueles quantifi- cados no referido artigo. Mesmo quanto a estes, excluem-se desse manto protetivo os membros do conselho fiscal, pois, com efeito, o artigo 8o, VIII, da Constituição e o artigo 543, §3o, da CLT referem- -se a cargos de direção ou representação sindical. O dissenso jurisprudencial surgiu pelo fato de os membros do conselho fiscal não dirigirem nem representarem o sindicato, exercendo, em vez disso, a fiscalização da gestão financeira(1323). Ousamos entender, porém e em parênteses, que a estabilidade sindical não deveria ser excludente, pois o raciocínio, segundo o qual somente são estáveis os membros da diretoria, abstrai o aspecto relevante de os diretores não agirem necessariamente em conjunto nem precisarem agir para serem virtualmente retaliados. Importa dizer que há sempre deles, como os membros do conselho fiscal, que expõem seus nomes à sanha eventualmente persecutória do empregador pela singela circunstância de integrarem os órgãos de administração sindical, embora não protagonizem as contendas, os conflitos abertos pela melhoria das condições de trabalho. Embora sedimentada a jurisprudência que não inclui os membros do conselho fiscal entre os estáveis, é fato que precedentes judiciais comungavam de entendimento contrário(1324), compartilhado também por autores de indiscutível autoridade acadêmica e judiciária, a exemplo de Arnaldo Sussekind(1325) e Alice Monteiro de Barros(1326). (1319) STF, RE 205107-1-MG, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Ac. 6.8.98, Revista LTr 62-10/1357. (1320) “O art. 522 da CLT, que estabelece número de dirigentes sindicais, foi recebido pela CF/88, art. 8o, I” (STF, RE 193345-3-SC, Rel. Min. Carlos Velloso, Ac. 2ª Turma, 13.4.99, apud Valentin Carrion, Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, 2001. p. 423). (1321) TST, SBDI I, AGERR 603647/99, Min. Milton de Moura França, DJU 27.4.2001, Rev. TST vol. 67, n. 2, abr/jun 2001, p. 290. Nesse sentido, a Súmula 369, II, do TST. (1322) Art. 8º, VIII – é vedada a dispensa do empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou representa- ção sindical e, se eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei. (1323) TST, SBDI 2, Proc. n. TST-ROAR 718676/00, Rel. Juiz Convocado Horácio R. de Senna Pires, DJU 1.6.2001. Rev. TST, Brasília, vol. 67, n. 3, jul/set 2001, p. 318. (1324) Como se pode extrair de ementas oriundas do TRT da 4a Região (Revista LTr 64-05/646) e do TRT da 20a Região (Revista LTr 61-09/1271), esta última a referir os membros da diretoria e do conselho fiscal, nos limites do artigo 522 da CLT, como os membros da administração sindical que detêm a estabilidade. (1325) SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANA, Segadas. Instituições de Direito do Trabalho. Atualização de Arnaldo Sussekind e João de Lima Teixeira Filho. São Paulo : LTr, 1992. p. 634. (1326) BARROS, Alice Monteiro de. Noções de direito sindical. In: Curso de direito do trabalho: estudos em memória de Célio Goyatá. Vol. II. São Paulo: LTr, 1993. p. 648. 458 – Augusto César Leite de Carvalho Todavia, a jurisprudência do TST se consolidou, como visto, em outro sentido, ao negar a esta- bilidade ao membro de conselho fiscal de sindicato “porquanto não representa ou atua na defesa de direitos da categoria respectiva, tendo sua competência limitada à fiscalização da gestão financeira do sindicato”. Assim se inscreve na orientação jurisprudencial n. 365 da SBDI-1 do TST. Ademais, é indispensável a comunicação, pela entidade sindical, ao empregador, do registro da candidatura e, sendo o caso, da eleição e posse do empregado (Súmula 369, I, do TST). O art. 543, §5º da CLT prevê o prazo de vinte e quatro horas para ambas as notificações, mas o TST firmou enten- dimento de que esse prazo pode ser relevado quando a dispensa do empregado ocorreu seguramente depois de o empregador ter ciência de que ele se candidatou ou elegeu-se dirigente sindical, ainda que essa ciência tenha ocorrido após o prazo legal(1327). Por vezes, acontece de ser extinto o estabelecimento em que trabalha o dirigente sindical, invia- bilizando-se, aparentemente, a manutenção do emprego. Por muito tempo se questionou a responsa- bilidade de o empregador pagar, nesse caso, indenização de valor equivalente aos salários do período restante de estabilidade, a pretexto de o risco da atividade econômica recair exclusivamente sobre o empregador. A construção jurisprudencial que se consolidou na Súmula 369, IV, representou uma solução moderada para essa situação, ao preconizar que a estabilidade não subsiste se há a extinção da atividade empresarial no âmbito da base territorial do sindicato. Extinguindo-se apenas o estabe- lecimento, mas havendo outro na base territorial do sindicato, obriga-se o empregador a manter o empregado investido de estabilidade sindical. Por outro canto, o empregado de categoria profissional diferenciada(1328) que se elege para a direção de sindicato só goza de estabilidade se exercer, na empresa, atividade pertinente a essa categoria, conforme orientação contida na Súmula 369, III, do Tribunal Superior do Trabalho. Ainda assim, “empregado integrante de categoria profissional diferenciada não tem o direito de haver de seu empregador vantagens previstas em instrumento coletivo no qual a empresa não foi representada por órgão de classe de sua categoria”. Caso interessante, a propósito da representação sindical de empregados que integram catego- ria profissional diferenciada, deu-se quando o TRT da 4ª Região (RS) e, na sequência, o TST foram provocados acerca de vendedores propagandistas que atuavam em municípios do Rio Grande do Sul na comercialização de fármacos produzidos em São Paulo. A empregadora argumentou que a sua sede empresarial estava situada em São Paulo e por isso não poderia submeter-se à convenção coletiva celebrada entre a federação gaúcha das indústrias farmacêuticas e o sindicato da categoria profissional diferenciada dos vendedores propagandistas do Rio Grande do Sul, embora reconhecesse que os vendedores trabalhavam, a seu serviço, apenas em território rio-grandense. Vem de prevale- cer, porém, a tese segundo a qual a representação das duas categorias, a profissional e a econômica, devem levar em conta, nesse caso, o estado da federação onde são prestados os serviços, sob pena de inviabilizar-se (ou pelo menos dificultar-se demasiadamente) a negociação coletiva e imunizar-se a empresa quanto a direitos conquistados pela categoria obreira(1329). 12.11.3.2 A estabilidade dos membros da CIPA eleitos pelos empregados O artigo 10, II, a, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias veda a dispensa arbitrária ou sem justa causa do empregado eleito para cargo de direção de comissões internas de prevenção de acidentes, desde o registro de sua candidatura até um ano após o final de seu mandato. É impor- tante ressaltar que somente são estáveis os membros eleitos da CIPA, ou seja, os representantes dos empregados. Os representantes do empregador, inclusive o presidente da CIPA, são nomeados pelo próprio empregador, não sendo eleitos pelos empregados e, por isso, não adquirem estabilidade. (1327) Súmula 369, I do TST: “É assegurada a estabilidade provisória ao empregado dirigente sindical, ainda que a comunicação do registro da candidatura ou da eleição e da posse seja realizada fora do prazo previsto no art. 543, § 5º, da CLT, desde que a ciência ao empregador, por qualquer meio, ocorra na vigência do contrato de trabalho”. Precedente: TST, SBDI-1, E-RR – 218600-56.2003.5.02.0016, Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, j. 03/12/2009, DEJT 11/12/2009. (1328) Vide, sobre a caracterização da categoria profissional diferenciada, o artigo 511, §3o, da CLT. (1329) Nesse sentido: TST, 1ª Turma, RR-137000-77.2009.5.07.0011, Relator Ministro Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 21/3/2014; TST, 6ª Turma, RR-1510-84.2011.5.04.0015, Relator Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, DEJT 7/8/2015; TST, 8ª Turma, ARR-67800- 80.2008.5.04.0017, Relatora Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, DEJT 22/5/2015; TST, 1ª Turma, AIRR-13640-90.2007.5.03.0107, Relator Ministro Lelio Bentes Corrêa, DEJT 21/12/2012. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 459 A princípio, questionou-se a extensão dessa estabilidade aos empregados eleitos para a suplên- cia dos membros titulares da CIPA. Tentando pôr cobro a essa dúvida, o TST editou o item I da Súmula 339 de sua jurisprudência, a dar limites definitivos à matéria. Está dito no verbete que “o suplente da CIPA goza da garantia de emprego prevista no art. 10, inciso II, a, do ADCT a partir da promulgação da Constituição de 1988”. O citado preceito constitucional insinua uma absoluta sinonímia entre dispensa arbitrária e dispensa sem justa causa, mas o artigo 165 da Consolidação das Leis do Trabalho define despedida arbitrária como aquela que não se funda em motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro. Vale dizer, o empregado cipeiro pode ser dispensado por causa inerente à empresa, não necessariamente por ter praticado ato que se configure justa causa. O artigo 163 da CLT impõe a constituição de uma comissão interna de prevenção de acidentes em cada estabelecimento ou local de trabalho, delegando ao Ministério do Trabalho, em seu parágrafo único, o poder de regulamentar as atribuições, a composição e o funcionamento das CIPA. Essa dele- gação foi levada a efeito por meio da Norma Regulamentadora n. 5 do Ministério do Trabalho. A correlação entre CIPA e estabelecimentos, correspondendo uma comissão daquelas para cada um destes, tem-se revelado importante na solução do conflito que nasce quando é fechado o estabe- lecimento onde trabalhava o empregado cipeiro. Definiu, sobre o assunto, o item II da Súmula 339 do Tribunal Superior do Trabalho: A estabilidade provisória do cipeiro não constitui vantagem pessoal, mas garantia para as atividades dos membros da CIPA, que somente tem razão de ser quando em atividade a empresa. Extinto o estabelecimento, não se veri- fica a despedida arbitrária, sendo impossível a reintegração e indevida a indenização do período estabilitário. Por derradeiro, cabe frisar que é desnecessário o inquérito judicial para a dissolução do contrato do empregado eleito membro da CIPA. O artigo 165, parágrafo único, da CLT, prescreve: “Ocorrendo a despedida, caberá ao empregador, em caso de reclamação à Justiça do Trabalho, comprovar a exis- tência de qualquer dos motivos mencionados neste artigo, sob pena de ser condenado a reintegrar o empregado”. Logo, o ajuizamento de inquérito pelo empregador não deve sequer ser tolerado, pois a sua desnecessidade importa a ausência de interesse processual, que é condição da ação trabalhista. 12.11.3.3 A estabilidade da gestante O artigo 10, II, b, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias veda a dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. Houve tempo em que se compreendeu a confirmação da gravidez como a convicção da empre- gada sobre o seu estado, obtida por meio idôneo, normalmente por meio de exame laboratorial. De toda sorte, não há exigência de que se confirme junto ao empregador, pois o verbo confirmar tem aqui o sentido de “receber confirmação”, não significando “comprovar”(1330). Isso se dá porque, não bastasse ser dificultosa a prova de que a gravidez teria sido informada ao empregador (na ordem dos fatos, são muitos os empregadores insensíveis que despedem a empregada quando desconfiam de seu estado gravídico), o bem jurídico maior, protegido pela estabilidade da gestante, é a maternidade. A empregada adquire o direito à estabilidade mesmo quando o empregador desconhece a sua gravi- dez, sendo elucidativa a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nesse sentido(1331). Em verdade, a jurisprudência sequer tem dado ao vocábulo confirmação (referimo-nos à confir- mação da gravidez, exigida pelo artigo 10, II, b, do ADCT) a importância que lhe dedicamos, pois não raro a Justiça do Trabalho defere a reintegração da empregada gestante mesmo quando nem mesmo ela tinha ciência, ao ser dispensada, da gravidez que se iniciara durante o vínculo de emprego. As (1330) Embora pudesse também significar “comprovar” em outro contexto, consoante Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. (1331) “Estabilidade provisória da empregada gestante (ADCT, art. 10, II, b): inconstitucionalidade de cláusula de convenção coletiva do trabalho que impõe como requisito para o gozo do benefício a comunicação da gravidez ao empregador. 1. O art. 10 do ADCT foi editado para suprir a ausência temporária de regulamentação da matéria por lei. Se carecesse ele mesmo de complementação, só a lei a poderia dar: não a convenção coletiva, à falta de disposição constitucional que o admitisse. 2. Aos acordos e convenções coletivos de trabalho, assim como às sentenças normativas, não é lícito estabelecer limitações a direito constitucional dos trabalhadores, que nem à lei se permite” (STF, 1a Turma, RE 234186/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 31/08/2001, p. 65). Também do STF, no mesmo sentido: RE 339.713 AgR/SP e RE 259.318/RS. 460 – Augusto César Leite de Carvalho decisões do STF e mesmo a recomendação contida na Súmula 244, I, do TST são, por exemplo, um claro sinal de que as instâncias especial e extraordinária não consideram a confirmação para a empregada – de que ela própria está grávida – um fato relevante na obtenção da sua estabilidade, pois sobre esse fato silenciam os referidos tribunais, talvez porque mais insistentemente provocados sobre a importância de o empregador ter ciência da gravidez. Veja-se, por exemplo, o que enuncia a Súmula 244, I, do TST: O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao pagamento da indenização decorrente da estabilidade (art. 10, II, b, do ADCT). Como o preceito normativo não contém palavras vazias de algum significado, sempre preferimos entender que a aquisição de estabilidade se dava a partir de quando a empregada obtinha, por meio idôneo, a confirmação de sua gravidez, ainda que dela não tivesse conhecimento o empregador. Mas a já referida posição do STF, que detém qualificadamente a guarda do texto constitucional, no sentido de condicionar a estabilidade apenas ao fato objetivo da gravidez, prevalece atualmente. Pondera-se e sublima-se, assim, a relevância não somente do interesse da gestante, que vive uma circunstância singular em sua existência e enfrenta desconfortos que demandam atenção especial, mas também a proteção ao feto e, como mencionado, ao instituto transcendente da maternidade. Em contrapartida, devemos reparar que o período de estabilidade se encerra, normalmente, antes de fluir a prescrição bienal, que corre a partir da cessação do vínculo. Pareceria razoável, por isso, exigir da empregada a diligência de ajuizar ação trabalhista, visando à sua reintegração no emprego, em meio ao período de estabilidade, pois o objetivo da gestante não pode ser, exclusivamente, onerar o empregador – eventualmente sem ciência da gravidez – com a indenização de valor equivalente aos salários do período de estabilidade. Seria necessário que se desse ao empregador a oportunidade de ser informado da gravidez e, cumprindo o mandamento constitucional, restabelecesse o emprego – assim decidiu, em alguns momentos, o Tribunal Superior do Trabalho(1332), antes de assumir, com firmeza, a posição diametralmente oposta(1333): assegura-se a indenização de valor correspondente aos salários do período de estabilidade mesmo quando a empregada propõe a ação judicial após encerrar-se o prazo de estabilidade no emprego. Não mais sendo possível, noutros casos, a reintegração, por razões justas e inerentes à empresa (extinção do estabelecimento, do cargo etc.), devida é igualmente a indenização de importe corres- pondente às parcelas salariais ou indenizatórias relativas ao período de estabilidade. Uma importante ressalva: a indenização se refere a período que compreende, em seu curso, a licença-maternidade, por isso não se podendo cumular as indenizações referentes àquela e a esta, no rol de postulações dirigidas ao juiz. Impende frisar que a norma protetiva da maternidade não faz menção à necessidade de falta grave para que o contrato seja dissolvido e, por isso, desnecessário e mesmo impertinente é o inquérito judicial. Se a empregada pratica justa causa, o empregador a pode dispensar, não tendo que aguardar decisão desconstitutiva da Justiça do Trabalho. De outro lado, vê-se que a empregada gestante que for despedida sem justa causa poderá obter, no processo em que pedir a sua reintegração, seja esta ordenada liminarmente. Por fim, a estabilidade sob exame foi definitivamente estendida à empregada doméstica por meio da Lei n. 11.324/2006, agora com o endosso do art. 25, parágrafo único, da Lei Complementar n. 150/2015, verbis: “A confirmação do estado de gravidez durante o curso do contrato de trabalho, ainda que durante (1332) “ESTABILIDADE PROVISÓRIA. GESTANTE. Ajuizamento da ação no termo final da estabilidade. Frustrada a possibilidade de trabalho pela inércia injustificada da empregada em buscar a sua reintegração (verdadeiro direito assegurado pela estabilidade), não há como assegurar-lhe as vantagens pecuniárias correspondentes à totalidade do período estabilitário, do contrário resultaria consagrado o enriquecimento sem causa da postulante. Devidos os salários decorrentes da estabilidade, todavia, apenas a partir do momento em que a empregada manifestou seu interesse em reassumir suas funções, qual seja, a data em que ajuizou reclamatória trabalhista. Embargos conhe- cidos e providos para condenar a Reclamada a pagar à Reclamante os salários do período da estabilidade provisória, desde a data do ajuiza- mento da ação até 5 (cinco) meses após o parto, com o pagamento das férias, 13o salário e FGTS do período” (TST, SBDI-1, Proc. EEDRR 347.831/97, Rel. Min. José Luiz Vasconcellos, DJU 11.02.00. Rev. TST, Brasilia, vol. 66, n. 1, jan/mar 2000, p. 348). (1333) TST, 3a. Turma, RR – 409/2007-129-15-00.9, Min. Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, j. 22/04/2009, DEJT 15/05/2009; TST, 3a. Turma, RR – 421/2007-023-04-00.7, Min. Rosa Maria Weber, j. 20/05/2009, DEJT 12/06/2009; TST, 4a. Turma, RR – 1030/2003-064- 15-00.1, Min Maria de Assis Calsing, j. 18/02/2009, DEJT 06/03/2009; TST, 4a. Turma, RR – 5943/2006-892-09-00.7, Min. Antônio José de Barros Levenhagen, j. 17/12/2008, DEJT 06/02/2009; TST, 5a Turma, RR – 571/2007-003-20-00.9, Relator Ministro: Emmanoel Pereira, 5ª Turma, j. 19/11/2008, DEJT 28/11/2008. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 461 o prazo do aviso-prévio trabalhado ou indenizado, garante à empregada gestante a estabilidade provi- sória prevista na alínea “b” do inciso II do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.” Antes disso, grassava controvérsia sobre o tema, pois para expressiva corrente doutrinária e jurisprudencial à empregada doméstica se garantia, apenas e no tocante à gravidez, somente o direito à licença-gestante (artigo 7o, XVIII, da Constituição). É que, diversamente do que ocorria às outras empregadas até antes da Emenda Constitucional n. 72, de 2013, a doméstica não tinha, a seu favor, a estabilidade assegurada às gestantes pelo texto da Constituição(1334). Quando se debruçou sobre a matéria, a SBDI-1 do TST alinhou-se, entretanto, a outro entendimento: RECURSO DE EMBARGOS EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI N. 11.496/2007. DOMÉSTICA. ESTABILIDADE GESTANTE. Discute-se nos autos o direito à estabilidade de gestante a empre- gada doméstica, que foi despedida antes do advento da Lei n. 11.234/2006, que pacificou a matéria. No artigo 7º, parágrafo único, a Constituição Federal estendeu ao trabalhador doméstico os direitos previstos aos demais empregados quais sejam, o salário mínimo (inciso IV), a irredutibilidade salarial (inciso VI), o 13o salário (inciso VIII), o repouso semanal remunerado (inciso XV), as férias anuais acrescidas de pelo menos um terço do salário) (inciso XVII), a licença de 120 dias à gestante (inciso XVIII), a licença-paternidade (inciso XIX), o aviso-prévio (inciso XXI) e, por fim a aposentadoria (inciso XXIV). O artigo 10, inciso II, alínea “b”, do ADCT também protege o emprego da gestante desde a confirmação da gravidez até cinco meses depois do parto, contra dispensa sem justa causa ou arbitrária, tratando-se de uma modalidade de estabilidade provisória. Não parece razoável entender que a condição de doméstica seja óbice à obtenção desta proteção à mãe e ao nascituro, conferida pela Constituição Federal para a empregada gestante em geral, uma vez que o objetivo da norma é dar àque- les alguma segurança material, durante algum tempo, amparando-os financeiramente desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. O fato de a empregada doméstica não ter direito à estabilidade genérica do artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal não pode afastar a sua pretensão de obter a garantia provisória concedida às demais empregadas gestantes, uma vez que ela se encontra na mesma situação que qualquer outra trabalhadora quando grávida, não havendo motivo juridicamente aceitável para que se compreenda que não deva gozar das mesmas garantias concedidas pela Constituição Federal às demais empregadas gestantes. Para corroborar tal entendimento, dando amplitude à norma constitucional, em 20 de julho de 2006 foi publicada, no Diário Oficial da União, a Lei n. 11.324, que acrescentou à Lei n. 5859, de 11 de dezembro de 1972, Lei n. do Trabalhador Doméstico, o art. 4º A, com a seguinte redação -É vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada doméstica gestante desde a confirmação da gravidez até 5 (cinco) meses após o parto.- Nesse contexto, deve ser mantida a v. decisão recorrida que reconheceu a estabilidade gestante à empregada doméstica, com base na Constituição Federal e na Jurisprudência esboçada por inúmeros julgados. Recurso de Embargos conhecido e não provido (TST, SBDI-1, E-ED-RR 5112200-31.2002.5.02.0900, Relator Ministro Horá- cio Raymundo de Senna Pires, DEJT 19/04/2013). 12.11.3.4 A estabilidade acidentária O artigo 118 da Lei n. 8.213, de 1991, preceitua: “O segurado que sofreu acidente do trabalho tem garantida, pelo prazo mínimo de doze meses, a manutenção do seu contrato de trabalho na empresa, após a cessação do auxílio-doença acidentário, independentemente de percepção de auxílio-acidente”. Tendo o Supremo Tribunal Federal declarado a constitucionalidade dessa proteção ao trabalhador acidentado, incumbe-nos solucionar duas vezeiras questões: se o trabalhador não recebeu o auxílio- -doença, porque o seu afastamento se deu por menos de quinze dias ou em razão de o empregador não comunicar o acidente ao INSS, terá ele direito à estabilidade, que se inicia, segundo a lei, a partir da cessação do auxílio-doença? Em sendo afirmativa a primeira resposta, o empregado pode exigir do empregador, na Justiça do Trabalho, a sua reintegração, ou, ao revés, toda matéria sobre infortunística deve ser dirimida pela Justiça Comum? Sobre ser devida a estabilidade acidentária ao empregado que não recebeu o auxílio-doença, entendemos que duas situações se distinguem, merecendo tratamento diferenciado. Se o empregado não se afasta, em razão do infortúnio, por mais de quinze dias, a responsabilidade pelo pagamento do salário, nesse breve período de afastamento, é do empregador, cuidando-se, como já vimos, de mera interrupção contratual. Para esse caso, consagra a Súmula 378, II, do TST: “São pressupostos para a concessão da estabilidade o afastamento superior a 15 dias e a consequente percepção do auxílio- -doença acidentário, salvo se constatada, após a despedida, doença profissional que guarde relação de causalidade com a execução do contrato de emprego”. (1334) O artigo 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias regulamenta, provisoriamente, o artigo 7o, I, da Carta Magna, que não protegia o trabalhador doméstico, como se extraía, até antes da EC 72/2013, da antiga redação do parágrafo único desse mesmo artigo 7o da Constituição. 462 – Augusto César Leite de Carvalho Pode acontecer, portanto, de o empregado permanecer por mais de quinze dias sem poder traba- lhar, com sequelas do acidente, não sendo expedida a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) pelo empregador. É certo que o artigo 336, §3o, do Decreto 3.048, de 1999, autoriza o próprio empre- gado, o sindicato ou seu médico, a informarem a ocorrência do acidente, caso não o faça o emprega- dor. Mas não se há negar que o trabalhador, intimidado pela possibilidade de ser vítima de retaliação patronal ou insciente desse seu direito de requerer o auxílio-doença, por vezes aceita trabalhar sem as condições físicas adequadas, não podendo ser punido. Nesse caso, parece-nos claro que o empregado despedido mais de uma quinzena depois de sofrer o acidente de trabalho, mas menos de um ano após o seu restabelecimento, pode pedir a sua reintegração, cabendo à perícia médica, designada pelo juiz, verificar se o mal se configura um acidente de trabalho ou doença profissional e, em caso afirmativo, se era necessário o afastamento por mais de quinze dias. Se a resposta for positiva, devida será a reintegração, pois não se afigura lícito imunizar o empregador omisso, que causa prejuízo ao empregado que sofre porque, ao lhe servir, acidenta-se(1335). Em se entendendo, como nos parece adequado, que o empregador é obrigado a reintegrar o empregado que não recebeu auxílio-doença acidentário em razão de ele, o empregador, não ter comu- nicado o infortúnio ao INSS, nada obsta que a declaração incidenter tantum da ocorrência de acidente de trabalho se dê em processo trabalhista. A Súmula 378, II do TST trata assim do tema, embora se refira apenas à doença profissional pela circunstância de o acidente de trabalho típico não demandar maior questionamento acerca de ser necessário, ou não, o afastamento por mais de quinze dias. Enfim, o artigo 118 da Lei n. 8.213, de 1991, não exige o cometimento de falta grave para a disso- lução do contrato do acidentado. E como apenas a falta grave deve ser apreciada mediante inquérito (artigo 494 da CLT), o empregador poderá dispensar o empregado que praticar justa causa em meio ao período de estabilidade acidentária. 12.11.3.5 A estabilidade dos membros da Comissão de Conciliação Prévia eleitos pelos empregados O artigo 625-A da CLT permite que empresas e sindicatos instituam Comissões de Conciliação Prévia, de composição paritária – ou seja, com representantes dos empregados e dos empregadores – visando à conciliação de conflitos individuais. Se a comissão é instituída no âmbito do sindicato, a sua constituição deve ser regulada pela norma coletiva que a institui. Se a comissão é instituída no âmbito da empresa, metade de seus membros é eleita pelos empregados e, em favor destes, prescreve o parágrafo único do artigo 625-B, §1o, da CLT: É vedada a dispensa dos representantes dos empregados membros da Comissão de Conciliação Prévia, titula- res e suplentes, até 1 (um) ano após o final do mandato, salvo se cometerem falta grave, nos termos da lei. Note-se que, em um aparente descuido, o legislador faz referência a falta grave e, ao mesmo tempo, autoriza a dispensa se o empregado a comete. É sabido que a falta grave somente pode ense- jar a dissolução do contrato quando apurada em inquérito judicial, que resulte em sentença descons- titutiva. Na estabilidade decenal e na estabilidade sindical, já estudadas, vimos que o empregador não pode dispensar o empregado, pois somente a Justiça do Trabalho haverá de dissolver o vínculo, ao reconhecer a falta grave. Logo, o dispositivo acima transcrito (artigo 625-B, §1o, da CLT) encerra uma exceção à regra, ao consentir que o próprio empregador dispense o empregado faltoso. Mas é possível que a jurisprudência caminhe em sentido oposto, entendendo que haveria uma imprecisão terminológica, querendo o legislador se referir a justa causa (artigo 482 da CLT) ao fazer alusão a falta grave (artigo 493 da CLT). Há dúvida, também, quanto ao início do período de estabilidade, porquanto a norma trabalhista, fugindo à tradição, refere-se somente ao termo final da garantia de emprego, não retroagindo o seu início ao registro da candidatura. Dada a raridade com que a matéria é posta à apreciação judicial, é incipiente a jurisprudência quanto a se iniciar a estabilidade no momento em que o empregado registra (1335) Embora o tema seja controvertido, o TST já teve oportunidade de decider em sentido inverso, não assegurando a estabilidade: TST-ERR 346139/97, SBDI-1, Rel. Min. Rider Nogueira de Brito, DJU 1.12.2000. Rev. TST, Brasília, vol. 67, n. 1, jan/mar 2000, p. 350. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 463 a candidatura à representação de seus pares. Na doutrina, Sergio Pinto Martins(1336) defende que “a garantia de emprego não se inicia com a candidatura, mas desde a eleição, pois a lei nada menciona nesse sentido”. Em sentido contrário, verberamos nós, em tese(1337) apresentada no 8o Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho, assim se manifestando outros autores de teses sustentadas nesse mesmo simpó- sio, a exemplo de Carlos Henrique Bezerra Leite(1338), que defende: Observa-se que a lei não faz menção ao marco inicial da garantia estabilitária. Dado que a situação sub examine assemelha-se, em função da representatividade por eleição, à do diri- gente sindical e à do cipeiro, parece-nos juridicamente adequada a aplicação analógica dos arts. 8o, VIII, da Constituição e do art. 10, II, a, do ADCT. É dizer, o dies a quo da garantia no emprego do membro eleito da Comissão de Conciliação Prévia empresarial deve coincidir com o registro de sua candidatura. Mesmo porque entendimento outro poderia desaguar em incentivo à odiosa figura da despedida obstativa, em prejuízo dos fins institucionais do instituto ora criado. Surgiram, há algum tempo, denúncias graves contra representantes de empregados em Comis- sões de Conciliação Prévia, que estariam promovendo conciliações prejudiciais aos empregados, em detrimento até mesmo das garantias mínimas asseguradas aos trabalhadores. É evidente que se a comissão é formada por empregados que não temem a represália patronal – os que a temem não se candidatam, pois se acautelam ante a dissensão doutrinária sobre o início da estabilidade –, é maior a probabilidade de a comissão ser um apêndice do departamento de pessoal do empregador, fugindo, assim, aos fins do instituto. 12.11.3.6 A estabilidade do membro do Conselho Curador do FGTS O artigo 3o da Lei n. 8.036, de 1990, prevê que o FGTS é por meio através de normas e diretrizes estabelecidas por um Conselho Curador, composto por representação de trabalhadores, empregado- res e órgãos e entidades governamentais, na forma estabelecida pelo Poder Executivo. De sua vez, o §9o do mencionado artigo 3o prescreve: Aos membros do Conselho Curador, enquanto representantes dos trabalhadores, efetivos e suplentes, é asse- gurada a estabilidade no emprego, da nomeação até 1 (um) ano após o término do mandato de representação, somente podendo ser demitidos por motivo de falta grave, regularmente comprovada através de processo sindical. Esses representantes dos trabalhadores são indicados pelas centrais sindicais e nomeados pelo Ministro do Trabalho, tendo mandato de dois anos(1339). O período de estabilidade está perfeitamente divisado no dispositivo acima reproduzido: inicia-se com a nomeação pelo Ministro do Trabalho e termina um ano após se encerrar o mandato. O empregado pode ser despedido, mas apenas quando praticar falta grave, apurada em processo sindical. Como a falta grave referida no artigo 494 da CLT não comporta despedida (mas sim a reso- lução pelo juiz) e essa falta tem que ser comprovada por meio de inquérito judicial (não por processo sindical), conclui-se que a falta grave referida no artigo 3o, §9o, da Lei n. 8.036, de 1990, não é aquela que se caracteriza como uma justa causa mais grave e repetida (artigo 492 da CLT). Certamente, o legislador quis se referir à justa causa, tanto que autorizou a dispensa na hipótese de ela ser cometida e exigiu, em vez de inquérito judicial, um processo sindical. Quanto à apuração prévia em processo sindical, há aí uma expressão enigmática. Somente o surgimento do conflito e a experiência jurídica, daí consequente, poderão dar à tal expressão um sentido prático. A princípio, teria o empregador de aguardar a apuração do fato, em inquérito extrajudi- cial, instaurado pelo sindicato que recomendou à central sindical o nome do empregado supostamente infrator. Se era essa a intenção, parece-nos que se verifica, na exigência, uma clara violação do direito subjetivo de ação, com sede constitucional. (1336) MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. p. 379. (1337) CARVALHO, Augusto César Leite de. Período de estabilidade do representante dos trabalhadores na comissão de conciliação prévia. In: VIII Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho, 2000, São Paulo. São Paulo: LTr, 2000. p. 80-82. (1338) LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Garantia no emprego dos representantes dos trabalhadores nas comissões de conciliação prévia. In: VIII Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho, 2000, São Paulo. São Paulo: LTr, 2000. p. 83-85. (1339) Conforme artigo 3o, §3o, da Lei n. 8.036/90. 464 – Augusto César Leite de Carvalho 12.11.3.7 A estabilidade do empregado eleito diretor de cooperativa A Lei n. 5.764, de 1971, regula as cooperativas de produção, de consumo ou de crédito. O seu artigo 55 preceitua que “os empregados de empresas que sejam eleitos diretores de sociedades cooperativas pelos mesmos criadas gozarão das garantias asseguradas aos dirigentes sindicais pelo art. 543 da CLT”. Vimos a estabilidade assegurada aos dirigentes sindicais, também aqui ela se iniciando com o registro da candidatura e se encerrando um ano após o término do mandato. O contrato de emprego não pode ser resilido pelo empregador, como também analisado. Na hipótese de o empregado – eleito diretor de cooperativa – cometer falta grave, cabe ao empregador suspendê-lo e, no prazo decadencial de trinta dias, ajuizar inquérito judicial, ou seja, uma ação (des)constitutiva que visa à resolução do pacto pelo juiz do trabalho. É bom notar, ademais, que se cuida, aqui, de cooperativa instituída pelos empregados, protegendo-se, dentre estes, aquele que se eleger diretor da cooperativa. A jurisprudência(1340), em dado momento, não estendeu o direito de estabilidade aos diretores de cooperativas se nesta ingres- sassem, como associados, outras pessoas, além de empregados da empresa contra a qual se diri- gisse a exigência de respeito à estabilidade. Mas, após alguma cizânia jurisprudencial, a SBDI-1 do TST se posicionou em sentido contrário, como se percebe na ementa seguinte: EMBARGOS – COOPERATIVA – LEI N. 5.764/71 – ESTABILIDADE PROVISÓRIA – ADMISSÃO DE TERCEI- ROS COMO ASSOCIADOS DA COOPERATIVA. O art. 55 da Lei n. 5.764/71 não estabelece qualquer vedação ou restrição no sentido de limitar a estabilidade apenas àquelas cooperativas formadas exclusivamente por empre- gados de uma determinada empresa, sem a participação de terceiros. Embargos conhecidos e desprovidos.(1341) A garantia de emprego é assegurada aos diretores de cooperativas criadas por empregados, sem estendê-la expressamente aos seus suplentes. Em verdade, o mesmo sucederia aos suplentes dos representantes dos trabalhadores na CIPA, uma vez que a CLT não lhes assegurava estabilidade e o art. 10, II, a, do ADCT veda, em sua literalidade, a dispensa somente dos membros titulares. Contudo, a jurisprudência se consolidou de modo diferente ao tratar dos suplentes da CIPA e das cooperativas, pois afirmou caber estabilidade aos suplentes dos membros diretores da CIPA (Súmula 339 do TST) e negou igual garantia aos suplentes dos diretores de cooperativas (OJ 253 da SDI-1 do TST). Quanto a se estender o direito de estabilidade aos membros do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal, acentua-se o dissenso jurisprudencial e doutrinário. Sobre alcançar os membros do Conselho Fiscal, decerto que a discussão tem aspectos diferentes daquela que foi travada a propósito dos membros do Conselho Fiscal dos sindicatos. É que, diversamente do sucedido com o artigo 522 da CLT, que dimensiona a administração das entidades sindicais, o artigo 47 da Lei n. 5.764, de 1971, não inclui o Conselho Fiscal como órgão de administração da cooperativa. Nele não há diretores, mas agentes de fiscalização. Portanto, não se estende a estabilidade, ao que pensamos, aos que integram os conselhos fiscais das cooperativas. No tocante ao Conselho de Administração, não custa recordar, com Sergio Pinto Martins(1342), que “da forma como está escrito no art. 47 da Lei n. 5.764/71, a cooperativa pode também ser dirigida pelo Conselho de Administração, pois é empregada a conjunção alternativa ´ou´. Tanto pode ser dirigida pela Diretoria como pelo Conselho de Administração”. Isso não obstante, o autor afirma, com respaldo em ilação com regras atinentes às sociedades anônimas e em decisão(1343) genérica da Seção de Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, que a estabilidade não é extensiva aos que formam o Conselho de Administração. Pensamos, porém, que se o fim social da norma é a proteção dos que dirigem a cooperativa, não vemos como excluir os membros do Conselho de Administração. Há, inclusive, decisão turmária do Tribunal Superior do Trabalho a que se ajusta o nosso entendimento: O art. 55, da Lei n. 5.764, de 16-12-71, estendeu aos empregados eleitos diretores de sociedade cooperativa as garantias asseguradas aos dirigentes sindicais no artigo 543 da Consolidação das Leis do Trabalho, que, em (1340) TST, SBDI-1, Proc. N. RR 260.651/96, Rel. Min. José Luiz Vasconcellos, DJU 09.06.2000. Rev. TST, Brasilia, vol. 66, n. 3, jul/set 2000, p. 412. (1341) TST, SBDI I, E-RR – 1239/2002-002-03-00.3, Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, j. 04/06/2009, DEJT 12/06/2009. (1342) Cf. Sergio Pinto Martins, Op. cit., p. 376. (1343) Revista LTr 56-07/870. Há decisão específica da SBDI-1, transcrita na Rev. TST, Brasília, vol. 67, n. 2, abr/jun 2001, p. 290. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 465 seu parágrafo 3o, dispõe sobre a denominada ´estabilidade provisória´. A administração do sindicato, segundo expressado no artigo 522, da CLT, é exercida por uma diretoria e membros do conselho fiscal. A sociedade cooperativa é administrada por uma Diretoria ou Conselho de Administração (artigo 47), sendo ela fiscalizada pelo Conselho Fiscal (artigo 56), ao qual não pode pertencer associado que participa do órgão da administração (parágrafo 2o). A estabilidade provisória, portanto, aludida no artigo 55, com remissão ao artigo 543 da CLT, é restrita aos associados que foram eleitos para compor sua Diretoria ou Conselho de Administração da sociedade cooperativa. A estabilidade provisória configura uma excepcionalidade no Direito do Trabalho, construída para proteger o obreiro que, no exercício de suas funções, pode entrar em atrito com o empregador. Como tal, há de submeter-se ao princípio da hermenêutica de que ´o direito excepcional só pode comportar interpretação estrita´. Recurso de revista conhecido e desprovido.(1344) Todavia, o debate parece seguir outra orientação no âmbito da SBDI-1 do TST, que tende a conso- lidar a jurisprudência trabalhista no sentido de a estabilidade não estender-se a todos os membros do conselho de administração, ao menos nos casos em que existe, além de citado órgão deliberativo, uma diretoria eleita. É o que se extrai da ementa seguinte: [...] ESTABILIDADE PROVISÓRIA – MEMBRO DE CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DE COOPERATIVA – ARTIGOS 47 E 55 DA LEI N. 5.764/71 Nos termos do artigo 47 da Lei n. 5.764/71 as sociedades cooperativas são administradas por uma Diretoria ou por um Conselho de Administração. A estabilidade provisória, prevista no art. 55, restringe-se aos empregados que sejam eleitos para exercer cargos diretivos. Assim, se a cooperativa optar pela constituição de apenas um dos órgãos (Diretoria ou Conselho) os seus membros serão detentores de estabilidade provisória. Se houver coexistência de ambos na gestão dos negócios da cooperativa, somente os membros da diretoria gozarão da garantia. Na hipótese dos autos, restou comprovado que houve eleição tanto para a Diretoria como para o Conselho de Administração, motivo pelo qual o Autor, eleito membro do Conselho de Administração, não tem direito à estabilidade provisória. Embargos conhecidos e desprovidos.(1345) 12.11.3.8 A estabilidade do membro do CNPS A Lei n. 8.213, de 1991, regula o Plano de Benefícios da Previdência Social e instituiu, por isso, o Conselho Nacional de Previdência Social – CNPS, formado por representantes do Governo Federal, dos aposentados e pensionistas, dos empregados e dos empregadores. Os representantes dos empre- gados são indicados pelas centrais sindicais e confederações. Em seu art. 3o, §7o, Lei n. 8.213/91, vê-se estatuído: Aos membros do CNPS, enquanto representantes dos trabalhadores em atividades, titulares e suplentes, é assegu- rada a estabilidade no emprego, da nomeação até um ano após o término do mandato de representação, somente podendo ser demitidos por motivo de falta grave, regularmente comprovada através de processo judicial. A não ser quanto ao início do período de estabilidade, percebe-se a semelhança entre essa garan- tia e aquela assegurada aos dirigentes e representantes dos sindicatos, inclusive no que tange à necessidade de inquérito judicial para apuração da falta grave (artigos 494 e 853 da CLT). 12.11.3.9 A estabilidade dos representantes dos trabalhadores na empresa O artigo 11 da Constituição reza que “nas empresas de mais de duzentos empregados, é asse- gurada a eleição de um representante destes com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendi- mento direto com os empregadores”. Por seu turno, o art. 1o da Convenção n. 135 da OIT, ratificada pelo Brasil, prescreve: Os representantes dos trabalhadores na empresa deverão gozar de proteção eficaz contra todo ato que possa prejudicá-los, inclusive a despedida, em razão de sua condição de representantes dos trabalhadores, de suas atividades como tais, de sua filiação ao sindicato ou de sua participação na atividade sindical, sempre que esses representantes atuem conforme as leis, contratos coletivos ou outros acordos comuns em vigor. Como não se fiscaliza o cumprimento do artigo 11 da Constituição, que é regra desprovida de sanção, ainda é pálida a experiência, no mundo real, que faria possível dizer qual proteção estaria assegurada aos representantes de trabalhadores. Entendemos, todavia, que um conflito dessa natureza – relativo à dimensão das garantias que devem ser dadas aos representantes de trabalhadores – já fora solucionado ao menos em dois momentos, pelo (1344) TST, 1a Turma, Proc. RR-583458/99, Rel. Juiz Convocado Vieira de Mello Filho, DJU 2.3.2001. Rev. TST, Brasília, vol. 67, n. 2, abr/ jun 2001, p. 332. (1345) TST, SBDI-1, E-RR – 483274/1998.9, Min. Lelio Bentes Corrêa, j.12/11/2007, DJ 08/08/2008. 466 – Augusto César Leite de Carvalho legislador estatal. Tanto quando regrou a estabilidade sindical, como quando o fez sobre a estabilidade do cipeiro, o Estado brasileiro previu que a garantia de emprego deveria estender-se do registro da candidatura até o ano seguinte ao término do mandato. Logo, o que falta são os mecanismos que assegurem efetividade à garantia constitucional. Em se tratando de norma autoaplicável, conviria uma regulamentação pelo Ministério do Trabalho, seguida de efetiva fiscalização. Não custa recordar que a representação obreira, no ambiente empresarial, mesmo à margem do movimento sindical ou até com a sua colaboração, previne conflitos individuais e coletivos, tornando mais civilizada a relação entre os agentes do capital e os trabalhadores. 12.11.3.10 A estabilidade no período pré-eleitoral Em períodos próximos às eleições, são usualmente editadas leis que, ao regularem o processo eleitoral, costumam vedar e considerar nulos, por alguns meses antes das eleições e até o dia de realização destas, a concessão de reajustes que excedam o índice correspondente ao da inflação, ou ainda a nomeação, admissão, contratação ou exoneração de servidor público, sua transferência, dispensa ou readaptação. Uma após a outra, a Lei n. 7.773, de 1989, a Lei n. 8.214, de 1991, e, mais recentemente, a Lei n. 9.504, de 1997, essas leis eleitorais vêm proibindo a exoneração ou dispensa de servidores integrantes da administração pública centralizada ou descentralizada(1346). É certo que essa vedação de dispensa nos períodos pré-eleitorais vincula as sociedades de economia mista e as empresas públicas, que são entes paraestatais regidos, no tocante às relações de trabalho que constituem, pela legislação trabalhista. É o que está consagrado na orientação jurisprudencial n. 51 da SBDI-1 do TST. (1346) Excerto da Lei n. 9.504/97: “Art. 73 – São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais: (...) V – nomear, contratar ou de qualquer forma admitir, demitir sem justa causa, suprimir ou readaptar vantagens ou por outros meios dificultar ou impedir o exercício funcional e, ainda, ex officio, remover, transferir ou exonerar servidor público, na circunscrição do pleito, nos três meses que o antecedem e até a posse dos eleitos, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados: a) a nomeação ou exoneração de cargos em comissão e designação ou dispensa de funções de confiança; b) a nomeação para cargos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais ou Conselhos de Contas e dos órgãos da Presidência da República; c) a nomeação dos aprovados em concursos públicos homologados até o início daquele prazo; d) a nomeação ou contratação necessária à instalação ou ao funcionamento inadiável de serviços públicos essenciais, com prévia e expressa autorização do Chefe do Poder Executivo; e) a transferência ou remoção ex officio de militares, policiais civis e de agentes penitenciários.” CAPÍTULO XIII DIREITO FUNDAMENTAL DE GREVE 13.1 Conceito Ao comentar a Constituição Italiana de 1947, ocorreu a Calamandrei traçar o modo como evoluiu o conceito de greve: inicialmente, a greve era um delito, transmudou-se em liberdade e, adiante, conver- teu-se em um direito. Como delito, era conduta descrita como crime, assim sucedendo no Código Penal brasileiro de 1890. Deixando de ser delito, foi concebida como a liberdade de não cumprir a obrigação contratual de trabalhar, sujeitando-se o empregado às consequências da mora, entre elas a dispensa por justa causa. Observa Mallet que a mudança é significativa quando passa a greve à categoria de direito: O fato exterior não muda: há o não adimplemento. A qualificação jurídica é diversa, pois não há mora, nos termos do art. 476 do Código Civil. Segundo se escreveu, reconhecer a greve como direito é mais do que apenas proscrever sua tipificação penal. É ir muito além. Implica não a tratar como “desvalor civil e negocial”, ou seja, “como incumprimento do contrato”. A greve passa a ser tutelada e protegida, como um verdadeiro direito que se tem e cujo exer- cício o ordenamento jurídico ampara.(1347) A greve, que nasceu como um fato social, interessa agora como um conceito jurídico, pois do contrá- rio não se a compreenderá como um direito. E se é certo que todo conceito remete a um significado, há conceitos cujos significados transbordam a mera ontologia dos fatos ou fenômenos a que se referem para revelar, além do que vemos no mundo sensível, a causa ou o fim que a conduta humana assim retratada pretende alcançar. Quando o legislador definiu a greve como a “suspensão coletiva, temporária ou pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador”(1348), não a autorizou por qualquer motivo nem a permitiu com vistas à cessação definitiva da atividade empresarial. A greve é um conceito que remete a um fato (a paralisação da atividade), a uma causa (a defesa de um interesse coletivo) e a um fim (o retorno à normalidade com condições mais justas de trabalho). Trata-se, portanto, de conceito que tem conteúdo ontológico e teleológico. Logo, a alusão, no conceito legal, à temporariedade da suspensão do trabalho deve ser associada à expectativa de que a atividade empresarial seja restabelecida, pois não há greve se os trabalhado- res desejam eliminar, de uma vez para sempre, os seus postos de trabalho, a empresa enfim. Nessa digressão se aloja também o componente finalístico do conceito de greve, pois a greve (típica) deve visar à recomposição das condições de trabalho em um padrão mais justo ou equânime, impedindo assim a degeneração do ambiente laboral. 13.2 A greve e o meio ambiente de trabalho A identificação da greve com a causa ambiental se revela mais nitidamente quando não se a contempla para atender a um motivo idiossincrático de determinado trabalhador, a um anseio pessoal ou egoístico. Nada a estranhar quando se tem em mente que, regra geral, as necessidades do empre- gado não o incomodam isoladamente, mas a todos que compartilham a mesma experiência, no ambiente da empresa. Não obstante a Constituição(1349) e a lei(1350) predigam que compete aos traba- lhadores decidir sobre a oportunidade de exercerem o direito de greve e igualmente “sobre os interes- ses que devam por meio dele defender”, a proposta de ruptura da rotina laboral atende, na ordem dos fatos, ao interesse coletivo, ou ao interesse do trabalhador que empolga ou contagia a coletividade dos (1347) MALLET, Estêvão. Dogmática Elementar do Direito de Greve. São Paulo: LTr, 2014. p. 15. (1348) Art. 2º da Lei n. 7.783/89. (1349) Art. 9º da Constituição. (1350) Art. 1º da Lei n. 7.783/89. 468 – Augusto César Leite de Carvalho trabalhadores. Por justa que parecesse ser, a interrupção do trabalho por um empregado específico, para reverter uma situação adversa que isoladamente o inquietasse, não se configuraria greve(1351). Estamos a cuidar, portanto, de um meio de resistência coletiva que visa à pacificação do ambiente de trabalho, proporcionando-lhe condições que não seriam espontaneamente oferecidas pelo empresário. 13.3 A interação com os sistemas político e econômico por ocasião da greve Sob a perspectiva da teoria política, a greve faz emergir a importância do princípio democrático. Assim como se dá em outros setores da sociedade civil politicamente organizada, entrega-se a resolu- ção do conflito coletivo à própria coletividade, pondo-se freio ao poder social que se estaria exercendo em rota de colisão com o ideal de uma sociedade livre, justa e solidária. A ruptura da normalidade, no ambiente de empresa, serve para que ele se deixe contaminar pelo princípio maior da democracia, conjugando afinal liberdade e participação. Sob o prisma puramente econômico, tem-se afirmado que os provedores de todos os outros fato- res de produção (insumos ou matéria-prima, capital e tecnologia) barganham o preço do que fornecem para a constituição e desenvolvimento da empresa, revelando-se a greve como o momento único no qual a oferta de trabalho é represada para que seu custo seja também renegociado. O provedor de trabalho humano decide não mais se resignar ante a dominação do capital, expondo-se também aos riscos da negociação. Rompe-se com a lei da oferta e da procura com vistas ao reequilíbrio dos negó- cios jurídicos, ao menos daqueles que envolvem o trabalho humano. 13.4 A decomposição do conceito de greve Da greve se diz, portanto, que é ela um direito fundamental cujo exercício pressupõe a defesa de um interesse coletivo e a proposta de restabelecimento da normalidade com condições de trabalho mais justas, importando a suspensão temporária e pacífica do trabalho. Quando se submete esse conceito a decomposição ou análise, descerra-se a verdadeira face da greve, o seu instigante conte- údo jurídico. Tentemos desvendá-lo a partir de duas premissas: a de a greve ser direito fundamental e a de estar balizada, para cumprir o seu fim social, pelo princípio da boa-fé objetiva. Na sequência, será interessante analisar, à luz da fundamentalidade do direito de greve e de sua regência pelo princípio da boa-fé, o aspecto de a greve suspender o contrato de trabalho, especial- mente no que tange ao pagamento dos salários. 13.4.1 A greve como direito fundamental – direito coletivo fundamental Os direitos fundamentais se apresentam na forma mais evoluída do Estado de Direito, quando aqueles mesmos direitos naturais que mais adiante compuseram as pautas e declarações universais de direitos humanos se acomodam finalmente nas cartas constitucionais do século XX, exigindo dos estados nacionais o dever, mais que o compromisso, de atender a expectativas de abstenção ou de prestação indispensáveis à consecução dos valores e princípios mais caros da humanidade. Os direitos humanos estão vocacionados ao desafio de serem universais em meio à diversidade cultural da era pós-moderna. Aparelham-se dos atributos da irrenunciabilidade, da incessibilidade e da imprescritibilidade pela singela mas sublime razão de serem positivados com a marca indelével da fundamentalidade. Em certa medida, os catálogos de direitos fundamentais seriam a contribuição mais valiosa da concepção positivista do direito – para ilustrar essa ideia, basta citar os arautos do garantismo jurídico e a preocupação de negarem o caráter meramente programático das constituições (1351) Observa Estêvão Mallet (op. cit., p. 37), porém, que a greve pode atender a interesse coletivo e contar com adesão de trabalhador isolado: “[...] é incorreto dizer, ao menos do ponto de vista teórico, que um único trabalhador não possa fazer greve ou que a greve suponha que ‘le refus de travail émane de plusieurs salariés, agissant collectivement’. Somente quando o direito positivo exige pluralidade de traba- lhadores – como ocorre na Nova Zelândia – é que faz sentido aludir a tal requisito. Ontologicamente não é algo essencial à greve. Afinal, aprovada a greve pelo grupo, se apenas um trabalhador deixa de trabalhar, está ele no exercício do seu direito de greve, ainda que se ache o movimento inviabilizado e fadado ao rápido encerramento. Quem pretende o contrário depara-se com grande dificuldade para explicar a situação do empregado que, após a aprovação de paralisação pelo grupo, não comparece ao trabalho, na expectativa de que todos os demais farão o mesmo, encontrando-se, porém, isolado no comportamento”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 469 para nelas contemplarem princípios e regras aptos não apenas a emprestar validade ou invalidade ao regramento infraconstitucional, mas inclusive a suprir eventuais omissões normativas. Há um ganho qualitativo inquestionável na caracterização da greve como direito fundamental, parecendo significativo dessa mudança de paradigma o aspecto de ela ter ocorrido por obra das cons- tituições sociais que a partir da segunda década do século XX adicionaram aos direitos de liberdade civil e política os direitos sociais, nos catálogos de direitos fundamentais. O direito à greve, a exemplo dos direitos sociais à saúde, educação e moradia, é daqueles que podem ser percebidos em sua dimensão individual no que toca ao seu exercício, mas a sua titularidade remete normalmente a neces- sidades coletivas, que não se acomodam na latitude individual ou isolada de cada interessado. É firme a convicção de que o empregado não pode, solitariamente, deflagrar uma greve. Ao menos a deliberação pressupõe-se coletiva. A convocação dos trabalhadores para esse fim, a deliberação sobre o início da greve e acerca dos meios a serem utilizados, bem assim sobre a terminação da parede, estão indiscutivelmente associados à dimensão coletiva do direito de greve. Não há controvérsia séria, na doutrina ou na jurisprudência, sobre caber ao sindicato, na forma de seu estatuto, “convocar [...] assembleia geral que definirá as reivindicações da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços”. Assim o diz o art. 4º da Lei n. 7.783/89, rematando o seu §2º que, na falta de entidade sindical, a assembleia geral dos trabalhadores interessados deliberará acerca da convocação e da cessação da greve, constituindo comissão de negociação para esse fim. 13.4.1.1 As dimensões individual e coletiva do direito fundamental à greve(1352) Contudo, é comum dizer-se, não somente no Brasil(1353), que o direito de greve é “direito indivi- dual de exercício coletivo”. A dimensão individual se revelaria na adesão à greve, na participação no movimento paredista e na hora em que o trabalhador delibera dele afastar-se, voltando ao trabalho. Parece-nos apropriada a crítica de Mallet: A proposição não é correta e deve ser evitada. Em rigor, a greve apresenta, do ponto de vista ontológico, tanto uma faceta ou dimensão individual como uma coletiva, o que lhe confere estrutura complexa(1354). Mas também é verdade que a lei respalda a conduta individual que destoa da vontade coletiva e o faz quando o legislador opta por não exigir que se interrompa inteiramente a atividade empresa- rial durante a greve – a exemplo do que prescrevem outras ordens jurídicas(1355) – e também quando preceitua: “as manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho [...]”(1356). Em irresistível parêntese, caberia anotar que não parece condizente com o ordenamento jurídico esse desdém pontual do legislador à vontade da maioria. Em outros recantos do direito privado, o interesse coletivo pode até operar-se mediante a ação individual, mas assim se dá para proteger-se o interesse do indivíduo ou do grupo, sem que se estimule o atrito ou conflito entre um e outro, entre o todo e a parte. Ao reger os direitos e deveres dos condôminos, o art. 1314 do Código Civil estatui, por exemplo, que “cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la”. Contudo, o parágrafo único protege o interesse coletivo ou condominial dos arroubos da vontade individual quando prescreve que “nenhum dos condôminos pode alterar a destinação da coisa comum, nem dar posse, uso ou gozo dela a estranhos, sem o consenso dos outros”. (1352) Sobre as dimensões individual e coletiva do direito de greve, ver PALOMEQUE LÓPEZ, Manuel Carlos. Âmbito Subjetivo y Titularidad del Derecho de Huelga. In: Estudios sobre la Huelga. Coordenador Antonio Baylos Grau. Albacete (Espanha): Bomarzo, 2005. p. 15. (1353) O Tribunal Constitucional da Espanha decidiu, sobre o direito de greve: “el ser un derecho atribuido a los trabajadores uti singuli, aunque tenga que ser ejercitado colectivamente mediante concierto o acuerdo entre ellos” (STC 11/1981). Cf. Palomeque, op. cit., p. 15. (1354) Op. cit., p. 33. (1355) Márcio Túlio Viana (VIANA, Márcio Túlio. Direito de Resistência. São Paulo: LTr, 1996. p. 307) refere-se ao modelo mexicano, no qual haveria a interrupção não apenas da prestação individual de serviço, mas igualmente da atividade econômica, impedindo-se que o trabalhador comporte-se de modo a frustrar a defesa do interesse coletivo. (1356) Art. 6º, §3º da Lei n. 7.783/89. 470 – Augusto César Leite de Carvalho Assim sucede igualmente entre co-herdeiros (art. 1791 CC(1357)), porque mesmo entre pessoas que compartilham sentimento fraterno não se tolera a exacerbação da conduta individual em direção contrá- ria ao interesse do grupo. Na greve, dá-se curiosamente o inverso: a possibilidade de dissidência indivi- dual em detrimento da proteção ao interesse coletivo. É o que ocorre sempre que o empregado resolve desertar do movimento grevista, abandonando a causa do grupo de trabalhadores a que pertence. Em rigor, e a despeito de a greve ser um direito fundamental, abandona-se a orientação prevalente em outras searas do direito – a salvaguarda do interesse coletivo – com a finalidade pouco auspiciosa de se atribuir ao trabalhador uma responsabilidade pessoal que ele de outro modo não teria. Paradoxalmente, a conversão da greve em um direito trouxe um evidente embaraço para os que a exercem. A vontade do indivíduo (desertor) é protegida para que os órgãos jurisdicionais possam julgá-lo desprotegido na hipótese de restar viciada, por qualquer razão, a deliberação coletiva de usar a greve como meio de resistência e pressão. Aderir ou não à parede é um gesto de coragem e desas- sombro, um ato de enfrentamento pessoal, em vez de revelar-se o respeito à vontade da maioria e à causa comum. Nota-se que a compreensão da greve como um direito está atrelada, portanto e desa- fortunadamente, a um viés individualista que contaminou a sua força persuasiva, comprometendo a sua finalidade de pacificar o ambiente empresarial. A jurisprudência trabalhista não tem razões, porém, para atiçar essa tendência, aguçando o descompasso entre a titularidade coletiva do interesse tutelado e a responsabilidade pessoal pelos efeitos da ação paredista. Por isso, não se pode consentir, em princípio, que o empregado seja punido quando o for pela participação em greve declarada abusiva(1358), sobretudo quando o é em razão de vícios para os quais ele não concorreu, a exemplo de vícios formais – como a ausência de quórum estatutário na assembleia de convocação ou de ausência de aviso-prévio. 13.4.1.2 A greve como direito fundamental – a opção pela via pacífica e a ausência de métodos alternativos de solução dos conflitos coletivos A origem do direito do trabalho se associa à indignação e ao comportamento reativo de operários que resolveram, em dado momento histórico, desafiar o poder do capital. Antes em estado de abso- luta letargia no âmbito da empresa moderna que se disseminava como nova forma de organização, a revolta ante a injustiça e indignidade das primeiras condições de trabalho arrebatou esses homens para lançá-los contra a opressão que inevitavelmente viria, porque a liberdade de expropriar a energia de trabalho se inseria no amplo espectro de liberdade que a classe burguesa havia conquistado. Serve à antologia da reação obreira o luddismo, movimento de trabalhadores que quebravam máqui- nas ao início do século XIX como modo de se insurgirem contra a mecanização advinda com a revolução industrial. Mas o movimento obreiro era sempre reprimido, inclusive quando consistia na paralisação do trabalho. Anota Márcio Túlio Viana que “um dos exemplos mais duros de repressão se deu na Alema- nha de 1371, quando 32 trabalhadores foram enforcados; mas a Inglaterra de 1500 cortava orelhas dos grevistas e, na França de 1791, a Lei n. Chapelier punia até os patrões que os contratavam”(1359). Nos dias que correm, o Código Penal brasileiro estaria a punir com detenção de seis meses a dois anos e multa aquele que “participar de suspensão ou abandono coletivo de trabalho, provocando a interrupção de obra pública ou serviço de interesse coletivo”. Se hoje a eficácia do dispositivo é incom- patível com a consagração da greve, pela Constituição, como um direito fundamental – e o STF já deci- diu nesse sentido, como nota Mallet(1360), ao menos quando afirmou ser a greve um direito fundamental do servidor público –, é certo que as greves de 1980 motivaram condenações criminais no Brasil, nos estertores do regime autoritário(1361). (1357) Art. 1791, parágrafo único, do Código Civil: “Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e a posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio”. (1358) Sobre o tema, remetemos o leitor ao capítulo que trata da cessação do contrato, no subtítulo que cuida da participação em greve declarada ilegal ou abusiva como causa de resolução do contrato de trabalho. (1359) Viana, op. cit., p. 295. (1360) Op. cit., p. 19. O autor se reporta ao julgamento da ADI 3.235/AL e do MI 712/PA. (1361) Raimundo Simão de Melo (MELO, Raimundo Simão de. A Greve no Direito Brasileiro. São Paulo: LTr, 2006. p. 37) relata: “Poucos dias depois do retorno ao trabalho, com o fim da greve, os dirigentes sindicais e ativistas presos foram soltos. Entre eles estava o líder máximo do movimento, Luiz Inácio da Silva, o Lula, que, juntamente com outros dirigentes e ativistas, foi processado e condenado pela Justiça Militar Federal (2ª. Auditoria Militar, Processo 9/80), com base na Lei n. de Segurança Nacional (Lei n. 6.620/78, art. 36, inciso II)”. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 471 A greve, tal como se a idealiza nos dias de hoje, não comporta atos de violência contra o empre- gador, nem atos dissimulados de lesão aos bens que integram o elemento material da empresa. É um mecanismo de autotutela, ainda assim, pois subverte a lógica econômica da empresa capitalista ao permitir que, por algum tempo, a coletividade de trabalhadores tome a mando a gestão do seu próprio trabalho (ainda que seja para interrompê-lo) e assim permaneça até que se alcancem as condições laborais mais justas ou dignas, que por essa via se reivindicam. Seguindo a contribuição doutrinária de Roberto Santos, explica Márcio Túlio Viana: [...] ao contrário do que acontece com as outras mercadorias, que podem ser manobradas estrategicamente, o trabalho depende de variáveis incontroladas – inclusive a taxa demográ- fica. Não pode controlar sua quantidade de forma estratégica. Nem pode ficar à espera de oportunidade melhor para ser vendido. Daí a necessidade de greve: seu objetivo é afirmar que os vendedores da mercadoria estão dispostos a armazená-la temporariamente.(1362) A greve se justifica também pela falta de alternativas, porventura forjadas pelo engenho humano, para fazer frente à injustiça das condições de trabalho quando a premência de equidade precisa ser combinada com a mantença da prestação alimentar, ainda que a fonte provedora dos alimentos esteja a explorar abusivamente a força de trabalho. As fórmulas alternativas já foram tentadas, reportando-se Marilena Chauí aos trabalhadores da COSIPA que, nos anos 70, aproveitando-se do fato de a unidade de trabalho ser considerado local de segurança nacional, insusceptível a greves, combinaram chegar ao trabalho sem os seus respectivos crachás, o que teria ocasionado a formação de filas imensas, identificação demorada, altos-fornos apagando-se e, por fim, a predisposição da empresa para negociar(1363). Em setembro de 2007, a imprensa noticiou a greve na second life deflagrada pelos empregados da IBM na Itália, aproveitando-se da circunstância de a empresa haver criado um ambiente virtual na página da internet que serve à interação de avatares que simulam a vida real. Com algum sucesso, inclusive midiático, os trabalhadores pressionaram por melhores condições salariais. Não é fácil, porém, imaginar um meio de pressão mais eficiente que a greve para a reversão de uma realidade conjunturalmente adversa, sobrevinda nos limites de uma relação coletiva de trabalho. A realização dessa ideia, a greve, prescinde da imagem de violência que historicamente a contaminou, pois se concretiza, em sua forma atual e civilizada, como um meio pacífico de solucionar conflitos transindividuais, como são os conflitos que normalmente se ambientam na topografia dos estabeleci- mentos empresariais. 13.4.1.3 O interesse coletivo e as greves geral, política e de solidariedade Sendo a greve, desde a sua origem, um meio de persuadir o empresário a atender às reivindi- cações de seus empregados, por vezes se dissente acerca da possibilidade de ser ela utilizada para veicular interesses que não podem ser satisfeitos pelo empregador. É que a eficácia da greve se expande na mesma proporção em que a empresa interfere na realidade social, não raro se a usando para atender a fins que transcendem o ambiente empresarial. Pode-se conjecturar que a greve nunca pediu licença à ciência jurídica, sendo alçada à categoria de direito a reboque dos fenômenos que já se disseminavam, no mundo do trabalho, como um fato social aparentemente irrefreável. Por outro ângulo, também se poderia lembrar que a empresa é um microcosmo da sociedade capitalista, sendo igualmente seus os interesses do capital empolgados pelas políticas públicas que dão sustentação ao atual sistema econômico. No plano essencialmente jurídico, seria de lembrar o aspecto significativo de o art. 9º da Constitui- ção assentar, a propósito do direito de greve, que cabe exclusivamente aos trabalhadores decidir sobre os interesses que devam por meio dele defender, não devendo a norma infraconstitucional restringir o que o constituinte claramente quis ampliar(1364). A greve geral (como a que se desenvolveu na França, em setembro de 2010, contra a elevação da idade mínima de aposentadoria), a greve política (v. g. (1362) VIANA, op. cit., p. 292. (1363) Apud Viana, op. cit., p. 317. (1364) Nesse sentido: DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2010. p. 1321. 472 – Augusto César Leite de Carvalho pela implementação de um direito trabalhista a cuja regulamentação o Estado resiste) e a greve de solidariedade (v. g. apoio a outra greve ou a um dirigente sindical injustamente punido) podem sufragar interesses coletivos que animam categorias inteiras de trabalhadores. O tema, porém, não é pacífico, havendo autores de nomeada que sustentam o não cabimento da greve para a defesa de interesses não trabalhistas, ou que transcendam a esfera de deveres que possam ser atribuídos ao empregador(1365). O argumento se contrapõe à máxima de Fábio Konder Comparato: “a única restrição admissível de uma liberdade constitucional só pode advir da própria Constituição”(1366). Em verdade, a matéria estaria bem equacionada pelos órgãos da Organização Internacional do Trabalho que fiscalizam o cumprimento dos princípios e normas assecuratórias da liberdade sindical, conforme sintetiza Raimundo Simão de Melo: Quanto à greve puramente política, a OIT entende que esta não está abrangida pelos princí- pios de liberdade sindical (Convenção n. 87, art. 10). Todavia, ‘o Comitê concluiu que os inte- resses profissionais e econômicos que os trabalhadores defendem com o direito de greve abrangem não só a conquista de melhores condições de trabalho ou as reivindicações cole- tivas de ordem profissional, mas englobam também a busca de soluções para as questões de política econômica e social [...]. Na mesma ordem de ideias, o Comitê tem observado que os trabalhadores e suas organizações deveriam poder manifestar seu descontentamento com questões econômicas e sociais que guardem relação com os interesses dos trabalhado- res, num âmbito mais amplo que os dos conflitos de trabalho susceptíveis de resultar numa determinada convenção coletiva [...]. A ação dos trabalhadores deve, portanto, limitar-se a expressar um protesto e não ter por objetivo perturbar a tranquilidade pública (OIT, 1999, § 450). Nesse sentido, o Comitê de Liberdade Sindical tem considerado que a declaração de ilegalidade de uma greve nacional de protesto contra as consequências sociais e trabalhistas da política econômica do governo e sua proibição constituem grave violação da liberdade sindical’ (OIT, 1996, § 493). No tocante à greve de solidariedade, em estudo geral de 1983, a Comissão de Peritos da OIT a definiu (‘a greve que se insere em outra empreendida por outros trabalhadores’) e estimou que uma proibição pode ser abusiva, razão pela qual os trabalhadores devem poder recorrer a tais ações, desde que legal a greve inicial que apoiam (OIT, 1983, b, § 217), posição essa assumida também pelo Comitê de Liberdade Sindical (OIT, 1927, §§ 417 e 418)(1367). Mas também é certo que a Seção de Dissídios Coletivos tem dado interpretação mais restritiva ao art. 9º da Constituição – que assegura aos trabalhadores decidirem acerca do interesse que por meio da greve pretendem defender – como se pode extrair de ementa pertinente: RECURSO ORDINÁRIO. DISSÍDIO DE GREVE. NOMEAÇÃO PARA REITOR DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC. CANDIDATA MENOS VOTADA EM LISTA TRÍPLICE. OBSERVÂNCIA DO REGULAMENTO. PROTESTO COM MOTIVAÇÃO POLÍTICA. ABUSIVIDADE DA PARALISAÇÃO. 1. A Consti- tuição da República de 1988, em seu art. 9º, assegura o direito de greve, competindo aos trabalhadores deci- dir sobre a oportunidade de exercê-lo e os interesses que devam por meio dele defender. 2. Todavia, embora o direito de greve não seja condicionado à previsão em lei, a própria Constituição (art. 114, § 1º) e a Lei n. 7.783/1989 (art. 3º) fixaram requisitos para o exercício do direito de greve (formais e materiais), sendo que a inob- servância de tais requisitos constitui abuso do direito de greve (art. 14 da Lei n. 7.783). 3. Em um tal contexto, os interesses suscetíveis de serem defendidos por meio da greve dizem respeito a condições contratuais e ambientais de trabalho, ainda que já estipuladas, mas não cumpridas; em outras palavras, o objeto da greve está limitado a postulações capazes de serem atendidas por convenção ou acordo coletivo, laudo arbitral ou sentença normativa da Justiça do Trabalho, conforme lição do saudoso Ministro Arnaldo Sussekind, em conhecida obra. 4. Na hipótese vertente, os professores e os auxiliares administrativos da PUC se utilizaram da greve como meio de protesto pela não nomeação para o cargo de reitor do candidato que figurou no topo da lista tríplice, embora admitam que a escolha do candidato menos votado observou as normas regulamentares. Portanto, a greve não teve por objeto a criação de normas ou condições contratuais ou ambientais de trabalho, mas se tratou de movi- mento de protesto, com caráter político, extrapolando o âmbito laboral e denotando a abusividade material da paralisação. Recurso ordinário conhecido e provido, no tema (TST, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, RO 51534-84.2012.5.02.0000, Relator Ministro Walmir Oliveira da Costa, Data de Publicação: DEJT 20/06/2014) (1365) Nesse sentido: MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2007. p. 850. (1366) Apud Melo, op. cit., p. 42. (1367) MELO, op. cit., p. 41. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 473 Embora tenhamos reserva em relação a esse entendimento, é relevante, a propósito, dosar a responsabilidade do empregador na mesma medida em que ele tem reais condições de ser dócil ou resistente às reivindicações do movimento grevista. O empregador não pode, muita vez, satisfazer as pretensões que se apresentam em greves políticas ou greves gerais. A Justiça do Trabalho pode proceder a essa dosagem sempre que instada, nos moldes do art. 7º da Lei n. 7.783/89, a prover sobre os salários intercorrentes à greve ou, genericamente, acerca das relações obrigacionais que em meio à greve se estabelecem. 13.4.1.4 A greve como direito fundamental – o lock-in e o lock-out Embora os direitos fundamentais se tenham gestado como uma constitucionalização dos direitos humanos, há alguma controvérsia sobre a sua titularidade poder recair, extraordinariamente, também sobre pessoas jurídicas(1368). Ainda assim, apenas aos trabalhadores, quando considerados coletiva- mente, pode ser atribuída a titularidade do direito fundamental de greve. A propósito, a lei proíbe o empregador de promover o lock-out(1369), assim compreendida a “para- lisação provisória das atividades da empresa, estabelecimento ou seu setor, realizada por determina- ção empresarial, com o objetivo de exercer pressões sobre os trabalhadores, frustrando negociação coletiva ou dificultando o atendimento a reivindicações coletivas obreiras”(1370). O empresário não tem, como se fosse um direito, menos ainda um direito fundamental, a liberdade de interromper a atividade econômica como maneira de exercer pressão sobre os empregados ou sobre a sociedade. Não tem base jurídica, portanto, a paralisação de transporte público de passageiros municipal ou regional, pelas concessionárias privadas desse serviço, com o objetivo de forçar a elevação do preço das passagens pelos órgãos estatais – paralisação que não raro conta com o apoio de trabalhadores susceptíveis à barganha de contribuir com a paralisação em troca da promessa de algum reajuste salarial. Igual ilicitude se observa em bloqueio de rodovias por patrões, desta feita com a colaboração de trabalhadores autônomos, visando à modificação de lei que fixa limites de jornada e intervalo intra- jornada, ou restringe a possibilidade de ganho por carga ou quilometragem, a pretexto de a proteção das estradas e seus usuários onerar demasiadamente os provedores de transporte rodoviário. Outra questão, vista sob enfoque diverso, é o direito de os trabalhadores provocarem, por via pací- fica ou ordeira, a paralisação de toda a atividade econômica, usando meios de persuasão que envol- vam os trabalhadores, sem exceção, na defesa da causa que lhes é própria. Para-se não somente a prestação pessoal de trabalho, mas a atividade produtiva. Um modo de avançar nesse sentido, evitando que prevaleça o receio de enfrentar o poder social em que está investido o empregador, é a greve de ocupação (lock-in) ou greve de braços caídos. Influenciada, talvez, pela jurisprudência gerada sob a influência da antiga lei de greve (a Lei n. 4.330/64), que preconizava o uso da força pública para liberar o acesso ao local de trabalho(1371), subsiste alguma hesitação acerca da licitude da greve que se desenvolve sem que os trabalhadores se afastem, propriamente, do lugar em que normalmente trabalham. Esse estado de perplexidade deriva, certamente, de dois fatores: a timidez com que a lei confere legitimidade à paralisação de toda a atividade econômica (não apenas da prestação individual de trabalho) como uma finalidade legítima da greve (a) e a dificuldade, de índole psicológica, de diferenciar a conduta dos trabalhadores que se declaram em greve mas permanecem dentro do estabelecimento empresarial daquele que se declara ou parece ser fura-greve apenas para disfarçar a sua participação em greve de ocupação (b). A greve de ocupação ou lock-in, a exemplo da operação tartaruga e outros modos disfarçados de enfrentar o poder patronal, legitima-se porque se amolda ao conceito de greve como ruptura da ativi- dade produtiva e da relação coletiva de trabalho, visando ao seu restabelecimento em condições mais (1368) Sobre as pessoas jurídicas poderem ser titulares de direitos fundamentais, ver orientação prevalecente na Alemanha em http: //www. bibliojuridica.org/libros/5/2241/10.pdf (1369) Art. 17 da Lei n. 7.783/89 – Fica vedada a paralisação das atividades, por iniciativa do empregador, com o objetivo de frustrar nego- ciação ou dificultar o atendimento de reivindicações dos respectivos empregados (lockout). Parágrafo único. A prática referida no caput assegura aos trabalhadores o direito à percepção dos salários durante o período de paralisação. (1370) Cf. Delgado, op. cit., p. 1308. (1371) Art. 17, parágrafo único, da Lei n. 4.330/64: “As autoridades garantirão livre acesso ao local de trabalho aos que queiram prosseguir na prestação de serviço”. 474 – Augusto César Leite de Carvalho justas. Não fere, ademais, o princípio da boa-fé, pois a conduta obreira, assim retratada, não denota deslealdade, antes se inserindo no contexto de uma ordenada reação dos trabalhadores à maneira recalcitrante com que o empresário investe contra o exercício do direito de greve. O trabalhador que age assim não é desleal, posto seja apenas destemido. Sobre o tema, observa Mauricio Godinho Delgado(1372) que “a ocupação do estabelecimento (lock- -in) é, essencialmente, um método de realização do movimento paredista. Por isso, enquadra-se no conceito legal dessa figura do Direito Coletivo”. No mesmo sentido, Pinho Pedreira(1373) adverte que as greves de ocupação não são ontologicamente diversas das outras, pois o que há é mera diferença de grau. Trata-se, segundo o professor baiano, de uma qualificação de greve: sendo esta lícita, nem por isso se torna ilícita com a ocupação. 13.4.2 A greve e o princípio da boa-fé objetiva A boa-fé objetiva diferencia-se da boa-fé mencionada nos dispositivos legais que, referindo-se à boa-fé subjetiva, invocam a ingenuidade, a possível inocência na realização de negócios jurídicos invá- lidos. Enquanto a boa-fé subjetiva remete ao consentimento, a boa-fé objetiva traduz-se em lealdade, na honestidade de propósitos que deve nortear as relações jurídicas. Nessa direção, o atual Código Civil contém preceito no sentido de que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”(1374). A assimetria ou desigualdade presente na relação de emprego não autoriza a deslealdade de qualquer dos seus sujeitos individuais ou coletivos, revelando-se a conduta leal na interação com o outro polo da relação intersubjetiva (a) e com o próprio instituto jurídico de que se servem os atores sociais (b), pois as entidades do direito não se prestam a outros escopos senão aos fins sociais para os quais foram concebidos. Se há greve, devem comportar-se os agentes e os destinatários da parede em coerência com os aspectos objetivos e finalísticos do instituto – em princípio, deveriam sempre interromper a atividade laboral e econômica com vistas a solucionar o conflito de interesses que moti- vou a ruptura no processo produtivo. A greve traduz-se em um episódio traumático, mas um trauma que exige tempo e reflexão. A lei, por isso, estabelece alguns mecanismos de imunização da greve, que impedem seja ela perturbada por ações patronais dirigidas à frustração de seu intento (a) ou por condutas obreiras que a desvirtuem como um meio pacífico de alcançar a paz e a equidade no ambiente de trabalho (b). 13.4.2.1 Imunização da greve contra a perturbação patronal Antes mesmo de a greve iniciar, aos representantes dos trabalhadores, que dela cogitam, assegu- ra-se a proteção do emprego e do exercício de seus respectivos mandatos. O direito internacional e o ordenamento jurídico brasileiro são intransigentes quando divisam a necessidade de os representan- tes dos trabalhadores poderem atuar sem o receio de alguma represália patronal. No plano do direito internacional, e não obstante sejam omissas as convenções da OIT sobre o direito de greve, a Convenção 98 da OIT protege a sindicalização do trabalhador contra a discriminação do empresário, salvaguardando a liberdade sindical que a Convenção 87 garante em todas as suas dimensões(1375). Por sua vez, o art. 1º da Convenção 135 renova que “os representantes dos traba- lhadores na empresa devem ser beneficiados com uma proteção eficiente contra quaisquer medidas que poderiam vir a prejudicá-los, inclusive o licenciamento, e que seriam motivadas por sua qualidade ou suas atividades como representantes dos trabalhadores, sua filiação sindical, ou participação em atividades sindicais, conquanto ajam de acordo com as leis, convenções coletivas ou outros arranjos convencionais em vigor”. As Convenções 98 e 135 foram ratificadas pelo Brasil. (1372) Op. cit., p. 1319. (1373) Apud Viana, op. cit., p. 309. (1374) Art. 422 do Código Civil. (1375) Dimensão individual (o direito de filiar-se e o de eleger o sindicato ao qual se filiar), a dimensão coletiva (o direito de grupos forma- rem sindicatos) e a autonomia sindical (o direito de o sindicato estruturar-se internamente). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 475 Internamente, o art. 8º, VIII e o art. 543 da CLT imunizam o dirigente sindical e o exercício de seu mandato, sendo de relevo observar que o art. 11 da Constituição preconiza a eleição de um representante dos trabalhadores nas empresas com mais de duzentos empregados. A ele se garantiria, supostamente, a proteção da Convenção 135 da OIT, não fosse a circunstância de essa incerteza quanto ao nível de proteção que lhe seria assegurada estar desestimulando a eleição de tais representantes de emprega- dos – o que compromete, em última análise, a eficácia do mencionado dispositivo constitucional. A partir da deflagração da greve, a imunização contra a conduta patronal que tente inibi-la é mais visível, pois a lei estabelece que os contratos se suspendem e “é vedada a rescisão de contrato de trabalho durante a greve, bem como a contratação de trabalhadores substitutos”, exceto para a manu- tenção de máquinas e equipamentos – a ser ajustada com o comando da greve – ou quando a greve é exercida de modo abusivo(1376). É evidente que o movimento grevista, para alcançar o seu objetivo, precisa estar blindado contra a tentativa de retaliação, por parte do titular da empresa. Em certa medida, a conduta patronal deve denotar resignação e respeito ao exercício de direito coletivo, que visa à pacificação do ambiente de trabalho. A diluição do poder diretivo se pode sentir quando a lei diz ser “vedado às empresas adotar meios para constranger o empregado ao compare- cimento ao trabalho, bem como capazes de frustrar a divulgação do movimento”(1377). A intenção do legislador é a de entregar à coletividade dos trabalhadores as ferramentas indispensáveis à incorpo- ração de todos ao movimento reivindicatório, valorizando a greve como instrumento de concretização do princípio da democracia. Por iguais razões, a impossibilidade de contratar trabalhadores substitutos não pode, eviden- temente, ser objeto de dissimulação ou fraude. O empregador não está autorizado, por exemplo, a promover a mobilidade de seus empregados ou a remoção de seus trabalhadores terceirizados com o objetivo de liberar-se dos efeitos da greve. Os setores da empresa cujos empregados aderirem à greve não podem ser supridos por outros quaisquer trabalhadores, sob pena de se fazer letra morta do dispositivo legal que protege a parede da resistência abusiva do empregador. Por vezes, surgem leis que anistiam os trabalhadores que lideraram greves ou delas participaram, impedindo assim a consumação da represália patronal. Em rigor, as leis de anistia seriam absolutamente desnecessárias se internalizássemos a garantía de indemnidad, ou seja, a garantia – cunhada pela jurisprudência espanhola e mais adiante difundida por toda a União Europeia – de que não pode sofrer retaliação a pessoa, inclusive o trabalhador, que exerce direito fundamental. Gil Albuquerque esclarece: Definitivamente, a despedida ou qualquer outra sanção imposta pelo empresário ao traba- lhador como consequência de ele exercer seu direito de participar em uma greve legal é nulo por vulnerar o direito fundamental que consiste em tal exercício (art. 55.5 ET e 108.2 LPL, SSTS 2-6-1986, A. 3434, 12-7-1986, A. 4032 ou 2-2-1987, A. 744), tudo isso em virtude do princípio de garantía de indemnidad. No âmbito das relações laborais, a garantía de indem- nidad se traduz na impossibilidade de adotar medidas de represália derivadas das atuações do trabalhador encetadas para a obtenção da tutela de seus direitos (SSTC 7/1993, 14/1993 e 54/1995) ou por ter ele exercido as atividades próprias da representação legal dos traba- lhadores, por isso se extraindo a proibição de dispensa também do art. 5.e) da Convenção n. 158 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pela Espanha(1378). Interessante notar que também no Brasil a greve é um direito fundamental e, apesar de a eficácia da Convenção 158 da OIT ainda estar em debate no STF, a mesma construção jurisprudencial – afirmante da garantia de indenidade – revela-se possível pelo singelo fundamento de que não se reveste de vali- dade o ato patronal, inclusive a dispensa, que se destina a retaliar o exercício de qualquer direito cuja fundamentalidade esteja consagrada no texto constitucional. Logo, a ordem jurídica brasileira oferece a mesma base jurídica que serviu aos europeus na construção da jurisprudência sob exame, faltando ao Poder Judiciário ponderar sobre a aparente relevância de trilhar a mesma senda, em proveito da máxima efetividade dos direitos fundamentais. E do direito fundamental à greve em especial. (1376) Art. 7º da Lei n. 7.783/89. (1377) Art. 6º, §2º, da Lei n. 7.783/89. (1378) GIL ALBUQUERQUE, Román. Efectos de la Huelga sobre la Relación Individual de Trabajo y la Relación de Seguridad Social. In: Estudios sobre la Huelga. Coordenador Antonio Baylos Grau. Tradução livre. Albacete (Espanha): Bomarzo, 2005. p. 132. 476 – Augusto César Leite de Carvalho Sem embargo da evolução doutrinária acerca dos mecanismos de imunização da greve contra a conduta patronal que tenta inviabilizá-la, há um claro déficit de proteção quando se toleram as ações patronais dissuasórias, ou seja, resulta seriamente afetada a incidência do princípio da boa-fé objetiva quando se consente que o empresário possa manter a atividade econômica utilizando-se de meios tecnológicos que supririam a ausência dos trabalhadores. Há notícia de decisões do Tribunal Supremo da Espanha que são emblemáticas dessa postura jurisprudencial. No mais interessante desses processos julgados pela corte espanhola, ocorreu de uma rede de televisão, ao perceber que uma greve de seus empregados impediria a transmissão de um jogo de futebol que lhe daria grande audiência porque era ansiosamente aguardado em todo o país ibérico, reagiu por meio da aquisição do sinal televisivo oferecido por empresas regionais, aten- dendo assim aos seus espectadores. O Tribunal Supremo entendeu que, a propósito da greve, não se imporia ao empresário “o dever ou a obrigação de colaborar com os grevistas quanto ao sucesso de seus propósitos”(1379). Perdeu-se a oportunidade de afirmar que o empresário deve comportar-se resig- nadamente, porque um modo sério de enfrentar o conflito é reconhecer a eficácia da greve como um modo de interromper, mais que a prestação laboral, a própria atividade produtiva, sempre com vistas à solução do conflito que inquieta a coletividade de trabalhadores. 13.4.2.2 Imunização da greve contra a perturbação obreira A greve, como se há dito tantas vezes, é um meio pacífico de restabelecer a paz no ambiente da empresa. Para que os interlocutores se comportem de modo a que o movimento grevista atenda a esse seu desígnio, exige-se que o empresário preserve os postos de trabalho sem a substituição dos grevistas e que os trabalhadores auxiliem na manutenção de bens, máquinas e equipamentos a fim de se restabelecer, ao fim da parede, a atividade produtiva(1380). Quando os trabalhadores negligenciam a obrigação de auxiliar na manutenção de bens, máquinas e equipamentos, dá-se ao empresário o direito de contratar trabalhadores substitutos. O empregador não o fará por espírito vingativo, mas para atender à expectativa de que se mantenham os meios de produção. A lei não diz qual a sanção cabível na hipótese de o empregador faltar a esse dever de manter o seu maquinário, pois se parte do pressuposto de que ele não teria interesse em sua deterio- ração. Mas, por coerência, e sob a influência do princípio da boa-fé, dir-se-ia que aos trabalhadores caberia envidar meios de preservar bens, máquinas e equipamentos se ao empresário, por vingança ou desatino, ocorresse a desafortunada ideia de os deixar perecer. Os trabalhadores podem realizar piquetes de persuasão, vale dizer, é-lhes facultado “o emprego de meios pacíficos tendentes a persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve”(1381), mas “não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa”(1382). Se por um lado se inibe o boicote ou a sabotagem com vistas a causar dano patrimonial, que implicariam a inobservância pelos trabalhadores do dever de preservar o ambiente empresarial, conotando desle- aldade, por outro lado se percebe a preocupação, que inspira insistentemente o legislador, de respal- dar a defecção individual, a atitude do fura-greve que abandona, por razão ou convicção individual, a defesa da causa coletiva. Porque a empresa tem função social, gerando emprego e renda, produzindo bens ou serviços, a relação entre ela e a sociedade também é preservada. Assim, a lei enfatiza, prescritivamente, que, “em nenhuma hipótese, os meios adotados por empregados e empregadores poderão violar ou cons- tranger os direitos e garantias fundamentais de outrem”(1383). Ademais, a lei enumera serviços ou ativi- (1379) STS (4ª) de 27-9-1999. Citação em BAYLOS GRAU, Antonio. Continuidad de la Producción o del Servicio y Facultades Empresa- riales em Casos de Huelga. In: Estudios sobre la Huelga. Coordenador Antonio Baylos Grau. Albacete (Espanha): Bomarzo, 2005. p. 102. (1380) Art. 9º da Lei n. 7.783/89: “Durante a greve, o sindicato ou a comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com o empregador, manterá em atividade equipes de empregados com o propósito de assegurar os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da empresa quando da cessação do movimento. Parágrafo único. Não havendo acordo, é assegurado ao empregador, enquanto perdurar a greve, o direito de contratar diretamente os serviços necessários a que se refere este artigo”. (1381) Art. 6º, I, da Lei n. 7.783/89. (1382) Art. 6º, §3º, da Lei n. 7.783/89. (1383) Art. 6º, §1º, da Lei n. 7.783/89. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 477 dades essenciais(1384) e quanto a eles, num texto aparentemente contraditório, reza que “os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados de comum acordo, a garantir, durante a greve, a pres- tação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”(1385). Os atores sociais estão obrigados a ajustar um meio de atender às necessidades inadiáveis da comunidade, assim compreendidas as que “coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”(1386). Empregador e trabalhadores não podem recusar-se à negociação a propósito das necessidades inadiáveis da comunidade. Normalmente os empresários não faltam a essa obrigação, pois litigam para manter o maior efetivo possível de empregados nas tarefas que, sendo supostamente essenciais, viabilizam, no máximo que lhes seja permitido, o prosseguimento da atividade lucrativa, sem embargo da greve. O descumprimento desse dever por parte dos trabalhadores permite ao empresário a contratação de trabalhadores substitutos que possam atender a essa finalidade(1387). Também porque os trabalhadores não estão movidos por espírito de desforra, mas pretendem romper a continuidade da produção econômica somente para que desse modo possam pacificar as suas áreas de tensão, a lei lhes impõe que avisem à entidade patronal ou ao empregador com ante- cedência mínima de quarenta e oito horas sobre a deflagração da greve. É o tempo necessário, na perspectiva do legislador pátrio(1388), para que o empregador, já sob a pressão da parede iminente, tente dirimir o conflito antes de solucionar-se a sua atividade produtiva, ou possa preparar-se e aos seus clientes e fornecedores para o tempo de greve. Sendo essa a finalidade do aviso-prévio(1389), o seu prazo é elastecido para setenta e duas horas nos casos em que a greve ocorre em serviços ou atividades essenciais, devendo a representação dos trabalhadores cuidar para que, nesse prazo, os usuários de tais serviços ou atividades sejam igualmente notificados da greve que se aproxima(1390). Ajustando-se, assim e portanto, ao princípio da boa-fé, a exigência de prévio aviso não destoa do art. 9º da Constituição que assegura aos trabalhado- res o direito de decidir sobre a oportunidade de exercerem o direito de greve(1391). Alguma ponderação de valores é, aqui, suficiente para se compreender que esse direito de decidir a hora da greve não pode resultar, como por vezes se defende, na decisão de deflagrar a greve imediatamente. 13.4.3 A suspensão do contrato durante a greve Em alguns países, a exemplo da Espanha(1392), a lei que disciplina a greve estatui que o trabalha- dor, no tempo por que ela se estender, não tem direito ao salário. No Brasil, o art. 7º da Lei n. 7.783/89 diz, sucintamente, que “a participação em greve suspende o contrato de trabalho”. O termo “suspensão” traz à lembrança a dicotomia que a CLT estabeleceu entre a suspensão e a interrupção do contrato, havendo a interrupção na hipótese em que o trabalhador não presta trabalho mas recebe o salário. Em rigor, a interrupção corresponderia à suspensão parcial ou relativa, no direito comparado(1393). Autores há que sustentam a inviabilidade de se conceber a greve como uma hipótese de suspen- são total, pois não faria sentido que o trabalhador, ao exercer um direito fundamental, fosse tolhido pela (1384) Art. 10 da Lei n. 7.783/89 – São considerados serviços ou atividades essenciais: I – tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; II – assistência médica e hospitalar; III – distribuição e comercialização de medica- mentos e alimentos; IV – funerários; V – transporte coletivo; VI – captação e tratamento de esgoto e lixo; VII – telecomunicações; VIII – guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; IX – processamento de dados ligados a serviços essenciais; X – controle de tráfego aéreo; XI compensação bancária. (1385) Art. 11 da Lei n. 7.783/89. (1386) Art. 11, parágrafo único, da Lei n. 7.783/89. (1387) Arts. 7º, parágrafo único, 11 e 14 da Lei n. 7.783/89. (1388) Na Espanha, esse prazo é de cinco dias, elevando-se para dez dias nas atividades essenciais, conforme BENGOETXEA ALKORTA, Aitor. El Procedimiento de Ejercicio del Derecho de Huelga. In: Estudios sobre la Huelga. Coordenador Antonio Baylos Grau. Albacete (Espanha): Bomarzo, 2005, p. 29. (1389) Sobre o tema, ver Bengoetxea Alkorta, op. cit., p. 29. (1390) Art. 13 da Lei n. 7.783/89. (1391) Em igual sentido: Mallet, op. cit., p. 19. (1392) Art. 6.2 do RDL de 4 de março de 1977 e art. 45.1. l e 45.2 do Estatuto dos Trabalhadores. Sobre o tema: Gil Albuquerque, op. cit., p. 114. (1393) Cf. MAIOR, Jorge Luiz Souto. Greve e Salário. Disponível em: http://www.otrabalho.com.br/Jsp/Site/BoletimDiario/Login.jsp?do- cDoutrinaId=1241553749 478 – Augusto César Leite de Carvalho retenção de seu salário. O argumento, judicioso embora, não parece exaurir o tema, dado que seria da própria logística da greve a assunção do prejuízo pelo prejuízo que se causa. A coletividade de traba- lhadores promove a interrupção da atividade econômica mediante a contenção do trabalho humano, ao custo de não obter a remuneração do trabalho que, para dar azo a essa estratégia, não prestou. É como se a lógica da coação econômica se invertesse num espasmo: o empresário precisa negociar para voltar a produzir e auferir lucro. Em rigor, os institutos jurídicos não se transmudam, antes se potencializam, quando conquistam o selo da fundamentalidade. Se a greve pressupõe a indisponibilidade da força de trabalho, implica- ria ipso facto a inexistência de trabalho a ser remunerado. Poder-se-ia até mesmo, em endosso de tal construção exegética, acrescer que a remuneração não é paga, ou não o é apenas, em razão da onerosidade que caracteriza a relação de emprego, mas sim em virtude da impossibilidade, sob a pauta dos direitos humanos, de haver trabalho sem a contrapartida salarial que o dignifica. Mas Souto Maior(1394) adverte, na defesa persuasiva – e ao nosso ver consistente – do direito aos salários durante a greve, que o trabalho prestado durante a parede seria, em princípio, uma contingên- cia resultante da negociação que visara à manutenção de bens, máquinas e equipamentos ou, sendo a hipótese de serviços ou atividades essenciais, do ajuste entre trabalhadores e empregadores com vistas ao atendimento das necessidades inadiáveis da sociedade. Logo, haveria trabalhadores que teriam votado pela paralisação mas estariam prestando serviço apenas para atender à convocação da liderança e, por outro lado, seria igualmente injusto que restassem prejudicados somente aqueles que, concordando ou não, respeitaram a deliberação coletiva de interromper a atividade produtiva. A análise da matéria sob a regência do postulado da boa-fé objetiva implicaria, portanto, resistir à ideia de que os trabalhadores remunerados o seriam porque estariam laborando em dissonância da vontade coletiva ou o fizessem para atender a essa vontade. Se os que trabalham durante a greve o fazem para compor a cota dos que foram aleatoriamente escolhidos para servir a interesses coletivos contingentes (a preservação dos meios de produção e as necessidades inadiáveis da comunidade), ainda que estejam acordes com a greve, não há sentido em prestigiá-los com um salário que faltará àqueles que interrom- pem a atividade por respeito à deliberação coletiva, malgrado guardem reserva quanto a esta. O silogismo inverso – não se deve sacrificar os que aderem à greve sem concordar com a decisão assemblear de inter- romper a atividade produtiva – confere racionalidade e legitimidade ao argumento. Embora a orientação prevalecente seja a de que a greve importa a suspensão total do contrato, com a retenção dos salários a ela intercorrentes, irresistível é conjecturar que haveria um ganho de civilidade, no templo do trabalho, se a doutrina e a jurisprudência decidissem romper o modelo atual no que toca à possibilidade de o empresário exigir a continuidade da atividade econômica após a defla- gração regular da greve. Mesmo que se transija quanto ao direito de o empresário resistir à insurreição obreira – porque greves abusivas realmente existem – antes de a vontade coletiva se manifestar, deixando aberto o seu estabelecimento e disponíveis as condições de trabalho, não estaria ele autorizado a frustrar a finalidade da greve depois de instaurar-se ela, seja ao “adotar meios para constranger o empregado ao comparecimento ao trabalho, bem como capazes de frustrar a divulgação do movimento”(1395), seja pelo uso de medidas dissuasórias como a remoção de empregados ou trabalhadores subcontratados e a proteção do local de trabalho por meio de interditos possessórios. O locus da greve é o lugar onde as condições de trabalho se desenvolvem sem a equidade aspirada pela coletividade dos trabalhadores. Em pelo menos uma hipótese a jurisprudência se sedimenta no sentido de a conduta desleal do empresário impor o pagamento dos salários em meio à greve. Trata-se da greve que não busca a formulação de uma norma coletiva que inove a ordem jurídica, mas serve como reação ao descum- primento, pelo empregador, de norma preexistente(1396). Até mesmo sob a regência da exceção do (1394) MAIOR, op. cit. (1395) Há, nesse sentido, vedação expressa no art. 6º, §2º, da Lei n. 7.783/89. (1396) Sobre o tema: “RECURSO ORDINÁRIO. DISSÍDIO COLETIVO. GREVE DEFLAGRADA PELO SINDICATO DOS TRABALHA- DORES NAS INDÚSTRIAS DA CONSTRUÇÃO DE ESTRADAS, PAVIMENTAÇÃO, OBRAS DE TERRAPLANAGEM E MONTAGEM INDUSTRIAL DO ESTADO DA BAHIA – SINTEPAV/BA. SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. NÃO PAGAMENTO DOS DIAS PARADOS. O Regional declarou a abusividade da greve dos trabalhadores das obras de construção de gasoduto no projeto deno- minado GASCAC (Bahia), tanto em relação aos aspectos formais quanto materiais, previstos na Lei n. 7.783/89, e isentou as empresas representadas neste dissídio pelo Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada – SINICON do pagamento, aos grevistas, referente Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 479 contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus), regra básica que o direito civil contempla no âmbito dos contratos bilaterais, não se pode impor à parte inocente, se a outra negligencia a sua prestação, um ônus desmesurado. A bem dizer, a matéria se reveste de maior complexidade quando é submetida à regência da boa-fé objetiva. Pode-se inclusive evoluir para se compreender que não haveria, como usualmente se defende ao interpretar-se o art. 7º da Lei n. 7.783/89(1397), a premissa legal do não pagamento dos salários somente quando norma coletiva, laudo arbitral ou decisão judicial não dispuserem sobre a obrigação de pagá-los, apesar da greve. Em vez de se partir da premissa de que apenas essas fontes de direito poderiam obrigar o empregador ao pagamento de salários intercorrentes, adotar-se-ia a premissa inversa: a greve, posto provoque a suspensão do contrato, não importa necessariamente a suspensão da prestação salarial, salvo quando se comprove que a ausência de trabalho se deu sem afinação com a vontade coletiva. Como os efeitos da suspensão do contrato de trabalho são dados pelos intérpretes da lei laboral, e não raro têm forte mitigação – lembremos o FGTS dos trabalhadores acidentados, afastados para cargos de diretoria ou que prestam serviço militar obrigatório, a manutenção do plano de assistência médica em contratos suspensos, a possibilidade de configurar-se a justa causa quando suspenso o contrato etc. –, parece razoável que se deixe ao Poder Judiciário a discricionariedade de decidir, frente às circunstâncias do caso concreto e em processos individuais, se a ausência das fontes de direito referidas numerus apertus pelo art. 7º da Lei n. 7.783/89 impediria o pagamento, ou não, dos salários. O dissídio coletivo, se manejado, serviria somente para que se declarasse, sendo o caso, o direito à percepção dos salários. Como se dirá adiante, o direito de não pagar salários depende da conduta do empregado durante a greve, inclusive porque dela pode ele não participar. 13.5 A greve sob intervenção judicial É da tradição da sociedade brasileira confiar ao Poder Judiciário a solução de seus conflitos. Mas é provável, como afirma Crivelli(1398), que a necessidade de se prestar jurisdição sobre a licitude ou legalidade da greve, em dissídios coletivos instaurados com esse fim, tenha nascido com a Lei n. 4.330/64, a lei que regia a greve nos tempos de regime político autoritário. Sob a regência daquela lei, o pagamento dos salários durante a greve era, porém, uma obriga- ção que se associava ao atendimento das reivindicações. Predizia o art. 20, parágrafo único, da Lei n. 4.330/64: “a greve suspende o contrato de trabalho, assegurando aos grevistas o pagamento dos salá- rios durante o período de sua duração e o cômputo do tempo de paralisação como de trabalho efetivo, se deferidas, pelo empregador ou pela Justiça do Trabalho, as reivindicações formuladas pelos empre- gados, total ou parcialmente”. Logo, a greve justa tinha como corolário o pagamento dos salários. Se por um lado havia a atenuação da regra segundo a qual o pagamento dos salários deve suspender-se pela singela razão da greve, por outro se impunha uma intervenção judicial que mais adiante seria usada, muita vez, apenas para reprimir o movimento grevista. É que o Poder Judiciário está, cada hora mais, inibido na função de assegurar conquistas para os trabalhadores por meio de dissídios coletivos de natureza econômica, mas é provocado para declarar a abusividade da greve e assim inviabilizar a fluência natural do movimento paredista, sem considerar a responsabilidade indi- vidual de cada trabalhador. aos dias em que não exerceram as suas atividades. Nos termos do art. 14 da Lei n. de Greve, a não observância dos ditames nela contidos, confere ao movimento paredista o caráter de sua abusividade, pelo que não há que ser modificada a decisão a quo quanto a esse aspecto. Ocorre que, mesmo se assim não fosse, o entendimento atual desta Seção Especializada é o de que, independentemente da adjetivação dada à greve, como abusiva ou não, o empregador não está obrigado a pagar o salário correspondente aos dias de paralisação, excluídas algumas hipóteses – como atraso no pagamento de salários e lockout -, esalvo acordo entre as partes. É que, nos termos do art. 7º da Lei n. 7.783/89, a participação em greve suspende o contrato de trabalho. Nesse contexto, nega-se provimento ao recurso ordinário interposto pelo SINTE- PAV/BA. Recurso ordinário não provido” ( RO – 69700-88.2009.5.05.0000 , Relatora Ministra: Dora Maria da Costa, Data de Julgamento: 14/06/2010, Seção Especializada em Dissídios Coletivos, Data de Publicação: 28/06/2010). (1397) Art. 7º Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho. (1398) CRIVELLI, Ericson. Interditos Proibitórios Versus Liberdade Sindical – Uma Visão Panorâmica do direito Brasileiro e uma Aborda- gem do Direito Internacional do Trabalho. Revista LTr 73-12/1415, dezembro de 2009. 480 – Augusto César Leite de Carvalho Os vícios formais da greve a fazem abusiva e não se oferecem, na prática, à possibilidade de serem sanados. Ademais, a declaração de abusividade serve ao empregador para que ele reclame, em seu favor, a prerrogativa de não dever os salários intercorrentes e de que pode ameaçar com a dispensa por justa causa o empregado que não retornar ao trabalho – ainda que a Justiça do Trabalho tenha forte jurisprudência, como se viu ao estudo da resolução do contrato de trabalho, na direção de não se vislumbrar justa causa nesse caso. A declaração de ilegalidade ou abusividade da greve, nos denominados dissídios de greve, geram expectativa patronal que corresponderia a um salvo-conduto para punir ou dispensar o trabalhador que permanecesse insurreto. Mas a verdade é que o sistema jurídico se revela contraditório nesse ponto, dado que os dissídios de greve convivem com a construção jurisprudencial segundo a qual o comporta- mento do trabalhador durante a greve abusiva pode isentá-lo de qualquer sanção, sobretudo se ele figura entre os que não aderiram à greve e por isso dela não participaram. Assim, a suspensão dos salários e o poder de punir o trabalhador somente podem ser equacionados em um processo individual. Em outros sistemas, inclusive o espanhol, inexiste a possibilidade de o órgão jurisdicional decidir sobre a abusividade ou ilicitude da greve, como um todo unitário, não obstante possa o juiz prover jurisdição a propósito da conduta individual do empregado que dela participe. Assim se harmoniza, inclusive, o controle judicial com a regra legal (muito festejada, embora aqui criticada) de que estaria no âmbito da dimensão individual da greve a adesão e a participação do trabalhador. Ademais, o modelo atual de dissídio de greve, que reclama uma decisão judicial ampla sobre a abusividade do movimento paredista, conduz a um dilema de difícil superação: se a greve é abusiva por vícios na sua convocação, o trabalhador estaria sendo punido em razão de conduta que deveria responsabilizar o sindicato ou a comissão dirigente da greve; se a greve é abusiva pela conduta inade- quada dos trabalhadores, somente em processos de índole individual se poderia mensurar a respon- sabilidade de cada um deles. Portanto, o dissídio de greve que visa exclusivamente à declaração de abusividade é um meio dissuasório que serve apenas para inibir, preventivamente, o exercício de direito fundamental, o direito de greve. 13.6 A greve e o interdito proibitório(1399) Faz algum tempo que os empresários usam o dissídio de greve, especialmente aquele em que buscam a declaração de abusividade do movimento grevista, e também os interditos proibitórios como fórmulas engenhosas de refrear a reivindicação obreira porventura aparelhada pela greve. E até ser editada a Emenda Constitucional 45/2004 e a Súmula Vinculante n. 23 do Supremo Tribunal Federal, os interditos proibitórios eram ajuizados na Justiça Comum, abrindo-se duas frentes, com enfoques distin- tos, junto às quais os trabalhadores defendiam o exercício, por eles, do direito fundamental de greve. Em verdade, os trabalhadores se deslocam do ataque à defesa, sendo natural que desconfiem das garantias constitucionais aparentemente à sua disposição, se na prática o seu manejo os faz verdadeiramente acuados. Os interditos proibitórios eram e são ajuizados a pretexto de que a posse dos bens do empregador estaria ameaçada de turbação ou esbulho em razão da greve, havendo notí- cia de liminares judiciais impedindo que os trabalhadores se concentrem a menos de cem ou duzentos metros do local de trabalho, ou seja, do lugar onde se instalou o conflito e haveriam de estar intera- gindo com o empregador(1400). Há, decerto, um aspecto cultural influenciando essa postura inibitória do direito de greve, sendo dela um claro sinal a alusão, muita vez, ao art. 202 do Código Penal, que prevê pena de reclusão e multa para aquele que “invadir ou ocupar estabelecimento industrial, comercial ou agrícola, com o intuito de impedir ou embaraçar o curso normal do trabalho, ou com o mesmo fim danificar o estabe- lecimento ou as coisas nele existentes ou delas dispor”, tipo legal que somente faria sentido fora do contexto da greve. No atual estágio da civilização ocidental, a opção do legislador por um método de solução de conflito deve ser considerada e otimizada. O melhor lugar para solucionar um conflito, se o método (1399) O interdito proibitório é um dos interditos possessórios. Conforme Arnaldo Rizzardo (RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 103), “três são os interditos possessórios: o de manutenção de posse, quando o possuidor é turbado em sua posse: o de reintegração de posse, se ocorre o esbulho ou a perda da posse; e o proibitório, no caso de simples ameaça, sem a perda ou limitação parcial no exercício do direito sobre a posse”. (1400) Ver, por todos, Crivelli, Revista LTr 73-12/1425. Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 481 citado traduz-se na autotutela de interesses, é certamente aquele onde o conflito se realiza. E a circuns- tância de “impedir ou embaraçar o curso normal de trabalho” é irrelevante se a tanto se destina a greve, sendo os empecilhos e embaraços à normalidade do trabalho uma sua consequência natural. Convém, portanto, verificar os pressupostos e fins dos interditos proibitórios para que se analise, com alguma profundidade, o cabimento dessa ação como meio de inibir o direito de greve. Como parâmetro dessa análise jurídica, interessa notar que, segundo o art. 567 do CPC de 2015 (art. 932 do CPC de 1973), “o possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser molestado na posse, poderá impetrar ao juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório, em que se comine ao réu determinada pena pecuniária, caso transgrida o conceito”. Assim está regido o interdito proibitório. 13.6.1 A ameaça à posse como pressuposto do interdito possessório A posse não se confunde com a mera detenção. À luz do art. 1.198 do Código Civil, considera-se detentor “aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas”. Antes, durante e após a greve, o empregado é detentor dos bens cujo domínio ou propriedade, ou mesmo a posse, pertencem ao seu empregador. Nada muda em razão da greve, pois de posse somente se cuidaria se o trabalhador pudesse ou quisesse exercer, em nome próprio, qualquer dos poderes inerentes à propriedade(1401), quais sejam: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”(1402). Não se está aqui a ressuscitar a vetusta teoria subjetiva de Savigny, para quem a posse exigia o corpus e o animus, vale dizer, o poder físico sobre a coisa e a intenção de tê-la para si. É que o empre- gado, em circunstância nenhuma, está na contingência de exercer os poderes inerentes ao domínio, não se modificando esse estado de coisas pelo fato de o empregado, ao participar da greve, continuar ou não como detentor dos bens, máquinas e equipamentos pertencentes ao empregador. O possuidor dos meios de produção é desenganadamente o empregador e a greve não o despoja dessa condição. Dir-se-ia, então, que o interdito proibitório seria cabível, contraditoriamente, em razão de a posse dos bens do empregador estar sofrendo ameaça de trabalhadores que não teriam, em verdade, a intenção de possuí-los. Na ordem dos fatos, as duas únicas possibilidades de essa posse do empre- gador estar sob ameaça se alojariam em duas hipóteses: a) no plano teórico, a intenção, que poderia ter o empregador, de usar os seus bens com finalidade diversa ou mesmo aliená-los; b) no plano prático, a impossibilidade de o empregador exercer poder físico (corpus) sobre os seus bens, não conseguindo a eles ter acesso ou promover o costumeiro uso por outros empregados, em razão da greve. Acerca da primeira hipótese, não se pode olvidar que os bens integrantes do estabelecimento empresarial servem, exclusivamente, à produção de bens ou serviços a que se dedica a empresa. Esse dado é relevante porque, assim como a propriedade, também a posse, como uma sua natural projeção, reveste-se de função social. É como dizer, dizendo-o Marcos Alcino de Azevedo Torres: A propriedade sobrevive sem o exercício da posse, de forma abstrata, com base no título aquisitivo. A posse não sobrevive sem a realidade de sua existência, não sendo razoável imaginar posse meramente abstrata. Daí a função social ‘ser mais evidente na posse e muito menos’ na propriedade, que mesmo sem o uso pode se manter como tal. A função social na propriedade [...] ‘tem por finalidade instituir um conceito dinâmico’ em substituição ‘ao conceito estático’, correspondendo uma reação anti-individualista.(1403) Aquele que pretende manter a posse para exercer os direitos inerentes à propriedade deve agir em conformidade com o art. 5º, XXIII, da Constituição – porque a propriedade deverá atender à sua função social – e, na mesma vereda, observar que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais”(1404). Não é consistente, portanto, o argumento de que, durante a greve e estranhamente, o empre- sário poderia usar, gozar e dispor livremente dos bens que ordinariamente usa para desenvolver a (1401) Art. 1204 do Código Civil – Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade. (1402) Art. 1228 do Código Civil. (1403) Apud MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 25. (1404) Art. 1228, §1º do Código Civil: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. 482 – Augusto César Leite de Carvalho sua atividade econômica, pois o direito à propriedade e à posse não o protege para fins sem relevância social ou mesmo desnecessários. Em suma, “o fundamento da função social da propriedade é elimi- nar da propriedade privada o que há de eliminável. O fundamento da função social da posse revela o imprescindível, uma expressão natural da necessidade”(1405). A segunda hipótese de possível ameaça à posse dos bens do empregador se revelaria quando a greve tornasse impossível a ele exercer sequer a detenção desses seus bens, não conseguindo a eles ter acesso ou promover o costumeiro uso por outros empregados. Assim se daria se os grevistas impe- dissem o próprio empregador ou seus prepostos de ingressar no estabelecimento, ou se apoderassem os grevistas dos meios de produção de modo a impedir que outros empregados, aqueles que normalmente utilizariam esses bens e equipamentos em sua rotina diária na empresa, fizessem-no durante a greve. De logo se exclui a pertinência de manejar-se o interdito proibitório se os empregados que operam certos equipamentos são aqueles mesmos que, em meio à greve, mantêm a detenção desses bens, sem operá-los, durante o horário de trabalho. Salvo no caso de esses bens serem objeto de manutenção ou utilização para atender a necessidades inadiáveis da comunidade, o empregador não pode recuperar-lhes a posse para destiná-los ao uso por outros empregados (pois a substituição de empregados é vedada durante a parede) ou, como sobrevisto, a qualquer outra finalidade que não corresponda à função social inerente aos meios de produção. O interdito proibitório estaria reservado, portanto, à proteção da posse do empregador nos casos em que ele próprio não tem acesso ao seu estabelecimento ou os trabalhadores se fazem detentores de bens, máquinas ou equipamentos que seriam usados normalmente por trabalhadores que não aderiram à greve. Percebe-se logo que não se trata de situações concretas que possam ser supostas apenas pelo exercício do direito de greve, demandando prova de que os trabalhadores estão mesmo a utilizar-se desse expediente abusivo e relativamente desnecessário para o sucesso do movimento paredista. 13.6.2 A necessidade de audiência de justificação para a concessão do mandado proibitório Está visto que a greve não pressupõe a perturbação da posse sobre os meios de produção. A seu turno, o art. 568 do CPC de 2015 remete à seção precedente e nesta, dedicada às demais ações possessórias, nota-se, à leitura de seu art. 562, e à semelhança do que sucedia sob a regência do CPC de 1973, a necessidade de audiência de justificação sempre que a ameaça de turbação ou esbulho não estiver previamente demonstrada. Caberia assinalar, como o faz Arnaldo Rizzardo, que “o primeiro requisito apontado tanto no Código Civil anterior, no atual, como no Código de Processo Civil, é o justo receio de ser o possuidor molestado, o que significa o temor justificado, com base em elementos concretos, e não em meras suposições, da iminência de uma ofensa concreta à posse”(1406). Em igual sentido caminha iterativa e substanciosa jurisprudência(1407) proveniente da Justiça Comum, desde sempre habituada às querelas acerca de direitos reais. (1405) Cf. Luiz Edson Fachin, apud Bezerra de Melo, op. cit., p. 26. (1406) Op. cit., p. 109. (1407) Ementas de acórdãos dos Tribunais de Justiça de São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul, Sergipe e Minas Gerais no sentido de exigir a audiência de justificação quando não há prévia demonstração de que a posse estaria sendo de algum modo molestada: “Possessória – Liminar – Interdito proibitório – Alegação de invasão de área de proteção ambiental por terceiro – Inexistência do menor indício de prova da condição do imóvel – Indeferimento do pedido liminar – Recurso desprovido” (TJSP, A6RV 990.10.047654-8, Des. Melo Colombi, j. 07/04/2010). “Agravo de instrumento. Interdito proibitório. Liminar. Deferimento ante ao contexto probatório, à justificação realizada e o parecer favorável do Ministério Público. Manutenção da decisão do juízo singular. Manutenção da decisão singular ante a proximidade do juiz à causa, aos fatos, as provas já produzidas. Agravo de instrumento desprovido” (TJBA, 3ª Câmara Cível, AI 34198-9/2008, Des. Edson Ruy Bahiense Guimarães, j. 13/01/2009). “Agravo de instrumento. Ação de interdito proibitório. Justificação prévia. Mandado liminar. Razoável verificação dos requisitos autorizadores da medida. Improvimento. Em sede de interdito proibitório, a concessão de medida limi- nar, lastreada em justificação prévia, em que se verifica, ainda que precariamente, a posse do autor. Bem como o seu justo receio de ser nela molestado, equivale à garantia de inalterabilidade da situação fática e, por conseguinte, assegura o deslinde da questão, dependente este de prova a ser concretizada durante a instrução. Esse é o alcance a ser dado ao art.929, e que melhor atende ao princípio da igualdade proces- sual” (TJBA, 1ª Câmara Cível, AI 25799-5/2003, Desa. Vilma Costa Veiga, j. 23/05/2007). “Agravo interno em agravo de instrumento. Interdito proibitório. Suspensão de decisão que havia deferido pedido liminar até a realização de audiência de justificação. Situação dos autos que aconselha o aguardo da solenidade para manifestação definitiva sobre pedido liminar. Agravo a que se nega seguimento” (TJRS, 9ª Câmara Cível, Agravo n. 70035658871, Desembargadora Marilene Bonzanini Bernardi, j. 28/04/2010). “Apelação Cível – Possessória – Interdito Proibitório – Análise coerente do arcabouço probatório por parte do julgador singular – Ausência de plausibilidade da tese invocada – Não atendimento aos requisitos traçados no art. 932, CPC – Manutenção da sentença – Recurso Improvido – Unânime” (TJSE, Apelação Cível n. 2951/2006, Des. Cezário Siqueira Neto, j. 29/10/2007). “Nos interditos, a expedição de mandado proibitório com comi- nação de pena pecuniária depende de concessão liminar precedida de justificação” (TJMG, RJTAMG 28/60, apud Theotonio Negrão,CPC Comentado, 41ª edição, p. 1055). Direito do Trabalho – Curso e Discurso – 483 A concessão liminar do mandado proibitório não pode resultar da mera convocação da greve, pois a greve não inibe o exercício da posse, sequer lhe dizendo respeito. E a postura exigente da demonstração prévia de que se estaria molestando a posse do empregador é importante para que não se utilize uma ação possessória, destinada a proteger um interesse pessoal e não raro egoístico, como artifício para esvaziar a força persuasiva que compõe o núcleo essencial do direito fundamental à greve. Além de serem improváveis as hipóteses de cabimento do interdito proibitório em meio à greve, o aspecto de por ele se sublimar um interesse de menor estatura jurídica (o de posse(1408)), hipostasiado pela intenção de enfraquecer um direito fundamental (o de greve), recomenda uma postura criteriosa e firme na admissibilidade da ação possessória. Inclusive porque o empregador pode assegurar o seu ingresso no estabelecimento empresarial ou a utilização de equipamentos usualmente operados por não grevistas por meio de petições incidentes no dissídio coletivo porventura já instaurado, sabendo todos que os interditos possessórios foram originalmente usados apenas para satisfazer o desejo maldisfarçado de fazer migrar a solução real do litígio para ramos do Poder Judiciário que não estavam habituados à questão social do trabalho humano, nem para ela se especializaram. (1408) O direito de posse não é direito fundamental, embora o seja o direito de propriedade, do qual a posse é circunstancialmente uma projeção (a posse revela-se no exercício, de fato, dos direitos inerentes à propriedade). Mas sequer a propriedade sobre um determinado bem é um direito fundamental, posto o seja o direito genérico de ser proprietário. Se a propriedade sobre determinado bem fosse um direito fundamental, teria ele as características da irrenunciabilidade, imprescritibilidade e incessibilidade, o que seria um contrassenso numa sociedade que se amolda ao liberalismo econômico. A pessoa não pode renunciar ao direito, que titulariza sempre, de investir-se na condi- ção de proprietário, também não podendo ceder ou ter prescrito o direito à propriedade, genericamente considerada. Há uma passagem de Luigi Ferrajoli (FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías: la ley del más débil. 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